Resumo. O presente artigo busca investigar acerca da possibilidade da aplicação da teoria da responsabilidade civil objetiva aos acidentes de trabalho e estabelecer seus fundamentos. Por meio de um breve apanhado histórico – no qual é abordada a origem e o desenvolvimento do instituto no Brasil e no mundo – aliado à conceituação de institutos atinentes à matéria, traça-se a evolução da questão até sua recente pacificação por meio da decisão do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, no julgamento do Tema 932 da Repercussão Geral, a Excelsa Corte concluiu pela compatibilidade da previsão do Art.927, parágrafo único, do Código Civil com o Art.7º, XXVIII, da Constituição Federal de 1988, e, consequentemente, pela constitucionalidade da responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho.
Palavras-chave: Responsabilidade civil subjetiva vs. responsabilidade civil objetiva; Responsabilidade civil objetiva do empregador; Indenização por acidentes do trabalho; Teoria do risco; Art.927, parágrafo único, CC. Art.7º; XXVIII, da CRFB/1988.
Abstract. The present article looks to investigate the possibility of applying the theory of the objective civil liability to occupational accidents and to establish its foundations. Through a brief historical overview – in which the origin and the development of the institute in Brazil and in the world is approached, together with the conceptualization of institutes related to the matter, the evolution of the question is drawn up to its recent pacification through the decision of the Federal Supreme Court. With effect, in the judgement of the Subject 932 of the General Repercussion, the Court concluded that the provision of the Article 927, sole paragraph, of the Civil Code was compatible with the article 7th, XXVIII, of the Federal Constitution of 1988, and, consequently, for the constitutionality of the employer’s objective liability for damages resulting from occupational accidents.
Keywords: Subjective vs. objective civil liability; Employer’s objective civil liability; Occupational accidents compensation; Risk theory; Art.927, sole paragraph, Civil Code; Art.7th XXVIII, of the Federal Constitution of 1988.
Sumário: 1 Introdução: breve apanhado histórico da responsabilidade civil. 2 Conceito de responsabilidade civil. 3 Responsabilidade civil subjetiva vs. objetiva. 4 Possibilidade da responsabilização objetiva do empregador nos casos de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais; 5 Pacificação da questão: a decisão do STF no RE 828040. 6 Conclusão. 7 Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO: BREVE APANHADO HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL
A expressão “responsabilidade” deriva do vocábulo latino respondere, que traduz o dever de responder por algo, proveniente do vínculo que obriga o devedor a alguma prestação jurídica.
A noção de que todo aquele que ocasiona um dano a outrem deve repará-lo remonta aos primórdios da humanidade, inicialmente sob a primitiva forma da vingança privada (vindicta), em que o mal era reparado pelo mal.
A vingança privada era uma “forma primitiva, selvagem talvez, mas humana, da reação espontânea e natural contra o mal sofrido; solução comum a todos os povos nas suas origens, para a reparação do mal pelo mal” (GONÇALVES, 2015, p. 24).
Mais tarde, a reparação passa a ser consagrada na Lei de Talião, na qual o legislador escalonava a espécie de sanção devida a cada diferente tipo de agressão, com base na difundida regra do “olho por olho, dente por dente”.
Na lição de Alvino Lima (1999, p. 21), segue-se, à Lei de Talião, a composição tarifada, criada pela Lei das XII Tábuas, que constitui-se em importante marco, uma vez que representa a passagem da norma consuetudinária para a escrita.
Em seguida, sucede-se um período caracterizado por um mecanismo de reparação mais brando e civilizado, marcado pela composição voluntária entre a vítima e o ofensor, por meio da qual o lesado passa a ter a faculdade de substituir a retaliação ao agressor por uma compensação de ordem econômica. É o surgimento da Lex Aquilia, que agrega a noção de “culpa” ao dever de indenizar.
Venosa (2009, p. 17) explica que a Lex Aquilia:
[…] foi um plebiscito aprovado provavelmente em fins do século III ou no início do século II a.C., que possibilitou atribuir ao titular de bens o direito de obter o pagamento de uma penalidade em dinheiro de quem tivesse destruído ou deteriorado seus bens.
Quando o Estado começa se organizar politicamente e a produzir normas jurídicas, proibindo a realização da justiça pelas próprias mãos, inicia-se novo período em que a composição voluntária é substituída pela composição Estatal. O Estado assume, ele só, a função de punir: surge aí a ação de indenização nos termos como a conhecemos atualmente.
O direito francês assimilou e aperfeiçoou as ideias românicas de ressarcimento e formulou o princípio geral de que a responsabilidade se funda na culpa, definição que influenciou o Código de Napoleão e, consequentemente, as legislações de todo o mundo.
Para o direito francês:
[...] direito à reparação sempre que houvesse culpa, ainda que leve, separando-se a responsabilidade civil (perante a vítima) da responsabilidade penal (perante o Estado); a existência de uma culpa contratual (a das pessoas que descumprem as obrigações) e que não se liga nem a crime nem a delito, mas se origina da negligência ou da imprudência (GONÇALVES, 2015, p.26).
Nessa toada, o entendimento que predominou por diversos séculos acerca da responsabilidade foi aquele delineado no artigo 1.382 do Código de Napoleão, que regulamentou a noção da culpa como sucedâneo da responsabilidade de indenizar os prejuízos causados.
Dessa forma, para haver a responsabilidade civil, deveriam fazer-se presentes os pressupostos do dano, do nexo causal e da culpa. Esta teoria ficou conhecida como “teoria da culpa” ou “responsabilidade subjetiva”.
A responsabilidade subjetiva, contudo, mostrava-se insuficiente dado que, em muitos casos, era impossível à vítima relacionar provas da conduta faltosa do agressor.
Em termos de direito comparado, os primeiros questionamentos em relação à teoria da culpa começaram a surgir após a Revolução Industrial, quando o aumento de acidentes de trabalho, e a subsequente dificuldade de demonstração de culpa por parte do empregador, acabava por impossibilitar o ressarcimento à vítima.
Respondendo aos anseios da nova configuração social, a doutrina francesa sistematizou a teoria do risco, lastreada na ideia de que aquele que cria o risco responde pelas consequências lesivas a terceiros. Funda-se essa teoria, ainda, em um princípio de equidade, oriundo do direito romano: aquele que lucra com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda).
A evolução da teoria do risco na França passa por decisões importantes, como a “Teffaine”, em 1896, na qual a Corte de Cassação condenou um empregador a indenizar uma vítima de acidente causado pela explosão de uma caldeira, a decisão Raymond Saleilles, em 1897, e o caso Louis Josserand, em 1930.
No Brasil, a questão da responsabilidade foi introduzida inicialmente na seara criminal, pelo Código Criminal de 1830, que previa o dever de o agente ofensor indenizar a vítima pelo dano decorrente do delito praticado.
Na seara civilista, o Art.159 do Código Civil (CC) de 1916, com forte influência do Código Napoleônico, absorve a ideia de responsabilidade fundada na culpa, estipulando que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” (BRASIL, 1916).
A teoria do risco foi paulatinamente sendo incorporada aos estudos jurídicos nacionais. Alguns doutrinadores contribuíram para o desenvolvimento de tal teoria dentre nós, como Alvino Lima (Tese: Da culpa ao risco), Wilson Melo (Tese: Responsabilidade sem culpa), José de Aguiar Dias e Caio Mário da Silva Pereira (LIMA, 1960; MELO, 1974).
Diversos diplomas legais foram sufragando a responsabilidade civil de natureza objetiva (lei dos transportes ferroviários, legislação de acidente do trabalho, Código Brasileiro do Ar, Código de Defesa do Consumidor (CDC), legislação do meio ambiente, entre outros) e abriram caminho para a reparabilidade plena, fundada na teoria do risco.
Nesse panorama é que se mostrou imperativa a reformulação das regras concernentes à responsabilidade civil, de modo a ampliar de forma objetiva as possibilidades de reparação àquele que foi lesado em seu direito.
2 CONCEITO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
A noção de responsabilidade baseia-se na necessidade da convivência em sociedade, que deve ser organizada, ordenada, regulamentada. É o Direito que estabelece essa ordem, pela formulação e aplicação de princípios e regras que objetivam viabilizar a paz social.
Destarte, se alguém, por meio de uma ação ou omissão, causa dano ou prejuízo a outrem, a convivência em sociedade pressupõe a necessidade de reparação, a qual se opera pelas normas jurídicas que ditam a obrigação de indenizar e, concomitantemente, reprimem o enriquecimento sem causa da parte que gerou o prejuízo, desempenhando, ainda, a função pedagógica de apontar aos membros da coletividade que os atos ilícitos são rechaçados e punidos.
Assim, a responsabilidade civil traduz a noção de reparação e decompõe-se nos seguintes elementos: conduta (ação ou omissão), dano e nexo causal. Para que haja responsabilidade civil, logo, é necessária uma ação ou omissão que importe em violação ao direito alheio, resultando em dano (seja moral, seja material), e um nexo de causalidade entre um e outro.
Conforme Fábio Ulhoa Coelho (2000, p.254): “a responsabilidade civil é a obrigação em que o sujeito ativo pode exigir o pagamento de indenização do passivo por ter sofrido prejuízo imputado a este último”.
Washington de Barros Monteiro, Carlos Maluf e Regina Silva (2010, p.556) ressaltam a importância do tema para a convivência em sociedade:
a teoria da responsabilidade civil visa ao restabelecimento da ordem ou equilíbrio pessoal e social, por meio da reparação dos danos morais e materiais oriundos da ação lesiva a interesse alheio, único meio de cumprir-se a finalidade do Direito, que é viabilizar a vida em sociedade, dentro do conhecido ditame de neminem laedere.
Para Maria Helena Diniz (2009, p.847): “a responsabilidade civil é a obrigação de reparar dano causado a outrem por fato de que é autor direto ou indireto”.
A doutrina tradicional divide a responsabilidade civil em contratual ou extracontratual, caso exista ou não um contrato prévio entre as partes envolvidas.
A responsabilidade contratual resulta de ilícito contratual - não cumprimento de obrigação preexistente e a extracontratual ou aquiliana resulta de ilícito extracontratual, ou seja, violação de deveres genéricos de abstenção ou deveres jurídicos gerais. A responsabilidade civil aquiliana, logo, não é fruto da vontade das partes, originando-se, ao contrário, de fato jurídico ou de ato ilícito.
3 RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA VS. OBJETIVA
A responsabilidade civil subjetiva é aquela decorrente de dano causado em função de ato doloso ou culposo, baseando-se em um princípio geral, representado pelo brocardo latino unuscuique sua culpa nocet, segundo o qual cada um responde pela própria culpa. Como a culpa aparece aqui como fato constitutivo do direito à indenização, cabe ao ofendido, em regra, o ônus de prová-la.
O marco histórico na origem da imputação da responsabilidade em razão da culpa, repise-se, é a Lex Aquilia, editada na República Romana. A partir daí o princípio “nenhuma responsabilidade sem culpa” passou a ser incorporado nas mais diversas legislações dos países ocidentais, tendo sido positivada em vários códigos, inclusive no Brasil.
O Código Civil brasileiro de 2002 consagra, como regra geral, a responsabilidade subjetiva, exigindo a culpa como pressuposto da reparação, fato que se constata a partir da definição de ato ilícito no artigo 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2002).
Assim, a culpa na responsabilidade subjetiva, por ter natureza civil, caracterizar-se-á quando o agente causador do dano agir com negligência ou imprudência.
Como doutrinariamente cediço, a negligência caracteriza-se pela falta de observância do dever de cuidado, por omissão. Já a imprudência ocorre quando o agente culpado pelo dano atua sem cautela. Há, ainda, a chamada imperícia que, não obstante ausente no CC, constitui uma forma importante de manifestação da culpa. Ela decorre da falta de habilidade ou aptidão no exercício de uma atividade científica ou técnica.
Contudo, a indispensabilidade do pressuposto subjetivo para a obrigação de indenizar por prejuízos passa a ser, ao longo do século XX, amplamente questionada. A multiplicação dos danos resultante da vida moderna, o aumento populacional, a revolução tecnológica, a tendência de culpabilizar a vítima e a crescente dificuldade de provar a culpa do autor do ato ilícito acarretaram à necessidade de se repensar a tradicional teoria da responsabilidade civil.
Asseverou Alvino Lima (1994, p.49):
dentro do critério da responsabilidade fundada na culpa não era possível resolver um sem-número de casos que a civilização moderna criava e agravava; imprescindível se tornava, para a solução do problema da responsabilidade extracontratual, afastar-se do elemento moral, da pesquisa psicológica do íntimo do agente, ou da possibilidade de previsão ou de diligência, para colocar a questão sob um ângulo até então não encarado devidamente, isto é, sob o ponto de vista exclusivo da reparação, e não interior, subjetivo, como na imposição de pena.
Nessa senda, desenvolveu-se a teoria do risco, que impõe, em todas as suas formas (risco-proveito, risco-criado, risco profissional, risco excepcional e risco integral) a responsabilidade objetiva.
A responsabilidade civil objetiva é aquela que prescinde de culpa, sendo que para o surgimento da obrigação de reparar bastam a ação ou omissão do agente, o dano e o nexo causal.
O Código Civil Brasileiro de 2002 inovou ao autorizar, no parágrafo único do Art.927, a aplicação da responsabilidade objetiva para além dos casos previstos em lei, também “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” (BRASIL, 2002).
Há, ainda, outros dispositivos do Código Civil que demonstram o acolhimento da responsabilidade objetiva pelo legislador de 2002, a exemplo dos artigos 931 e 933.
Mas o que seria “uma atividade que normalmente implica risco para os direitos de outrem”?
A doutrina tradicional conclui que se trata de atividade perigosa, fazendo analogia com dispositivos do Direito Comparado, por exemplo, o Código Civil da Itália, que dispõe em seu Art.2.050 que “aquele que ocasiona dano a outrem no exercício de uma atividade perigosa, pela sua natureza ou pela natureza dos meios empregados, fica obrigado à indenização se não provar que adotou todas as medidas idôneas para evitar o dano” e o Código Civil de Portugal, cujo artigo 493, 2, estabelece que: “quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de preveni-los”.
No Brasil, a legislação trabalhista deixa evidente a diferença entre risco e perigo:
Art. 193, da CLT: São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado” (BRASIL, 1943).
A Norma Regulamentadora (NR) no 26 da Portaria no 3.214/1978 do extinto Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), quando trata da sinalização de segurança, estabelece que perigo é um alto risco, cuidado, um risco médio e atenção, um risco leve (BRASIL, 1978).
Por outro lado, esclarece o Guia de Análise Acidentes de Trabalho, publicado em 2010 pelo mesmo órgão, que perigo pode ser conceituado como qualquer fonte ou situação com potencial para provocar danos. Já o risco é definido como a exposição de pessoas ao perigo (BRASIL, 2010, p.8).
Então, qual o risco apto a gerar a responsabilidade civil objetiva?
O Enunciado 38, aprovado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF) adotou o seguinte entendimento:
Art. 927: a responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do Art.927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade (BRASIL, 2002).
Neste ponto é válido citar a doutrina do ilustre jurista Miguel Reale (1978, p.176):
Quando a estrutura ou natureza de um negócio jurídico como o de transporte ou de trabalho, só para lembrar os exemplos mais conhecidos, implica a existência de riscos inerentes à atividade desenvolvida, impõe-se a responsabilidade objetiva de quem dela tira proveito, haja ou não culpa.
Nessa toada, é na seara trabalhista que o conceito de responsabilidade objetiva assume maior importância. É que, em se tratando de reclamações trabalhistas, na maior parte das vezes, o autor é o empregado, ou seja, a parte hipossuficiente. Impõe-se, assim, uma grande dificuldade de prova, seja porque as testemunhas, normalmente empregados do mesmo patrão, temem represálias, seja porque os próprios trabalhadores encontram dificuldade em ingressar em juízo, muitas vezes por falta de instrução.
No caso dos acidentes de trabalho, o quadro agrava-se ainda mais, uma vez que se registra no Brasil amplo descumprimento das normas de saúde e segurança do trabalho, desenvolvendo-se o labor muitas vezes em condições excessivamente penosas e perigosas, o que favorece o aparecimento de doenças ocupacionais e provoca acidentes.
4 POSSIBILIDADE DA RESPONSABILIZAÇÃO OBJETIVA DO EMPREGADOR NOS CASOS DE ACIDENTES DE TRABALHO E DOENÇAS OCUPACIONAIS
A Carta Magna, em seu Art. 7º, XXVIII, assegura aos trabalhadores urbanos e rurais o direito ao “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa” (BRASIL, 1988).
A doutrina trabalhista majoritária, levando em consideração a previsão in fine do supracitado dispositivo, defende que a Constituição Federal (CRFB) de 1988 adotou, como regra, a responsabilidade subjetiva do empregador.
Nesse contexto, durante muitos anos houve intensa celeuma doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de atribuição excepcional de responsabilidade objetiva ao empregador, com arrimo na previsão do parágrafo único do Art.927 do Código Civil, que assim dispõe:
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (BRASIL,2002).
Sobre o tema, verifica-se a existência de duas principais linhas argumentativas.
Para uma primeira corrente, denominada de “negativista” por Fernando José Cunha Belfort, a teoria, se bem que aplicável ao Direito Civil, não teria campo para atuação no Direito do Trabalho, tendo em vista que a CRFB/1988, em seu artigo 7º, XXVIII, somente prevê a indenização quando o acidente ocorre por dolo ou culpa do empregador (BELFORT, 2010).
Defende esta corrente que o Código Civil (lei ordinária), por meio de seu Art.927, parágrafo único, não pode contrariar dispositivo constitucional expresso com relação à responsabilidade proveniente do acidente do trabalho.
Contudo, uma segunda linha de pensamento, chamada “positivista”, sustenta a plena aplicação do instituto ao Direito do Trabalho, uma vez que a própria Constituição prevê, em seu artigo 7º, a inclusão de outros direitos além daqueles nele relacionados, quando em benefício do trabalhador, positivando apenas um “piso” de direitos, e não um “teto”: “Art. 7º. São direitos dos trabalhadores (...) além de outros que visem à melhoria de sua condição social:” (BRASIL, 1998, grifo nosso).
Nesse passo, não haveria que se falar em conflito entre o Art.927, parágrafo único, do Código Civil e o Art.7º, XXVIII, da CRFB/1988, uma vez que o próprio dispositivo constitucional permite que se incluam no rol de direitos dos trabalhadores “outros que visem à melhoria de sua condição social”, expressão que, segundo Arnaldo Sussekind (SUSSEKIND, 1999, p.80), não só fundamenta a vigência de direitos não previstos no Art.7º da Carta Magna, como também “justifica a instituição de normas, seja por lei, seja por convenção ou acordo coletivo, seja, enfim, por laudo arbitral ou sentença normativa”.
Noutro giro, ostenta essa expressão uma dimensão mandamental, pois “estabelece um objetivo a ser perseguido pelo Poder Público, que é a melhoria da condição social do trabalhador” (LAURINO, 2003, p.191-198).
Com efeito, tal artigo introduz em nosso ordenamento jurídico o Princípio da Progressividade expresso no Art.26 do Pacto de San Jose da Costa Rica, em relação ao qual enuncia Daniela Muradas:
[...] o princípio da progressividade dos direitos sociais, concebido no domínio teórico do Direito Internacional dos direitos humanos, enuncia o compromisso internacional dos Estados promoverem, no máximo de seus recursos disponíveis, a proteção da pessoa humana em sua dimensão econômica, social e cultural. Pelo Princípio da progressividade dos direitos humanos de caráter econômico, social e cultura, vincula-se a atividade legiferante nacional ao progresso ininterrupto das condições de proteção à pessoa humana na sua dimensão social, sendo juridicamente inviável a eliminação dos padrões sociais já estabelecidos, sem a correspondente criação de um conjunto normativo compensatório e qualitativamente mais vantajoso (MURADAS, 2010).
Para Antônio Elias de Queiroga e Carlos Roberto Gonçalves, há uma necessidade de aprimoramento e evolução do conceito de responsabilidade civil, devendo o Art.7º, XXVIII, da CRFB/1988 ser interpretado levando-se em conta a finalidade e a razão de ser do ordenamento jurídico como um todo (GONÇALVES, 2002; QUEIROGA, 2003).
Carlos Ribeiro Bastos assevera:
As normas constitucionais são como que envolvidas por uma camisa-de-força. Destarte, o intérprete se vê na contingência de descobrir para além da simples literalidade dos textos o ‘para que’ e o ‘para quem’ das suas prescrições, de sorte a distender o fio da interpretação até o limite daqueles parâmetros sistemáticos (BASTOS, 2002).
Jorge Luiz Souto Maior arremata:
A obrigação de indenizar por acidente de trabalho não depende de prova de culpa. A responsabilidade é objetiva, conforme prevê o artigo 927 do Código Civil. A previsão constitucional, por óbvio, não limita esse direito do acidentado, na medida em que a norma constitucional é de caráter mínimo, podendo, portanto, ser ampliada pela lei infraconstitucional, como se dá na presente situação (SOUTO MAIOR, 2005).
Na mesma linha, na IV Jornada de Direito Civil do CJF, em 2006, foi aprovado o Enunciado 377, com a seguinte disposição: “o Art.7º, XXVIII, da Constituição Federal não é impedimento para a aplicação do disposto no Art.927, parágrafo único, do Código Civil quando se tratar de atividade de risco” (BRASIL, 2006).
5 PACIFICAÇÃO DA QUESTÃO: A DECISÃO DO STF NO RE 828040
Finalmente, em 2019, a questão restou pacificada pelo Excelso STF, que firmou entendimento no sentido de que é constitucional a imputação da responsabilidade civil objetiva ao empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho em atividades de risco.
Na oportunidade, foi fixada a seguinte tese de repercussão geral:
O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade (BRASIL, 2019).
Em seu voto, o Ministro Relator Alexandre de Moraes sublinhou que, no curso da história, os ordenamentos jurídicos foram se desenvolvendo para hipóteses de responsabilidade objetiva em razão das inúmeras injustiças no campo do trabalho.
Cotejando as normas da Constituição e do Código Civil, Alexandre de Moraes entendeu, por fim, pela plena compatibilidade do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil e o artigo 7º, XXVIII, da CRFB, ressaltando que:
Se no caso concreto, em virtude do tiroteio, vamos dizer que houvesse ferimentos tanto no trabalhador quanto em um transeunte que estivesse no supermercado; em relação ao transeunte a responsabilidade seria objetiva pelo CC; em relação ao trabalhador, cuja atividade o risco é inerente, se não se aplicar o Art.927, parágrafo único, ele deveria demonstrar o dolo ou culpa do empregador. Algo absolutamente incoerente do ponto de vista sistêmico (BRASIL,2019).
6 CONCLUSÃO
Embora a CRFB/1988 tenha adotado, como regra, a responsabilidade subjetiva do empregador (Art.7º, XXVIII), é certo que o caput do artigo positivou um “piso” de direitos (e não um “teto”), de modo que a própria Carta Magna permite que se incluam no rol de direitos dos trabalhadores “outros que visem à melhoria de sua condição social”.
Nessa senda, não há que se falar em conflito entre o Art.927, parágrafo único, do Código Civil e o Art.7º, XXVIII, da CRFB/1988, eis que a norma civilista mostra-se em compasso com o mandado constitucional de progressividade de direitos extraído do caput de seu Art.7º. Ademais, o entendimento do Excelso STF segue essa linha, tendo sido fixada a tese da compatibilidade entre os artigos supracitados e a consequente constitucionalidade da reponsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho nos casos previstos em lei ou em situações de exposição habitual do trabalhador a risco especial.
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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 9a ed. São Paulo: Atlas, 2009.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011). Especialização em Direito e Processo do Trabalho (2013). Ex-Analista Judiciário, Área Judiciária do TRE-MG (2014-2016). Ex-Analista Judiciário, Área Judiciária do TRF da 2a. Região (2016-2017). Analista Judiciário, Área Judiciária do TRT da 17a. Região (a partir de 2017).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NAVES, FERNANDA BARRETO. A responsabilidade objetiva do empregador nos acidentes de trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jul 2020, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54894/a-responsabilidade-objetiva-do-empregador-nos-acidentes-de-trabalho. Acesso em: 22 nov 2024.
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