VINÍCIUS PINHEIRO MARQUES[1]
(orientador)
RESUMO: Este artigo aborda aspectos que induzem a inconstitucionalidade da previsão legal que autorizou a penhora do bem de família do fiador do contrato locatício. A partir de uma compreensão geral acerca do processo executivo e da proteção instituída pela Lei n.º 8.009/1990 ao bem de família, debateu-se o contrato de fiança e a posição do Supremo Tribunal Federal quanto à constitucionalidade do artigo 3.º, inciso VII desta lei. Apontou-se, por fim, que a desproteção que representa esta previsão legal ao único imóvel residencial (bem de família) do fiador do contrato locatício desvela-se incompatível com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, da isonomia e com a garantia social da moradia, razão por que é inconstitucional. Em remate, considerando o recente posicionamento da Primeira Turma da Corte Suprema no RE 605.709/SP, afirmou-se que o Tribunal Supremo aparentemente caminha para a declaração de inconstitucionalidade da norma mesmo na hipótese de contrato de locação residencial, contrariamente ao entendimento anteriormente adotado.
Palavras-chave: bem de família; contrato de locação; fiador; impenhorabilidade.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. NOÇÕES GERAIS ACERCA DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FORÇADA: 1.1. Da responsabilização patrimonial no processo executivo: 1.2. Dos bens impenhoráveis; 2. DO BEM DE FAMÍLIA: 2.1. Aspectos gerais sobre o bem de família: 2.2. Do bem de família convencional: 2.3. Do bem de família legal: 2.4. Das exceções à impenhorabilidade do bem de família; 3. DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR DE CONTRATO DE LOCAÇÃO: 3.1. Aspectos gerais sobre a fiança: 3.1.1. Da fiança no contrato de locação: 3.2. Da penhorabilidade do bem de família do fiador de contrato de locação: 3.2.1. Dos posicionamentos das Cortes Superiores acerca da constitucionalidade da penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação: 3.3. Da inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador de contrato de locação: 3.3.1. Da violação ao princípio da isonomia: 3.3.2. Da violação à garantia social da moradia: 3.3.3. Da violação ao princípio da dignidade da pessoa humana: 3.3.4. Da possibilidade de se alcançar novo entendimento quanto à inconstitucionalidade da penhorabilidade do bem de família do fiador de contrato de locação. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, conjugado ao direito fundamental à moradia, expressamente previsto na Constituição da República como direito social por meio da Emenda Constitucional n. 26/2000, representam, em suma, o alicerce da impenhorabilidade do bem de família.
Instituído de maneira especial na ordem jurídica por meio da Lei n. 8.009/1990, o instituto buscou conservar às entidades familiares e indivíduo único o seu próprio teto, preservando-lhes uma existência digna em detrimento do princípio geral das obrigações concernente à responsabilidade patrimonial, segundo o qual o patrimônio do devedor é responsável por suas dívidas.
Dentre as exceções à impenhorabilidade previstas em referida lei, arroladas na extensão de seu artigo 3.º, lê-se que esta não é oponível em processo de execução movido em virtude de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação, dispositivo cuja constitucionalidade sempre foi questionada por relevantes vozes da doutrina civilista.
Não obstante a apreciação da matéria e manifestação do Supremo Tribunal Federal, afirmando a constitucionalidade de referida previsão legal – entendimento exarado no Recurso Extraordinário n.º 407688/SP (2006) –, o debate não se encerrou, pois ainda estimulado pela divergência de votos em referido julgado, propostas legislativas pela revogação do trecho legal e por oposição de parte respeitável da doutrina, que protesta a sua inconstitucionalidade.
Examinar-se-á, portanto, por meio deste trabalho, a constitucionalidade do artigo 3.º, inciso VII, da Lei do Bem de Família, e se, considerando a atual composição do Supremo Tribunal Federal, a Corte Suprema poderia rever o entendimento exarado no julgado supracitado e, contrariamente, reconhecer a inconstitucionalidade de referida prescrição legal.
Para tanto, identificar-se-ão os aspectos gerais do bem de família e sua impenhorabilidade para, ao fim, analisar-se a constitucionalidade da penhora sobre o bem de família daquele que afiança o contrato de locação. Utilizar-se-á do método de abordagem qualitativo, em razão da natureza valorativa desta análise, colhendo-se as informações pertinentes por meio dos instrumentos bibliográfico e documental.
A importância desta pesquisa traduz-se pela necessidade de aclarar a inconstitucionalidade de dispositivo legal que, ao fim, incompatibiliza-se com a Carta Constitucional, ao violar o princípio da isonomia e proporcionalidade, bem como a dignidade da pessoa humana, não tendo sido igualmente recepcionado pela Emenda Constitucional n. 26, de 2000, a qual, dentre outros, instituiu o direito social à moradia.
Inicialmente, abordar-se-ão as características gerais do processo de execução, o qual é pautado no princípio da patrimonialidade, bem como os bens que são inatingíveis pelo processo executivo. Após, serão apontados os aspectos gerais do bem de família e da fiança no contrato de locação como exceção à impenhorabilidade estabelecida pela Lei do Bem de Família. Por fim, serão debatidos os motivos pelos quais esta disposição legal pode ser considerada inconstitucional e a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal reconhecer sua incompatibilidade com a Carta Federal, diferentemente do posicionamento anteriormente adotado.
1. NOÇÕES GERAIS ACERCA DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FORÇADA
O processo de execução forçada é o meio pelo qual o credor, em busca da satisfação de uma obrigação não quitada voluntariamente, desperta a intervenção judicial para obrigar o devedor a solvê-la. Diz-se forçada porque “somente quando o obrigado não cumpre voluntariamente a obrigação é que tem lugar a intervenção do órgão judicial executivo” (THEODORO JÚNIOR, 2020, p. 212), o qual, utilizando-se de uma série de providências executivas, sobretudo que agridam o patrimônio do devedor, coagi-lo-á a cumprir a obrigação.
Neste aspecto, pensa-se em processo executivo como sendo aquele no qual o juiz, em vez de julgar – como o faz no processo de conhecimento –, debruça-se apenas em realizar, isto é, produzir na realidade fática o quadro necessário para igualá-lo à situação registrada no título executivo (THEODORO JÚNIOR, 2020). Pode-se dizer, inspirado neste mesmo doutrinador, que o Estado atua no processo executivo cumprindo uma atividade que competia ao devedor, ou seja, a satisfação do crédito.
1.1. Da responsabilização patrimonial no processo executivo
No direito processual civil brasileiro, o processo de execução se concretiza por meio da responsabilização patrimonial, característica concebida por Bueno (2014) como princípio da patrimonialidade, o qual, em suma, rege o processo executivo em direção somente do patrimônio do réu, não sobre sua pessoa. Na lição de Elpídio Donizetti (2020, p. 937):
A regra geral é de que, para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei, o devedor responde com todos os seus bens presentes, ou seja, aqueles que compõem o patrimônio no momento do ajuizamento da execução, e futuros, isto é, aqueles que vierem a ser adquiridos no curso da execução, enquanto não declarada a extinção das obrigações, ainda que pelo advento da prescrição (art. 789).
Em breve significação, ladeando o ensino precitado, a responsabilidade patrimonial significa que o patrimônio do devedor será o único alvo da ação executiva, salvo quando do não pagamento de pensão alimentícia – o qual poderá ensejar o encarceramento do executado como meio para forçar a satisfação da pretensão alimentícia executada. A Constituição da República, na dicção do artigo 5.º, inciso LXVII, proíbe, por exemplo, a prisão civil por dívida, excetuando a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.
Regra geral, portanto, os bens do executado[2], quando do processo de execução, encarregam-se de liquidarem o pagamento do crédito, em proporção que baste à sua absoluta satisfação, nos termos do artigo 789 do Diploma Processual Civil. Neste jaez, registre-se que não somente os bens preexistentes à formação da obrigação e ajuizamento da execução são responsáveis pela satisfação forçada do crédito, mas igualmente aqueles que acabem por integrar o patrimônio do executado em momento superveniente à propositura da demanda executiva (NÓBREGA, 2016).
1.2. Dos bens impenhoráveis
Alguns bens, no entanto, são inalcançáveis pelo processo executivo, dada sua natureza: tratam-se dos bens que a lei reputa como impenhorável ou inalienável. Os bens impenhoráveis estão imunes à agressão advinda do processo executivo porque são considerados indispensáveis à residência ou provimento alimentar da pessoa alvo do processo de execução, o devedor.
Lado outro, fosse o processo executivo ilimitado em seu poderio, admitir-se-ia que do devedor, em detrimento do cumprimento compulsório de uma obrigação, fossem arrancados até os bens mais básicos e imprescindíveis à sua vida, afastando-o das condições mínimas de sobrevivência, distanciando-o igualmente de uma condição digna de pessoa humana.
De fato, a limitação à busca pela satisfação do direito do exequente possui estreita ligação com a preservação da dignidade do obrigado, que, neste caso, é alçada a posição superior ao direito de crédito do exequente, por razões de cunho humanitário (NEVES, 2018). Ainda conforme este autor (2018, p. 130), “a preocupação de preservar o obrigado – e também sua família – fez com que o legislador passasse a prever formas de dispensar o mínimo necessário à sua sobrevivência digna, mesmo que em sacrifício da satisfação do direito exequendo”.
De acordo com o artigo 833 do Código de Processo Civil:
Art. 833. São impenhoráveis:
I - os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II - os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;
III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;
IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º ;
V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;
VII - os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;
VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;
IX - os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;
X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;
XI - os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;
XII - os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.
§ 1º A impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição.
§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º , e no art. 529, § 3º .
§ 3º Incluem-se na impenhorabilidade prevista no inciso V do caput os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural, exceto quando tais bens tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária.
Além da previsão constante da Lei Civil Adjetiva, a impenhorabilidade de alguns bens é também prevista em outro diploma e na legislação extravagante, como é o caso da impenhorabilidade do bem de família, estatuída pela Lei n. 8.009/1990, mas igualmente contemplada, em uma outra modalidade (convencional/voluntária), no Código Civil.
2. DO BEM DE FAMÍLIA
2.1. Aspectos gerais sobre o bem de família
O bem de família originou-se no direito americano, ao contrário de boa parte dos institutos do direito privado, que são oriundos do direito romano (VELOSO, 1990). O instituto nasceu na antiga República do Texas, sendo o objeto a ser protegido, naquela oportunidade, de acordo com a lição de Azevedo (2007) “uma pequena propriedade agrícola, residencial, da família, consagrada à proteção desta” (AZEVEDO, 2007, p. 102).
A Constituição texana, de 1836, estabelecia que todo cidadão, “com exceção dos negros africanos e seus descendentes” (!), poderia obter do Governo uma porção de terra para nela se estabelecer, trabalhar e produzir. Em 26 de janeiro de 1939 foi promulgada a “Lei do Homestead”, que declarou isentas de execução judicial por dívidas as sortes de terras até 50 acres, ou terrenos urbanos. [...]. A ideia vingou, e o “homestead” foi acolhido e regulado na legislação de quase todos os estados norte-americanos (VELOSO, 1990, p. 203).
O contexto histórico da origem do homestead retrata extensas penhoras de bens dos devedores, em momento de profunda crise financeira norte-americana, em que era inviável a obtenção de crédito (AZEVEDO, 2007) e, ainda assim, os devedores tiveram que “sofrer essa execução por preços irrisórios, resumindo-se um patrimônio, composto de terra, animais e instrumentos agrícolas, em quase nada, ante o exorbitante valor por eles pago antes da crise” (AZEVEDO, 2007, p. 103).
Ainda consoante Azevedo (2007), a legislação texana voltou-se, portanto, a estabelecer o homem na terra, proporcionando-o, para tanto, condições dignas que o protegessem e a seus bens em conjuntura socioeconômica em que tais garantias refletiam o mínimo para a reconstrução financeira dos emigrantes que se fixaram em seu território.
Foram, nessa época, após veemente movimento democrático dos trabalhadores em geral, editadas inúmeras leis protegendo-os, surgindo, em 1833, a que aboliu a prisão por dívidas, princípio hoje consagrado nas Constituições dos povos civilizados.
A lei do homestead trouxe ao lado da impenhorabilidade dos bens domésticos móveis, que foram, primeiramente, objeto de proteção, também a dos bens imóveis. Daí residir, nesta última característica, a originalidade do instituto e o objeto central de sua abrangência (p. 340)
No ordenamento jurídico pátrio, aportou o instituto do bem de família ainda durante a tramitação do Código Civil de 1916 no Senado, na forma de emenda, a qual foi aceita, ficando a matéria, por fim, positivada no Livro das Pessoas, na Parte Geral, sendo mais tarde remanejada para o Livro Segundo (Dos Bens) (VELOSO, 1990), onde permaneceu até a vigência do Código Civil de 2002, no qual está disciplinada no título atinente ao Direito de Família (artigo 1.711 e seguintes).
Ao conceituar o bem de família, Flávio Tartuce (2020, p. 732) exarou o seguinte excerto: “o bem de família pode ser conceituado como o imóvel utilizado como residência da entidade familiar, decorrente de casamento, união estável, entidade monoparental ou outra manifestação familiar, protegido por previsão legal específica”, como semelhantemente é a previsão do artigo 5.º da Lei n. 8.009/1990.
2.2. Do bem de família convencional
De antemão, deve-se distinguir o bem de família legal e o convencional, reconhecendo-se que este diz respeito ao instituto disciplinado no Código Civil (artigos 1711 a 1722) e aquele ao regulado pela Lei n. 8.009/1990, sendo acerca desta o presente estudo.
Em síntese, à luz dos dispositivos supracitados, o bem de família convencional pode ser instituído pelos cônjuges, pela entidade familiar ou terceiro, constituindo-se pelo registro do seu título no Registro de Imóveis, desde que consista em imóvel residencial, rural ou urbano (incluídos os bens acessórios que o compõem). Destarte, o bem se tornará isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, ressalvadas as exceções previstas em lei.
Como válido destaque, esclareça-se que as exceções à impenhorabilidade previstas no artigo 1.715 do Código Civil não se confundem com aquelas dispostas no artigo 3.º da Lei do Bem de Família, importante observação de Flávio Tartuce (2020), que chama a atenção do intérprete para tal distinção.
Segundo o civilista, são três as exceções à impenhorabilidade do bem de família voluntário (convencional): as dívidas anteriores à sua constituição; dívidas provenientes de tributos relativos ao prédio (obrigações propter rem); e despesas de condomínio, ainda que posteriores à instituição.
2.3. Do bem de família legal
Por sua vez, o bem de família legal é obrigatório, instituído por meio da Lei n. 8.009/1990, sendo também irrenunciável, haja vista tratar-se de matéria de ordem pública, prevalecendo sobre a vontade do beneficiário. Nesta hipótese, inobstante a ausência de sua formalização pela entidade familiar – abrigando voluntariamente o bem sob a impenhorabilidade, como na hipótese supracitada –, a proteção se conserva por força de imperativo legal.
Ao abordar a matéria, Flávio Tartuce cita que o instituto trata-se “de importante norma de ordem pública que protege tanto a família quanto a pessoa humana” (2020, p. 737). Ressoa no mesmo sentido o ensino de Arnaldo Rizzardo (2019, p. 811), que discorre:
No elenco de direitos e garantias, têm-se como da maior relevância aqueles que dizem com a vida e a dignidade do ser humano, envolvendo naturalmente a proteção à moradia, que deve constituir uma das principais metas políticas do próprio Estado. Nesta dimensão, introduziram-se leis destinadas a proteger o patrimônio formado pelos bens utilizados para as pessoas se abrigarem e viverem individualmente ou no conjunto familiar. Isto porque, na escala de valores, existe uma hierarquia, devendo os de menor importância ceder lugar aos que lhe estão acima. O direito a um crédito não pode, na sua satisfação, acarretar consequências ou efeitos tão drásticos que ferem a dignidade e o próprio direito de viver. Evidente que, entre o direito ao pagamento de uma dívida e o de morar, este fica numa escala imensamente superior, merecendo privilégios na proteção.
Colhendo-se o entendimento exarado pelo Superior Tribunal de Justiça acerca do bem de família, a instrução de Tartuce (2020) sustenta que a Corte Superior concebe a tutela emanada da impenhorabilidade do bem de família como uma proteção voltada à pessoa humana e sua premente necessidade de moradia, não se resumindo, portanto, a uma proteção limitada à família somente ou mesmo em uma guarida especial do devedor.
A proteção introduzida pela Lei n. 8.009/1990, que consta do seu primeiro dispositivo, no que concerne ao seu objeto, repousa sobre o imóvel residencial do casal ou da entidade familiar, compreendendo o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Estes bens são impenhoráveis diante de dívidas civis, comerciais, fiscais, previdenciárias ou de outra natureza, de acordo com a redação legal, enquanto seus sujeitos, na preleção de Ricardo Arcoverde (2010, p. 26-27), são:
Além dos cônjuges, dos conviventes ou dos parentes, todos os demais integrantes da família ou da entidade familiar, ou o morador singular, que residam definitivamente no imóvel serão beneficiários desse direito, na medida em que a inexcutibilidade os favoreça e também lhes permita qualquer defesa processual contra uma constrição indevida.
2.4. Das exceções à impenhorabilidade do bem de família
Como exceções ao abrigo da impenhorabilidade, a Lei n. 8.009/1990, em seu artigo 3.º, elenca as situações em que a impenhorabilidade não será oponível, isto é, não resguardará a propriedade do executado ainda que sob a égide da Lei do Bem de Família. As hipóteses constam a seguir:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - Revogado pela Lei Complementar n. 150, de 2015;
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III - pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Observa-se que, a despeito da ampla tutela humana que representa a impenhorabilidade do bem de família, optou o legislador por obstar a sua indiscriminada aplicabilidade, elegendo situações que a ressalvam, como, por exemplo, a previsão constante do inciso VII, o qual enfrentou e enfrenta duras críticas, pois, segundo entendimento de nomes importantes da doutrina civilista, o dispositivo é inconstitucional.
3. DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR DE CONTRATO DE LOCAÇÃO
3.1. Aspectos gerais sobre a fiança
Como garantia para o cumprimento de uma obrigação, pode o devedor oferecer, por exemplo, um bem (patrimônio, em sentido específico), o qual se vincula à quitação daquela, sendo esta modalidade de garantia nominada como garantia real ou caução real (como exemplo, tem-se o penhor, hipoteca e anticrese). Se, doutro modo, o adimplemento da obrigação for assegurado por um terceiro (patrimônio, em sentido geral), como garantia de seu cumprimento, tem-se a garantia pessoal, da qual a fiança é um exemplo.
A fiança é uma “típica garantia pessoal, baseada na confiança, fidúcia depositada na pessoa do garante, o fiador” (VENOSA, 2019, p. 753), por isso chamada igualmente de obrigação fidejussória, exatamente porque baseada na confiança do credor no fiador, pois o contrato é realizado entre estes. Na fiança, a partir do estabelecimento de uma obrigação acessória, firma-se a garantia do cumprimento de uma obrigação, pela qual o fiador responderá, em última análise, com seu patrimônio, se o devedor não a cumprir (VENOSA, 2019).
O contrato de fiança trava-se entre o fiador e o credor do afiançado. Sua natureza é a de um contrato subsidiário, por ter a execução condicionada à inexecução do contrato principal. Por outras palavras, a obrigação fidejussória só se torna exigível se a obrigação principal não for cumprida. Contudo, tal sucessividade não é da essência do contrato de fiança. Podem os interessados eliminá-la, estipulando a solidariedade entre o fiador e o afiançado, como, de regra, se procede na prática (GOMES, 2019, p. 444).
Algumas características gerais da fiança merecem destaque. Enquanto contrato, a fiança é considerada um contrato unilateral, haja vista dar origem à obrigação somente para o fiador (VENOSA, 2019). Além disso, ainda consoante este autor, é tradicionalmente um contrato gratuito, firmado de forma desinteressada. Interpretado de forma restritiva, o contrato de fiança é ainda, em regra, acessório, consensual e formal, estando disciplinado no Código Civil a partir do artigo 818.
Nesse sentido, colhe-se fragmento do ensino de Paulo Lôbo, que reforça as supracitadas características:
O contrato de fiança é, por sua natureza, gratuito, pois é negócio jurídico benéfico. É também unilateral, não havendo contraprestação do credor e do devedor da dívida principal. Tem sido admitida a fiança onerosa, que refoge ao sentido tradicional da fiança, quando o devedor contrata a fiança mediante pagamento de determinado valor e durante tempo certo, principalmente com instituição financeira, também denominada carta de fiança. Todavia, para Pontes de Miranda (1972, v. 44, p. 112), a onerosidade que se atribui à fiança não a faz fiança onerosa, sendo elemento estranho; há, necessariamente, outro negócio jurídico, ainda que no mesmo instrumento, que atribui ao fiador contraprestação pelo seu ato de ser fiador. De natureza distinta é o seguro-fiança, como espécie de contrato de seguro, cujo evento a ser indenizado é o não pagamento da dívida pelo devedor (LÔBO, 2017, p. 418-419).
A fiança é uma das garantias mais utilizadas nas relações negociais, sobretudo em se tratando de contratos de locação de imóveis urbanos, os quais, em que pese outras modalidades de garantias previstas em lei, exigem, em sua maioria, a garantia de fiador para sua conclusão (LÔBO, 2017).
3.1.1. Da fiança no contrato de locação
A Lei do Inquilinato (Lei n. 8.245/91) previu uma série de garantias –, a fim de se reduzir os riscos do inadimplemento do devedor locatário –, que podem ser exigidas pelo locador quando da celebração do contrato de locação. Trata-se de rol taxativo. Para Sylvio Capanema de Souza (2019, p. 181), “as garantias locatícias estão elencadas em numerus clausus, não se admitindo qualquer outra, além das que estão referidas no artigo 37, sob pena de nulidade da cláusula”.
Estas garantias são obrigações acessórias, vinculadas à obrigação principal de locação. Por seu caráter acessório, a garantia extingue-se caso a obrigação principal, a locação, seja finalizada, assim como, em caso de nulidade ou anulabilidade do contrato de locação, inquina-se, da mesma sorte, a garantia (SOUZA, 2019). Não custa lembrar, pois evidente, que o contrato de locação poderá ser celebrado sem o estabelecimento de qualquer garantia.
Dentre as modalidades previstas no artigo 37 da precitada legislação, encontram-se a caução (inciso I) e cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento (inciso IV) enquanto garantias reais, bem como a fiança (inciso II) e seguro de fiança locatícia (inciso III) enquanto garantias fidejussórias.
Conforme redação do artigo 818 do Código Civil Brasileiro, “pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra”. Portanto, no contrato de locação, a menos que haja previsão contratual expressa em sentido diverso, “a fiança vai abranger, quanto ao conteúdo, o aluguel, os encargos, a indenização pelos danos no imóvel e, até mesmo, as despesas judiciais [...]” (SLAIBI FILHO; SÁ, 2010, p. 262), caso haja ciência da ação pelo fiador.
As disposições constantes do Código Civil a respeito da fiança têm aplicação praticamente integral ao instituto quando este compõe o contrato de locação, conforme leciona Sílvio de Salvo Venosa (2019), o que, ainda assim, reclama a atenção do intérprete quanto às especificidades desta garantia à luz da Lei do Inquilinato, uma das quais, a saber, a possibilidade de se penhorar o bem de família do fiador do contrato de locação, o que será abordado em seguida.
3.2. Da penhorabilidade do bem de família do fiador de contrato de locação
A previsão legal que excetuou a execução por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação da impenhorabilidade do bem de família não nasceu com a Lei n. 8.009/1990, mas foi a Lei n. 8.245/1991 (Lei do Inquilinato), por meio do seu artigo 82, que acrescentou o inciso VII ao artigo 3.º da Lei n. 8.009/1990.
Assim, em virtude desta previsão legal, a execução em razão de fiança locatícia é capaz de romper a proteção estatuída pela Lei do Bem de Família e fazer com que o executado/fiador perca o seu único imóvel residencial em detrimento do cumprimento da obrigação afiançada.
Postergado para adiante o debate acerca da constitucionalidade desta previsão, diz-se desta que visa proteger o mercado imobiliário, sendo norma que, na opinião de Nagib Sliabi Filho Nagib e Romar Sá (2010, p. 507), era necessária, “[...] pois era muito difícil ao inquilino obter fiador que tivesse mais de um imóvel para dar em garantia, eis que o imóvel em que residia era impenhorável e, assim, praticamente representava bem extra commercium”.
No tocante à intenção legislativa, aponta Sílvio de Salvo Venosa (2019) que o legislador entendeu que, sem esta exceção, a possibilidade da concessão de fiança em contrato de locação estaria restringida, já que os fiadores desta espécie de contrato deveriam possuir patrimônio para além do imóvel residencial, o qual seria inútil em eventual processo de execução, uma vez que estaria protegido pela impenhorabilidade instituída pela Lei do Bem de Família.
O PL n. 912/1991, transformado na Lei Ordinária n. 8.245/1991 (Lei do Inquilinato), foi de iniciativa do Poder Executivo, mais especificamente um fruto da Política Habitacional elaborada pelo antigo Ministério da Ação Social.
Em sua exposição de motivos, o Governo Federal apontou, em suma, que a Lei do Inquilinato que vigorava à época era excessivamente protecionista, haja vista que presumia uma hipossuficiência do inquilino, o que, ainda conforme a justificativa apresentada para estrear uma nova legislação a respeito das locações, “restou por inviabilizar a locação de imóveis e os investimentos que tradicionalmente eram destinados à construção civil, especialmente na área de habitação”[3].
Além disso, a exposição de motivos indicou que, pelo mesmo motivo precitado, houve uma queda de investimentos em imóveis residenciais e escassez de imóveis residenciais para locação, “o que tem levado o mercado a elevar excessivamente o valor inicial do aluguel, gerando, entre outras consequências, a elevação dos índices inflacionários”[4].
Destarte, o que a exposição de motivos sugere do contexto em que foi instituída a última Lei do Inquilinato – e, consequentemente, a possibilidade de se penhorar o bem de família do fiador do contrato de locação –, é que a antiga regulamentação das locações dirigia uma proteção excessiva ao locatário, o que, por fim, ainda segundo a exposição de motivos, trouxe prejuízo ao mercado imobiliário.
Ao excluir o fiador do contrato de locação da benesse prevista na Lei do Bem de Família, isto é, a impenhorabilidade do bem de família, intencionava o legislador da Lei de Locações ampliar as chances de se conceder a fiança no contrato de locação e, assim, fomentar a negociação imobiliária. Conforme Sylvio Capanema de Souza (2019, p. 471):
A nova exceção, acrescida ao artigo 3º da Lei nº 8.009, se impunha, no interesse do mercado, pois estava se tornando quase impossível o oferecimento da garantia da fiança, já que raramente o candidato à locação conseguia um fiador que tivesse, em seu patrimônio, mais de um imóvel residencial.
Por outro lado, era justa e compreensível a recusa do locador, já que de nada lhe valia a fiança, quando o fiador só dispunha de um único imóvel residencial, que não poderia ser alcançado pela execução.
A possibilidade de se penhorar o bem de família do fiador do contrato de locação ascendeu um debate, ainda não finalizado, quanto à constitucionalidade de referida previsão legal. Ainda que a matéria tenha sido debatida no STJ, dando origem à Súmula 549/STJ, a qual consignou ser legítima a penhora do bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, bem como no STF, o qual, ao decidir o Recurso Extraordinário n.º 407.688/SP (2006), entendeu como constitucional a exceção que ora se debate, persiste a discussão a esse respeito.
Não havendo unanimidade neste último julgado, sendo a matéria ainda alvo de intensos debates entre relevantes vozes da doutrina civilista, conforme citado acima, aborda-se adiante os motivos pelos quais a previsão legal que afastou a execução movida por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação da impenhorabilidade do bem de família é inconstitucional.
3.2.1. Dos posicionamentos das Cortes Superiores acerca da constitucionalidade da penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação
No Superior Tribunal de Justiça, a ampla maioria dos julgados sempre afirmou a constitucionalidade da previsão legal que autorizou a penhora do bem de família a fim de se satisfazer obrigação decorrente de fiança locatícia. Flávio Tartuce (2020, p. 748), na última edição de seu livro sobre Direito de Família, enumera vários deles:
“Execução. Penhora. Bem de família. Fiador. Inconstitucionalidade do art. 3.º, inciso VII, da Lei 8.009/1990. Não reconhecimento. Não é inconstitucional a exceção prevista no inciso VII do art. 3.º, da Lei 8.009/1990, que autorizou a penhora do bem de família para a satisfação de débitos decorrentes de fiança locatícia” (2.º TACSP, Ap. c/ Rev. 656.658-00/9, 1.ª Câm., Rel. Juiz Vanderci Álvares, j. 27.05.2003, Anotação no mesmo sentido: JTA (LEX) 149/297, AI 496.625-00/7, 3.ª Câm., Rel. Juiz João Saletti, j. 23.09.1997, Ap. c/ Rev. 535.398-00/1, 3.ª Câm., Rel. Juiz João Saletti, j. 09.02.1999, Ap. c/ Rev. 537.004-00/2, 4.ª Câm., Rel. Juiz Mariano Siqueira, j. 15.06.1999, Ap. c/ Rev. 583.955-00/9, 12.ª Câm., Rel. Juiz Arantes Theodoro, j. 29.06.2000, Ap. c/ Rev. 593.812-00/1, 10.ª Câm., Rel. Juiz Soares Levada, j. 07.02.2001, Ap. c/ Rev. 605.973-00/3, 8.ª Câm., Rel. Juiz Renzo Leonardi, j. 26.04.2001, Ap. c/ Rev. 621.136-00/1, 10.ª Câm., Rel. Juiz Irineu Pedrotti, j. 12.12.2001, Ap. c/ Rev. 621.566-00/7, 10.ª Câm., Rel. Juiz Soares Levada, j. 12.12.2001, AI 755.476-00/1, 6.ª Câm., Rel. Juiz Lino Machado, j. 16.10.2002, Ap. c/ Rev. 628.400-00/7, 3.ª Câm., Rel. Juiz Ferraz Felisardo, j. 26.11.2002, Ap. c/ Rev. 760.642-00/0, 9.ª Câm., Rel. Juiz Claret de Almeida, j. 27.11.2002, AI 777.802-00/4, 3.ª Câm., Rel. Juiz Ribeiro Pinto, j. 11.02.2003, AI 780.849-00/0, 12.ª Câm., Rel. Juiz Arantes Theodoro, j. 27.02.2003).
Deu-se origem, inclusive, à Súmula 549, em razão da decisão exarada pela Corte no Recurso Especial n.º 1.363.368/MS, no qual a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a legitimidade da penhora realizada sobre o bem de família do fiador do contrato de locação, firmando a seguinte tese: “É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o artigo 3º, inciso VII, da Lei nº 8.009/1990”[5], que deu ensejo ao teor da Súmula 549, aprovada com redação semelhante.
Na Corte Suprema, por sua vez, o debate se apresentou mais longo e com maior amplitude, apesar de estar restrito às matérias constitucionais atinentes à isonomia e direito social de moradia, mais a esta última do que àquela primeira.
Ao julgar o Recurso Extraordinário n.º 352.940/SP, em 2005, o Ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, decidiu, monocraticamente, pela impenhorabilidade do bem de família pertencente ao fiador em contrato de locação, em decisão assim ementada:
CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”: sua não-recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido (STF. Recurso extraordinário n.º 352.940-4/SP. Relator: Ministro Carlos Velloso. Data de julgamento: 25/04/2005. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=64647>. Acesso em: 18 maio 2020).
Esta decisão não foi desafiada por recurso, transitando em julgado posteriormente. No entanto, em 2006, o Plenário do Supremo Tribunal Federal teve novo contato com a matéria, ao julgar o Recurso Extraordinário n.º 407.688, sob relatoria do Ministro Cezar Peluso, no qual se firmou o entendimento, por maioria, segundo o qual a penhora do bem de família do fiador do contrato de locação não ofende o artigo 6.º da Constituição da República:
EMENTA: FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República (STF. Recurso extraordinário nº 407.688. Relator: Ministro Cezar Peluso. Tribunal Pleno, Data de julgamento: 08/02/2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=261768>. Acesso em: 18 maio 2020).
O voto relator foi acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. Ao resumir o voto de Cezar Peluso, Flávio Tartuce (2020, p. 740) escreve:
Segundo o relator da decisão, Ministro Cezar Peluso, a lei do bem de família é clara ao prever a possibilidade de penhora do imóvel de residência de fiador de locação de imóvel urbano, sendo esta regra inafastável. Entendeu, ainda, que a pessoa tem plena liberdade de querer ou não assumir a condição de fiadora, devendo subsumir a norma infraconstitucional se assim o faz, não havendo qualquer lesão à isonomia constitucional. Por fim, alegou que a norma protege o mercado imobiliário, devendo ainda ter aplicação, nos termos do art. 170 da CF/1988.
Divergiram os Ministros Eros Grau, Ayres Brito e Celso de Melo, os quais votaram (vencidos) pelo provimento do recurso extraordinário, o qual pedia o reconhecimento de que a previsão legal que autorizava a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação não teria sido recepcionada pela Emenda Constitucional nº 26/2000, a qual incluiu o direito à moradia entre os direitos sociais.
O Ministro Eros Grau, ao dar origem à divergência, apontou, dentre outros, a relação da impenhorabilidade do bem de família com a proteção do indivíduo e sua entidade familiar, considerando suas necessidades materiais e subsistência. Assim, à luz dos precedentes da Corte, entendeu que a ressalva do fiador do contrato de locação da impenhorabilidade do bem de família fere o artigo 6.º da Constituição Federal. Além disso, apontou que o dispositivo afronta à isonomia, haja vista que enquanto o inquilino, devedor principal, é protegido pela impenhorabilidade do bem de família, o seu fiador pode sofrer a constrição em seu único imóvel residencial.
Por sua vez, o Ministro Carlos Brito, em resumo, apontou um caráter indisponível do direito à moradia, a partir das qualificações constitucionais dirigidas a esta, mormente considerando que se trata de uma necessidade essencial e, por isso, não pode sofrer penhora em razão de um contrato de fiança, pelo qual não pode decair.
O Ministro Celso de Melo, também divergindo do relator, corroborou a incongruência apontada pelo Ministro Eros Grau quanto ao inciso VII do artigo 3.º da Lei do Bem de Família: de que o fiador poderia sofrer a incidência do vínculo processual da penhora, enquanto que, mesmo quitando a obrigação afiançada e voltando-se regressivamente àquele devedor principal (isto é, o locatário), não poderia atingir-lhe o único imóvel residencial de que eventualmente fosse proprietário, pois este, sim, estaria sob a égide da impenhorabilidade do bem de família.
No Supremo Tribunal Federal, houve ainda algumas outras decisões a respeito da matéria, apontando a constitucionalidade de referida penhora. Todavia, em 2018, a Primeira Turma do Pretório Excelso reconheceu a inconstitucionalidade da disposição legal que permite a penhora do bem de família do fiador do contrato de locação, entendimento que seria restrito, no entanto, somente ao contrato de locação comercial, acerca do qual versava o processo sub judice.
Isto porque, entendeu a Corte Suprema que, quanto à discussão a respeito da penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato locatício residencial, parte-se de um juízo de ponderação entre o direito à moradia dos fiadores e direito à moradia dos locatários. O entendimento do Supremo Tribunal Federal era de que, ao se autorizar a penhora do bem de família para cumprimento da obrigação afiançada no contrato de locação, garantia-se, por via obliqua, o direito à moradia do potencial locatário, já que o permissivo legal repercutiria positivamente no mercado de locação residencial, facilitando o acesso à moradia. É o que a Ministra Rosa Weber esclareceu naquele voto (destaque meu):
Ocorre que o caso então examinado pelo Plenário, naquela sessão de julgamento [RE 407.688], dizia respeito a fiança prestada como garantia em contrato de locação residencial. Esse aspecto foi determinante para um juízo de aderência da penhora do bem de família do fiador à ordem constitucional, tomado em conta, nessa perspectiva, o impacto que eventual compreensão pela impenhorabilidade teria no mercado de locações residenciais e no correlato direito à moradia de potenciais locatários. Significa dizer que a recepção do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990 pela Emenda Constitucional nº 26/2000 foi afirmada, no referido precedente, a partir de um juízo de ponderação entre o direito à moradia de fiadores e idêntico direito de locatários (ou candidatos a locatários) (STF. Recurso extraordinário nº 605.709. Relator: Ministro Dias Toffoli. Primeira Turma, Data de julgamento: 12/06/2018. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749168585>. Acesso em: 18 maio 2020.
Ao final do julgamento do Recurso Extraordinário nº 605.709/SP, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal afirmou que a penhora do bem de família do fiador do contrato de locação comercial é inconstitucional, ao que se ementou:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO MANEJADO CONTRA ACÓRDÃO PUBLICADO EM 31.8.2005. INSUBMISSÃO À SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. PREMISSAS DISTINTAS DAS VERIFICADAS EM PRECEDENTES DESTA SUPREMA CORTE, QUE ABORDARAM GARANTIA FIDEJUSSÓRIA EM LOCAÇÃO RESIDENCIAL. CASO CONCRETO QUE ENVOLVE DÍVIDA DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO À MORADIA E COM O PRINCÍPIO DA ISONOMIA. 1. A dignidade da pessoa humana e a proteção à família exigem que se ponham ao abrigo da constrição e da alienação forçada determinados bens. É o que ocorre com o bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Interpretação do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990 não recepcionada pela EC nº 26/2000. 2. A restrição do direito à moradia do fiador em contrato de locação comercial tampouco se justifica à luz do princípio da isonomia. Eventual bem de família de propriedade do locatário não se sujeitará à constrição e alienação forçada, para o fim de satisfazer valores devidos ao locador. Não se vislumbra justificativa para que o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador, sobretudo porque tal disparidade de tratamento, ao contrário do que se verifica na locação de imóvel residencial, não se presta à promoção do próprio direito à moradia. 3. Premissas fáticas distintivas impedem a submissão do caso concreto, que envolve contrato de locação comercial, às mesmas balizas que orientaram a decisão proferida, por esta Suprema Corte, ao exame do tema nº 295 da repercussão geral, restrita aquela à análise da constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação residencial . 4. Recurso extraordinário conhecido e provido (STF. Recurso extraordinário nº 605.709. Primeira Turma. Relator: Ministro Dias Toffoli. Primeira Turma, Data de julgamento: 12/06/2018. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749168585>. Acesso em: 18 maio 2020).
Destarte, em que pese reconhecer a inconstitucionalidade da previsão legal que autoriza a penhora sobre o único bem residencial do fiador do contrato de locação, esta última decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria está adstrita à fiança concedida em contrato de locação comercial, não tendo se estendido à locação residencial, mesmo porque o julgamento em exame versava unicamente sobre aquela.
Abaixo, porém, elenca-se os motivos pelos quais a previsão legal que desguarda o bem de família do fiador do contrato de locação da impenhorabilidade de que trata a Lei n. 8.009/1990 é inconstitucional, seja no bojo de uma locação residencial ou comercial.
3.3. Da inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador de contrato de locação
Como supracitado, sempre houve divergência acerca desta matéria igualmente entre notáveis civilistas, alguns entoando forte oposição à previsão legal em exame, haja vista sua inconstitucionalidade. Aliada a isso, a instabilidade jurisprudencial do assunto pode também ser um indicativo de sua hostilidade à Constituição Federal, mormente considerando a ofensa ao princípio isonômico, direito social à moradia e à própria dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
3.3.1. Da violação ao princípio da isonomia
Um dos principais argumentos contrários à constitucionalidade do artigo 3.º, inciso VII da Lei n. 8.009/1990 é de que ao excluir o fiador do contrato de locação da proteção dada ao bem de família, o legislador violou o princípio constitucional da isonomia. Flávio Tartuce, um dos doutrinadores mais críticos desta previsão legal, revela o seu aspecto contraditório no seguinte trecho de uma de suas obras:
O bem de família – a moradia do homem e sua família – justifica a existência de sua impenhorabilidade: Lei 8.009/1990, art. 1.º. Essa impenhorabilidade decorre de constituir a moradia um direito fundamental.
Posto isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3.º, feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo do inciso VII do art. 3.º, acrescentado pela Lei 8.245/1991, não foi recebido pela EC 26, de 2000” (STF, RE 352940/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 25.04.2005, pendente de publicação) (TARTUCE, 2020, p. 749).
De fato, um dos maiores desafios para os que defendem a constitucionalidade do inciso VII do artigo 3.º da Lei n. 8.009/1990 é a flagrante violação de um critério isonômico.
Apesar do semelhante liame obrigacional que se verifica entre a obrigação principal do locatário e a obrigação do fiador, a ambos se aplicam diferentes critérios de tratamento em eventual processo executivo: protege-se o bem de família do principal obrigado pela obrigação locatícia – este não poderá ter penhorado o seu único imóvel residencial em detrimento do crédito do locador –, enquanto se desprotege o bem de família do fiador do contrato locatício – este poderá ter penhorado o seu único imóvel residencial em detrimento do crédito do locador.
A incongruência torna-se ainda mais clarividente diante da seguinte situação: se o fiador do contrato de locação eventualmente satisfaz o crédito locatício com a constrição do seu único imóvel residencial, este não poderá, na via regressiva, penhorar o único imóvel residencial do devedor principal, o inquilino, pois este, sim, está protegido pela impenhorabilidade de que trata a Lei n. 8.009/1990.
A tese da ofensa à isonomia é suscitada favoravelmente ao reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo em exame desde a decisão monocrática de Carlos Velloso no Recurso Extraordinário n.º 352.940/SP, em 2005, citado acima, além de ter respaldado, dentre outros argumentos, a recente decisão da Corte Suprema quanto à inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador do contrato de locação comercial, no contexto do Recurso Extraordinário nº 605.709/SP.
Maluf; Maluf (2016, p. 751), ao opinar sobre o assunto, manifestaram-se favoravelmente pela inconstitucionalidade do dispositivo em comento, por violação ao princípio constitucional da isonomia, aduzindo:
Somos preferencialmente pela inconstitucionalidade da regra contida no artigo em comento, por violar o princípio constitucional da isonomia, tratando de forma desigual locatário e fiador, ungidos conjuntamente ao mesmo contrato de locação. Isso se dá́ pelo fato de que o locatário, que é na realidade o devedor principal, não pode ter seu bem de família penhorado, enquanto o fiador, devedor subsidiário, tem o dever de suportar tal penalidade.
O principal argumento para a inconstitucionalidade refere-se à lesão à isonomia e à proporcionalidade. Tendo o fiador seu bem de família penhorado, perde-o e não se beneficiará de ação regressiva, não conseguirá penhorar o imóvel de residência do locatário, que é o devedor principal
Por sua vez, Carlos Roberto Gonçalves (2019, p. 607) também revela a contradição do dispositivo: “tal exceção contém uma certa incongruência, pois, tendo o inquilino como impenhoráveis os bens que guarnecem sua residência, poderia seu fiador sofrer execução de seu bem de família, sua residência”. Ao esbarrar neste obstáculo, a previsão legal que autoriza a penhora do bem de família do fiador do contrato locatício já poderia ser considerada inconstitucional, mas ainda é corroborada por outros entraves constitucionais, expostos a seguir.
3.3.2. Da violação à garantia social da moradia
O direito à moradia foi inserido no rol dos direitos sociais a partir da Emenda Constitucional n. 26/2000. Em seu curso sobre Direito Constitucional contemporâneo, Luís Roberto Barroso (2019, p. 497) assim classifica os direitos sociais:
Direitos sociais estão ligados à superação das falhas e deficiências do mercado, à proteção contra a pobreza e à promoção de justiça social. Seu objeto é assegurar aos indivíduos vida digna e acesso às oportunidades em geral. Idealmente, são direitos que devem ser satisfeitos, não por prestações individuais, mas por serviços públicos de qualidade disponíveis para todos. O reconhecimento e a exigibilidade dos chamados direitos sociais constituem uma das questões mais tormentosas do direito constitucional contemporâneo.
Pode-se afirmar que, ao acrescentar a moradia como direito social, o legislador a reputava, igualmente, como direito fundamental de uma vida digna, decorrente da própria dignidade da pessoa humana.
O bem de família, conforme amplamente exposto acima, tem por um de seus fundamentos a garantia social da moradia, pondo a salvo da constrição advinda de eventual execução forçada o imóvel dedicado à residência da entidade familiar, resguardando, por fim, a dignidade humana diante das dívidas, o que testifica o componente humanitário do instituto.
Ao se autorizar a penhora do bem de família do fiador do contrato locatício, está-se, na verdade, afastando-o de uma garantia fundamental – a da moradia –, em detrimento da satisfação de um crédito locatício. Há, em última análise, uma sobreposição da satisfação de uma dívida em consequência do próprio direito de moradia do fiador, o qual está umbilicalmente ligado à sua própria dignidade humana. Contradiz-se, pois, os fundamentos da instituição do direito social de moradia e a proteção legal bem de família, como se pode aferir pelo ensino de Gabriel Sousa Longo (2005, p. 204):
O direito à moradia foi inserto no texto constitucional, como já foi dito, por meio da EC n 26/20; logo, houve uma forte vontade política emanada pelo Estado em querer explicitamente atribuir à moradia uma dignidade constitucional. Uma vez inserido na Constituição, seu caráter de norma programática deve ser reinterpretado, levando-se em conta um singelo raciocínio: o direito à moradia não só deve ser encarado como uma responsabilidade do Estado – Poder Público – em criar mecanismos ou facilitar para que os indivíduos venham a adquirir um teto, mas também deve assegurar, ao máximo, a manutenção da moradia àquele que já a possuem. Caso contrário, o direito à moradia seria um direito claudicante e incompleto, inapto a promover integralmente a sua finalidade social.
Rememore-se que, em julgamento que se reconheceu a constitucionalidade de referida previsão legal (RE 407.688), o Supremo Tribunal Federal considerou que a possibilidade de se penhorar o bem de família do fiador do contrato de locação, em última análise, garantia também moradia ao locatário, o inquilino, na medida em que se estimula o equilíbrio do mercado imobiliário e se evita garantias mais onerosas, o que, consequentemente, repercutiria negativamente no acesso à moradia pelos interessados na locação.
No entanto, observa-se que tal assertiva não é mais do que uma especulação, que por mais que se argumente sua obviedade, não se pauta em dados concretos, os quais poderiam autorizar o início de um debate a respeito. Além disso, ainda que se comprovasse a repercussão negativa da proteção do bem de família do fiador do contrato locatício no mercado imobiliário, acredita-se que a incumbência do Supremo Tribunal Federal, neste debate, limita-se à questão constitucional, evitando-se uma preocupação sobremodo consequencialista, sendo a tarefa de tornar o negócio imobiliário menos oneroso ao locador e, por projeção, facilitar-se o acesso à moradia, incumbência do Poder Executivo.
Ainda neste diapasão, deve-se rechaçar a possibilidade de se lesar direitos garantidos desde a Carta Federal em nome de uma suposta menor onerosidade ao setor imobiliário, o qual, como outros diversos segmentos econômicos, é ciente dos riscos inerentes ao seu investimento. Com efeito, há sempre um custo para qualquer investimento que, para sua execução, trilhe os caminhos da constitucionalidade e legalidade.
3.3.3. Da violação ao princípio da dignidade da pessoa humana
O sacrifício do bem de família do fiador do contrato de locação para a satisfação do crédito locatício carrega consigo uma letalidade a um dos princípios mais relevantes da República: a dignidade da pessoa humana.
Como exposto acima, há uma estrita relação entre o direito social à moradia e a dignidade da pessoa humana, da qual também decorre. Não há que disfarçar, portanto, que ao desproteger arbitrariamente o bem de família do fiador do contrato de locação da impenhorabilidade legal dirigida a este mínimo existencial, o legislador violou direito fundamental do garante.
A Lei do Bem de Família e os limites impostos ao processo executivo pelo Código de Processo Civil, ao estabelecerem impenhorabilidade e inalienabilidade de alguns bens, fazem-no com vistas à proteção à dignidade da pessoa humana em detrimento da satisfação creditícia, preservando-se em favor do obrigado a sua residência e provimento alimentar.
Por que se autorizar, então, o sacrifício do bem de família daquele que afiança – geralmente movido por amizade ou mero favor, já que a fiança, nesta modalidade contratual, é um contrato genuinamente gratuito – o contrato de locação? Restringe-se, portanto, a própria dignidade humana deste fiador, na medida em que se lhe viola o direito à moradia, em nome de um suposto estímulo ao mercado imobiliário.
Ao se contemplar as demais exceções previstas no artigo 3.º da Lei n. 8.009/1990, nota-se que em todas (com exceção da prevista no inciso VII) se destaca algum valor relevante, como, por exemplo, a previsão do inciso III, que autoriza a penhora do bem de família do devedor de crédito alimentício e inciso VI, que igualmente o permite caso o imóvel tenha sido adquirido através de proveito de crime.
Quanto à previsão encartada no inciso VII, a contrário sensu, o legislador desprezou a ordem lógica e valorativa seguida pelo artigo 3.º, incluindo-o arbitrariamente e em flagrante ofensa à dignidade humana do fiador do contrato locatício, razão por que, por mais um motivo, revela-se inconstitucional.
3.3.4. Da possibilidade de se alcançar novo entendimento quanto à inconstitucionalidade da penhorabilidade do bem de família do fiador de contrato de locação
Considerando a mudança substancial na composição do Supremo Tribunal Federal desde a última decisão colegiada relevante a respeito do tema e a mais recente perspectiva quanto à inconstitucionalidade da previsão legal que permite a penhora do bem de família daquele que afiança o contrato de locação, pode-se afirmar que não é remota a possibilidade se reverter o entendimento registrado no Recurso Extraordinário nº 407.688-8/SP.
Nota-se que o debate, na Corte Superior, ainda está muito adstrito ao efeito positivo desta previsão legal no mercado imobiliário, cujo reflexo consequentemente favorece a moradia dos potenciais inquilinos, mas pouco ponderado por sua violação à dignidade da pessoa humana e ao princípio da isonomia.
No último julgado relevante a respeito (RE 605.709/SP), porém, estes princípios foram imprescindíveis para que a Primeira Turma concluísse, em julgamento não unânime, pela inconstitucionalidade da constrição do único imóvel residencial do fiador do contrato de locação comercial. Todavia, os mesmos fundamentos podem ser aplicados à fiança na locação residencial, embora neste julgamento a questão esteja restrita à locação não residencial.
A sensibilidade dos Ministros quanto à dignidade da pessoa humana e proteção à moradia e família do fiador do contrato locatício, porém, ladeada pela evidente violação de um critério isonômico na tratativa do devedor inquilino e o fiador do contrato locatício, ambas expressas neste último julgado, podem motivar uma extensão do reconhecimento da inconstitucionalidade do inciso VII, do artigo 3.º da Lei n. 8.009/1990 igualmente em se tratando de locação residencial.
Considerando que houve a oposição de embargos de divergência no Recurso Extraordinário nº 605.709/SP, é possível que, em breve, haja decisão colegiada na Corte Suprema resolvendo-se o assunto, ainda que, nestes autos, restrito à modalidade de contrato de locação comercial. O posicionamento coletivo será importante para os próximos passos no sentido de se reconhecer a inconstitucionalidade da desproteção do bem de família do fiador do contrato de locação residencial.
CONCLUSÃO
Abordou-se, na extensão deste trabalho, desde os aspectos gerais a respeito do processo de execução e os bens que a ele são imunes, incluindo-se aí o bem de família – seja aquele voluntário, previsto no Código Civil ou o legal, previsto na Lei n. 8.009/1990 –, até as características da fiança no contrato locatício, a qual enseja a desproteção do bem de família do fiador – o qual poderá ser penhorado em caso de execução movida em razão da obrigação afiançada –, em virtude de previsão legal, cuja constitucionalidade foi questionada acima.
Cumpriu-se, pois, os objetivos incialmente aventados, com uma limitada conclusão, contudo, ao se refletir sobre a possibilidade de mudança de entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria, objetivo este que, na verdade, não pode ter resultado estritamente preciso, senão especulativo.
Do todo exposto, por fim, notou-se que a previsão legal que autorizou a penhora do bem de família do fiador do contrato de locação é inconstitucional, incompatibilizando-se com o princípio da isonomia, não sendo recepcionada pela Emenda Constitucional n. 26/2000, que instituiu a moradia como direito social, e por refletir uma lesão ao princípio da dignidade humana.
A proteção da moradia e, consequentemente, a própria dignidade humana do fiador do contrato locatício é direito fundamental que não autoriza o seu sacrifício ao argumento de se estimular o mercado imobiliário. Tolher-lhe o escudo da impenhorabilidade de seu próprio asilo e morada com a finalidade de facilitar os contratos locatícios ou em consequência do crédito do locador é, antes de tudo, um atentado contra sua subsistência.
O mercado imobiliário deverá ser estimulado por outras vias, caso a proteção do bem de família do fiador do contrato locatício seja tão sacrificante para sua dinâmica, não sendo admissível que, pelo caminho fácil e temerário pelo qual se incluiu a previsão legal em debate, sem uma discussão acurada dos valores em questão, restrinja-se, de modo desarrazoado, direitos fundamentais.
Considerando os novos contornos do entendimento do Supremo Tribunal Federal, consoante supracitado, impera-se que, em futuro próximo, o Pretório Excelso proteste a inconstitucionalidade da penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação – comercial ou residencial, decisão para a qual aparentemente caminha a Corte Suprema. Doutro modo, se o caminho da judicialização não se mostrar eficaz para a inatividade desta norma, que as propostas legislativas por sua exclusão prevaleçam e, com isso, fortifiquem-se os valores da dignidade da pessoa humana e o direito à moradia.
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[1] Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins. Advogado. E-mail: [email protected].
[2] Não se deve olvidar, neste ponto, que os bens de terceiros também serão passíveis de penhora, tendo em vista as situações em que a lei determine sujeição destes à execução, havendo responsabilidade de terceiro, ou em caso de bem objeto de fraude à execução (DONIZETTI, 2020).
[3] CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1991, disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD18MAI1991.pdf#page=63>. Acesso em 10 maio 2020.
[4] Idem.
[5] STJ, 2014, disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp?livre=(sumula%20adj1%20%27549%27).sub.#TIT1TEMA0>. Acesso em 10 maio 2020.
Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Michael Craveiro da. A inconstitucionalidade da penhorabilidade do bem de família por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jul 2020, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54845/a-inconstitucionalidade-da-penhorabilidade-do-bem-de-famlia-por-obrigao-decorrente-de-fiana-concedida-em-contrato-de-locao. Acesso em: 25 nov 2024.
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