Na mitologia clássica cultuavam-se deuses, heróis e semideuses que serviam como supedâneo para a compreensão da realidade.
Na lição de Danilo Marcondes, a caracterização do mito se dá pelo “discurso ficcional ou imaginário”. A adesão e a aceitação são pressupostos do pensamento mítico, que não demanda fundamentação. O mito, nessa perspectiva, “não se presta ao questionamento, à crítica ou à correção”[1].
Marilena Chaui explica que “o mito é a narrativa sobre a origem de alguma coisa”, que era recepcionada pelos gregos como verdade, em face de uma relação de fidúcia. A autoridade do narrador daquele pensamento decorria do fato de que este havia testemunhado o objeto da narrativa, ou, ainda, teria recebido a narrativa de alguém que testemunhou. As palavras do mito são sagradas, visto que têm origem em uma revelação divina. A narrativa mítica não se importa com contradições ou com a compreensibilidade do que se afirma[2].
Os mitos eram organizados em uma cosmogonia (cosmos = mundo ordenado e gonia = geração), explicando o mundo a partir de, em regra, histórias de famílias[3]. Basta lembrar de Saturno, o Deus do Tempo, que com uma foice castrou seu pai - Urano - e devorava os filhos, e que, por muitos séculos, foi motivo de medo dos homens; “o tempo que gera os dias e os anos e os destrói”[4].
Já a cosmologia (logia, que vem de logos = pensamento racional), busca a compreensão do mundo a partir de um discurso racional[5]. A ruptura gradual com essa forma de pensar começa no século VI a.C.[6].
Séculos adiante, no projeto iluminista, destaca-se o pensamento de Immanuel Kant, ao abordar o Esclarecimento, o momento em que o homem começa a abandonar a menoridade, caracterizada pela submissão acrítica à tutela de qualquer autoridade. Ao atingir a maioridade, o indivíduo está disposto a pensar e agir por si próprio. Ocorre que para assim proceder deve-se fazer o uso público da razão – não será autônomo o pensar e agir a partir do individualismo desprovido de base científica. É necessário, ao se valer das razões públicas, colocar a crítica à prova de outra crítica[7].
Sem o propósito de fazer uma defesa do pensamento kantiano em sua completude, é possível, contudo, meditar acerca da temática. A banalização e o reducionismo das discussões dos mais variados temas bem demonstram a menoridade kantiana que se encontra a sociedade brasileira.
O sociólogo alemão Jürgen Habermas desenvolveu uma sofisticada matriz teórica para justificar uma democracia deliberativa, na qual a autoridade encontra-se no embate argumentativo dos participantes, e não em um dado sujeito específico[8].
Esse modelo de democracia demanda uma ação comunicativa, na qual são exigidas pretensões de validade em cada ato de fala, como verdade, correção, inteligibilidade e autenticidade. Quando alguma das referidas pretensões é problematizada, surge a necessidade de fundamentar, ou seja, torna-se necessária uma espécie de discurso para cada pretensão. Nesse sentido, será fundamental, para fins de legitimidade, um discurso para justificar a verdade, a correção de uma ação, a explicação de algo que não se mostra inteligível ou ainda em relação à autenticidade do agente[9].
A razão comunicativa, portanto, se contrapõe a qualquer tipo de racionalidade que busque a dominação, manipulação e objetivação do outro. Dessa forma, destoa desse modelo a fala embasada em elucubrações mirabolantes, na fuga do tema problematizado, permeando particularidades que não traduzem o objeto do assunto que está em pauta, na mera força da autoridade que se coloca como “chefe supremo”, assim como no desprezo pelo contraditório ou pelas posições opostas, colocando, como fim último, a realização de interesses pessoais.
No Brasil, pensar na concretização de um modelo de democracia que leve em conta a racionalidade comunicativa dos falantes é um sonho distante - mas que não deve ser abandonado.
Democracias incipientes demandam cuidados redobrados para não ruírem. Nesse sentido, Levitzky e Ziblatt evidenciam o “paradoxo trágico”, quando, pela via eleitoral, líderes autoritários alcançam o poder, e fazem o seguinte alerta: “os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia - gradual, sutil e mesmo legalmente - para matá-la”[10].
Aqui os mitos ainda explicam a realidade e são considerados seriamente como uma possibilidade de verdade, sem necessidade de justificar seus atos. Além do mais, infelizmente, a “mitologia brasileira contemporânea” não apresenta a riqueza inspiradora da tradição greco-romana, tampouco os narradores possuem a perspicácia de outrora.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Almiro Eduardo de. RECK, Janriê Rodrigues. Direito e Ação Comunicativa: apresentação e fundamentação da matriz linguístico-pragmática de Jürgen Habermas e suas repercussões na compreensão do Direito. Porto Alegre, HS Editora, 2013.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 3 ed. São Paulo: Ática, 1995.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
KANT, Immanuel. Resposta à questão: O que é Esclarecimentos: Tradução: Márcio Pugliesi. In: Cognitio, São Paulo, v.13, n. 1, p. 145-154, jan/jun. 2012.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
NARDINI, Bruno. Mitologia: o primeiro encontro. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.
NOTAS:
[1] MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 19-21.
[2] CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 3 ed. São Paulo: Ática, 1995, p. 29-31.
[3] CHAUI, Op. cit., p. 30.
[4] NARDINI, Bruno. Mitologia: o primeiro encontro. São Paulo: Círculo do Livro, 1982, p. 14.
[5] CHAUI, Op. cit., p. 25.
[6] MARCONDES, Op. cit., p. 19-21.
[7] KANT, Immanuel. Resposta à questão: O que é Esclarecimentos: Tradução: Márcio Pugliesi. In: Cognitio, São Paulo, v.13, n. 1, p. 145-154, jan/jun. 2012.
[8] HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
[9] ALMEIDA, Almiro Eduardo de. RECK, Janriê Rodrigues. Direito e Ação Comunicativa: apresentação e fundamentação da matriz linguístico-pragmática de Jürgen Habermas e suas repercussões na compreensão do Direito. Porto Alegre, HS Editora, 2013, p. 47.
[10] LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 19.
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