RESUMO: A presente pesquisa tem por fim analisar o chamado estado de coisas inconstitucional, termo cunhado na liminar concedida na Arguição de Descumprimento do Preceito Fundamental (ADPF) nº 347 MC/DF, compreendendo seu conceito, políticas públicas que o envolve, autoridades competentes para realizá-las, bem como tudo o que cerca essa importante decisão da Corte Suprema. Dessa forma, esta pesquisa refere-se ao sistema penitenciário brasileiro como um todo, bem como sua já conhecida situação precária, buscando visualizar o nexo entre essa presente realidade e as omissões geradas pelo poder público. A subdivisão deste artigo será feita em tópicos para melhor compreensão do tema, abordando inicialmente os conceitos da ação constitucional da ADPF e, em especial, a importante liminar da ADPF de nº 347 MC/DF, responsável pelo presente trabalho. Posteriormente será abordado o desenvolvimento do fenômeno que vem sido reconhecido em todo o mundo como estado de coisas inconstitucional, objeto central dessa pesquisa.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Princípio da dignidade da pessoa humana. Sistema carcerário brasileiro. Estado de coisas inconstitucional.
Sumário: 1 Introdução. 2 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). 3 Estado de coisas inconstitucional e ADPF nº 347 MC/DF. 4 Conclusão. 5 Referências.
1 INTRODUÇÃO
O reconhecido estado de coisas inconstitucional é o quadro reconhecido pelo Poder Judiciário no qual se tem um cenário de uma grave e generalizada violação de direitos humanos que, nesse caso específico, se trata da coletividade de pessoas presas, custodiadas pelo Estado. Importante ressaltar que tal quadro não é uma decorrência lógica da prisão-pena, mas sim fruto de omissões das mais diversas autoridades públicas, o que reclama alterações urgentes em grande parte da estrutura penal brasileira. Nesse sentido, o professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos traz que:
A constatação de um quadro não simplesmente de proteção deficiente, e sim de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais, que afeta a um número amplo de pessoas; A falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e até judiciais, verdadeira “falha estatal estrutural”, que gera tanto a violação sistemática dos direitos, quanto à perpetuação e agravamento da situação; A superação dessas violações de direitos exige a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão, e sim a uma pluralidade destes — são necessárias mudanças estruturais, novas políticas públicas ou o ajuste das existentes, alocação de recursos, etc. (CAMPOS, 2015, p. 55).
O Estado é responsável por todos os detentos custodiados em seu território, devendo-lhes, conforme a própria lei exige, garantir assistências básicas como alimentação, vestuário e higiene, cumprindo um dos fundamentos trazidos pela CF/88, a dignidade da pessoa humana.
O atual sistema carcerário não permite o cumprimento da finalidade que a pena exige, de modo que, na prática, não há presente qualquer caráter ressocializador em seu cumprimento, servindo apenas para agravar a já precária estrutura penal. Dessa forma, a reincidência com seus índices alarmantes, continua gerando enorme sensação de insegurança e consequente insatisfação da sociedade.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, nos incisos XLVII e XLIX, determina que não haverá penas cruéis e que aos presos será garantido o respeito à integridade física e moral. A realidade do cárcere, entretanto, é mais fria do que a letra da lei, resultando em uma flagrante violação do princípio da dignidade da pessoa humana.
2 ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF)
A arguição de descumprimento de preceito fundamental, popularmente conhecida como ADPF, é uma ferramenta trazida pela CF/88 e disciplinada pela Lei nº 9.882/99, de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal e utilizada para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público. Quanto ao seu âmbito de incidência, o professor Luiz Alberto David Araújo traz que:
Ao pretender explicitar o que também era preceito fundamental, a Lei nº 9.882/99 inovou, trazendo hipóteses não previstas na Constituição. E trouxe para o campo do controle concentrado atos normativos municipais, atos estaduais e atos normativos federais, inclusive anteriores à Lei Maior. Portanto, a ação ampliou o campo de controle concentrado, que se limitava aos atos estaduais e federais (ADIN) ou só federais, por meio de ADECON (ARAÚJO, 2009, p. 55).
A ADPF, dessa forma, é uma ação autônoma, de natureza objetiva, servindo para contestar atos do Poder Público quando conflitantes com preceitos da Constituição e, ainda quanto a sua incidência:
A lei 9.882/99 ampliou o âmbito do controle concentrado de constitucionalidade em quatro aspectos: atos do Poder Público; leis ou atos normativos municipais; leis ou atos normativos anteriores à Constituição (direito pré-constitucional); atos inacabados do Poder Público (controle preventivo abstrato). (SIQUEIRA JR, 2011, p. 320)
Quanto aos seus legitimados, a ADPF utiliza os mesmos legitimados das outras formas de controle de constitucionalidade difuso, que são aqueles previstos no art. 103 da Constituição Federal de 1988. São eles: Presidente da República; Mesa do Senado Federal; Mesa da Câmara dos Deputados; Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; Governador de Estado ou do Distrito Federal; Procurador-Geral da República; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; Partido político com representação no Congresso Nacional; Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
A ADPF reúne características comuns às outras ações de controle concentrado, como, por exemplo, a divisão entre legitimados universais e neutros especiais: Os legitimados universais, nas palavras do professor Pedro Lenza (2014), são as pessoas que podem propor ação sem demonstrar a pertinência temática ou repercussão geral quais é o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Os legitimados especiais, por sua vez, são aqueles que devem comprovar a sua pertinência temática para só assim obter uma apreciação do STF, sendo eles a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, além do Governador de Estado ou do Distrito Federal, tendo ligação com o Partido Político com representação no Congresso Nacional e, por fim, Confederação Sindical e Entidade de Classe em Âmbito Nacional.
Ainda quanto a essa subdivisão, o excelentíssimo Ministro Luís Roberto Barroso traz que:
O claro paralelismo instituído pelo legislador relativamente à autoria da ação leva à aplicabilidade da distinção existente entre legitimados universais – que podem propor a ação em qualquer circunstância – e os legitimados não universais ou especiais, aos quais se aplica o requisito da pertinência temática. (BARROSO, 2016, p. 344)
Quanto aos seus requisitos, Pedro Lenza ensina que: “São requisitos fundamentais da ADPF, terem sido praticados algum ato pelo Poder Público e violação a direitos e preceitos fundamentais da Constituição. Em casos excepcionais e por analogia poderá ser admitido o amicus curiae, desde que seja matéria de relevante valor social, e os postulantes legitimados, conforme o artigo 7º, § 2º, da lei 9.868/99” (LENZA, 2014).
A principal finalidade da ADPF é de defender a integridade Constituição e, sobre tal atribuição, Paulo Roberto de Figueiredo Dantas ensina que:
O traço que une todas as categorias de direitos fundamentais é o fato de que são relações jurídicas verticais, em que uma das partes é o Estado, que tem o dever de observar os preceitos fixados pela Constituição, e a outra é o particular, que figura como beneficiário daqueles direitos. Atualmente, contudo, fundamentados no princípio da máxima efetividade, parte expressiva da doutrina e da jurisprudência vem defendendo que a observância dos direitos fundamentais deve ter sua aplicabilidade estendida às relações horizontais, entre particulares. (DANTAS, 2014, p. 323)
No que diz respeito aos seus efeitos, a decisão da ADPF terá eficácia erga omnes (estende-se para todos) e efeito vinculante para todos os órgãos da Administração Pública, bem como para o Poder Judiciário, exceto o próprio STF.
Por sua vez, quanto à possibilidade de liminar nesta ação constitucional, Luís Alberto David Araújo ensina que:
Caberá medida liminar na arguição de descumprimento de preceito fundamental, por decisão de maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal. Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, a liminar pode ser concedida pelo relator, sob o referendo do plenário. A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento do processo ou os efeitos das decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição. A liminar poderá igualmente consistir, a depender do pleito principal, na antecipação da tutela pleiteada ou em outro provimento que assegure a efetividade do julgamento definitivo (ARAÚJO, 2009, p. 58).
Por fim, da sentença que julgar a ADPF e dos atos que a contrariá-la:
Conforme determina expressamente o artigo 12 da lei de regência, a sentença que julgar procedente ou improcedente o pedido em arguição de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível, não podendo, ademais, ser objeto de ação rescisória. Trata-se de regra de todo semelhante àquela fixada pela lei que regulamenta a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade. Por fim, o artigo 13 da Lei nº 9.882/1999 dispõe que caberá reclamação contra o descumprimento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, na forma do Regimento Interno daquela Corte Suprema. (DANTAS, 2014, p. 288)
Por todo exposto, a ADPF se mostrou o instrumento ideal para buscar reparação a esses direitos fundamentais que há décadas vêm sendo lesados pelos representantes do Poder Público e que carecem de solução urgente por parte do Estado, como será abordado adiante.
3 ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E ADPF Nº 347 MC/DF
O Supremo Tribunal Federal, no simbólico julgamento da ADPF 347 MC/DF, declarou que o sistema carcerário brasileiro está mergulhado em um flagrante estado de coisas inconstitucional. Foi constatada a existência de um quadro generalizado e sistêmico de violência aos direitos fundamentais das pessoas que se encontram presas, custodiadas pelo Estado.
No citado julgamento, o STF entendeu que esse cenário se deu pela inércia das autoridades públicas em modificar essa conjuntura. A Suprema Corte entendeu que apenas a aplicação de políticas públicas voltadas à transformação de toda a estrutura carcerária poderia ser capaz de alterar esse parâmetro, somadas, claro, à uma atuação conjunta das mais diversas autoridades públicas do país.
No que toca às políticas públicas:
Não é tarefa simples a de precisar um conceito de políticas públicas, mas, de um modo geral, a expressão pretende significar um conjunto ou uma medida isolada praticada pelo Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado Democrático de Direito. Como destaca Eros Grau: 'A expressão política pública designa todas as atuações do Estado, desde a pressuposição de um bem demarcada separação entre Estado e Sociedade (…). A expressão política pública designa todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social. (FREIRE JR. 2005, p.73)
Esse quadro gerado pela violação sistêmica desses direitos fundamentais cria um “litígio estrutural” no sistema carcerário brasileiro, ou seja, essas coações praticadas pelo poder público atinge um número incontável de pessoas e, afim de amenizá-lo, o STF se viu na necessidade de adotar uma postura de ativismo judicial estrutural, fazendo as vezes dos poderes Legislativo e Executivo, determinando medidas concretas para amenizar esse estado de inconstitucionalidade instalado no país.
O mérito desse julgamento foi pautado em diversos princípios constitucionais, como o da proporcionalidade e da razoabilidade, mas nenhum outro princípio foi tão atingido por esse quadro quanto o princípio da dignidade humana, princípio fundamento da República, estampado no primeiro artigo da Carta Magna brasileira.
Quanto aos princípios em geral, nas Edílson Mougenot Bonfim os entendem como:
Aquelas normas que, por sua generalidade e abrangência, irradiam-se por todo o ordenamento jurídico, informando e norteando a aplicação e a interpretação das demais normas de direito, ao mesmo tempo em que conferem unidade ao sistema normativo e, em alguns casos, diante da inexistência de regras, resolvendo diretamente os conflitos (MOUGENOT, 2011, p. 66)
Por sua vez, quanto ao próprio princípio da dignidade da pessoa humana:
O homem deixa de ser considerado apenas como cidadão e passa a valer como pessoa, independentemente de qualquer ligação política ou jurídica. O reconhecimento do valor do homem enquanto homem implica o surgimento de um núcleo indestrutível de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer, verdadeira esfera de ação dos indivíduos que delimita o poder estatal (PRADO, 2010, p. 144)
A questão sobre a situação do cárcere brasileiro mostra-se extremamente complexa, pois, ao contrário dos chamados direitos de primeira dimensão, onde busca-se um absenteísmo estatal, aqui se busca o contrário, tutela-se uma atuação positiva por parte do Estado que, sempre pautado na dignidade do homem, deve buscar dar condições existenciais mínimas aos presos para que eles possam cumprir suas penas da forma mais digna possível. Quanto a essa gama de direitos, Vidal Serrano Nunes Júnior explica:
A delimitação conceitual dos direitos sociais não é uma tarefa simples, tampouco que comporte reducionismos, como o de traduzi-los singelamente como direitos prestacionais. Os direitos sociais, com efeito, envolvem uma ampla seara de direitos, como, por exemplo, os de proteção do trabalho, o direito à saúde. (...) quando falamos nesses direitos, cogitamos do Estado em uma atividade normativa e reguladora, é dizer, de intervenção no domínio de relações privadas, normatizando e regulando tais relações (NUNES JR, 2009, p. 63).
A problemática desses direitos prestacionais encontra-se principalmente na disponibilidade orçamentária. O Estado, para justificar a falta (ou insuficiência) de políticas pública em determinadas áreas sociais, alega a indisponibilidade orçamentária para concretizar esses direitos, ou seja, justifica sua omissão na falta de recursos para o fazê-lo.
A propósito, citamos novamente o professor Vidal Serrano Nunes Júnior:
A lei, em sua acepção lata, prescreve a seus destinatários determinados direitos fundamentais sociais, que, de sua vez, correspondem a uma determinação de agir do estado, este, em princípio, deve, por seus agentes, cuidar de realizá-la. Dentro dessa seara, nasce a ideia de que as despesas públicas devam ser autorizadas pelo Poder Legislativo, por meio de Lei Orçamentária Anual. (...) é dizer, sem a previsão orçamentária, a despesa, em princípio, não pode ser realizada, mas com ela o Executivo não se vê obrigado à sua realização (NUNES JR, 2009, p. 171)
Esse posicionamento do Estado para justificar suas omissões nas prestações públicas encontra respaldo na chamada teoria da reserva do possível, de raízes nas formulações do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que, no caso específico de um cidadão alemão, buscou prestação estatal a seu direito de acesso ao ensino superior. A referida Corte, por sua vez, entendeu que poderia haver limitação a este acesso com base em restrições orçamentárias, desde que a realização desse pleito prestacional extravasa-se o campo do mínimo vital.
A teoria da reserva do possível floresce na jurisprudência alemã, ante à pretensão de dois cidadãos alemães que se insurgem contra a limitação de vagas no ensino público superior de medicina, sob o argumento inicial de que tal limitação implicaria violação ao direito de livre escolhe e exercício da profissão (NUNES JR, 2009, p. 173)
A disponibilidade de orçamento para concretização dessas normas programáticas, alicerçada na teoria da reserva do possível, já foi objeto de apreciação pela Suprema Corte brasileira que, em decisão semelhante à da Corte Alemã, entendeu que essa teoria deve ser aplicada com temperamentos, de forma excepcional, justificando-se apenas à realização de direitos sociais que extrapolem o mínimo existencial.
Retornando ao estudo da ADPF nº 347, a Suprema Corte entendeu que esse mínimo existencial, esse mínimo vital não estaria sendo cumprido pelo Estado, ou seja, o poder público no exercício de sua função de custódia dos presos não estaria oferecendo condições mínimas para o cumprimento da pena, não se justificando, dessa forma, o uso da teoria da reserva do possível para este caso concreto.
O STF ainda não julgou definitivamente o mérito dessa ADPF, mas apreciou seu pedido liminar, concedendo de forma parcial os pedidos tutelados pelo autor da referida ação constitucional. Foi, entretanto, reconhecido de forma categórica que o sistema carcerário brasileiro viola direitos fundamentais de forma sistêmica e generalizada, gerando uma reprimenda cruel e desumana por parte do Estado, devendo ser objeto de toda censura possível da comunidade jurídica.
ADPF 347 MC / DF CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”.
A liminar deixa claro que os cárceres brasileiros, além de não servirem à ressocialização, fomentam o próprio aumento da criminalidade, conforme provam as mais altas taxas de reincidência nos diversos estados da federação.
É de suma importância ressaltar que a responsabilidade por esse quadro que o sistema penitenciário atravessa não é de exclusiva responsabilidade dos Poderes Executivo e Legislativo, pois ele é a soma de um conjunto de omissões que inclui até mesmo o próprio Poder Judiciário. Para que essa situação não se agrave ainda mais, ficou estabelecido na liminar alguns parâmetros de observância obrigatória, conforme a seguinte ementa:
PLENÁRIO. Sistema carcerário: estado de coisas inconstitucional e violação a direito fundamental - O Plenário concluiu o julgamento de medida cautelar em arguição de descumprimento de preceito fundamental em que discutida a configuração do chamado “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro. Nessa mesma ação também se debate a adoção de providências estruturais com objetivo de sanar as lesões a preceitos fundamentais sofridas pelos presos em decorrência de ações e omissões dos Poderes da União, dos Estados-Membros e do Distrito Federal. No caso, alegava-se estar configurado o denominado, pela Corte Constitucional da Colômbia, “estado de coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades. Postulava-se o deferimento de liminar para que fosse determinado aos juízes e tribunais: a) que lançassem, em casos de decretação ou manutenção de prisão provisória, a motivação expressa pela qual não se aplicam medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, estabelecidas no art. 319 do CPP; b) que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão; c) que considerassem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento de implemento de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal; d) que estabelecessem, quando possível, penas alternativas à prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo; e) que viessem a abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos dos presos, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando reveladas as condições de cumprimento da pena mais severas do que as previstas na ordem jurídica em razão do quadro do sistema carcerário, preservando-se, assim, a proporcionalidade da sanção; e f) que se abatesse da pena o tempo de prisão, se constatado que as condições de efetivo cumprimento são significativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica, de forma a compensar o ilícito estatal. Requeria-se, finalmente, que fosse determinado: g) ao CNJ que coordenasse mutirão carcerário a fim de revisar todos os processos de execução penal, em curso no País, que envolvessem a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às medidas pleiteadas nas alíneas “e” e “f”; e h) à União que liberasse as verbas do Fundo Penitenciário Nacional – Funpen, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos — v. Informativos 796 e 797. ADPF 347 MC/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 9.9.2015. (ADPF-347)
Em um esforço conjunto de todas autoridades públicas, dando cumprimento a esses parâmetros trazidos em sede de liminar, busca-se dar aos presos um mínimo existencial para garantia de sua dignidade no cumprimento de sua pena, fazendo cessar esse caótico cenário em que atravessa o sistema carcerário brasileiro.
4 CONCLUSÃO
Conclui-se, dessa forma, que, do ponto de vista dogmático, não será uma tarefa simples implementar em sua integralidade os pedidos do autor da ADPF nº 347/DF, pois envolve um enorme esforço por meio de uma ação conjunta dos três Poderes a fim de amenizar esse grave estado de coisas inconstitucional em que o sistema carcerário está mergulhado. Mostra-se de extrema necessidade a imediata adequação entre a lei e a realidade social, para somente assim assegurar o cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana, concretizado por meio do cumprimento de direitos individuais básicos que a população carcerária brasileira possui.
Em que pese o avanço atingido, os parâmetros trazidos pela decisão liminar da ADPF nº 347/DF não são suficientes para solucionar de vez o problema instalado, pois esta demanda exige um grande esforço das autoridades, além de disponibilidade orçamentária para uma verdadeira reestruturação física dos locais de cumprimento de pena.
Deve-se, portanto, erradicar essas lesões provocadas pela omissão do Poder Público e direcioná-lo à finalidade essencial do cumprimento da pena: a ressocialização do condenado e o seu retorno à sociedade em condições dignas de retomar sua vida no convívio social.
5 BIBLIOGRAFIA
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.
ARAÚJO, Luiz Alberto David e Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional – 13. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2009.
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BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro: Exposição Sistemática da Doutrina e Análise Crítica da Jurisprudência. – 7. Rev e atual. – São Paulo: Saraiva, 2016.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 18. Rev. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014.
DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito Processual Constitucional.5. Revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 2014.
FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O Controle Judicial de Políticas Públicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal – 6. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, v. 1, parte geral. 9. Ed., rev. atual e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
NUNES JR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988. São Paulo. Editora Verbatim, 2009.
STF. PLENÁRIO. ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015 (Info 798).
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP; Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina/PR;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Marcelo Aparecido de. Estado de Coisas Inconstitucional – ADPF nº 347 MC/DF e Sistema Carcerário Brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 mar 2020, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54297/estado-de-coisas-inconstitucional-adpf-n-347-mc-df-e-sistema-carcerrio-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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