No dizer de Bobbio, democracia é o “governo do poder público em público”.
Por esta razão é que a Constituição Federal, desde 1988, elencou o princípio da publicidade e seus contornos na carta política, sempre de modo a afastar qualquer tipo de pretensão quanto à promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação da EC nº 19/1998)
[...]
§ 1º A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.
Obviamente, o que as normas acima pretendem obstar é o desvirtuamento da publicidade, o qual não se confunde com o necessário agir em público que deve nortear as ações administrativas, pois, segundo a doutrina:
[...] a possibilidade do conhecimento público sobre as escolhas desincentiva (‘sic’) a prática de irregularidades, especialmente em vista da ampliação da possibilidade de repressão a ilícitos e desvios. A certeza da revelação da ilicitude e da improbidade é um fator essencial para a redução de práticas reprováveis.
Fixadas essas premissas iniciais, cumpre mencionar que a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou, em 04/08/2020, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.522/DF em que questiona a validade de modificação da Lei Orgânica do Distrito Federal (LODF) sobre a divulgação de atos, programas, obras ou serviços públicos realizados.
Narra a PGR que a alteração permite a utilização dos meios oficiais de publicidade institucional da Câmara Legislativa ou dos órgãos da Administração Pública Distrital para a promoção pessoal indevida de agentes políticos e autoridades.
Continua afirmando o parquet que a Emenda nº 114/2019 à LODF inseriu os parágrafos 5º e 6º ao artigo 22. No entanto, tais dispositivos seriam inconstitucionais por preverem a possibilidade da inclusão do nome do autor da iniciativa, inclusive nos atos decorrentes de emendas à lei orçamentária anual, e estabelecerem que a divulgação não configura promoção pessoal se atender aos critérios previstos em norma interna de cada Poder.
Diz o dispositivo legal questionado:
Art. 22. Os atos da administração pública de qualquer dos Poderes do Distrito Federal, além de obedecer aos princípios constitucionais aplicados à administração pública, devem observar também o seguinte:
[…]
§ 5º A divulgação feita por autoridade de ato, programa, obra ou serviço públicos de sua iniciativa, incluídos os decorrentes de emendas à lei orçamentária anual, não caracteriza promoção pessoal, quando atenda os critérios previstos em norma interna de cada poder.
§ 6º Também não caracteriza promoção pessoal a inclusão em material de divulgação parlamentar do nome do autor que teve a iniciativa do ato, programa, obra ou serviço públicos, incluídos os decorrentes de emendas à lei orçamentária anual.
Ora, sem embargo da análise quanto à violação de outros princípios e valores – como o democrático e republicano, a imparcialidade, a impessoalidade, a moralidade, a finalidade dos atos administrativos e o direito à informação – fica bastante claro que o escárnio ao princípio da publicidade é evidente.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) caminha no mesmo sentido ao rechaçar a intenção veiculada na Emenda Distrital:
O inciso V do art. 20 da Constituição do Estado veda ao Estado e aos Municípios atribuir nome de pessoa viva a avenida, praça, rua, logradouro, ponte, reservatório de água, viaduto, praça de esporte, biblioteca, hospital, maternidade, edifício público, auditórios, cidades e salas de aula. Não me parece inconstitucional. O preceito visa a impedir o culto e a promoção pessoal de pessoas vivas, tenham ou não passagem pela administração. Cabe ressaltar que proibição similar é estipulada, no âmbito federal, pela Lei 6.454/1977. [ADI 307, voto do rel. min. Eros Grau, j. 13-2-2008, P, DJE de 1º-7-2009]
O caput e o § 1º do art. 37 da CF impedem que haja qualquer tipo de identificação entre a publicidade e os titulares dos cargos alcançando os partidos políticos a que pertençam. O rigor do dispositivo constitucional que assegura o princípio da impessoalidade vincula a publicidade ao caráter educativo, informativo ou de orientação social é incompatível com a menção de nomes, símbolos ou imagens, aí incluídos slogans, que caracterizem promoção pessoal ou de servidores públicos. A possibilidade de vinculação do conteúdo da divulgação com o partido político a que pertença o titular do cargo público mancha o princípio da impessoalidade e desnatura o caráter educativo, informativo ou de orientação que constam do comando posto pelo constituinte dos oitenta. [RE 191.668, rel. min. Menezes Direito, j. 15-4-2008, 1ª T, DJE de 30-5-2008]
Publicidade de caráter autopromocional do governador e de seus correligionários, contendo nomes, símbolos e imagens, realizada às custas do erário. Não observância do disposto na segunda parte do preceito constitucional contido no art. 37, § 1º. [RE 217.025 AgR, rel. min. Maurício Corrêa, j. 18-4-2000, 2ª T, DJ de 5-6-1998]
Frente ao exposto, é importante que o STF venha a manter os entendimentos acima citados para fins de declaração da inconstitucionalidade da Emenda nº 114/2019 à LODF, inclusive como parâmetro orientador para as demais autoridades e servidores públicos de toda a federação.
O que não se pode admitir, salvo melhor juízo, é a abertura de precedentes anômalos que, a pretexto de promoverem maior publicidade dos atos da Administração Pública, acabem por acobertar nítidas medidas de promoção pessoal às custas do erário e de toda a sociedade, como se a Constituição não vedasse tal proceder inconstitucional.
No Brasil urge se findar essa cultura nefasta de apossamento da coisa pública. O atuar no âmago da Administração Pública deve possuir a blindagem necessária para garantir a distinção entre o público e o pessoal. A publicidade é estatal, jamais autopromocional de quem quer que seja, ocupe o cargo que ocupar nas esferas governamentais.
As pessoas passam. O Estado fica.
É concluir que a Carta Política de 1988 não autoriza o marketing político ao arrepio de suas normas fundantes, sendo a publicidade estaca essencial, pilar inquebrantável desse sentimento moralizador que buscou trazer o legislador constitucional. Por isso que espera do Supremo, mais uma vez, o exercício firme do controle jurisdicional enquanto verdadeiro guardião da Constituição.
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