RUBENS ALVES DA SILVA[1]
(orientador)
Resumo: Em decorrência das mudanças de ideais principiológicos que regem a sociedade no tempo e no espaço, ao longo dos anos, o instituto familiar tem sofrido uma série de modificações em torno de seu eixo tradicional, nas quais, eventualmente, o poder familiar, antes centrado na figura paterna, passou a ser redistribuindo em estado de solidariedade e igualdade entre os demais membros da família. Dessa forma, foram surgindo, ao longo dos anos, novos modelos familiares, baseados nas relações de amor, responsabilidade e afinidade. Hodiernamente, o ordenamento jurídico brasileiro não estabelece, tacitamente, o conceito de família, deixando a cargo do intérprete tal tarefa. E é, justamente, nesse contexto, que surge o reconhecimento da socioafetividade no âmbito jurídico. Mesmo não sendo mencionado, explicitamente, em nenhum dispositivo legal, suas fundamentações encontram suporte em diversos princípios constitucionais, criando direitos e deveres em diversos ramos do direito, em especial, no Direito de Família. Diante desse contexto, surge a necessidade de se analisar os reflexos sociais e os parâmetros jurídicos de aceitação da filiação socioafetiva, considerando, ainda, seus efeitos em relação à isonomia filial, no âmbito do Direito Sucessório, mediante a análise doutrinária e jurisprudencial.
Palavras-chave: Socioafetividade. Efeitos Jurídicos. Direito Sucessório.
Abstract : As a result of the changes in principled ideals that govern society in time and space, over the years, the family institute has undergone a series of changes around its traditional axis, in which, eventually, family power, previously centered on a paternal figure, he began to be redistributed in a state of solidarity and equality among the other members of the family. In this way, new family models have emerged over the years, based on relationships of affinity, love and responsibility. Today, the Brazilian legal system does not tacitly establish the concept of family, leaving the task to the interpreter. And it is precisely in this context that the recognition of socio-affectivity arises in the legal sphere. Even though it is not explicitly mentioned in any legal provision, its foundations are supported by several constitutional principles, creating rights and duties in different branches of law, especially in Family Law. Given this context, there is a need to analyze the social reflexes and the legal parameters of acceptance of socio-affective affiliation, considering, also, their effects in relation to filial isonomy, in the scope of Succession Law, through doctrinal and jurisprudential analysis.
Keywords: Socio-affectivity. Legal Effects. Succession Law.
Sumário: 1 Introdução - 2 Noções de família no ordenamento jurídico brasileiro - 2.1 A evolução histórica do conceito de família - 2.2 O instituto familiar na constituição federal de 1988 - 2.3 As novas configurações familiares na ordem jurídica atual - 3 Efeitos jurídicos da socioafetividade - 3.1 Conceitos e definições da socioafetividade - 3.2 Efeitos jurídicos da socioafetividade - 3.3 Direitos sucessórios - 3.4 Direitos sucessórios e filiação socioafetiva - Considerações finais - Referências bibliográficas
1 Introdução
Constituição Federal de 1988 inovou o ordenamento jurídico pátrio, ao estabelecer uma nova ordem de valores, fundamentada na promoção dos direitos e liberdades individuais, mediante a observância de princípios como cidadania, igualdade, solidariedade, liberdade e, principalmente, dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, o novo Texto Constitucional inaugurou um novo Direito de Família no país, ao ampliar, em seu artigo 226, o conceito de família, reconhecendo outras formas de constituição familiar, como a união estável e a família monoparental, garantindo-lhes a proteção do Estado.
Vale destacar que, até então, o conceito jurídico de família era extremamente limitado e taxativo, uma vez que o Código Civil, de 1916, somente conferia o status familiae àqueles agrupamentos originados do instituto do matrimônio, baseados no modelo patriarcado, não possibilitando o reconhecimento e, portanto, os direitos civis dos filhos ditos “ilegítimos”.
O Código Civil, de 2002, por sua vez, no intuito de contemplar as inovações contidas na Carta Magna de 1988 e as modificações sociais ocorridas, ao longo dos anos, reforçou o direito de família, estabelecendo a igualdade jurídica entre os cônjuges e a igualdade jurídica de todos os filhos, da liberdade de construção de uma comunhão de vida familiar, da consagração do poder familiar, do superior interesse da criança e do adolescente, da afetividade e da solidariedade familiar.
Posteriormente, a Lei Nº 14.441, de 04 de janeiro de 2007, tornou possível o divórcio e a separação consensuais por via extrajudicial, em caso de não existirem filhos menores. Havendo filhos menores, será preciso ingressar com ação judicial, única e tão-somente para tutelar os interesses destes, em termos de guarda e prestação de alimentos, sob o crivo do Ministério Público, e não como um obstáculo à separação das partes.
Verifica-se, assim, que todas essas inovações trazidas ao ordenamento jurídico brasileiro, possibilitaram a conformação de novos modelos familiares, passando a serem comuns as famílias monoparental, anaparental, socioafetivas, pluriparentais, substitutas, ampliadas e eudemonistas, tendo em comum, entre elas, a busca pela felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade e o compartilhamento do afeto.
Diante de tantas configurações familiares, faz-se necessário proceder com a análise dos direitos concedidos em decorrência do reconhecimento jurídico da filiação parental, especialmente, no que diz respeito aos direitos sucessórios e a isonomia entre filhos biológicos e afetivos, considerando-se, precipuamente, a observância aos princípios da isonomia e da dignidade humana.
Para tanto, uma vez que o Direito de Família não se encontra limitado a um dispositivo legal específico, serão analisadas as disposições vigentes relacionadas à temática, distribuídas na legislação, na doutrina e na jurisprudência.
2 Noções de família no ordenamento jurídico brasileiro
2.1 A evolução histórica do conceito de família
O conceito de família sempre esteve presente na história das civilizações, incluindo-se a história do Brasil, muito embora, nos tempos pré-colonização, a finalidade fosse única e exclusivamente para a procriação, sem a necessidade de qualquer vínculo afetivo.
Com a chegada dos portugueses e a imposição dos costumes europeus, influenciados pela Igreja Apostólico-Romana, instituiu-se a obrigatoriedade do matrimônio como base para a constituição familiar, baseada, por seu turno, na estrutura patriarcal, cuja qual impunha a figura masculina como autoridade do lar e responsável pelo sustento dos filhos. Conforme assevera Maria Berenice Dias:
Em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, o necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção com amplo incentivo à procriação. Era uma entidade patrimonializada, cujos membros representavam força de trabalho. O crescimento de família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal. (DIAS, 2015, p. 27)
Entretanto, com a chegada da Revolução Industrial, nos séculos XX e XXI, a mulher começou a ocupar diversas posições no mercado de trabalho, descentralizando, mesmo que parcialmente, o poder irrestrito atribuído ao patriarca:
O modelo familiar da época era hierarquizado pelo homem, sendo que desenvolvia um papel paternalista de mando e poder, exigindo uma postura de submissão da mulher e dos filhos. Esse modelo veio a sofrer modificações a partir da Revolução Industrial, quando as mulheres foram chamadas ao mercado de trabalho, descobrindo assim, a partir de então, o direito à liberdade, passando a almejar a igualdade e a questionar a discriminação de que sempre foram alvos. Com essas alterações, a mulher passou a participar, com o fruto de seu trabalho, da mantença da família, o que lhe conferiu certa independência. Começou ela a cobrar uma participação do homem no ambiente doméstico, impondo a necessidade de assumir responsabilidade dentro de casa e partilhar cuidado com os filhos. (DIAS, 2015, p. 23-24)
Verifica-se, assim, que a família, porquanto instituto social, encontra-se sempre em evolução, tendo, muitas vezes, o Direito que se adaptar para acompanhar essas alterações, considerando que não existe a perspectiva de o legislador prever todas as possíveis mudanças de pensamento e comportamento que possam vir a acontecer, principalmente no que diz respeito às relações familiares.
A primeira legislação brasileira, a tratar com maior destaque o tema da família e o casamento civil entre homem e a mulher como sendo o responsável por instituir a família foi o Código Civil Brasileiro de 1916. Contudo, não era permitido o divórcio, sendo, também, adotados, como impedimentos matrimoniais, aqueles instituídos durante a Idade Média pela Igreja Católica.
A união matrimonial tinha caráter indissolúvel, sendo, o divórcio, constitucionalmente proibido, até 1977, quando a sanção da Emenda Constitucional Nº 9, alterou o dispositivo anterior, permitindo o divórcio.
Entretanto, a referida EC não revogava o caráter matrimonial ilimitado. O que acontecia era que, uma vez constata a impossibilidade de convivência, poderia ser solicitado o chamado do ‘desquite’, para proceder com a separação de bens e cessar a convivência diária, mas, deixando, todavia, as partes, impossibilitadas de constituir novo matrimônio ante a proteção jurídica do casamento, de modo que, muitos, evitavam o processo e mantinham um casamento de aparências.
No Brasil, a proteção da família perante o Estado foi reconhecida através da Constituição Federal de 1934, que passou a regulamentar as relações familiares. As constituições de 1946, 1967 e 1969 não apresentaram mudanças significativas, apenas mantiveram o amparo do Estado sobre a família.
Além disso, o Código Civil, de 1916, somente considerava como membros da família aqueles indivíduos originados a partir do casamento, não havendo qualquer proteção legal aos casais que conviviam sem o devido matrimônio e, muito menos, o reconhecimento dos filhos provenientes desse relacionamento.
O referido diploma legal, moldado à sua época, afirmava que ser sujeito de direito representava ser “sujeito de patrimônio”, ter muitos bens, de modo que o entendimento apresentado era totalmente patrimonialista, valorizando mais o “ter” do que o “ser” e direcionava-se aos grandes proprietários, colocando a família patriarcal no epicentro da legislação.
Por fim, cabe mencionar que, até a sanção da Lei Nº 6515, de 26 de dezembro de 1977, o casamento era instituição de caráter indissolúvel, não existindo qualquer previsão legal para a possibilidade do divórcio.
2.2 O instituto familiar na constituição federal de 1988
Com a promulgação da Carta Política de 1988, foi introduzida, no ordenamento jurídico brasileiro, a concepção de Estado Democrático de Direito, reafirmando os valores morais do Direito de Família, fundamentado no respeito aos direitos individuais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à liberdade.
Popularmente conhecida como “Constituição Cidadã”, em razão da positivação de uma ampla variedade de direitos e garantias fundamentais, o referido dispositivo veio realinhar os laços de afeto e de solidariedade no âmbito familiar, com primazia da plena satisfação, tomando por base, principalmente, os princípios da dignidade humana, da igualdade e da solidariedade.
Assim, a edição da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, trouxe mudanças radicais de paradigmas e conceitos, quando pôs em ênfase o antropocentrismo em vez do patrimonialismo, no cerne do sistema jurídico pátrio, logo em seu preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (BRASIL, 1988, grifo nosso)
Assim, ficou evidente, logo em suas linhas iniciais, se tratar de um dispositivo destinado à proteção dos direitos sociais e individuais, estabelecendo, dentre outros, como valores supremos de uma sociedade fraterna e harmônica, a liberdade, a segurança e o bem-estar.
O artigo primeiro, da referida Carta Política, traz a configuração da República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, pautado em fundamentos como a soberania popular, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Mais à frente, o artigo terceiro, traz os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
(BRASIL, 1988, grifo nosso)
Isso significa que é dever do Estado, portanto, propiciar todos os meios para que a democracia seja exercida, no intuito de proporcionar, aos brasileiros, o bem-estar, a qualidade de vida e a harmonia social, condizentes com uma sociedade livre e solidária.
Mais à frente, o artigo quinto, considerado como o principal dispositivo constitucional, versa sobre os direitos e garantias fundamentais, trazendo, em seu caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. (BRASIL, 1988)
A previsão expressa do direito à igualdade, no artigo supracitado, significou um verdadeiro marco atentatório contra a discriminação, ao reafirmar a igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher, mediante a previsão da igualdade de aptidões e de possibilidades virtuais dos cidadãos de gozar de tratamento isonômico pela lei.
Destarte, o princípio da igualdade atua em duas vertentes: na presença da lei e na lei. Por igualdade na presença da lei compreende-se o dever de aplicar o direito no caso concreto; em contrapartida, a igualdade na lei pressupõe que as normas jurídicas não devem conhecer distinções, exceto as constitucionalmente autorizadas, conforme leciona Alexandre de Moraes:
O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio Poder Executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situação idêntica. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça e classe social. (MORAES, 2002, p. 65).
A Carta Magna, de 1988, também, ampliou, as definições de família, ao reconhecer outras formas de constituição familiar, como a união estável e a família monoparental, conforme redação abaixo:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
(BRASIL, 1988, grifo)
Por conseguinte, passou a não mais existir a limitação conceitual de família, como ocorria nas constituições anteriores, tendo em vista que o artigo em questão, a partir dos princípios supramencionados, avoca a proteção estatal à família, como pilar estrutural da sociedade, sem delimitá-la ou defini-la, deixando ao intérprete esta tarefa.
A nova regulamentação de família, expressa pela Constituição de 1988, portanto, veio para priorizar as inúmeras famílias constituídas pelo afeto e a dignidade da pessoa humana, famílias socioafetivas que cresciam e uma proporção significativa, devendo ter assim, uma especial atenção pelo ordenamento jurídico.
2.3 As novas configurações familiares na ordem jurídica atual
Como consequência dos novos desdobramentos constitucionais foram editadas leis especiais garantidoras dos direitos, que promoveram a atualização do texto da lei 6516/77, relativa à separação judicial e ao divórcio, a edição do ECA. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8069/90, a normatização do reconhecimento chamados filhos “ilegítimos, provenientes de relações que não o casamento, Lei nº 8560/92, as leis da União Estável 8971/94 e 9278/96, conferindo aos companheiros direitos de alimentos e a meação e a herança.
Nesse contexto, no intuito de melhor se adequar às previsões constitucionais, o Código Civil, de 1916, que encontrava-se extremamente desatualizado em relação às novas configurações sociais, foi reeditado, em 2002, trazendo uma série de inovações no âmbito do direito familiar, como, por exemplo, o princípio da autonomia privada como reitor das relações patrimoniais no casamento, em seu artigo 1.639.
A repersonalização do Direito Civil, em 2002, deu à família especial proteção estatal, que, antes intervencionista, passou a pautar-se na efetivação dos direitos fundamentais, especialmente o bem-estar dos indivíduos que integram a entidade familiar, tendo em vista que o referido dispositivo incorporou, ao texto legal, os princípios constitucionais de 1988, bem como as normas esparsas de legislação infraconstitucional, passando a prever e dispor sobre as regras de direito de família de forma compilada. (BRASIL, 2002)
Assim, passaram a reger o Direito de Família moderno: o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana (artigo 1, inciso II), através desse princípio a família é pensada pela ótica dos direitos humanos, ligados à noção de cidadania em sentido amplo no contexto constitucional e universal dos direitos humanos; o princípio da igualdade jurídica dos cônjuges e companheiros (artigo 226, 5º, CF e artigo 1.511, 1.567 CC); o princípio da igualdade jurídica dos filhos (artigo 227, 6º, CF e artigo 1.596 a 1.629 CC); o princípio da paternidade responsável (artigo 226, 7º, artigo 1.565 CC e Lei 9.523/96 ); o princípio da comunhão plena de vida, baseada na afeição (artigo 1.511 CC, artigo 1.513, CC); o princípio da liberdade para constituir uma comunhão de vida familiar (artigo 226, 7, CF, artigo 1.513, 1.565, 1.634, 1.642, 1.643, 1.639 CC).
Além disso, com a entrada em vigor da Lei Nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007, o divórcio e a separação consensuais se tornaram passíveis de serem requisitados por via administrativa, dispensando a necessidade de ação judicial, bastando que as partes compareçam, assistidas por um advogado, a um cartório de notas e apresentar o pedido, desde que não exista litígio nem filhos menores.
Por último, a EC Nº 66/2010, inovou o ordenamento, ao conceder ao cônjuge, a prerrogativa de ajuizar a Ação de Divórcio no dia seguinte ao do casamento, não tendo mais que passar pela separação prévia, de modo que, se ambas as partes estiverem de acordo e não houveres filhos menores, a dissolução do casamento não precisará ser judicial, bastando que os interessados compareçam a um cartório para lavrar a escritura de divórcio.
Mais recentemente, os Estado de Goiás e São Paulo passaram a permitir a dissolução de uniões estáveis em cartório, mesmo nos casos em que se conste a presença de filhos menores, mediante a apresentação de protocolo referente ao processo de guarda e de alimentos, não mais se exigindo a sentença judicial.
Essa contínua facilitação dos divórcios e as dissoluções das uniões estáveis vem tornando possível a rápida constituição de novas vínculos matrimoniais e, consequentemente, novas configurações familiares, que passam a ser compostas pelo aglutinamento dos dependentes das relações anteriores somados aos herdeiros conjuntos.
Isso importa dizer que, na contemporaneidade, as famílias, muito diversamente dos tempos passados, passaram a ser constituídas com base nos sentimentos que permeiam cada um de seus componentes, como o amor, o respeito e a igualdade, tendo em vista a felicidade de todos.
Destarte, frente aos novos vínculos afetivos que se formam nos grupos familiares, com a proliferação da família, surgiu o fenômeno jurídico do reconhecimento de uma paternidade socioafetiva, alheia à presença de laços sanguíneos entre os pais e os filhos.
3 Efeitos jurídicos da socioafetividade
3.1 Conceitos e definições da socioafetividade
A família contemporânea é considerada a base da sociedade com uma estrutura pública como uma relação privada. O Estado tem o dever de proteger e preservar o organismo familiar, visando à busca pela felicidade individual e o desenvolvimento do caráter de seus membros, caracterizada como família eudemonista, haja vista a existência do sistema familiar democrático e não mais centralizado e patriarcal.
Portanto, os cidadãos passaram a ser livres do patriarcalismo e do perfil hierarquizado da família em tempos passados. É o que leciona Farias e Rosenvald:
A transição da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no afeto. Seu novo balizamento evidencia um espaço privilegiado para os seres humanos se complementem e se completam. Abandona-se, assim uma visão institucionalizada, pela qual a família era, apenas, uma cédula social fundamental, para que seja compreendida como núcleo privilegiado para o desenvolvimento da personalidade humana (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 38).
Uma dessas novas entidades familiares é a família recomposta, também chamada de reconstituída, mosaica, pluriparental, formada pelo homem ou pela mulher que já possui filhos advindos de relacionamento anterior e que os traz para formarem uma nova família, com novo cônjuge ou companheiro, com os eventuais filhos que este também já possua e os filhos comuns do casal.
Os descendentes passam a conviver com o novo cônjuge ou companheiro do pai ou da mãe, que exerce no dia a dia as funções típicas maternas e paternas, sendo chamados de padrasto e madrasta e os filhos chamados de enteado e enteada. (LÔBO, 2011, p. 95-96)
Ocorre, por conseguinte, uma superposição de papéis parentais, do pai e mãe e do padrasto e madrasta, que, normalmente, assumem a responsabilidade pelo enteado. Surgem, ainda, as interações sociais entre os filhos provenientes de cada um dos cônjuges ou companheiros com ou filhos comuns, o que, na visão de Lôbo, “[...] provoca incertezas acerca dos possíveis direitos e deveres emergentes, pois é inevitável que o padrasto ou a madrasta assuma de fato as funções inerentes da paternidade ou maternidade” (LÔBO, 2011, p. 25).
Considerando a relevância e a substancialidade que o vínculo socioafetivo adquire em torno dessas famílias, a Lei N° 11. 924, de 17 de abril de 2009, alterou o artigo 57 da Lei N° 6.015, de 31 de dezembro de 1973 – Lei dos Registros Públicos – autorizando o enteado a acrescentar em seu nome, o nome de família do padrasto ou madrasta, com a autorização do juiz, existindo expressa concordância destes, sem prejuízo dos apelidos de família e havendo motivo ponderável, conforme asseveram Ana Teixeira e Renata Rodrigues:
A lei autorizou, desta feita, a cumulação de patronímicos de modo que o nome – por definição, projeção social da personalidade – reflita exatamente o estado familiar da criança ou do adolescente, ou seja, se várias pessoas desempenharem funções parentais em sua vida, que o nome possa exteriorizar seus mais diversos estados de filiação. Conforme consta na justificativa do projeto de lei, de autoria do então deputado Clodovil, “pessoas que, estando em seu segundo ou terceiro casamento, criam os filhos de sua companheira ou companheiro como se seus próprios filhos fossem”, ou seja, exercem a autoridade parental. Trata a lei, portanto, de que o nome corresponda à sua realidade familiar. (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p. 211)
A inovação legislativa serviu para diminuir a desigualdade no ambiente familiar, passando o enteado ou enteada a possuir o sobrenome da família reconstituída, igualando aos filhos comuns e meios-irmãos, como bem observam Farias e Rosenvald:
No direito comparado, o desenho das famílias ensambladas tem cores, tons e matizes ainda mais nítidos. Indo mais longe, o direito germânico contempla efeitos jurídicos entre padrasto ou madrasta e enteado, decorrentes de expressa previsão legal (o § 1687, b, do BGB), autorizando o padrasto ou a madrasta a exercer o direito de codecisão com o seu cônjuge nas questões atinentes à vida cotidiana do filho, em sendo exclusiva do consorte a guarda do menor. Já o direito luso prevê a possibilidade de formulação de pedido de alimentos pelos enteados menores aos seus padrastos e madrastas. (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 111).
Outro importante modelo familiar surgiu nos últimos anos, liderado por pessoas do mesmo gênero, sejam homens ou mulheres, denominado de união homoafetiva, institucionalizada pelo casamento ou pela união estável homoafetiva, reconhecida pelo STF, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, posteriormente convertida em ADI, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277, e sua conversão em casamento, reconhecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mediante resolução nº 175 de 2013. (MPF, 2017)
Tais famílias podem constituir filhos através das seguintes modalidades: I) reconstituição: quando um dos parceiros traz o filho já existente; II) adoção: legalizada ou não; III) co-parentalidade: quando um dos membros gera a criança com auxílio de alguém que forneça parceria biológica possível, de modo que os três métodos permitem o nascimento da paternidade (novamente utilizada em sentido amplo) socioafetiva.
Frisa-se, ainda, que a lei não estabelece nenhuma discriminação a respeito da orientação sexual ou da identidade de gênero do(s) adotante(s), o que nos faz concluir que tanto solteiros como casais homossexuais podem adotar, com fundamentação legal contida no art. 42, § 2º, do ECA. (BRASIL, 1990)
Diante desse contexto, na seara do Direito de Família, para Flávio Tartuce, mediante interpretação do dispositivo 1.595, permite dizer que existem três modalidades de parentesco admitidas no Direito Civil brasileiro, são elas:
Parentesco consanguíneo ou natural: aquele existente entre pessoas que mantêm entre si um vínculo biológico, por terem origem no mesmo tronco comum. Parentesco por afinidade: existente entre cônjuge ou seu companheiro e os parentes do outro [...]. Parentesco civil: decorrente de outra origem que não a consanguinidade ou afinidade. Tradicionalmente tem origem na adoção. Todavia a doutrina e a jurisprudência admitem duas outras formas: a decorrente de técnica de reprodução heteróloga, aquela efetivada com material biológico de terceiro, e a parentalidade socioafetiva. (TARTUCE, 2017, p. 1.410)
Segundo prelecionam Teixeira e Rodrigues é
O que constitui a essência da socioafetividade, o exercício fático da autoridade parental, ou seja, é o fato de alguém, que não é o genitor biológico, desincumbir-se de praticar as condutas necessárias para criar e educar filhos menores, com o escopo de edificar sua personalidade, independentemente de vínculos consanguíneos que geral tal obrigação legal. Portanto, nesse novo vínculo de parentesco, não é a paternidade ou a maternidade que ocasiona a titularidade da autoridade parental e o dever de exercê-la em prol dos filhos menores. É o próprio exercício da autoridade parental, externado sob a roupagem de condutas objetivas como criar, educar e assistir a prole, que acaba por gerar o vínculo jurídico da parentalidade. (TEIXEIRA, RODRIGUES, 2010, p. 194)
Nesse sentido, a multiparentalidade e a filiação socioafetiva tiverem suas discussões iniciadas na última década e, por tal questão, embora haja uma corrente majoritária que vê com positividade sua aceitação, há muitos outros que não aprovam sua permissão. Esse último posicionamento ocorre principalmente quando se consideram as problemáticas acerca dos efeitos jurídicos advindos, especialmente nos sucessórios.
3.2 Efeitos jurídicos da socioafetividade
A parentalidade socioafetiva tem, como o próprio nome indica, um viés fortemente sociológico e não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se baseia no campo da afetividade, ultrapassando a verdade jurídica ou genética.
Pode ser dividida em quatro tipos: reprodução assistida heteróloga; adoção “à brasileira”, que refere-se em registrar uma criança sem o devido processo legal; adoção, como ato jurídico; e filho de criação, que desponta quando alguém educa, resguarda e protege em seu lar, por mera opção, criança ou adolescente, tratando perante terceiros como se o filho seu fosse. Dentre todos, os dois últimos tipos de filiação talvez sejam os que mais possibilitam a materialização do fenômeno da multiparentalidade.
Para Flávio Tartuce “a paternidade socioafetiva declarada ou não em registro não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. (TARTUCE, 2017, p. 1.224)
Na mesma linha de raciocínio, o Código Civil, estabelece, como parentesco, o natural e o civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem (art. 1.593), e se estrutura em linhas e graus, nos termos ali estabelecidos (arts. 1591, 1.592, 1.594 e 1.595), sendo entendidos pela doutrina e pela jurisprudência atuais, o parentesco “natural”, o parentesco biológico ou genético, e o parentesco “civil”, resultante de “outra origem”, o socioafetivo, compreendendo a adoção e a filiação oriunda das técnicas de reprodução assistida heterólogas.
No entanto, para que produza efeitos jurídicos, a socioafetividade deve ser reconhecida por sentença, mediante exposição da prova do afeto, de natureza subjetiva indubitável, e, necessariamente, dos efeitos sociais daí decorrentes, passíveis de aferição objetiva. A comprovação dos efeitos sociais autoriza a declaração do vínculo de parentesco, mesmo sem o desejo expresso do pai (ou da mãe), que não tem mais afeto por aquele que, até então, fora seu filho.
Ou seja, para que se identifiquem os efeitos jurídicos da socioafetividade, é necessário, primeiro, determinar sua natureza jurídica e estabelecer seu conceito. Assim, o parentesco baseado na afetividade, deve ser externado na vida social, à semelhança de outras relações fundadas no afeto, mediante (pelo menos) reputatio, nominatio e tractatus, que são seus requisitos e que permanecem, mesmo quando findo o afeto, porque construídos na convivência em sociedade. Presentes esses requisitos, a socioafetividade se constitui como um dos pré-requisitos para o reconhecimento do vínculo de parentesco de outra procedência, a que se refere o artigo 1.593, do Código Civil.
Verifica-se, assim, que o parentesco socioafetivo, produz todos e os mesmos efeitos do parentesco natural, sendo seus efeitos pessoais: (a) a criação de vínculo de parentesco na linha reta e na colateral (até o 4º grau), permitindo a adoção do nome da família e gerando impedimentos na órbita civil, como os impedimentos para casamento, e pública, como os impedimentos para assunção de determinados cargos públicos; (b) a criação do vínculo de afinidade.
O direito de herança é garantido, constitucionalmente, no inciso XXX, do artigo 5º, assim como o direito de propriedade, previsto no inciso XXII, do mesmo artigo, estando os dois, intimamente ligados, considerando que sem a propriedade de bens nos fosse negada, não haveria herança a ser relegada.
Nesse contexto, as definições da herança estão contidas em legislação infraconstitucional, em especial no Código Civil, de 2002, cujo qual estabelece que a sucessão pode ser legítima ou testamentária.
A sucessão legítima encontra-se prevista em seu artigo 1.829, mediante a seguinte redação:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.
(BRASIL, 2002)
Assim, em conformidade com o supracitado artigo, são considerados herdeiros necessários, portanto, os descendentes e os ascendentes, os cônjuges e companheiros, considerados herdeiros necessários, fazendo jus ao que se chama de legítima, ou seja, a pelo menos metade da herança deixada pelo morto.
De resto, o Código Civil estabelece, ainda, em seu art.1614, o prazo de quatro anos, contados da sua maioridade civil, para o filho reconhecido sem o seu consentimento impugnar este reconhecimento, não obstante o STJ já tenha se pronunciado, para aduzir que uma relação socioafetiva não retira o direito de o filho adotado à brasileira ter conhecimento de sua real história familiar e pesquisar sua verdade biológica usurpada desde o seu nascimento até a idade madura.
3.4 Direitos sucessórios e filiação socioafetiva
Sob o aspecto patrimonial são gerados direitos (deveres) a alimentos e direitos sucessórios, devendo, dessarte, a legitimação do parentesco com base na socioafetividade, ser criterioso, uma vez que envolve terceiros, necessariamente envolvidos na relação socioafetiva, mas que certamente serão alcançados pelo dever de solidariedade que é inerente às relações de parentesco.
Desse modo, entende-se que o filho socioafetivo tem o direito de pleitear o reconhecimento judicial de tal filiação (e dos seus consequentes efeitos sucessórios) a qualquer tempo, seja vivo ou já falecido o pai, apesar de que o reconhecimento da filiação socioafetiva, após o falecimento do suposto pai ou da suposta mãe afetiva, faz com que poucos julgadores reconheçam e legitimem tal relação paterno/materno-filial, conforme Fabiane Goulart:
Um dos principais argumentos para o não reconhecimento é que, se o pai ou a mãe socioafetiva quisesse ter manifestado a vontade de assumir a relação paterno/materno-filial teriam feito em vida ou mediante testamento. Outro argumento utilizado, como observado nas jurisprudências analisadas no presente trabalho, é que esse tipo de ação visa somente o interesse patrimonial, ou seja, busca somente a quota do direito hereditário. Tais argumentos podem ser levados em conta quando realmente, no caso concreto, não foi comprovada a configuração da filiação sociológica. Até porque muitos podem utilizar desse artifício para conseguir um direito hereditário no qual não têm nenhum direito. (GOULART, 2013, p. 13)
Entretanto, cabe mencionar que o ordenamento jurídico pátrio adota o princípio ao juiz natural, aquele ligado ao judiciário que analisa a causa de forma imparcial, desligando-se de seus preconceitos. conforme previsto no artigo 131, do Código de Processo Civil, o qual diz que o juiz formará e motivará seu convencimento com base na livre apreciação da prova.
Assim, não cabe ao magistrado, a presunção de tratar-se de meros interesses patrimoniais, devendo, a filiação ser reconhecida pura e simplesmente com base na análise dos requisitos legalmente impostos, observando-se o artigo 1.593, do Código Civil e o artigo 227, § 6º, da Constituição Federal, visto que, biológico ou socioafetivo, filhos são igualmente filhos e, portanto, devidamente tutelados pelo ordenamento jurídico pátrio.
Diante de tal afirmação, fundamenta-se a divisão de herança prevista em lei, tendo em vista que o direito sucessório é uma decorrência da filiação, como também é ligada a filiação socioafetiva, sob as modalidades de sucessão legítima, herdeiros necessários, concorrência entre herdeiros e demais subdivisões, bem como a garantia de direito de herança sob testamento.
A ordem de vocação hereditária, prevista no art. 1.829 mesmo diploma legal, foi estabelecida conforme as relações de parentesco, onde os descendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro, figuram na primeira classe de chamamento à sucessão. Uma vez reconhecida e declarada a filiação socioafetiva, este filho passa a ter todos os direitos sucessórios, nos termos do art. 227, § 6º, de modo que os filhos, sejam eles consanguíneos ou não, concorrem com igualdade e devem ter a partilha em quotas iguais.
Em 28 de março de 2017, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça por meio do julgamento do Recurso Especial Nº 1.618.230 – RS (2016/0204124-4), proclamou um caso a respeito da socioafetividade, no qual reconheceu o direito de um idoso de quase 70 anos de idade a receber uma herança do seu pai biológico, através de uma ação de reconhecimento de paternidade, mesmo já tendo recebido o patrimônio de seu pai socioafetivo.
O aludido julgado, além de destacar o valor jurídico que possui a afetividade em todos os seus efeitos, demonstrou também que não existe hierarquização entre a paternidade socioafetiva e a paternidade biológica, estando, elas, em posição de igualdade. O Supremo Tribunal Federal consolidou, também, que, independentemente de declarada, ou não, em registro público, a paternidade socioafetiva, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante com efeitos jurídicos próprios.
No tange ao direito sucessório, especificamente, a jurisprudência já reconheceu que a socioafetividade dá o direito de legitimidade ao direito sucessório, como analisa abaixo:
SEGURO DE VIDA. AÇÃO DE COBRANÇA. PEDIDO JULGADO PARCIALMENTE PROCEDENTE. RECURSO DE APELAÇÃO. PRETENSÃO DA COMPANHEIRA DO SEGURADO AO RECEBIMENTO DA TOTALIDADE DA INDENIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO BENEFICIÁRIO. PRESERVAÇÃO DE DIREITOS SUCESSÓRIOS A POSSÍVEL FILHO DO SEGURADO. Certidão De Óbito Com Informação Quanto À Existência De Filho. Princípio Da Veracidade Registral. Prova Documental Juntada Que Não É Capaz De Afastar A Informação Contida Na Certidão De Óbito. Cópia De Documento Do Pretenso Filho Juntada Aos Autos, Demonstrando Ser Outra Sua Filiação. A Filiação Não Decorre Apenas Da Consanguinidade, Mas Também Da Socioafetividade. Inteligência Do Art. 1.593 Do Cc/2002. Multiparentalidade Admitida Pelo Stf (Tema 622 – Repercussão Geral). Ação De Inventário Que Não Admite Questões De Alta Indagação, Sendo Indiferente O Seu Desfecho. Prova Juntada Pela Própria Autora (Autos De Ação De Abertura De Testamento) Que Admite A Existência De Vínculo Socioafetivo Entre Segurado E O Pretenso Filho, A Corroborar As Conclusões Adotadas Na Sentença. Dúvida Razoável Que Impede A Procedência Do PedidoRECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-SP - APL: 10065344720168260562 SP 1006534-47.2016.8.26.0562, Relator: ALFREDO ATTIÉ, Data de Julgamento: 01/10/2018, 26ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 01/10/2018, grifo nosso).
Dessa forma, mesmo com as lacunas presentes no ordenamento jurídico quanto à regulamentação dos efeitos sucessório nas hipóteses de filiação socioafetiva, a doutrina e jurisprudência vêm se aperfeiçoando no reconhecimento desta modalidade de filiação, garantindo àqueles que efetivamente preenchem os requisitos de posse do estado de filho a transferência de bens, direitos, encargos e obrigações, quando da abertura da sucessão, no caso de enquadramento como herdeiro, conforme ordem de sucessão hereditária.
Assim, não restam dúvidas de que o entendimento da Suprema Corte segue no sentido de que a multiparentalidade acarreta efeitos e garante o direito à sucessão, pois declara, expressamente, que a filiação socioafetiva concomitante com a filiação biológica produz consequências patrimoniais e extrapatrimoniais.
Conforme visto no decorrer deste estudo, o ordenamento jurídico brasileiro, fundamentado na Lei Maior, de 1988, não admite diferenciação entre os filhos, sejam eles consanguíneos, adotivos, ou socioafetivos, sendo a tutela jurídica dada à afetividade, por vezes, maior do que a disponibilizada para o direito consanguíneo, já que, por muitas vezes, há mais afeto, amor e reconhecimento daquele que não é parente do que daquele que gerou o indivíduo.
A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais. Ainda mais, quando a Ação Investigatória de Paternidade é ajuizada por iniciativa do próprio filho, o maior interessado.
A sucessão legítima, conforme disposto no artigo 1.829, do Código Civil, estabelece os descendentes e os ascendentes, os cônjuges e companheiros, considerados herdeiros necessários (CC 1.845), fazendo jus ao que se chama de herança legítima, ou seja, a pelo menos metade da herança deixada pelo morto.
Os parentes colaterais, ou herdeiros facultativos, por outro lado, somente herdarão quaisquer bens, se não existirem herdeiros necessários, nem testamento a terceiros.
Uma vez que não existe previsão legal expressa destinada aos direitos sucessórios em razão da socioafetividade, o tema é abordado pela doutrina e jurisprudência, cujas quais reconhecem, de forma majoritária, o direito à sucessão, como herdeiro necessário, eis que descendente, com base no princípio da igualdade entre os filhos, trazido pela Constituição Federal, em seu artigo 227, § 6º, reforçado pelo artigo 1.596 do Código Civil.
Destarte, estando presentes os requisitos do que se chama de posse de poder de filho, será consolidado o vínculo parental, ainda que não assentados na realidade natural, ou biológica, possuindo relevância jurídica para todos os fins de direito, nos limites da lei civil, sendo, portanto, reconhecida como legítima a relação de parentesco socioafetivo.
Conclui-se, assim, que direito à sucessão, em consonância com direito de família possui como princípio primordial, o princípio da dignidade da pessoa humana que tem por objetivo suceder a herança de maneira digna e justa, de maneira que as regras da sucessão devem ser aplicadas na multiparentalidade, garantindo a igualdade entre os parentes biológicos e socioafetivos.
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_______. 2017. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial: 1618230 RS 2016/0204124-4, Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Data de Julgamento: 28/03/2017, T3 – Terceira Turma. Data de Publicação: Dje 10/05/2017) Disponível em: Acesso em 25 de abril de 2020.
_______. 2018. Tribunal de Justiça de São Paulo, Recurso de Apelação: 10065344720168260562 SP 10065534, Relator: Alfredo Attié. Data de Julgamento: 01/10/2018, 26ª Câmara de Direito Privado. Data de Publicação: 01/10/2018. Disponível em: Acesso em: 02 de out.2019.
_______, 2019. Tribunal de Justiça de Goiás, Agravo Interno na Apelação Cível: 00686581220158090168, Relator: Carlos Hipolito Escher. Data de Julgamento: 12/02/2019, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 12/02/2019. Disponível em https://tj-go.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/739455244/apelacao-cpc-2254693620108090051/inteiro-teor-739455266. Acesso em 20 de abril de 2020.
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[1] Autor de livros e advogado. Mestre em Direito pelo o Instituto Nacional de Ensino Superior e Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM/MG, Pós-Graduação em Processo Judiciário pela FIC/SERGIPE, Pós-Graduação em Docência e Gestão em Ensino Superior pela Universidade Estácio do Amazonas, Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus -CEULM/ULBRA. Contato: [email protected]
Graduando do Curso Superior de Direito do Centro de Ensino Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FROZ, Yago Ferreira. A socioafetividade e seus efeitos jurídicos no âmbito do direito sucessório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2020, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55479/a-socioafetividade-e-seus-efeitos-jurdicos-no-mbito-do-direito-sucessrio. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
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