RESUMO: Este artigo trata do federalismo fiscal. Especificamente, 1. Ressalta a sua importância no cenário internacional; 2. Apresenta considerações gerais a seu respeito no Brasil, dando ênfase à guerra fiscal que envolve o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) e à inconstitucionalidade da exigência de unanimidade nas votações do CONFAZ para a concessão de benefícios fiscais; e 3. Analisa a Proposta de Súmula Vinculante n. 69 (PSV n. 69), bem como os avanços da Lei Complementar n. 160 de 2017 (LC n.160/17). Para tanto, faz uso de bibliografia científica autorizada dentro de uma abordagem própria às ciências humanas, a abordagem explicativo-compreensiva, na tentativa de explicar e compreender os aspectos lógicos e as questões valorativas do tema e dos objetivos indicados.
Palavras-chave: Federalismo Fiscal. ICMS. CONFAZ.
Sumário: 1 Introdução – 2 O federalismo fiscal no cenário internacional – 3 A guerra fiscal e o federalismo no Brasil; 3.1 A violação do princípio constitucional democrático; 3.2 A violação do princípio constitucional federativo; 3.3 A violação do princípios constitucional da razoabilidade – 4 A Proposta de Súmula Vinculante n. 69 (PSV n. 69) e a Lei Complementar n. 160/2017 (LC n. 160/2017) – 5 Conclusão – Referências
O fenômeno do federalismo fiscal costuma estar atrelado à dimensão geográfica do país (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008), mas não se limita a isso, estando vinculado também a questões financeiras, econômicas, políticas e jurídicas (STIGLITZ, 1999). Em verdade, economias grandes, como o Brasil, convivem com duas predisposições de ordem complementar: “por um lado, o princípio da unidade do governo, associado ao desejo da integração; e, por outro, as tendências regionalistas, que devem ser reconhecidas, ainda que condicionadas ao respeito ao poder central” (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008, p. 325).
Nesse contexto, o presente artigo trata do federalismo fiscal. Especificamente, 1. Ressalta a sua importância no cenário internacional; 2. Apresenta considerações gerais a seu respeito no Brasil, dando ênfase à guerra fiscal que envolve o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) e à inconstitucionalidade da exigência de unanimidade nas votações do CONFAZ para a concessão de benefícios fiscais; e 3. Analisa a Proposta de Súmula Vinculante n. 69 (PSV n. 69), bem como os avanços da Lei Complementar n. 160 de 2017 (LC n.160/17). Para tanto, faz uso de bibliografia científica autorizada dentro de uma abordagem própria às ciências humanas, a abordagem explicativo-compreensiva, na tentativa de explicar e compreender os aspectos lógicos e as questões valorativas do tema e dos objetivos indicados.
Dito isso, as seções assim estão estruturadas:
A segunda seção, primeiro momento de desenvolvimento, trata do federalismo fiscal no âmbito da Europa e dos Estados Unidos da América. Nela não se pretende realizar nenhuma comparação; antes, o seu objetivo é expor certas preocupações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) sobre o federalismo fiscal e algumas considerações de estudiosos sobre o mesmo assunto no âmbito dos Estados Unidos, país marcado por grande efeito demonstração em função da sua renda, riqueza e dimensão geográfica.
Na terceira seção se analisa o federalismo fiscal no Brasil, mais propriamente, a guerra fiscal e a inconstitucionalidade do requerimento de unanimidade no seio do CONFAZ para a concessão de benesses fiscais de ICMS, o qual estimula tal guerra.
A quarta seção avalia dois pontos: a Proposta da Súmula Vinculante n. 69 (PSV n. 69), de autoria do ministro Gilmar Mendes, e Lei Complementar n. 160/2017 (LC n.160/2017). Defende-se nesta seção que a primeira não combate em si a guerra fiscal e que a segunda apresenta alguns avanços no combate a esse distúrbio federativo.
Por fim, a última seção está adstrita à conclusão relativa às reflexões desenvolvidas, concatenando-se não apenas às linhas desta breve introdução, como também ao conteúdo do que se tenta explanar, de forma clara, no corpo do presente artigo.
O tema do federalismo fiscal perpassa pela preocupação com a divisão das responsabilidades econômicas entre os governos federais, estaduais e municipais, e, devido a sua importância política e jurídica, extrapola as fronteiras nacionais. Trata-se, de fato, de uma questão de ordem global (STIGLITZ, 1999). Em 2016, o secretariado geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou um estudo com o objetivo de aperfeiçoar e implantar a descentralização entre os 35 países que integram tal organização. Melhor dizendo, publicou um estudo com objetivo geral de “propor opções de reforma nas estruturas fiscais intergovernamentais e nas finanças públicas das unidades subcentrais” (OECD, 2016, p. 9, tradução nossa). As questões de política fiscal que o estudo enfrenta têm natureza e estrutura macroeconômica, envolvendo tanto os lados da receita e despesa do orçamento público quanto de que maneira este vem se desenvolvendo desde 1995 (OECD, 2016). O estudo examinou:
1) Constituições fiscais e como elas formatam as relações fiscais internacionais;
2) A importância da tributação de imóveis e a sua relevância para promover um sistema tributário mais inclusivo e eficiente na órbita dos governos municipais;
3) Como a mudança de transferências governamentais para tributação própria ajuda na eficiência dos governos e fortalece os mecanismos de prestação de contas e responsabilização (accountability);
4) A maneira que os governos subnacionais devem monitorar e administrar as suas dívidas;
5) O poder de dispêndio dos governos subnacionais (OECD, 2016, p. 9, tradução nossa).
Para efeitos deste artigo, vale destacar alguns resultados. Primeiramente, verificou-se que cerca de 35% do dinheiro público é gasto nos níveis governamentais subnacionais. Os governos municipais e estaduais se encarregam de educação, saúde, infraestrutura e outras áreas-chave na política pública, com efeito sobre a produtividade e a sustentabilidade das finanças públicas. O financiamento dos serviços públicos, mediante impostos e transferências, não apenas é uma determinante fundamental do crescimento econômico de um país, mas, sobretudo, é um mecanismo crucial para o avanço do bem-estar entre os cidadãos (OECD, 2016).
Em segundo lugar, o estudo tornou evidente que as crises econômicas e financeiras que atingiram o mundo em 2008 expuseram a fragilidade das estruturas fiscais e a precariedade dos mecanismos de coordenação entre diferentes unidades administrativas dentro de cada país. Entre as diversas recomendações destaca-se a urgência de reformas nas relações fiscais, sem o que a recuperação econômica não ocorrerá. Destaca também que o federalismo fiscal equilibrado formata as instituições de cada país, demandando, portanto, uma revisão profunda que consubstancie um crescimento econômico inclusivo dos estados e municípios, de maneira a diminuir as graves desigualdades regionais entre e dentro dos países da OCDE (OECD, 2016).
Em seguida, o estudo apontou que, embora a descentralização do gasto e da receita tenha progredido ao longo das duas últimas décadas, ela ocorreu de forma viesada, agravando o desequilíbrio fiscal vertical. Isso reforçou, diz a pesquisa, a importância de uma descentralização coerente (federalismo fiscal equilibrado), sem a qual as finanças públicas podem se tornar ineficientes e insustentáveis, ou seja, injustas, o que impediria definitivamente a retomada do crescimento econômico (OECD, 2016).
Em quarto lugar, a pesquisa encomendada pelo secretariado da OCDE concluiu que a tributação sobre a propriedade é melhor do que a tributação da renda do trabalho. Nesse sentido, oferece um guia para as reformas dos sistemas tributários, bem como instrumentos de transferência, com o objeto de tornar os governos mais responsabilizáveis junto aos seus cidadãos (OECD, 2016).
Uma quinta consideração diz respeito ao grau de endividamento dos governos subnacionais, porquanto a crise financeira global de 2008 terminou por elevar a dívida destes de 6% para de 10% do Produto Interno Bruto (PIB), no curto período de 2007 a 2012. Isso acendeu a luz vermelha para os riscos de um endividamento descontrolado assente na ameaça de insolvência desses governos, o que comprometeria não apenas o crescimento econômico, mas a provisão de serviços básicos como educação, saúde, infraestrutura e segurança, acirrando as disputas inter-regionais com consequências para a paz (OECD, 2016).
Percebe-se, nesse contexto, que o estudo da OCDE revela a importância do federalismo fiscal e deixa claro que, na ausência deste, qualquer solução para um crescimento harmonioso e sustentável torna-se inócua. Discutir o todo sem atentar para as partes, seguramente levará a conclusões falaciosas. Daí a necessidade, com efeito, de algumas considerações serem tecidas sobre a discussão contemporânea do federalismo fiscal no âmbito do país mais rico e influente do mundo, os Estados Unidos.
Como se sabe, este país costuma projetar para o resto do mundo caracteres modelares, e no que concerne a temática do federalismo fiscal goza de altíssimo efeito demonstrativo em função do seu elevado nível de renda, riqueza e tamanho geográfico. Tratando do assunto, Joseph E. Stiglitz, premiado com o Nobel de Economia, em 2001, frisa que o federalismo fiscal suscita questões que vão além da teoria econômica (1999). Um exemplo remonta aos anos 1960, 1970 e 1980. Naquela época, em virtude do acirrado debate sobre os direitos civis, parte considerável da academia e dos políticos norte-americanos – os democratas – defendia um papel mais ativo para o governo federal por julgar que os governos estaduais não tinham condições políticas de receber a competência legal para defender a causa; em contrapartida, se opunham a essa linha de raciocínio aqueles que desejavam um federalismo politicamente mais equilibrado – os republicanos – e, assim, um federalismo pautado nos direitos das unidades subnacionais (STIGLITZ, 1999).
Quando, então, Ronald Reagan assumiu a presidência dos Estados Unidos, em 1981, não demorou para que a posição republicana se expressasse com mais vigor, o que se concretizou com a defesa do chamado novo federalismo. Por intermédio deste, delegou-se – em nome do combate ao elevado déficit fiscal do governo central – maior autoridade para as unidades subnacionais quanto ao bem-estar e restringiu-se ao domínio da unidade federal nacional o ônus de arcar com Medicaid, programa de saúde estadunidense (STIGLITZ,1999). Contrários a essa mudança, os críticos do novo federalismo argumentavam que este nada mais era do que um pretexto para cortes na assistência federal destinada aos estados e municípios, de forma a se reduzir o tamanho do governo federal. De todo modo, durante a metade dos anos 90, com os republicanos dominando a maioria do congresso, foram crescentes as demandas para que os estados controlassem programas que inicialmente pertenciam ao governo federal; uma discussão tão intensa que levou, inclusive, à reforma dos programas de ordem social em 1996 (STIGLITZ, 1999).
Stiglitz apresenta outros exemplos, mas tem como preocupação assegurar que existem questões políticas, financeiras, econômicas, geopolíticas e jurídicas, entre outras mais, que justificam a presença constante do debate em torno do federalismo fiscal (STIGLITZ, 1999).
Em sentido semelhante, Jonathan Gruber aponta que o federalismo fiscal discute a apropriação de tributos pelos governos central, estadual e municipal, bem como o dispêndio estatal nestes três níveis de governo (2013). Um dos exemplos por ele apresentado repousa em fato que alcançou dimensões internacionais: em março de 2010, Barack Obama desenvolveu um plano de governo com o objetivo de alterar a conhecida legislação No Child Left Behind (NCLB), introduzida anteriormente pelo governo republicano de George W. Bush, em 2002. O NCLB procurava enfrentar o problema de oportunidades educacionais para as crianças mais pobres, e previa graves penalidades, incluindo a possibilidade do afastamento de diretores, professores e até mesmo a intervenção federal, caso as escolas não conseguissem mostrar progresso. “O NCLB – escreve Gruber – representou a maior expansão do poder federal sobre as escolas em meio século” (2013, p. 263, tradução nossa).
Caminhando para o lado oposto, a administração Obama pressionou o congresso para redesenhar o NCLB, de maneira que o governo federal pudesse conceder isenções para os estados participantes dos exames de matemática e proficiência em inglês exigidos dentro do padrão da NCLB. O objetivo, entre outras coisas, era claramente diminuir o poder do governo central. Ou seja, “a questão central nesses debates sobre NCLB era a questão de quem deve controlar a política nacional” (GRUBER, 2013, p. 264, tradução nossa). De fato, qualificando este debate como algo que transcende a experiência econômica, Gruber defende que nele subsiste a busca do “federalismo fiscal ótimo, a questão de quais atividades devem ser alocadas para determinado nível de governo” (2013, p. 264, tradução nossa), o que exige, dentre outros, a interação entre diferentes ramos do conhecimento humano.
É preciso que se atente que o federalismo fiscal (ótimo ou não) deve enfrentar o problema da divisão de responsabilidade entre os governos centrais e subnacionais, algo extremamente complexo. Duas questões são fundamentais: quem toma as decisões sobre os programas de governo e quem paga por eles (STIGLITZ, 1999). Em muitos países, o governo federal paga pelo programa e concede discricionariedade aos estados para executá-los. Em outros casos, o governo federal essencialmente determina todas as condições em que devem ser administrados os programas. Em outros, ainda, o poder de tributar e executar compete às unidades subnacionais (STIGLITZ, 1999). Nos EUA, a título de ilustração, estados e municípios têm a responsabilidade para programas e ações como água, saneamento, educação, segurança pública, e uma parte considerável nos custos de transporte; ao passo que o governo federal tem uma maior responsabilidade para a saúde, seguridade social e desenvolvimento urbano. Evidentemente, estes padrões de distribuição vêm oscilando ao longo tempo conforme a alternância de poder.
Na realidade, depois da segunda metade do século XX, diversos estudiosos começaram a se preocupar com o problema de arranjos institucionais para a tributação e dispêndio público, fosse ele no âmbito central ou intergovernamental. Buscava-se a despersonalização da política fiscal, dado que a experiência do pós-guerra levou o mundo ocidental a um crescente descontrole das finanças públicas, à elevação de dívidas, ao financiamento das atividades públicas pela inflação e ao enfraquecimento da democracia (BUCHANAN; WAGNER 1977).
James M. Buchanan e Richard Wagner afirmam, por exemplo, que,
[...] “entre todas as formas de se extrair recursos, a inflação é a mais indireta, e é aquela que provavelmente requer o mais alto grau de compreensão sofisticada da parte do indivíduo [...]. Os governos não apresentam a inflação como uma forma de tributo, como um item de balança nas projeções orçamentárias publicadas [...], ao contrário, fazem esforços para atribuir as causas da inflação à entidades e eventos não governamentais – firmas capitalistas com fome de lucro, sindicatos gananciosos, más colheitas e assemelhados” (1977, p. 111, tradução nossa).
O problema se agrava quando se recorda que o descontrole fiscal e seu financiamento através da inflação ameaçaram a democracia ocidental barbaramente: Alemanha, em 1923; Israel, na década de 1980; e América Latina, entre 1975 e 1995.
Com tanta ciclotimia no ritmo de crescimento da economia ocidental, a constante ameaça de inflação, as oscilações de poder entre conservadores e progressistas, surgiu a defesa de uma constituição fiscal, a qual, segundo Buchanan e Wagner, “não foi escrita em nenhum conjunto formal de regras; [e] a sua importância repousa na sua influência em restringir a prodigalidade das pessoas, assim como os políticos que ajam em nome delas” (1977, p. 21, tradução nossa). Como se vê, a ideia inicial da constituição fiscal consiste na defesa de regras que possam cercear a predisposição para gastar (o que Buchanan identificava como ordinário nos políticos). Daí um passo para que a expressão constituição fiscal fosse estendida como forma de minimizar as oscilações que historicamente existem no federalismo fiscal. Se ela pode servir para controlar as oscilações dos déficits públicos e da inflação, pode servir também para controlar as oscilações que ora transferem poder para a unidade federativa central, ora para as unidades subnacionais.
Neste novo sentido – distribuir as competências para tributar e gastar entre o governo central e as unidades subnacionais – a expressão refere-se ao ordenamento jurídico pátrio sem distinguir entre as normas constitucionais e infraconstitucionais. Com a palavra, Kantorowicz:
“Constituições fiscais é uma expressão da moda. Os buscadores da internet registram mais de trezentos mil entradas para o termo “constituição fiscal”, o que indiretamente já estabelece a popularidade do termo. [...] Constituições fiscais determinam as regras do “jogo” das finanças públicas e assim formatam a estrutura, para os gestores de política econômica, incentivando ou desencorajando certos padrões de política pública (2015, não paginado, tradução nossa).
Tal maneira de se aproximar do federalismo fiscal, apoiando-se em normas estáveis, protege o interesse público mediante a fomentação de decisões racionais. Numa economia globalizada marcada pela alta mobilidade de capital financeiro, mercado de trabalho instável, movimentos migratórios, comércio exterior cingido por rupturas de acordos e barreiras tarifárias, diferentes autores têm suscitado que se vive numa desordem internacional, na qual os avanços tecnológicos distanciam cada vez mais o hemisfério norte do hemisfério sul, os países mais ricos e os países mais pobres. Não é de se estranhar, muito menos de se surpreender, que esses problemas também contaminam o federalismo fiscal entre as nações e dentro de cada nação. O Brasil não tem como escapar dessa discussão; é necessário enfrentá-la com rapidez, antes que seja tarde.
Sendo o federalismo fiscal um assunto de inquietação internacional, seria ingênuo imaginar que em um país de dimensões continentais como o Brasil, ainda em luta para consolidar a sua democracia e a higidez de suas finanças públicas, tal temática não provocasse um instigante debate entre juristas, economistas, políticos e a sociedade como um todo. Tratando propriamente de uma conceituação e acentuando que o federalismo fiscal está, como visto, além das balizas econômicas, assim consigna Fernando Facury Scaff: “federalismo fiscal é uma fórmula financeira para melhor distribuir os recursos públicos em um território politicamente considerado, pois sobre o espaço geográfico superpõem-se os desdobramentos políticos-administrativos (2016, p. 193). Na mesma linha, diz Regis Fernandes de Oliveira que o federalismo fiscal se destina “a fornecer os meios para que o Estado cumpra suas finalidades, podendo atender aos serviços públicos, exercitando o poder de polícia, intervindo no domínio econômico, preservando situações através de documentos e mantendo a sua estrutura” (2011, p. 46)
Ocupando-se, então, da tensão federativa no Brasil, a presente seção apresenta considerações gerais sobre o ICMS e a guerra fiscal, bem como destaca a inconstitucionalidade da exigência do requisito da unanimidade nas votações do CONFAZ, a qual se opõem a importantes diretrizes principiológicas fomentando um federalismo segregador.
3.1 Considerações gerais sobre o ICMS, a guerra fiscal e a exigência do requisito da unanimidade nas votações do CONFAZ
Na esteira dos objetivos previamente anunciados, uma vez assimilado o que vem a ser federalismo fiscal e a sua dimensão internacional, é preciso que se atente para a sua consubstanciação no cenário brasileiro, mais precisamente, para a sua relação com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços, o ICMS. Isso porque, no Brasil, esta importante tributação se insere “dentro do escopo de realização de um verdadeiro federalismo cooperativo” (SCAFF, 2016, p. 194).
Em verdade, nos termos dos arts. 147, 154, II, e 155, II, da Constituição Federal de 1988, e segundo as diretrizes gerais da Lei Complementar n. 87/96 (a Lei Kandir), o ICMS é essencialmente um imposto de competência dos estados e do Distrito Federal, tendo como fato gerador tanto a circulação de mercadorias quanto a prestação de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação (BRASIL, 1988 e 1996). Entre os tributos, trata-se certamente do imposto economicamente mais importante, porquanto “envolve as maiores quantias de dinheiro, e, [...] por isso, é aquele que, de longe, mais controvérsias suscita (CARRAZZA, 2015, p. 44)[1]. Não à toa nenhum outro tributo é tão instruído pela Lei Maior, reservando esta, em seu art. 155, § 2º, nada mais que 12 incisos para melhor especificar a tributação sobre a circulação de mercadorias e prestação de serviços (BRASIL, 1988).
O ICMS no Brasil, é importante notar, tem a sua evolução histórica originada com o Imposto sobre Vendas Mercantis (IVM), instituído pela Lei n. 4.625 de 1922. Com a Constituição de 1934, porém, foi criado o Imposto Sobre Vendas e Consignações (IVC), e este, com a Emenda n. 18/1965 à Constituição de 1946, foi substituído pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM), “o qual vinha à época incorporar as novas propostas de adoção do método do valor adicionado a fim de eliminar os efeitos negativos da cumulatividade sobre a economia brasileira” (ABRAHAM, 2017, p. 362). Na realidade, a título de maior precisão, pode-se dizer sucintamente que o ICMS “nasceu da fusão de seis impostos, a saber: a) sobre a circulação de mercadorias; b) sobre minerais; c) sobre combustíveis líquidos e gasosos; d) sobre energia elétrica; e) sobre transportes; e f) sobre comunicações” (CARNEIRO, 2015, p. 281).
Sobre a finalidade do ICMS, explica Claudio Carneiro:
A função do imposto é fiscal. No entanto, além de ter a finalidade de arrecadar para os estados ou Distrito Federal, este tributo pode excepcionalmente servir como instrumento de controle do Estado na economia, hipótese em que assume função extrafiscal. A respeito do tema, José Jayme diz que “[...] de norte a sul do Brasil, durante mais de quatro décadas de existência, utiliza-se o ICM (e há mais de vintes anos, o ICMS) com finalidades conscientemente almejadas pelos governos, diversas do simples abastecimento dos cofres públicos. Em todos os Estados, encontra-se farta exemplificação disso” (2015, p. 284).
Adentrar em toda a complexidade do ICMS não é, contudo, um propósito aqui visado. Por ora, são suficientes considerações gerais, especialmente aquelas relativas à preocupação isonômica que deve abranger este tributo, ou, por outras palavras, aquelas relativas à disputa entre as unidades tributantes pela manutenção e aproximação de investimentos para o seu espaço territorial – a chamada guerra fiscal (SCAFF, 2016). Sobre esta escrevem Gilmar Mendes e Paulo Gonet:
A guerra fiscal é valorada negativamente tanto do ponto de vista econômico quanto jurídico. Economicamente, a concessão indiscriminada de benefícios fiscais, sob variadas formas, conduz à queda da arrecadação fiscal, além de implicar efeitos concorrenciais perversos. Juridicamente, a situação é de flagrante inconstitucionalidade. Embora o constituinte tenha conferido aos estados competência legislativa para instituir o ICMS e as receitas assim geradas serem fundamentais para assegurar sua autonomia financeira, a Constituição também prevê, no art. 155, §2º, XII, g, que cabe à lei complementar “regular a forma como, mediante deliberação dos estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”. Tal previsão, entre outras, dá caráter nacional ao ICMS, tendendo a conferir certa uniformidade à incidência do imposto e, dessa maneira, coordenar a ação dos diferentes estados. Atualmente, a concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS é regulada pela Lei Complementar n. 24, de 1975 [...] (2017, p. 1495).
De imediato, então, é preciso notar, como faz Fernando Facury Scaff, que o Congresso Nacional deu nos últimos anos dois passos para encerrar tal guerra, concedendo mais recursos às unidades federativas menos desenvolvidas, em claro respeito a um dos objetivos da República Federativa do Brasil: a redução de desigualdades sociais e regionais (2016, p. 209).
O primeiro desses passos foi a aprovação de Emenda Constitucional n. 87. Publicada em abril de 2015, por ela restou estabelecido no art. 155, §2º, VII, da Constituição, que, havendo operação ou prestação que destine bem ou serviço a consumidor final localizado em outra unidade federativa – seja ele contribuinte ou não – será adotada a alíquota interestadual, cabendo à unidade federativa onde se localiza o destinatário o valor de ICMS correspondente à diferença entre a sua alíquota interna e a alíquota interestadual. Ou seja, com essa nova sistemática, nas operações e prestações interestaduais para consumidores finais, foi extinta a cobrança da alíquota interna da unidade federativa de origem, a qual era antes devida[2].
Isso significa, do ponto de vista prático, que a EC 87/2015 garante “uma grande redistribuição de rendas federativas em nosso país, pois não trata apenas do comércio eletrônico, como alardeado, mas de todo e qualquer comércio com não-residentes naquele território” (SCAFF, 2016, p. 209). Trata-se de um significativo passo para o fim da guerra fiscal. Pode-se dizer, inclusive, que essa modificação “beneficiou os estados destinatários das mercadorias (normalmente menos desenvolvidos), que passaram a sempre contar com o recolhimento da diferença de alíquotas, o que, no regime do texto original [...], só ocorria quando a pessoa do destinatário era contribuinte do imposto” (ROCHA, 2016, p. 211). Com a EC 87/2015, portanto, tem-se por objetivo a superação de um grave problema para os estados comumente chamados de consumidores, sobretudo, aqueles das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, cuja arrecadação de ICMS vinha sendo demasiadamente prejudicada em face de os principais estabelecimentos estarem localizados nos estados ditos produtores, como São Paulo e Rio de Janeiro (VELLOSO, 2016, p. 436).
O novo texto constitucional, em suma, adequa o fenômeno jurídico pátrio, pelo menos parcialmente, às necessidades hodiernas, conferindo maior equilíbrio à arrecadação do ICMS pelas unidades federativas subnacionais. Ele, ao que se indica, atinge aquilo que Tércio Sampaio Ferraz Júnior denomina de federalismo solidário, isto é, um federalismo que “alcança também as desigualdades de fato, na medida em que se desvaloriza a existência de condições empíricas discriminantes e se exige equalização de possibilidades” (1998, p. 277).
Não é demais ressaltar que esse ganho por parte das unidades tributantes de destino é gradual. A EC 87/2015, em seu art. 2º, assim determina:
Art. 2º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 99:
Art. 99. Para efeito do disposto no inciso VII do § 2º do art. 155, no caso de operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte localizado em outro Estado, o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual será partilhado entre os Estados de origem e de destino, na seguinte proporção: I - para o ano de 2015: 20% (vinte por cento) para o Estado de destino e 80% (oitenta por cento) para o Estado de origem; II - para o ano de 2016: 40% (quarenta por cento) para o Estado de destino e 60% (sessenta por cento) para o Estado de origem; III - para o ano de 2017: 60% (sessenta por cento) para o Estado de destino e 40% (quarenta por cento) para o Estado de origem; IV - para o ano de 2018: 80% (oitenta por cento) para o Estado de destino e 20% (vinte por cento) para o Estado de origem; V - a partir do ano de 2019: 100% (cem por cento) para o Estado de destino (BRASIL, 2015).
Por aí se vê que as alíquotas, desde 2016 (a referência ao ano de 2015 é um lapso do legislador), estão sendo rateadas com o fito de implementar paulatinamente a nova disposição do inciso VII do §2º do art. 155 da Constituição. O objetivo é, por óbvio, evitar alguma instabilidade inicial nos trâmites da vida contábil e econômica. De todo modo, o que importa efetivamente é que a nova disposição tributário-constitucional está mais próxima, mediante simples mudança, dos objetivos que fundam a federação brasileira.
O segundo passo dado pelo Congresso Nacional no combate à guerra fiscal foi a aprovação, em 2017, da Lei Complementar n.160, cujo escopo central é – a um só tempo – a minimização dos efeitos negativos da concorrência fiscal subnacional e a segurança jurídica dos contribuintes. Essa lei permite que os incentivos fiscais concedidos no passado, à margem da aprovação do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), uma exigência do art. 1º da Lei Complementar n. 24/1975, sejam convalidados, bem como institui regras novas para a inibição dessa prática (BRASIL, 2017). Este segundo passo – ao qual é dada atenção especial na seção 4 – garante, pois, alguma combatividade à autodestruição entre as unidades tributantes, dando resguardo para o contribuinte de boa-fé. Ou seja, por ele busca-se combater o número elevado de legislações estaduais que insistem na concessão de benefícios fiscais sem a deliberação positiva por parte do CONFAZ, numa clara afronta à legalidade.
É no âmbito do CONFAZ, aliás, que reside exigência que alimenta intensamente a guerra fiscal brasileira: a unanimidade em suas votações para a concessão de incentivos relativos ao ICMS. Diz o §2º do art. 2º da Lei Complementar n. 24/1975, que “a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes” (BRASIL, 1975, grifo nosso). A exigência de tal unanimidade, no entanto, parece não ter sido recepcionada pela Constituição Republicana de 1988, estando em dissonância com alguns dos seus mais importantes princípios. Não é por outra razão que tramita no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 198, proposta, em 2009, pelo governador do Distrito Federal, contra o referido §2° do art. 2° da Lei Complementar n. 24/1975 (BRASIL, 2009).
Princípios, em seu sentido lógico, são verdades que fundamentam todos os tipos de ciência; são alicerces pelos quais o saber científico nasce e se desenvolve. Lembre-se, por exemplo, dos princípios – há muito apreendidos – da identidade e da não-contradição. Deles nenhuma ciência pode prescindir. Ao se afirmar que A é igual a A, e que A não pode, ao mesmo tempo, ser não-A, enuncia-se princípios fundamentais sem os quais sequer seria possível o ato de pensar e a consequente transmissão de informações (REALE, 2002).
A Ciência do Direito, no intuito de atingir os seus objetivos, apreendeu e construiu ordens principiológicas mais específicas que os princípios lógicos, expressando-as, nem sempre explicitamente, como enunciações genéricas descritivo-normativas do comportamento humano; enunciações essas constitutivas de suas leis (ou regras) (REALE, 2002). Isso significa, em outras palavras, que os princípios do Direito, com exceção dos lógicos e metodológicos, não apenas informam o que é algo, mas também determinam como esse algo deve ser. Para se empregar expressão de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, muito embora dela ele faça uso para se referir às leis do Direito, os princípios jurídicos são, em sua grande maioria, “criptonormativos” (FERRAZ JR., 2010, p. 55).
Pois bem. Quais são, então, as ordens principiológicas constitucionais violadas pela exigência de unanimidade do CONFAZ para a concessão de benefícios fiscais de ICMS, conforme estabelece o §2° do art. 2° da Lei Complementar n. 24/75? Ao que se indica, são três: o princípio democrático, o princípio federativo e o princípio da razoabilidade[3], os quais serão apreciados nos tópicos que se seguem.
O princípio democrático informa diferentes regramentos do ordenamento jurídico pátrio, estando expressamente contido no caput do art. 1º da Constituição Republicana de 1988: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” (BRASIL, 1988, grifo nosso). Antes de expor o seu conteúdo, porém, insta consignar que a democracia nem sempre foi uma verdade fundante amplamente aceita pelas realidades jurídicas ocidentais.
Entre os diversificados fatos que marcaram o século XX, talvez a emersão da democracia como regime político dominante no Ocidente tenha sido um dos mais importantes. Em verdade, ao longo da história se compreendeu que o espírito democrático era, sobretudo, um perigo assente em características supostamente dignas de menor estima, como a cor, o sexo e a condição social. Foi apenas com as análises políticas de autores da importância de Max Weber (1978), Carl Schmitt (1988), Jacques Maritain (1998), entre outros tantos, bem como, especialmente, com o crescente reconhecimento de direitos universais ou humanos, que a problemática democrática se converteu em forma modelar de governo (BOBBIO, 2004; 2009; 2017; ABBAGNANO, 2007).
Na realidade, a experiência histórica e a racionalidade permitiram ao homem perceber que a democracia é valiosa porque, acima de tudo, encoraja os indivíduos a se comunicarem e cooperarem para a consubstanciação do bem comum (GEORGE, 1993). Não é por outra razão que John Rawls e Jürger Habermas, num dos mais importantes debates do século passado, entenderam ser a racionalidade pública essencial para a democracia; ou melhor, compreenderam, a despeito das grandes diferenças intelectuais de ambos, que a democracia não deve ser apreciada apenas quantitativamente, abrangendo igualmente uma cooperação pública de arranjo racional (FINLAYSON; FREYENHAGEN, 2013; HEDRICK, 2010).
Este é, aliás, o raciocínio de Amartya Sen e Bernardo Kliksberg, que inspirados pela filosofia política rawlsiana entendem que a democracia
[...] tem de ser vista não apenas em termos de cédulas e votos – por mais importantes que sejam –, mas primariamente em termos de racionalidade pública [...]. A racionalidade requer que os indivíduos tenham vontade política de ir além dos limites de seus próprios interesses específicos. Mas ela também impõe exigências sociais para ajudar um discernimento justo, inclusive o acesso à informação relevante, a oportunidade de ouvir pontos de vistas variados e exposição a discussões e debates públicos abertos. Em sua busca de objetividade política, a democracia tem de tomar a forma de uma racionalidade pública construtiva e eficaz (2010, p. 54).
Vê-se, por aí, que qualquer estrutura democrática comporta, pelo menos, três características:
1. A cooperação entre as pessoas;
2. O primado da racionalidade sobre as volições próprias; e
3. A comunhão majoritária de interesses como fonte de autoridade, isto é, como fonte de poder para o exercício de determinados atos.
Esclarecendo melhor, toda e qualquer disposição democrática exige que uma maioria concorde em conceder determinada autoridade a partir de um trabalho cooperativo pautado na razão, havendo, pois, uma tricotomia complementar no âmago democrático.
Ora, a condição de unanimidade deliberativa por parte do CONFAZ, que nada mais é do que a concessão de um poder singular de veto, rompe com a complementaridade da estrutura tríplice da democracia, na medida em que viola o elemento da comunhão majoritária de interesses, e, por conseguinte, potencializa não só a inexistência ou mitigação da cooperação, como o enfraquecimento de deliberações conformadas à razão. A exigência de unanimidade ocasiona, por outras palavras, aquilo que na lógica consequencialista costuma ser denominado de ladeira escorregadia (slippery slope argument). De fato, ao se admitir a unanimidade como critério para a concessão de benefícios fiscais de ICMS, além de se violar o elemento democrático da preponderância dos juízos majoritários, naturalmente emerge como consequência indesejável a potencialização de decisões alheias à alguma cooperatividade e racionalidade. É que os seres humanos apenas tendem ao justo, havendo em cada também o gosto pelos egoísmos.
A bem da verdade,
[...] a exigência da unanimidade no âmbito de votação realizada pelo CONFAZ decorreu de previsão instituída em 1975, em pleno Regime Militar, momento em que não havia democracia de fato no Brasil. Deste modo, apesar de o princípio democrático ser consagrado na atual Constituição Federal e ser o informador de toda a estrutura de poder no Brasil, não se pode verdadeiramente falar de respeito à democracia no âmbito do CONFAZ, pois as deliberações realizadas no conselho ignoram a vontade da maioria. A prevalecer o requisito da unanimidade nas deliberações do CONFAZ, subverter-se-á a ideia majoritária pelo reconhecimento da ditadura da minoria, quando a vontade de um único membro passa a ter supremacia em relação às demais vontades reunidas, de modo totalmente incompatível e inconciliável com o princípio democrático. Nem sequer Rousseau, um dos maiores filósofos da democracia, jamais exigiu a unanimidade para reconhecer a vontade majoritária. Nesse tom também é a opinião de Hans Kelsen [...] (KAUFMANN, 2013, p. 16).
Por isso tem razão Fernando Facury Scaff quando assegura que,
Pela lógica da unanimidade, o CONFAZ se torna o dono do ICMS e não cada estado individualmente considerado. O CONFAZ tem um papel de harmonização fiscal em um Estado Democrático de Direito, e não de coação fiscal, própria do período que em foi criado. Durante o autoritarismo a regra da unanimidade possuía uma lógica interna ao sistema; durante o período democrático esta norma não pode prosperar, pois não encontra amparo em nenhuma norma constitucional (2016, p. 196).
Ou seja, é inerente ao raciocínio democrático a renúncia às construções unânimes, devendo-se entender, como faz Ivo César Barreto de Carvalho, que qualquer quórum de unanimidade é, por natureza, antidemocrático (CARVALHO, 2015 p. 268).
Não se diz aqui, por óbvio, que a democracia é impassível de erros e injustiças, a ponto de jamais se agir irracionalmente, negando-se a cada um o que lhe é próprio. É possível que, acreditando estar circunscrita aos ditames da razão, esteja uma maioria cooperativa engajada no irracional ou em interesses próprios. É certo, de todo modo, que em sistemas não democráticos há, tipicamente, menor participação política e menos eficiência quanto à concreção do bem comum, seja por parte do Poder Público, seja no que concerne à coletividade (GEORGE, 1993) – algo que a unanimidade do CONFAZ parece albergar.
Assim como o princípio democrático, o princípio federativo está prescrito de maneira expressa no caput do art. 1º da Constituição, o que se verifica quando este anuncia que formada a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal (BRASIL, 1988). Há um detalhe, no entanto: o federalismo brasileiro, dentro das balizas instituídas pelos arts. 22, 23 e 24 da Carta de 1988, obedece à lógica da cooperatividade, de modo a se impor como imprescindível a comunicação intensa e transparente entre as unidades federativas (BRASIL, 1988).
A título de esclarecimento, na primeira metade do século XX, o exacerbado formalismo jurídico tornou-se incapaz de oferecer um Direito consoante com as exigências concretas da vida social. Das ondas de choque da Primeira e Segunda Guerras mundiais seguiu-se a necessidade da Ciência Jurídica como experiência real, uma ciência não tão afeita às abstração lógico-formais (REALE, 1992). Os fenômenos jurídicos, como consequência, se reaproximaram de padrões morais tidos como universais, e as políticas estatais passaram a se coadunar com a noção de direitos humanísticos. Houve a disseminação do ideal de cooperação multilateral como algo a ser perseguido tanto interna quanto externamente pelos Estados, sendo o federalismo cooperativo um dos retratos dessa renovada demanda (GIUBONNI, 2006; SCHÜTZE, 2009).
Cooperação, adverte Robert P. George, consiste numa ação bilateral que visa a concretização de um fim compreendido pelas partes. Nela, há sempre uma bilateralidade cuja intenção é consubstanciar uma finalidade previamente assimilada (1993). Mas qual deve ser o fim comum intencionado pelas entidades federativas? Certamente, o desenvolvimento em conjunto (SCAFF, 2014; KAUFMANN, 2013).
O federalismo cooperativo não se dá, pois, às cegas: a sua efetividade exige que as unidades federativas interajam entre si com a intenção clara de atingir como fim o desenvolvimento comunitário. Trata-se de um modelo institucional concebido “para que todos tenham iguais condições de participar das oportunidades apresentadas no jogo econômico e de poder” (SCAFF, 2014, p. 93).
Não à toa consigna Tércio Sampaio Ferraz Júnior que a cooperação
[...] exige concorrência como fator de desenvolvimento. Não a concorrência predatória, que visa eliminar ou impedir o concorrente, mas a concorrência da interdependência, na qual aos concorrentes devem ser asseguradas condições econômicas adversas, numa região ou num setor, que, então, devem ser compensadas por incentivos num regime de equilíbrio ponderado (2012, p. 9).
Dito em outro tom, entre as unidades federativas é imprescindível que inexista isolamento. Por intermédio da natureza autônoma que lhes é inerente, estas devem cooperar para fins de desenvolvimento mútuo, não sendo outra a substância do princípio federativo em sua estrutura cooperativa.
Quando, pois, o §2° do art. 2° da Lei Complementar n. 24/1975 preceitua que benesses ficais de ICMS não se darão de outra forma a não ser pela deliberação unânime do CONFAZ, acaba por contrariar o animus da lógica federativa de cooperação, porquanto desconsidera que, entre as unidades da federação pátria, há uma natural igualdade, uma igual autonomia orientada para harmonizar os interesses e evitar legislações eivadas por traços diferenciadores de ordem não isonômica. Isto é, a unanimidade do CONFAZ viola o princípio federativo e a sua forma cooperativa quando abre brecha para perseguições e favoritismos que alimentam as desigualdades regionais.
Assim,
Se apenas um ente puder colocar toda a negociação a perder, enfraquece-se a ideia de federalismo cooperativo para a redução de desigualdades regionais, já que a dissidência de um único suplantará a cooperação de todos. Somente o reconhecimento da não recepção da regra da unanimidade nas votações realizadas no âmbito do CONFAZ irá fortalecer a forma de coordenação entre os estados-membros e a União resultante da realização de acordos para a concessão de benefícios relacionados ao ICMS (KAUFMANN, 2013, p. 20-21).
Correto está, nesse contexto, Regis Fernandes de Oliveira quando diz que
[...] o órgão representativo da federação é o Senado [...]. Para as deliberações do Senado objetivando a manutenção da unidade da federação em relação ao poder tributário, há necessidade de decisão por dois terços de seus membros. Daí a incongruência não admitida pela Constituição Federal de que as decisões do CONFAZ se façam por unanimidade. Ora, se o órgão de representação política dos estados pode e deve decidir por maioria absoluta ou de dois terços [...], nenhuma lógica estrutural ou sentido jurídico tem a exigência da unanimidade prevista para as deliberações do CONFAZ, em relação à outorga de benefícios. [...] A regra da unanimidade é incompatível com o Estado Federativo que pressupõe, até mesmo por decorrência histórica, a desigualdade de seus integrantes. (OLIVEIRA, 2012, p. 848-849).
Por aí se nota que, sendo secular a dificuldade dos seus cidadãos brasileiros desenvolverem as suas próprias capacidades, exigir a unanimidade do CONFAZ é uma ofensa grave a um dos mais relevantes fundamentos jurídicos da era moderna. O pacto federativo de ordem cooperativa, verdade seja dita, existe, entre outras coisas, com o fito de evitar que os estados mais ricos e desenvolvidos reclamem – por interesses meramente próprios – contra as solicitações de concessão de incentivos ficais realizadas pelos estados de infraestrutura mais precária e, portanto, menos atrativos. A exigência de unanimidade do CONFAZ, parafraseando Scaff, não auxilia nem permite o desenvolvimento federativo, ao contrário, está exterminando a federação nacional (2016).
Poderia ser dito que o princípio da razoabilidade está primordialmente previsto, de forma implícita, no art. 5º da Constituição de 1988, o qual se destina a tratar dos direitos e garantias fundamentais (BRASIL, 1988). Quer parecer, todavia, que ele goza de maior espaço no sistema jurídico pátrio, sendo princípio orientador de todas as regras da Carta Magna. Diz-se isso porque a Ciência do Direito, trabalhando com princípios, leis e tipos – estrutura comum a todas as ciências – estuda dogmática e zeteticamente a realidade de ordem jurídica, tendo como problema central a frustração e resolução racionais dos confrontos imanentes à experiência humana (FERRAZ JR., 2010; REALE, 2002). A Ciência do Direito é, com efeito, um saber que transcende a descrição de fatos, estando preocupada com a normatização direta da conduta. Trata-se, em outras palavras, de um saber orientado, predominantemente, pela razoabilidade prática (FINNIS, 2011).
Desde a Antiguidade a razoabilidade está vinculada ao exercício de aptidões pautadas em um julgamento correto. Os gregos utilizavam a palavra phrónesis derivada de phronéo para indicar o senso virtuoso de ordenar as ações e omissões em termos discernitivos (PLATÃO, 1999, 352c). No raciocínio ocidental posterior, a razoabilidade não teve a sua acepção fundante esvaziada, ou melhor, permaneceu similar ao seu sentido oriundo, sendo designada por Tomás de Aquino como “a razão reta do agir” (2005, ST, I-II, q. 58, a. 4), significação que se estendeu até os dias atuais. Ser razoável, portanto, consiste em proceder de modo congruente, deliberado e cauteloso em direção a um fim; consiste em aperfeiçoar a razão, e isto não pode faltar a indivíduo ou nação alguma, muito menos ser tido em baixo apreço pelos fenômenos jurídicos.
Ao que se indica, a exigência do requisito da unanimidade nas votações do CONFAZ não se conforma a nada do que é constitutivo da razoabilidade. Não há nela, como visto, a devida harmonia para a materialização do princípio democrático e do princípio federativo. E mais:
[...] a exigência de unanimidade não existe nem mesmo para alterar a Constituição. As propostas de emenda constitucional devem ser aprovadas por 3/5 dos votos dos membros do Congresso Nacional. Todo o processo legislativo possui regras de aprovação inferiores a esta proporção de 3/5, sendo a regra geral a de metade mais um dos membros das Casas Legislativas (art. 47, CF). Mesmo a aprovação de súmulas vinculantes pelo STF exige a concordância de apenas 2/3 de seus membros (art. 103-A, caput, CF). Trata-se da única regra de aprovação unânime existente em todo o sistema político brasileiro! (SCAFF, 2016, p. 196)
Em verdade,
Não é razoável a exigência de unanimidade, pois nos órgãos colegiados deve prevalecer o princípio majoritário. Pior, ainda, é que aos Estados seja facultada a não ratificação do convênio. Inconstitucionais, portanto, são os dispositivos da LC 24/1975, e não as leis estaduais que concedem incentivos fiscais para a realização de objetivo preconizado pela Constituição Federal. [...] Com mais rigor na terminologia jurídica, diremos que os dispositivos da Lei Complementar 24/1975, que tornam inviável a concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS, para a redução das desigualdades regionais, não foram recepcionadas pela vigente Constituição Federal. Não foram recepcionados exatamente porque, a pretexto de regulamentar uma faculdade expressamente prevista no texto constitucional, tornam o exercício dessa faculdade praticamente impossível (MELLO; SIMÕES, 2011, p. 179-180).
Ora, é impossível reconhecer o §2° do art. 2° da Lei Complementar n. 24/75 como orientação normativa consonante com o princípio constitucional da razoabilidade. Este preceito atenta contra o constitucionalismo moderno que preconiza não só normas escritas, mas a limitação e moderação do poder político, bem como o respeito aos direitos e garantias fundamentais (MENDES; BRANCO, 2017). O §2° do art. 2° da Lei Complementar n. 24/75 é incompatível com a própria natureza da Ciência Jurídica, que não se dá mais em vácuo valorativo, como pretendia Hans Kelsen (1948;1998), e sim de modo explicativo-compreensivo, numa tentativa de dar a cada um o que lhe é devido.
Parece equivocado, com efeito, Ives Gandra da Silva Martins quando, da expressão “mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal”, presente na alínea g do inciso XII do parágrafo 2º do art. 155 da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), deduz que “a unanimidade para aprovação de incentivos, isenções e benefícios dos Estados é cláusula pétrea” (2012, p. 184). O equívoco de Martins é que a interpretação da lei não deve obedecer apenas a exigências lógico-formais (muito embora sequer exista a palavra todos no trecho acima transcrito, como parece intuir o autor), implicando sempre a apreciação axiológica dos fatos, ou melhor, a apreciação razoável dos fenômenos culturais.
Assim, um preceito jurídico deve ser interpretado sempre em sua correlação com as conjunturas existentes, de maneira que a expressão “mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal” deve ser compreendida nos termos da realidade fática da desigualdade socioeconômica entre regiões e em conformidade com a realidade valorativa da tutela dos princípios democrático e federativo. A lei precisa ser interpretada no contexto da vida concreta, acompanhando as vicissitudes sociais.
Exigir a unanimidade no seio do CONFAZ equivale a potencializar a inviabilização das propostas desoneradoras, abrindo-se um caminho irrazoável para o exercício abusivo de um direito não contemplado pela Constituição (RIBEIRO, 2012, p.1). Se conservada a exigência que aqui se problematiza, permanece intensificada a disputa estatal pela manutenção e atração de investimentos privados, e os beneficiados continuarão a se concentrar nas regiões mais ricas.
Uma solução razoável, indica-se, seria a flexibilização do quórum para a concessão de benefícios fiscais. Talvez 2/3 dos votos, ou seja, a aprovação de 18 unidades federativas, ou mesmo a maioria absoluta, no caso, 14 unidades federativas, seja o suficiente. O certo é que “o poder de veto atribuído a cada um dos Estados e ao Distrito Federal vem impedindo a realização dos objetivos constitucionais, e os interesses individuais têm prevalecido em detrimento do interesse nacional” (SOUZA, 2012, p. A-14). A persistir o poder de veto, as relações econômicas tendem a ficar congeladas, gerando motivações para driblar o ordenamento jurídico e elevar a insegurança jurídica. Em outras palavras, o poder de veto 1. Mantém o status quo operante; 2. Estimula ações defensivas que resultam em ilicitudes; 3. Prejudica a previsibilidade jurídico-econômica; 4. Inibe uma melhor estruturação das relações contratuais, 5. Lesa o cumprimento de contratos e 6. Dificulta a efetividade do cálculo econômico por parte da iniciativa privada. Em uma só frase: distancia a República brasileira de uma constituição fiscal, abrindo brechas para um federalismo fiscal menos equilibrado.
Uma vez esclarecidos os principais pontos da controvérsia acerca da recepção do art. 2º, §2º, da Lei Complementar n. 24/1975 pela Constituição Federal de 1988, resta tratar das soluções propostas – tanto pelo Poder Judiciário como pelo Poder Legislativo – para coibir, ao menos parcialmente, a chamada guerra fiscal que envolve a tributação de ICMS, quais sejam: a edição da Proposta de Súmula Vinculante 69 do STF (PSV n. 69) e a publicação da Lei Complementar n. 160 (LC n. 160).
Conforme já exposto, entende-se que grande contribuição para a guerra fiscal reside na exigência da unanimidade por parte dos entes federados nas decisões do CONFAZ sobre a concessão de benefícios fiscais quanto ao ICMS. Tal exigência, prevista no art. 2º, §2º da Lei Complementar n. 24/1975, não foi recepcionada pela Constituição, já havendo a propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 198) sobre o tema.
Ocorre que, enquanto essa problemática central não está pacificada no âmbito jurisprudencial, na medida em que a ADPF 198 encontra-se pendente de julgamento, os estados permanecem realizando a concessão de incentivos fiscais sem prévia aprovação do CONFAZ; ou seja, permanecem não obedecendo ao comando da Lei Complementar n. 24/1975, e, por conseguinte, desrespeitando o art. 155, II, §2º, XII, g, da CR/88, in verbis:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
[...]
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
[...]
XII - cabe à lei complementar:
g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. (BRASIL, 1988)
Diante deste quadro, o que se observa é que o já citado §2º do art. 2º Lei Complementar n. 24/1975, que trata da questão da unanimidade, tornou-se letra morta, pacificando-se como prática comum o reiterado desrespeito a esta legislação infraconstitucional e à própria Constituição, uma vez que esta expressamente prevê que compete à Lei Complementar a regulação da matéria.
Tanto é assim que no decorrer dos anos foram submetidas ao STF um expressivo número de ações, mais precisamente, Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s), atinentes à matéria de inconstitucionalidade da concessão unilateral de benefícios fiscais relacionados ao ICMS pelos estados membros da federação por meio de legislações estaduais. Ora, a quantidade de ações deste tipo sendo propostas e julgadas pelo STF não refletem outra coisa senão o caráter contumaz da prática da concessão de incentivos sem a observância das normas vigentes.
Nesse contexto, objetivando amenizar os conflitos fiscais, o Ministro Gilmar Mendes realizou a Proposta de Súmula Vinculante 69, apresentando como fundamento as reiteradas decisões nas ADIs 2.645, 2.906, 3.794, 1.247, 2.548, 1.308, 3.312 e 1.179 (BRASIL, 2012). A PSV 69 comtempla a seguinte sugestão de edição para o enunciado:
Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional. (BRASIL, 2012)
Embora a Proposta de Súmula Vinculante 69, literalmente, não se reporte ao critério da unanimidade na votação dos convênios pelo CONFAZ, há na doutrina pátria quem entenda que a edição desta pode vir a promover o fortalecimento deste critério e, ao contrário do que se espera, a edição da súmula acabaria por não dirimir os embates fiscais entre as unidades federativas, e sim piorá-los. Isso porque, ao dispor que é inconstitucional qualquer convênio celebrado sem prévia autorização do CONFAZ, invariavelmente o texto sumular implica na afirmação de que qualquer convênio celebrado sem aprovação unânime seria inconstitucional, porquanto esta é a forma de aprovação prevista pela Lei Complementar n. 24/1975.
Daí dizer Roberta Kaufmann que,
[...] a despeito de o texto da súmula não dispor expressamente acerca do quórum de votação ou sobre o modo de aprovação de convênios no âmbito do CONFAZ, é certo que ela termina por legitimar o atual procedimento que se encontra previsto na Lei Complementar nº 24/75, a pressupor a unanimidade da deliberação (2013, p. 23)
Não há como afirmar, portanto, que a edição da súmula promoveria a atenuação da guerra fiscal, na medida em que apenas ratifica a legislação vigente, a qual, por se afastar da realidade democrática, federativa e da razoabilidade prática é reiteradamente descumprida pelos estados membros da federação. E mais, além da não resolução, a súmula poderia gerar um agravamento do problema, pois propicia um ambiente de total insegurança jurídica, bem como fomenta a perpetuação da prática ilícita pelas unidades subnacionais, porém de forma menos transparente.
Nesse sentido, em relação à aprovação da PVS 69, esclarece Scaff:
[...] imagine-se que a súmula vinculante venha a ser editada reforçando a unanimidade do Confaz por entender que a Lei Complementar 24/75 foi recepcionada pela Constituição. Quem acredita que acabará a guerra fiscal? Entendo que entraremos apenas em outra fase da disputa. Se hoje ela existe às escâncaras, através de atos normativos publicados nos jornais, esta nova fase, pós-súmula, será do reinado dos regimes especiais. Explico para quem não acompanha o dia a dia da área tributária estadual, regime especial é uma daquelas palavras-bonde, nas quais cabe tudo que se pretende que seja alterado do regime normal. Assim, hoje, se uma empresa deseja obter redução da carga fiscal, uma norma é publicada com um mínimo de generalidade, a fim de evitar favorecimentos indevidos entre contribuintes que se encontram no mesmo estado. Com os regimes especiais, o benefício fiscal poderá não ser concedido de forma isonômica ou com publicidade, pois esta espécie de regime fiscal especial nem sempre sai publicada no Diário Oficial e muitas vezes é individualizada para cada empresa.” (2016, p. 199)
Para além de questões puramente jurídico-formais, não se pode olvidar que a aprovação desta proposta de súmula acarretaria consequências econômicas e sociais que não devem ser ignoradas. Ora, a posição do Supremo Tribunal Federal quanto à inconstitucionalidade de normas estaduais que versem sobre convênios celebrados sem prévia autorização do CONFAZ é conhecida há muito, vide as diversas decisões já proferidas por esta Corte, as quais, inclusive, servem como justificativa para a proposta da edição da Súmula Vinculante n 69. Contudo, ainda assim, os convênios continuaram a ser celebrados em moldes ilegais.
A razão para este reiterado descumprimento da norma é que, legítimos ou não, ante a ausência de ações eficazes por parte do governo federal, os incentivos de ICMS foram e continuam a ser importantes para o desenvolvimento regional de determinadas áreas que, sem estes incentivos, teriam fortes abalos na sua economia local. Outro fator importante é que estes incentivos produziram efeitos jurídicos, e as empresas que deles usufruíram agiram de boa-fé, seguindo o que ditava a legislação estadual plenamente eficaz à época. Diante disto, com vistas a assegurar a segurança jurídica, é preciso encontrar uma solução que acabe com a concessão desordenada de incentivos e benefícios de ICMS, mas não prejudique as empresas que foram induzidas a usufruir das desonerações fiscais e, em contrapartida, elevaram o PIB, a arrecadação tributária e o nível de emprego dos estados e municípios onde se instalaram.
Assim é que, mesmo com todas as críticas ora apontadas, caso a Proposta de Súmula Vinculante n. 69 venha a ser aprovada, a modulação de seus efeitos é medida que se impõe. Em verdade, a prática de conceder incentivos fiscais sem que se leve em consideração a aprovação unânime do CONFAZ é realizada há muitos anos pelos estados, e, conforme acima descrito, tais concessões formaram importantes relações entre as empresas e os entes subnacionais, impulsionando, muitas vezes, o desenvolvimento socioeconômico destes.
Sobre essa ponderação, diz Scaff:
[...] os efeitos da declaração de inconstitucionalidade devem respeitar a segurança jurídica das relações havidas com terceiros de boa-fé. A retroação, fruto da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, não pode desfazer os efeitos jurídicos concretizados ao longo do tempo com terceiros que tenham obedecido ao que manda a lei, apenas posteriormente declarada inconstitucional. Afinal, as empresas (terceiros) apenas cumpriram o que a lei ordenava — e não podem ser penalizadas por terem cumprido exatamente o que a lei ordenava —, uma vez que ela estava em pleno vigor e projetando seus efeitos sobre a sociedade. [...] Os benefícios fiscais foram concedidos pelos estados há muitos anos e muitas relações socioeconômicas foram criadas e consolidadas nesses períodos. É adequado, em nome da Segurança Jurídica [...], que certos efeitos consolidados não sejam afetados pela retroação. Registra-se que o STF este tipo de solução [...]. Enfim, dentre os direitos fundamentais está o da segurança jurídica, que protege aquele que obedeceu aos ditames da lei que estava vigente, e que só posteriormente foi declarada inconstitucional. Para conseguir finalizar a guerra fiscal é imprescindível que os fatos jurídicos já consolidados sejam respeitados, o que só pode ocorrer através da adoção de efeitos futuros a esta decisão/súmula, e não retroativos ou imediatos (2016, p. 201).
Scaff lembra ainda, citando o ministro Luís Roberto Barroso, que:
Mesmo na interpretação da vontade constitucional originária, a irretroatividade há de ser a regra, e a retroatividade a exceção. Sempre que for possível, incumbe ao exegeta aplicar o direito positivo, de qualquer nível, sem afetar situações jurídicas já definidamente constituídas. E mais: não há retroatividade tácita. Um preceito constitucional pode retroagir, mas deverá haver texto expresso nesse sentido (BARROSO apud SCAFF, 2016, p. 220).
Nesse sentido, merece destaque a Lei Complementar n. 160 de 2017, que, entre as suas principais inovações, trouxe, em seu art. 2º, I e II, a possibilidade de convalidação dos convênios fiscais concedidos em desacordo com a legislação vigente (LC 24/75) e a remissão dos créditos tributários decorrentes, sem votação unânime pelo CONFAZ, e sim com o voto favorável de 2/3 (dois terços) das unidades federadas e 1/3 (um terço) das unidades federadas integrantes de cada uma das 5 (cinco) regiões do País. Para tanto, a Lei Complementar n. 160/2017 traz certas condições, tais como: 1. A publicação nos diários oficiais dos respectivos entes federados de uma relação com a identificação de todos os atos normativos relativos às isenções, aos incentivos e aos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais; 2. Que se realize o registro e o depósito, na Secretaria Executiva do CONFAZ, da documentação comprobatória correspondente aos atos concessivos das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais. Observa-se que a intenção do legislador é garantir que haja publicidade em relação aos benefícios concedidos, conferindo a transparência necessária aos atos públicos.
Outro importante ponto da Lei Complementar n. 160/2017, trata-se da concessão ou prorrogação do prazo de vigência do benefício, uma vez cumpridas as condicionantes acima citadas, por um período de até 15 anos, a depender da atividade econômica por este abrangido, havendo prazos reduzidos de 8, 5, 3 e 1 ano. Cita-se, ainda, conforme preceitua o art. 3º, §7º, a possibilidade de concessão destes incentivos a outros contribuintes que se localizem no mesmo estado, sob a forma de extensão dos já existentes e sob os mesmos prazos, bem como que um estado proveja benefícios fiscais que foram concedidos por outros estados da mesma região, nos termos do art. 3º, §8º (BRASIL, 2017).
Por outro lado, a lei regulamenta que, ressalvadas as exceções por ela trazidas, os estados que não observarem o regramento da Lei Complementar n. 24/75 (LC n. 24/75) estarão sujeitos às penalidades previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal, tais como vedação ao recebimento de transferências voluntárias e a restrições creditícias.
Isto posto, tem-se que a Lei Complementar n. 160/2017 não se propõe a pôr fim aos conflitos da guerra fiscal; entretanto, é inegável que esta se revela como importante instrumento para amenizá-los. Ela traz, simultaneamente, uma solução razoável para os problemas dos incentivos já concedidos à margem da legislação aplicável, propondo prazos plausíveis para que os estados e as empresas possam se organizar economicamente, assim como apresenta elementos capazes de coibir a realização reiterada desta prática pelos estados, por meio das sanções previstas.
federalismo fiscal está muito além de aspectos econômicos. Nele repousa elementos financeiros, políticos e jurídicos. Deve-se dizer, a bem da verdade, que nele há um dos mais importantes fundamentos da vida ética: a imperatividade da coexistência entre duas forças, uma central e outra regional, que juntas podem levar o corpo social e institucional a uma estruturação politicamente mais forte, economicamente mais rica, e juridicamente mais desenvolvida.
A persistência, no Brasil, de uma mentalidade belicosa entre as unidades tributantes mostra que muito deve ser melhorado, a começar pelo reconhecimento de que a unanimidade exigida no âmbito do CONFAZ para a concessão de benefícios fiscais de ICMS viola os princípios constitucionais da democracia, da federação e da razoabilidade. No Brasil, como em qualquer outro país, deve subsistir cooperação e solidariedade, duas dimensões éticas que permitem ao federalismo fiscal alcançar a redução das desigualdades sociais e econômicas. Este é, aliás, um dos objetivos da República Federativa do Brasil; objetivo esse que tem como suporte o valor intrínseco de cada indivíduo humano. Daí a importância de uma constituição fiscal, isto é, daí a necessidade da consubstanciação de regramentos que combatam as oscilações dos déficits públicos, da inflação e do poder federativo. É preciso que se estime a segurança jurídica e a previsibilidade econômica, de maneira a se consolidar relações de confiança no território federal nacional.
Em outras palavras, deve-se, no Brasil, atentar para a harmonia entre as unidades federativas. Mas note-se: se na década de 1990 a agenda de conflitos repousava essencialmente no Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), na Lei Kandir, na renegociação das dívidas estaduais e na reforma tributária (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008) – todos ainda em pauta, diga-se – é preciso nos tempos hodiernos dar-se maior atenção para a guerra fiscal, que esteve durante muito tempo ocultada pelas discussões sobre a inflação. Não à toa, embora tardia, merece aplausos a ADPF 198; o mesmo podendo-se dizer da Lei Complementar n. 160/2017 e da Emenda Constitucional n. 87/2015 – todas imprescindíveis para um federalismo cooperativo e solidário. A primeira porque questiona corretamente a constitucionalidade do §2° do art. 2° da Lei Complementar n. 24/1975; a segunda, porque preza pela segurança jurídica das relações de boa-fé, bem como contribui, em certo sentido, para a flexibilização do quórum unânime no CONFAZ; e, a terceira, porque assegura a redistribuição de rendas federativas.
Desta forma, é basilar que se combata a substancialidade vazia da Proposta de Súmula Vincula n. 69 (PSV n.69). Dela nada de novo advém, tão-somente se reforça a unanimidade no CONFAZ. Todavia, se esta vier a ser aprovada, é preciso que se olhe para frente, que se institua a modulação dos efeitos para o futuro, regra em qualquer Estado Democrático de Direito.
Desistir do combate à guerra fiscal e do consequente federalismo fiscal equilibrado não deve fazer parte do espírito brasileiro. É preciso que a política de desenvolvimento regional “renasça para fazer cessar a guerra fiscal hoje presente. Que se pondere, assim, os vários matizes a serem tidos em conta, sempre em busca de um ideal não só tributário, mas de estabilidade jurídica, e de combate à corrupção” (SCAFF, 2016, p. 206).
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[1] Fábio Giambiagi e Ana Cláudia Além chegam a dizer que o ICMS responde, em média, por 90% dos recursos orçamentários dos estados mais desenvolvidos (2008, p. 329).
[2] “Um exemplo concreto do diferencial de alíquota: um consumidor da Bahia adquire mercadoria em loja de São Paulo para uso próprio em sua residência. A alíquota interna daquele produto no estado da Bahia é 17%. Por sua vez, a alíquota interestadual para destinatário no Nordeste é 7% (Resolução Senado 22/89). Assim, recolhe-se 7% (alíquota interestadual) para o estado de origem da mercadoria (SP) e o diferencial de alíquota (10%), que é a diferença entre a alíquota interna do estado destinatário e a alíquota interestadual, deve ser recolhido para o estado de destino da mercadoria (BA)” (ABRAHAM, 2017, p. 360).
[3] Na ADPF n.198, no lugar do princípio da razoabilidade, fala-se no princípio da proporcionalidade. Esta última denominação não está equivocada, mas é uma exigência do agir razoável. Em verdade, como destaca Ada Pelegrine Grinover, Antônio Fernandes e Antônio Gomes Filho, a proporcionalidade sempre teve como suporte argumentativo e lógico a noção de razoabilidade, a qual é comum e significativa nas manifestações da Suprema Corte Americana (1997). Prefere-se, com efeito, falar em violação ao princípio da razoabilidade (o que não é excludente de nenhuma percepção proporcional, pelo contrário), dando-se atenção ao direito como exigência da razoabilidade prática (FINNIS, 2011).
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará, Pós-Graduada em Direito Público e em Direito Privado pela Universidade Cândido Mendes. Analista ministerial – Especialidade: controle externo, exercendo o cargo em comissão de Assessor da Procuradoria do Ministério Público de Contas do Estado do Pará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MADEIRA, Vanessa Maria Lopes. Federalismo Fiscal: a problemática da guerra fiscal e a inconstitucionalidade da exigência de unanimidade nas votações do CONFAZ para a concessão de benefícios fiscais de ICMS Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jun 2020, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54809/federalismo-fiscal-a-problemtica-da-guerra-fiscal-e-a-inconstitucionalidade-da-exigncia-de-unanimidade-nas-votaes-do-confaz-para-a-concesso-de-benefcios-fiscais-de-icms. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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