RESUMO: Esse artigo objetiva enfrentar o problema da repartição de competência tributária entre os entes federativos, a partir de um recorte histórico constitucional. Nesse sentido, analisaremos como as Constituições Federais brasileiras dividiram as competências tributárias entre os entes federativos, para contextualizar, no tempo, a problemática da divisão das materialidades abertas à tributação. Em um contexto atual de constantes discussões por uma melhor equalização das possibilidades abertas pela Constituição para a instituição de tributos, é relevante descontinuar o passado em busca de diretrizes mais seguras para o futuro.
ABSTRACT: This article aims to deal with the problem of the division of tax competence among the federative entities, from a constitutional historical perspective. In this sense, we will analyze how the Brazilian Federal Constitutions divided the tax competences among the federative entities, to contextualize, in time, the problematic of the division of the materialities open to taxation. In a current context of constant discussions for a better equalization of the possibilities opened by the Constitution for the imposition of taxes, it is relevant to discontinue the past in search of safer guidelines for the future.
Palavras-chave: Federação; tributação; Constituição; Repartição da competência tributária; história do constitucionalismo brasileiro; participação na arrecadação.
Keywords: Federation; taxation; Constitution; Distribution of tax competence; history of Brazilian constitutionalism; participation in the collection.
Sumário: Introdução. 1. As normas de competência tributária nas Constituições de 1824 e 1891. 2. As materialidades abertas à tributação na Constituição de 1934 com a inclusão da técnica de repartição do produto. 3. A repartição de competências na Constituição Federal de 1937. 4. O início do alargamento das competências da União na repartição da competência tributária na Constituição de 1946. 5. O advento de um Sistema Tributário na Constituição de 1967 com a repartição hiperbólica de competências em favor da União. 6. A repartição de competências no Sistema Tributário Nacional na Constituição Federal de 1988. Conclusão. Referências
Introdução
Mediante duas técnicas tributárias se promove a destinação de recursos para o agir estatal: a atribuição de competência tributária para a instituição de tributos sobre determinadas materialidades abertas à tributação pela Constituição Federal; ou, por participação no produto da arrecadação tributária.
Pode-se imaginar que, chegando os recursos suficientes para a consecução das finalidades a serem perseguidas e serviços a serem prestados pelo respectivo ente federativo, pouco importa a técnica que foi utilizada – se por exercício de uma competência tributária própria, ou por participação no produto da arrecadação proveniente do exercício de competência tributária de outro ente federativo.
Contudo, a supressão ou o desprestígio normogenético tributário precisa ser analisado sob o ponto de vista da autonomia federativa. É que, quando um ente perde a prerrogativa única e indelegável de instituir um tributo, mediante o exercício de competência própria, para vir a receber parte do produto final da arrecadação de tributo instituído por outro ente, há redução do poder criativo capaz de desestabilizar a harmonia na Federação. Em outras palavras, a divisão de competências representa o espaço federativo ocupado pelos entes, e o resultado disso pode sim levar a instabilidades e desequilíbrios na Federação.
O nosso objetivo é analisar o problema da repartição da competência tributária na história constitucional brasileira e de que modo se processou uma concentração de atribuições institutas de tributos em determinado ente federativo.
1.As normas de competência tributária nas Constituições de 1824 e 1891
A primeira Constituição brasileira, de 1824, não trouxe uma técnica de repartição de receitas tributárias, cuidando apenas da atribuição da competência tributária - outorgada privativamente a iniciativa “sobre impostos” à Câmara dos Deputados (art. 36, I) e, em seu artigo 15, § 10°, a competência do Poder Legislativo de “fixar, anualmente, as despesas públicas, e repartir a contribuição direta”
Assim, na sistemática da CF de 1824, a iniciativa “sobre impostos” deveria partir privativamente da Câmara dos Deputados, que era “eletiva e temporária” (art. 35), cabendo ao Poder Legislativo a repartição da “contribuição direta”.
Em termos de direito tributário, a disposição constitucional que mais chama a atenção, na Carta de 1824, é a que invoca o dever fundamental de pagar tributos na medida de sua capacidade contributiva (“Ninguem será exempto de contribuir pera as despezas do Estado em proporção dos seus haveres” - art. 179, XV).
Trata-se de cláusula inserta em um contexto de direitos e garantias fundamentais, fazendo sobressaltar também a instituição dos deveres fundamentais (art. 179, XIII a XVII).
O interessante dessa disposição é que ela se encontra em uma sequência de incisos que remetem ao valor constitucional da igualdade. A explicitação do dever fundamental de o contribuinte pagar tributos, na proporção de suas possibilidades, representa um chamado constitucional da Constituição de 1824 à isonomia no custeio das despesas gerais do Estado e viabilização dos serviços públicos que ele presta à sociedade.
É uma disposição normativa que poderia ter sido reproduzida nas Constituições seguintes, mas não se encontra expressa na atual CF de 1988 - muito embora o Supremo Tribunal Federal reconheça o “dever fundamental de pagar tributos”[1].
Voltando ao tema específico da repartição constitucional das competências tributárias, a Constituição Federal de 1891 foi a primeira a instituir um sistema de divisão específico das materialidades a serem tributadas pelos entes federativos.
A Constituição de 1891 adotou a República Federativa como forma de governo, constituindo-se por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias em Estados Unidos do Brasil (art. 1º). Cada uma das antigas províncias formara um Estado e o antigo município neutro se transformara no Distrito Federal, que continuou a ser a capital da União (art. 2º).
As materialidades abertas à tributação foram discriminadas, por meio da técnica de repartição por competência. A Carta de 1891, por coerência com o regime Federativo que adotou, inaugura a repartição constitucional tributária por competência no constitucionalismo brasileiro; a Constituição de 1934, por sua vez, é a que vai inaugurar a sistemática de repartição por participação na receita tributária de tributos que são da competência de outros entes federativos.
Da competência exclusiva da União, a CF de 1891 discriminou apenas uma materialidade tributada por imposto e duas taxas (art. 7º): o imposto sobre a importação de procedência estrangeira; taxas de selo; taxas dos correios e telégrafos federais.
Para os Estados, a CF de 1891 atribuiu quatro materialidades para tributação privativa por tributo da espécie imposto (art. 9º): exportação de mercadorias de sua própria produção; imóveis rurais e urbanos; transmissão de propriedade; sobre indústrias e profissões.
Interessante anotar que, na atual Constituição Federal de 1988, toda as materialidades que a CF de 1891 atribuiu para que os Estados tributassem por meio de impostos estão sob a competência de outros entes federativos. Assim, exportação, imóveis rurais, indústrias e profissões são tributados pela União; a propriedade de imóveis urbanos e a transmissão da propriedade são tributadas pelos Municípios.
Assim, a Carta de 1891 deu destacada preferência aos Estados na repartição da competência tributária privativa que promoveu. Contudo, embora tenha feito repartição de competência privativa para a tributação, a possibilidade do exercício da competência residual era deveras ampla, se comparada com a atual experiência constitucional brasileira[2].
Portanto, conclusivamente, a Constituição Federal de 1824 não promoveu uma repartição das materialidades tributárias, muito embora tenha trazido alguma normas relevantes de direito tributário; por sua vez, a Constituição de 1891 inaugurou a técnica de repartição das materialidade abertas à tributação, dando destacada relevância à competência privativa dos Estados – com quatro materialidades abertas à tributação por imposto, contra apenas uma da União.
2.As materialidades abertas à tributação na Constituição de 1934 com a inclusão da técnica de repartição do produto da arrecadação tributária
A Constituição Federal de 1934 aprimorou a sistemática de repartição da competência tributária e inaugurou no constitucionalismo brasileiro um sistema de repartição do produto da arrecadação dos tributos.
Após descrever extenso rol de competências materiais ou administrativas da União (art. 5º), a Constituição lhe atribui, privativamente, competência para instituir impostos sobre as seguintes materialidades (art. 6º): 1) a importação de mercadorias de procedência estrangeira; 2) consumo de quaisquer mercadorias, exceto os combustíveis de motor de explosão; 3) renda e proventos de qualquer natureza, excetuada a renda cedular de imóveis; 4) transferência de fundos para o exterior; 5) sobre atos emanados do seu Governo, negócios da sua economia e instrumentos de contratos ou atos regulados por lei federal; 6) e, nos Territórios, os impostos que a Constituição atribui aos Estados. Especificamente quanto às taxas, a União podia cobrar taxas telegráficas, postais e de outros serviços federais; de entrada, saída e estadia de navios e aeronaves. Portanto, cinco eram as materialidades abertas à tributação pela União.
Por sua vez, os Estados tinham a previsão de competência para instituir impostos sobre as seguintes materialidades: 1) propriedade territorial, exceto a urbana; 2) transmissão de propriedade causa mortis; 3) transmissão de propriedade imobiliária inter vivos, inclusive a sua incorporação ao capital da sociedade; 4) consumo de combustíveis de motor de explosão; 5) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive os industriais; 6) exportação das mercadorias de sua produção; 7) indústrias e profissões; 8) atos emanados do seu governo e negócios da sua economia ou regulados por lei estadual. Havia uma previsão genérica para a cobrança de taxas de serviços estaduais.
Da normatividade presente na Constituição de 1934, percebe-se que os Estados permaneceram com a maior parte das materialidades abertas à tributação por meio dos impostos, das quais, no atual regime constitucional de 1988, remanescem apenas duas das oito bases econômicas tributáveis em 1934 – as demais estão hoje como competências da União ou Municípios.
Diferentemente da CF de 1891, a Carta de 1934 fez uma regulamentação específica sobre o exercício da competência residual para a instituição de impostos. Na CF de 1934 a competência residual foi denominada de “competência concorrente” da União e Estados para criar outros impostos, além dos que lhes são atribuídos privativamente (art. 10, VII).
Contudo, em norma extremamente interessante (art. 10, parágrafo único), a Constituição Federal estabeleceu que a arrecadação dos impostos residuais fosse feita pelos Estados, os quais entregavam, dentro do primeiro trimestre do exercício seguinte, trinta por cento à União, e vinte por cento aos Municípios de onde tenham provindo.
Ou seja, a Constituição inaugura, no constitucionalismo brasileiro, a técnica de repartição da receita tributária, através da qual um ente participa da arrecadação dos tributos que são arrecadados por outro ente federativo[3]. Assim, por exemplo, a União poderia criar um imposto residual, mediante o exercício da sua competência concorrente com os Estados, mas a estes caberia a arrecadação, mediante subsequente repartição do produto com a própria União e com os Municípios.
Hoje, na Carta de 1988, a competência residual para instituir imposto é privativa da União (art. 154, I), com determinação de repartição do produto da arrendação entre Estados (25%).
Além da previsão da repartição do produto da arrecadação do imposto residual, a Constituição ainda trouxe a repartição do produto do imposto de indústrias e profissões, de competência dos Estados: metade do arrecadado pertencia aos Municípios.
Também de modo inédito, a Constituição trouxe previsão de competência tributária para os Municípios: 1) imposto de licenças; 2) impostos predial e territorial urbanos; 3) imposto sobre diversões públicas; 4) o imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais. Também houve previsão da possibilidade de os Municípios cobrarem as taxas sobre serviços municipais.
É interessante que a Constituição trouxe uma previsão de transferência para o Municípios da competência tributária para instituição dos impostos privativos do Estado (§2º, art. 13). Ou seja, uma espécie de delegação da competência tributária, não mais existente no regime constitucional de 1988.
Conclui-se que a Constituição de 1934 trouxe um sofisticado sistema de previsão de competência tributária privativas para União, Estados e Municípios, combinado com mecanismos de participação dos entes federativos na arrecadação tributária dos outros. Observa-se, ainda, que permaneceu a proeminência dos Estados na repartição da competência tributária - muito embora a União tenha, em 1934, mais materialidades abertas à tributação do que tinha em 1891.
3.A repartição de competências na Constituição Federal de 1937
A Constituição Federal de 1937 manteve inalterada as competências tributárias abertas e repartidas à tributação entre União, Estados e Distrito Federal, de modo que os impostos privativos de cada um desses entes são os mesmos da Carta anterior, de 1934.
De igual modo, foi mantida a repartição do produto do imposto de indústrias e profissões, de competência dos Estados: metade do arrecadado pertencia aos Municípios.
Apenas a repartição dos impostos residuais sofreu alteração, deixando de existir previsão específica de repartição do produto. A previsão da competência residual veio no art. 25 da Constituição, seguindo o qual: “Os Estados poderão criar outros impostos. É vedada, entretanto, a bitributação, prevalecendo o imposto decretado pela União, quando a competência for concorrente. É da competência do Conselho Federal, por iniciativa própria ou mediante representação do contribuinte, declarar a existência da bitributação, suspendendo a cobrança do tributo estadual”.
Portanto, na Constituição de 1937 a repartição das competências tributárias permanece inalterada, de modo que a maior parte das materialidades abertas à tributação se encontravam na competência dos Estados.
4.O início do alargamento das competências da União na repartição da competência tributária na Constituição de 1946
Na Constituição Federal de 1946, as competências tributárias da União - que já haviam sido aumentadas na comparação entre as Constituições de 1891, 1934 e 1937 – foram objeto de maior concentração em relação às competências dos Estados.
Assim, o art. 15 da Carta, estabeleceu a competência da União para instituir impostos sobre as seguintes materialidades: 1) importação de mercadorias de procedência estrangeira; 2) consumo de mercadorias; 3) produção, comércio, distribuição e consumo, e bem assim importação e exportação de lubrificantes e de combustíveis líquidos ou gasosos de qualquer origem ou natureza, estendendo-se esse regime, no que for aplicável, aos minerais do País e à energia elétrica; 4) renda e proventos de qualquer natureza; 5) transferência de fundos para o exterior; 6) negócios de sua economia, atos e instrumentos regulados por lei federal; 7) Propriedade territorial rural.
A União, que na Constituição de 1891 tinha apenas competência para instituir imposto sobre a importação, chega na Carta de 1946 com sete materialidades abertas à tributação por impostos, em uma conformação parecida com a da atual Carta de 1988.
Contudo, na medida em que alargou as possibilidades abertas à tributação pela União, a Constituição de 1946 também expandiu a técnica de repartição das receitas tributárias. Assim, do produto arrecadado com o imposto sobre “produção, comércio, distribuição e consumo”, sessenta por cento no mínimo eram entregues aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, proporcionalmente à sua superfície, população, consumo e produção, nos termos e para os fins estabelecidos em lei federal.
Já do produto da arrecadação do imposto da União sobre consumo de mercadorias, 10% eram entregues aos Municípios, em partes iguais. Da arrecadação imposto da União sobre renda e proventos, 15% eram entregues aos Municípios, em partes iguais.
Quanto ao produto da arrecadação do imposto territorial rural, a totalidade era entregue pela União aos Municípios onde estejam localizados os imóveis sobre os quais incidia a tributação.
Já os Estados, que na Constituição Federal de 1937 possuíam sete materialidades abertas à tributação, passam a ter quatro fatos tributáveis presuntivos de riqueza: 1) Transmissão de propriedade causa mortis; 2) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive industriais, isenta, porém, a primeira operação do pequeno produtor, conforme o definir a lei estadual; 3) exportação de mercadorias de sua produção para o estrangeiro, até o máximo de 5% (cinco por cento) ad valorem , vedados quaisquer adicionais; 4) os atos regulados por lei estadual, os do serviço de sua justiça e os negócios de sua economia.
Havia uma interessante previsão de repartição condicional de receita tributária, dos Estados para os Municípios, nos seguintes termos: “Quando a arrecadação estadual de impostos, salvo a do imposto de exportação, exceder, em Município que não seja o da Capital, o total das rendas locais de qualquer natureza, o Estado dar-lhe-á anualmente trinta por cento do excesso arrecadado” (Art. 20).
A atribuição de competência residual para a instituição de impostos foi entregue à União e aos Estados, mas o imposto federal excluía o estadual idêntico - essa é uma disposição normativa reveladora do espírito da Carta, que prestigiava a União em um grau maior do que nas Constituições anteriores.
Os Estados realizavam a arrecadação dos impostos residuais e entregavam vinte por cento do produto à União e quarenta por cento aos Municípios onde se tiver realizado a cobrança (art. 21).
Para a competência tributária dos Municípios, a Constituição Federal reservou sete materialidades: 1) propriedade territorial urbana; 2) predial; 3) transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua incorporação ao capital de sociedades; 4) licenças; 5) indústrias e profissões; 6) diversões públicas; 7) atos de sua economia ou assuntos de sua competência.
Ademais, a Constituição de 1946 trouxe a previsão da competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para a cobrança de (art. 30): I - contribuição de melhoria, quando se verificar valorização do imóvel, em consequência de obras públicas; II - taxas; III - quaisquer outras rendas que possam provir do exercício de suas atribuições e da utilização de seus bens e serviços. É a primeira vez que a “contribuição de melhoria” surge na nossa experiência constitucional.
Também é na Constituição de 1946 que encontramos as normas de incompetência tributária (imunidades), de um modo bastante semelhante ao que hoje vige no nosso ordenamento jurídico; nos termos do art. 31, V, da Carta de 1946, estava vedado aos entes federativos a instituição de impostos sobre: a) bens, rendas e serviços uns dos outros, sem prejuízo da tributação dos serviços públicos concedidos, observado o disposto no parágrafo único deste artigo; b) templos de qualquer culto bens e serviços de Partidos Políticos, instituições de educação e de assistência social, desde que as suas rendas sejam aplicadas integralmente no País para os respectivos fins; c) papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros.
O que ser extrai da Constituição de 1946 é a estruturação de um sistema tributário mais complexo, com a previsão de normas de incompetência tributária (imunidades), tributos de competência comum (taxas e contribuição de melhoria), previsão de diversas materialidades abertas à tributação para que todos os entes federativos instituíssem impostos e uma mais ampla previsão de repartição da receita tributária.
Assim, muito embora tenham sido alargadas as materialidades econômicas abertas à tributação pela União, por meio de impostos, também fora expandida a repartição do produto da arrecadação desses impostos federais com os demais entes federativos, equilibrando, pelas duas técnicas (repartição por competência e pelo produto), a forma como o ‘bolo’ dos recursos é repartido na Federação.
5.O advento de um Sistema Tributário na Constituição de 1967 com a repartição hiperbólica de competências em favor da União
Antes da Constituição Federal de 1967, a previsão de competências tributárias era feita logo após a enunciação das competências materiais ou administrativas do ente federativo; assim, as Constituições anteriores descreviam o que deveria ser feito e logo após apontava de onde viria a derivação dos recursos dos particulares para a respectiva execução de tais tarefas ou objetivos.
A Carta de 1967 estrutura as questões tributárias de um modo inédito, mediante a previsão de um capítulo apartado e específico para o “Sistema Tributário”. Portanto, é nesse momento da experiência constitucional brasileira que se cria uma verdadeira “Constituição Tributária”. É interessante perceber que o atual regime constitucional de 1988, no que diz respeito ao arquétipo tributário fundamental, é deveras semelhante ao que veio disposto na Constituição de 1967.
O “Sistema Tributário” da Constituição de 1967 representa um amadurecimento constitucional da previsão de tributos, competências, limites e regras de repartição do produto tributário.
Destaco que uma das mais relevantes garantias para os contribuintes veio prevista ineditamente na Carta de 1967: a utilização da lei complementar para o estabelecimento de normas gerais de direito tributário. Essa previsão garante segurança jurídica a todos os contribuintes, a partir do fato de que todos os entes tributantes partirão de um tronco comum (lei complementar) para derivar recursos das riquezas produzidas na sociedade.
Substancialmente, alargou-se as materialidades abertas à Tributação pela União (dez bases econômicas), em relação àquelas sobre as quais Estados e Municípios podiam instituir impostos (duas materialidades para cada um), prevendo de início que todos os entes federativos tem competência para instituir taxas de polícia e de serviço e contribuição de melhoria.
Assim, a União podia instituir impostos sobre: I - Importação de produtos estrangeiros; II - exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais ou nacionalizados; III - propriedade territorial, rural; IV - rendas e proventos de qualquer natureza; V - produtos industrializados; VI - operações de crédito, câmbio, seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VII - serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza estritamente municipal; VIII - produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos; IX - produção, importação, distribuição ou consumo de energia elétrica; X - extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais do País.
Os Estados podiam instituir impostos sobre as seguintes materialidades: I - transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza e acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como sobre direitos à aquisição de imóveis; II - operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por produtores, industriais e comerciantes.
Aos Municípios foi franqueada a instituir de impostos sobre: I - propriedade predial e territorial urbana; II - serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados, definidos em lei complementar.
Muito embora substancialmente alargada a competência da União, também foram ainda mais alargadas as previsões de repartição da arrecadação tributária. Inclusive, com esse propósito, foi instituída nova técnica de repartição, feita de modo indireto, mediante a previsão de três diferentes fundos (Art. 26): o Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal, o Fundo de Participação dos Municípios e o Fundo Especial. Do produto da arrecadação do IPI e do IR, 5% era destinado ao FPE, 5% era encaminhado para o FPM e 2% ao Fundo Especial. Além da repartição indireta, há a previsão da participação direta dos entes federativos, no produto da arrecadação de impostos da União (art. 28), que chegava a 90% do produto, no caso do imposto sobre a extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais do País.
A Constituição de 1967 pode ser considerada como a que promoveu a maior concentração de competências tributárias para a União; em nenhum momento da história constitucional brasileira os Estados e Municípios tiveram tão poucas materialidades tributáveis por impostos e, em contrapartida, em nenhum momento histórico a União possuiu tamanha abrangência material tributável.
Destaco, em arremate desse tópico, que a Emenda Constitucional n. 1 de 1969, por muitos constitucionalistas considerada como Constituição Federal de 1969, não trouxe substancial modificação no Sistema Tributário da Constituição de 1967.
6.A repartição de competências no Sistema Tributário Nacional na Constituição Federal de 1988
Muito embora tenha estruturado o sistema tributário de um modo temático semelhante ao do regime tributário pretérito, a Constituição de 1988 reduziu as materialidades tributárias abertas à União, em relação aos impostos, e aumentou a competência dos Estados e Municípios. Mas o que chama maior atenção na Carta de 1988 é a substancial repartição do produto tributário que fora prevista.
Conforme dados divulgados pela Receita Federal, que estimou em 32,66% do PIB a carga tributária de 2015, a arrecadação da União corresponderia a 68,26% da carga, a dos Estados, a 25,37%, e a dos Municípios, a 6,37%[4]. Portanto, não obstante nos faltem dados comparativos entre a arrecadação atual, por ente, e aquela existente na vigência da Constituição de 1891, salta aos olhos a proeminência arrecadatória da União.
Mesmo com a redução das materialidades abertas à tributação via imposto – de dez, na Carta de 1967, para sete, na atual CF de 1988 – a União exerce a maior parte de sua competência por meio das contribuições sociais, que agigantaram o sistema tributário brasileiro, praticamente inaugurando um capítulo paralelo no estudo do direito tributário. A inserção na Constituição das contribuições sociais, interventivas e de interesse de categorias profissionais (art. 149) são uma novidade no constitucionalismo brasileiro, alargando o espectro da tributação do Estado sobre a sociedade e tornando o sistema deveras complexo.
Hoje, somando-se as competências para instituição dos impostos com as contribuições (cujas materialidades podem ser encontradas no art. 195 da CF), a União abarca a maior parte do exercício da competência tributária na Federação brasileira. Acrescente-se a isso a possibilidade de instituição, pela União, de contribuições residuais e impostos residuais.
Em relação aos impostos, contudo, há um sistema de repartição do produto extremamente generoso com os demais entes federativos; comparando a repartição instituída pelas Constituições passadas, o atual mecanismo de repartição alcança percentuais consideravelmente maiores.
Tomemos como comparação a repartição indireta, via fundo; na Carta de 1967, um total de 12% do arrecadado pela União de IR e IPI eram destinados a três fundos: FPE (5%), FPM (5%) e o Fundo Especial (2%).
Na Constituição Federal de 1988, um total de 49% do total arrecadado pela União de IR e IPI são destinados aos Fundos de Participação. Ou seja, a repartição tributária do IR e do IPI saltou de 12% para 49%.
Além dessa destinação aos fundos, 10% do arrecadado com o IPI é destinado diretamente aos Estados; estes, em relação ao montante que recebem, repassam 25% aos Municípios. Assim, mais da metade da arrecadação do IPI não fica com a União, mas é repartida.
Há ainda repartição direta do produto do IR, IOF-Ouro, do ITR, dos impostos residuais e da CIDE-Combustíveis; em relação aos impostos dos Estados, são repartidos o IPVA e o ICMS.
Portanto, muito embora a Constituição de 1988 tenha mantido uma concentração de competência tributária com a União, podemos afirmar que houve uma maior contrapartida em termos de participação na arrecadação dos tributos federais.
Conclusão
A repartição das materialidades econômicas abertas à tributação nasce no constitucionalismo brasileiro com a Carta de 1891; naquela ocasião, os Estados possuíam a proeminência na competência para a instituição dos tributos (impostos).
Enquanto a União detinha, em 1891, apenas a competência para tributar a importação, os Estados podiam tributar quatro materialidades, mediante imposto (art. 9º): exportação de mercadorias de sua própria produção; imóveis rurais e urbanos; transmissão de propriedade; sobre indústrias e profissões.
A competência tributária da União foi se alargando, e a Constituição Federal de 1934 passou a prever competências também aos Municípios, mas se destacou principalmente pela técnica de repartição da arrecadação tributária - que viria a ser aprimorada, já na Constituição de 1967, com a previsão da chamada repartição indireta, por meio dos Fundos de Participação.
O que se observa é que a União passou a ter uma maior competência tributária (cujo ápice de concentração se deu na Constituição de 1967), mas, em contrapartida, também passou a repartir mais amplamente o produto da arrecadação dos tributos de sua competência.
Desse modo, o alargamento da repartição da competência, em favor da União, foi equilibrado com o aumento das hipóteses de repartição do produto tributário, assegurando que os recursos que são derivados das riquezas que a sociedade produz sejam equanimemente repartidos entres os entes da Federação.
Essa opção se sujeita à crítica no sentido de que a repartição do produto tolhe a prerrogativa de instituição do tributo, vulnerando a autonomia federativa. Em outras palavras, pode-se argumentar que, ao reduzir a repartição por competência tributária e alargar a repartição do produto, o ente somente receberá percentual do tributo instituído e cobrado por outro, fica a mercês daquele que possui a competência tributária[5].
De fato, a participação no produto como opção à supressão da previsão de competência tributária ocorre em demérito à autonomia federativa, a representar uma redução das possibilidades normogenéticas de um ente federativo.
Considerando o apanhado histórico, não é o caso de se retornar ao modelo de 1891, que prestigiava os Estados em detrimento da União, tampouco se reaproximar aos termos da Constituição de 1967, que fazia o contrário; mas o sistema também não pode permanecer do modo como está, repartindo o exercício da competência tributária de modo hiperbólico para a União, em relação às competências dos demais entes federativos.
Uma reforma tributária precisa ser feita de modo a equacionar as materialidades abertas à tributação, reequilibrando igualmente os percentuais de repartição do produto tributário - por conseguinte e na proporção em que sejam redistribuídas as competências para a instituição dos impostos sobre as grandezas econômicas.
REFERÊNCIAS
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NABAIS. José Cassalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina.
PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Os direitos Humanos e a Tributação – Imunidades e Isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995.
[1] "A solução do presente caso perpassa, portanto, pela compreensão de que, no Brasil, o pagamento de tributos é um dever fundamental. A propósito do tema, vale destacar, por seu pioneirismo, a obra do jurista português José Casalta Nabais. No livro “O Dever Fundamental de Pagar Impostos”, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra demonstra, em síntese, que, no Estado contemporâneo – o qual é, essencialmente, um Estado Fiscal, entendido como aquele que é financiado majoritariamente pelos impostos pagos por pessoas físicas e jurídicas – pagar imposto é um dever fundamental" ADI 2390/DF, rel. Min. Dias Toffoli, 24.2.2016. (ADI-2390).
[2] Art 12 - Além das fontes de receita discriminadas nos arts. 7º e 9º, é licito à União como aos Estados, cumulativamente ou não, criar outras quaisquer, não contravindo, o disposto nos arts. 7º, 9º e 11, nº 1.
[3] De acordo com a Constituição, se o Estado faltasse ao pagamento das cotas devidas à União ou aos Municípios, o lançamento e a arrecadação passariam a ser feitos pelo Governo federal, que atribuiria, nesse caso, trinta por cento ao Estado e vinte por cento aos Municípios.
[4] PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. P. 119.
[5] Destacamos que o ente que recebe o produto da arrecadação de tributo da competência de outro fica sujeito às consequências arrecadatórias dos benefícios fiscais evetualmente concedidos. Nesse sentido é o Tema 653 da sistemática da repercussão geral do STF: “É constitucional a concessão regular de incentivos, benefícios e isenções fiscais relativos ao Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados por parte da União em relação ao Fundo de Participação de Municípios e respectivas quotas devidas às Municipalidades.” (RE 705423, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 23/11/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-020 DIVULG 02-02-2018 PUBLIC 05-02-2018)
Procurador da Fazenda Nacional. Assessor de Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Pós-graduado em Direito Constitucional e em Tributário. Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GRILO, Renato Cesar Guedes. Análise histórica do problema da repartição da competência tributária nas Constituições brasileiras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 ago 2020, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55059/anlise-histrica-do-problema-da-repartio-da-competncia-tributria-nas-constituies-brasileiras. Acesso em: 26 nov 2024.
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