RUBENS ALVES DA SILVA
(orientador)
Resumo: Em seu artigo 5º, A Constituição Federal, prevê sobre a isonomia de todos perante a lei, vedando quaisquer distinções, tanto para os brasileiros quanto para os estrangeiros residentes no país. O tema central do artigo tem como objetivo demonstrar que a realidade é bem diferente do que está escrito na Constituição: o julgamento prévio, discriminação racial, a desigualdade social, geram para os indivíduos os denominados estigmas, ou seja, rotulando os indivíduos principalmente para o sistema penal como suspeitos diretos da prática de delitos sujeitos a penas mais pesadas, mormente por sua classe econômica e social, raça, e determinadas características pessoais que geram para esses indivíduos a presunção da delinquência. Conclui-se que existe uma rotulação pré existente no judiciário brasileiro ocasionando a seletividade marginalizando aqueles a qual não fazem parte do sistema elitista. Os que possuem recursos mais abastados recursos recebem tratamento diferenciado e penas mais brandas na aplicação do direito. Os que detêm melhores condições econômicas são favorecidos e os que não, são punidos.
Palavras-chave: Preconceito; Seletividade; Discriminação.
Abstract: In its article 5, The Federal Constitution, provides for the equality of everyone before the law, forbidding any distinctions, both for Brazilians and foreigners residing in the country. The central theme of the article aims to demonstrate that the reality is quite different from what is written in the Constitution: prior judgment, racial discrimination, social inequality, generate for individuals the so-called stigmas, that is, labeling individuals mainly for the penal system as direct suspects of the offenses subject to heavier penalties, especially for their economic and social class, race, and certain personal characteristics that generate the presumption of delinquency for these individuals. It is concluded that there is a pre-existing labeling in the Brazilian judiciary causing selectivity marginalizing those who are not part of the elitist system. Those with more affluent resources receive different treatment and milder penalties when applying the law. Those with better economic conditions are favored and those who are not are punished.
Keywords: Preconception; Selectivity; Discrimination.
1 Introdução
Em nosso país, o desenvolvimento do sistema penal, historicamente está ligado ao racismo, sustenta-se que as desigualdades sociais produzem reflexos na aplicação e produção do direito. A seletividade em nosso país tem cor.
A partir da história da escravidão, fato deplorável para os brasileiros, são iniciadas as práticas das seletividades racistas no sistema penal brasileiro. Com a colonização portuguesa, no Brasil, tem início a história da escravidão. Com a vinda dos africanos, na metade do século XVI, vendidos como mercadorias e utilizados com mão-de-obra escrava, não existia liberdade, igualdade e nem fraternidade de qualquer espécie para eles. Com a Constituição de 1824, em seu Artigo 179, preveu que “a lei será igual para todos”, porém, a utilização dos escravos, como mão-de-obra, ainda era permitida.
No dia 13 de maio do ano de 1988, decorridos 300 anos, foi sancionada a Lei Áurea, extinguindo de uma vez a escravidão no país. Todavia, com a escravidão abolida, a integração dos negros na sociedade não apresentou meios para tal, a marginalização e a exclusão foram situações criadas pela falta de políticas públicas não criadas. O tratamento dos negros como inferiores continuou, mesmo após a abolição da escravatura, pela falta de assistência, especificamente na área criminal essas consequências influenciaram diretamente no âmbito jurídico.
No caput do Artigo 5o, da Constituição Federa de 1988, diz que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Todavia, na prática, essa igualdade não é aplicada, sendo diferente o tratamento dispensado a uma parcela da sociedade. Para aqueles originados de classes sociais mais baixa e para os negros a seletividade se confirma na prática, para aqueles que cometem os chamados crimes de “colarinho branco” o tratamento oferecidos a eles é diferenciado.
O estereótipo mencionado está relacionado à seletividade, presente desde a abordagem policial até às sentenças julgadas pelo poder judiciário, o que confirma a utópica igualdade de tratamento. Agindo de forma criminosa o sistema dá, à conduta de certos agentes, um peso maior, indo contra seus próprios objetivos.
Basta observarmos que as pessoas encarceradas são em sua maioria, oriundas de classes sociais mais baixa para confirmamos a desigualdade de tratamento no sistema penitenciário brasileiro. Enquanto isso, pessoas detentoras de poder econômico que praticam crimes não são punidas apropriadamente, as leis para estes são aplicadas brandamente. Na última década, o Brasil, em termos de encarceramento, é superado apenas pelo Camboja (KALILI, 2014).
O presente trabalho se propõe a analisar a Seletividade do Sistema Judiciário Brasileiro, tendo como principal objetivo discorrer sobre as seletividades raciais, sociais e judiciárias existentes.
Desse modo, será feita uma abordagem sobre a história da seletividade penal, iniciando com a Teoria do etiquetamento social, passando pelo seletividade racial e concluindo com a seletividade penal mostrando a seletividade por raça e classe nas decisões judiciais comparando o tratamento dispensado aos selecionados em relação aos favorecidos.
2 A Teoria do Etiquetamento Social
Para rotular como delinquente um indivíduo os principais elementos formadores de convicção são muitas vezes errôneos e frágeis de sustentação, apresentados como defeitos de socialização, onde não são considerados os fatores reais incriminadores como: o mau comportamento na convivência social, os antecedentes criminais, os fatos concretos que enfatizam a criminalização real e a a pré-disposição para atos de delinquência.
Na obra de Cesare Lombroso, “O homem delinquente”, de 1876, podemos verificar que a questão da desigualdade não é um fator recente, de certa maneira, ele já abordava sobre a estigmatização de certos indivíduos como, por exemplo, o fato do uso de tatuagens onde ele afirma que aqueles que a possuíam eram tendentes à delinquência e predispostos ao cinismo, à insensibilidade à dor, à vaidade, à preguiças, à falta de senso moral e de caráter impulsivo (LOMBROSO, 2016, p. 7).
Sobre a teoria de Lombroso, Matos (2020), afirma que:
A doutrina lombrosiana procurava características orgânicas e tipológicas que permitissem identificar o indivíduo delinqüente de maneira diversa do indivíduo “normal”. Consoante esta doutrina, o criminoso já nascia portando estigmas físicos e psíquicos herdados de seus ancestrais, tais como um tamanho específico de crânio, orelhas grandes e afastadas da cabeça, sobrancelhas largas ou lábios virados (MATOS, 2020).
Surgindo como um novo paradigma criminológico a Teoria de Labelling Approach é resultante de mudanças sociocriminais sofridas pelo direito penal. Por criticar o antigo paradigma etiológico ele foi chamado de paradigma da reação social analisando as características individuais do criminoso. O fenômeno de controle e o sistema penal são objetos de análise do novo paradigma sendo que o crime é definido pelo que as instâncias definem com tal e não pela conduta do agente. Nem todos os crimes são punidos e perseguidos pelo Estado e pela sociedade, sendo punidos apenas parte deles e das pessoas ocorrendo dessa forma a seletividade (DA SILVA, 2015).
Analisando os paradigmas de Labeling Approach, nota-se que eles são basicamente marcados pelos mesmos da linguagem da criminologia contemporânea nas quais os denominados status social de criminoso produzidos pelos reflexos da estigmatização penal e o comportamento criminoso rotulado como criminoso são os paradigmas básicos que marcam este conceito (BARATTA, 1999, p. 10-11).
Um autor muito relevante para o Labelling Approach, Lemert, destaca que dois os tipos de desvios existentes: o primário e o secundário. Segundo Lemert o desvio primário acontece por fatores culturais, sociais ou psicológicos, sendo que o indivíduo delinque por circunstâncias sociais, observado no paradigma da reação social, porém, o desvio secundário acontece por consequência da incriminação, da estigmatização, da reação social negativa a respeito daquele outsider. Lemert afirma que, ao indivíduo, os efeitos psicológicos causados pela rotulação são tão danosos que ele se torna excluído e marginalizado da sociedade passando a entrar na criminalidade (LEMERT apud BARATTA, 2002, p. 89).
3 A Seletividade Racial
Na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU) e assinada pelo Brasil no dia 07 de março de 1966, a definição de racismo encontrada foi confirmada, sem reservas, no dia 27 de março de 1968, sendo promulgada através do Decreto 65.810, do dia 08 de dezembro do ano de 1969. Por essa definição da Convenção, racismo é toda exclusão, distinção, restrição ou preferência baseada em cor, raça, descendência ou origem nacional ou étnica com objeto ou resultado de restringir ou anular o reconhecimento, exercício ou gozo em um mesmo plano de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, político, cultural, social, ou em qualquer outro campo da vida pública (CORRÊA FILHO, 2016).
Para Santos (2010):
Racismo é a suposição de que há raças e, em seguida, a caracterização biogenética de fenômenos puramente sociais e culturais. E também uma modalidade de dominação ou, antes, uma maneira de justificar a dominação de um grupo sobre o outro, inspirada nas diferenças fenotípicas da nossa espécie. Ignorância e interesses combinados, como se vê. (SANTOS, 2010, p. 12).
Com o enfrentamento do racismo pelos movimentos negros e sociais no Brasil as autoridades são desafiadas a reconhecer a existência e a prática do crime de racismo enquanto existem os que afirma que é um problema superado e os que não assume a prática de atos racistas (DE CASTRO & DA SILVA, 2016). A discriminação é algo preocupante para a sociedade pois ela traz consigo sofrimento e dor aos seres humanos impedindo o exercício de direitos lídimos comprometendo e prejudicando o seu desenvolvimento (PRUDENTE, 2019).
Matos (2020), afirma que:
A subjetividade da definição das categorias raciais fez com que, no Brasil, diferente da ancestralidade, os indivíduos delimitassem a raça baseada na aparência e na posição social, em busca de traços característicos, como o nariz, orelhas, cor da pele, cor dos olhos e tipo de cabelo, permitindo definir o indivíduo com negro, mulato ou branco. Em vez de garantir a democracia racial, a ideologia assimilacionista, na realidade, acabou por introduzir o preconceito racial entre os negros e mestiços, que procuravam parceiros cada vez mais claros para embranquecer a raça (MATOS, 2020).
A luta de classe está desencadeada por todas as camadas sociais não acontecendo como um conflito isolado apenas no plano econômico. Ela é resultante de uma construção histórica, sendo necessário compreender o colonialismo como construção histórica da opressão não somente no Brasil mas em todo o mundo. A Europa concretizou seu projeto colonial pelo mundo através da aculturação e de interesses econômicos tendo sua presença marcante nos continentes americano, asiático e africano. A construção dessas narrativas são chaves para a compreensão da opressão determinante na luta de classes, o racismo (OLIVEIRA & CARVALHO, 2020).
No combate do racismo o poder Judiciário e advocacia têm papel importante na construção da identidade nacional. Alves declara que:
“Data de 11 de agosto de 1827 a fundação do curso de Direito no Brasil, bem como as duas principais faculdades nas cidades de Olinda e São Paulo depois da vinda da família real portuguesa para o país. Tais faculdades são tidas como as primeiras tentativas de se constituir um sistema de educação jurídica na jovem nação” (ALVES, 2015, p. 24).
No final do século XIX, foi esta educação que fora negada a Luís Gonzaga Pinto da Gama, que se tornou um dos maiores líderes abolicionistas, negro, que exercendo a advocacia como rábula sendo declarado Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil pela Lei nº 13.629, em 2018 e reconhecido postumamente como advogado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Tanto a elite da advocacia brasileira quanto a magistratura no país são ilhas brancas em um país de maioria negra necessitando de ajustes.
Dados estatísticos divulgados pelo Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros de 2018, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “a maioria se declara branca (80,3%), 18,1% negros (16,5% pardos e 1,6% pretos), e 1,6% de origem asiática (amarelo). Apenas 11 magistrados se declararam indígenas. Entre os magistrados que ingressaram até́ 1990, 84% se declararam brancos” (CNJ, 2018).
A má distribuição da riqueza é para alguns, o dilema do Brasil, sem muitas implicações relacionadas à etnia ou raça do grupo ou do indivíduo. O racismo não é regra para a justiça brasileira mas a exceção. Quando os crimes foram cometidos contra negros a maioria das decisões processuais foram julgadas como injúria ou rebaixadas para tipo penal menor. Em relação aos judeus, quando a violência racial lhes é direcionada, eles possuem a garantia de racismo como tipo penal, refletindo o reconhecimento do possível sofrimento do grupo. Porém, as pessoas negras, quando sofrem discriminação, humilhação, impedimento ou outras formas de discriminação o judiciário considera a injúria como o mais adequado tipo penal a ser aplicado a essas pessoas (COSTA, 2019).
Numa sociedade em que o efetivo reconhecimento da dignidade humana é condicionado pela extensão real da propriedade e do efetivo acesso a bens e serviços, e onde este acesso, por sua vez, é condicionado pela divisão de classes, raças, gênero etc., como será que os operadores do direito e seus destinatários percebem a prática do racismo? Como será que percebem os determinantes que resultam das relações de poder que antecedem a organização mental individual dos conceitos jurídicos? (CORRÊA FILHO, 2016).
Costa (2019) conclui que o tipo penal injúria guarda nos processos duas características:
Rebaixamento à pretensão originária do Movimento Social ao criminalizar o racismo; e, se ela aconteça no curso do processo, a certeza de que o caso terminará sem julgamento de mérito pelos efeitos da decadência. Tanto um quanto outro representam uma derrota, seja sociopolítica daqueles que lutaram pela visibilidade do tema pela criminalização, seja jurídica pela mudança do tipo e a perda do caso (COSTA, 2019).
Cientificamente, entre as raças não existe distinção, os caracteres negro (negroide), branco (caucasiano) e índios, entre outros, que serviram de referência para a distinção, não implicam em limitações sensoriais, racionais, intelectuais que venham a justificar a distinção hierárquica, a privação da titularidade, a limitação, o gozo e o exercício dos direitos aceitos no processo civilizatório (CORRÊA FILHO, 2016). Questiona-se então, mediante as evidências cientificas o porquê de se empregar ainda o termo raça.
No ano de 2013, dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostram que da população carcerária nacional 17,3%, foi classificada como “cor da pele/etnia” negra. Interpretando superficialmente esses dados, os números poderiam objetar a tese da seletividade racista do sistema punitivo. Porém, ao agregar-se os (44,4%) das pessoas que foram classificadas como pardas totalizamos 64,7% do contingente carcerário, contra 35,3% das identificadas como brancas (FBSP, 2014, p. 76).
A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPERJ) no ano de 2016, publicou em seu relatório de audiência de custódia que: “Os réus de cor preta/parda representam 73,63% dos que foram atendidos na audiência de custódia e declararam sua cor (4.558), enquanto os de cor branca representam 25,95%. […] Em 449 casos foi concedida a liberdade provisória aos brancos, ou seja, 37,95%, enquanto os negros passaram a responder ao processo em liberdade em 1.069 do total de 3.356 casos, o que corresponde a 31,85%” (DPERJ, 2016).
Nos casos contra vítimas negras, a hierarquia está presente. Analisando as decisões judiciais fica visível que a maioria das vítimas ocupa profissões menos valorizadas, nas quais a exigência de escolaridade média e superior é menor. Porém, para os réus que detém escolaridade mínima de ensino médio e ocupando altos postos funcionais, muitos deles que condicionam o ensino superior completo para o seu preenchimento o julgamento é mais seletivo.
De acordo com publicação feita pela Agência Pública (AP):
“Nos casos de apreensão de somente um tipo de droga, os negros foram proporcionalmente mais condenados portando quantidades inferiores de entorpecentes. No caso da maconha, 71% dos negros foram condenados, com apreensão mediana de 145 gramas. Já entre os brancos, 64% foram condenados com apreensão mediana de 1,14 quilo, ou seja, uma medida quase oito vezes maior” (AGÊNCIA PÚBLICA, 2019).
O racismo estrutural contra negros existente no sistema penal não é apenas uma questão social sendo um fato relevante cabendo às instituições jurídicas, como o Ministério Público, tomar as medidas necessárias para combate-lo, assumindo as responsabilidades legais das instituições.
O racismo estrutural existente é historicamente perpetuado pelo sistema judiciário constituinte do Estado, o qual estabelece um parâmetro seletivo institucional racista determinando a quem se deve preservar as garantis constitucionais do acusado. Dessa forma, o racismo opera sistêmica e institucionalmente onde as “Pessoas brancas controlam praticamente todas as instituições públicas e privadas deste país; isso permite que elas operem de acordo com os interesses do grupo racial dominante” (NASCIMENTO & NASCIMENTO, 2020).
A criminalização da discriminação racial é resultado de lutas históricas realizadas pelos movimentos sociais, dialogando com parlamentares e constituintes para chegarem ao consenso da legislação atual contra a discriminação. As injustiças históricas podem ser combatidas com sinergia pelo Direito e pelos movimentos sociais. Dessa forma as “normas legais e tradições podem se tornar elementos importantes no processo de explicar como as relações existentes são injustas, na definição de objetivos coletivos e na construção de uma identidade comum entre cidadãos diversamente situados” (MCCANN, 2006, p. 25-26).
4 A Seletividade Penal
Existem duas fases ou vertentes a serem consideradas na seletividade penal: a criminalização primária, onde o processo de criminalização é definido pelos atos considerados criminosos com suas penas respectivas e a criminalização secundária. Na criminalização primária se tem o início da seletividade penal atendendo aos interesses da classe dominante (GANEM & LEMOS, 2017).
As falhas estruturais do sistema penal estão relacionadas à teoria do etiquetamento a qual influencia no tratamento dado ao criminoso estigmatizado, o que evidencia uma desigualdade para a população na aplicação das leis (MAGLIONI, 2011). Quando o legislador cria as leis ele “beneficia certos grupos sociais e prejudica outros, os quais serão “selecionados” pelo Direito Penal mediante a tipificação de determinados atos e a escolha das sanções que serão atribuídas a eles” (GANEM & LEMOS, 2017). Pode-se afirmar que, com a seletividade judicial a classe mais suscetível à ineficiência do sistema é a de economia mais débil.
Para Maglioni (2011):
[...] ao menos em boa medida, o sistema penal seleciona pessoas ou ações, como também criminaliza certas pessoas segundo sua classe e posição social. [...] Há uma clara demonstração de que não somos todos igualmente ‘vulneráveis’ ao sistema penal, que costuma orientar-se por ‘estereótipos’ que recolhem os caracteres dos setores marginalizados e humildes, que a criminalização gera fenômeno de rejeição do etiquetamento como também daquele que se solidariza ou contata com ele, de forma que a segregação se mantém na sociedade livre. A posterior perseguição por parte das autoridades com rol de suspeitos permanentes, incrementa a estigmatização social do criminalizado (MAGLIONI, 2011).
Sobre o princípio da igualdade da Constituição proposto pelo art. 5º onde “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, ressalta que por meio da seletividade penal, apesar da igualdade ser uma lei, ela é desrespeitada pelo legislativo que beneficiando um grupo e prejudica outro. Dessa forma “Mesmo com todo esse sistema criado para possibilitar a aplicação da igualdade, há um distanciamento concreto entre a igualdade formal (àquilo que está no papel) e a igualdade material (a realidade, o que de fato acontece)” (DIAS, 2019).
Paulo Queiroz, afirma que:
O sistema penal, quer quando da edição das leis (criminalização primária), quer quando da sua aplicação e execução (criminalização secundária), seleciona sua clientela, sempre e arbitrariamente, entre os setores mais vulneráveis da sociedade, entre os miseráveis, enfim reproduzindo desigualdades sociais materiais. Por consequência, o fato de as prisões se acharem superlotadas de pessoas pobres não é acidental, porque inerente a lógica funcional do modelo capitalista de produção, em cujo sistema o acesso aos bens e a riqueza se dá de modo inevitavelmente desigual. Assinala-se assim que o direito, e o direito penal em particular, reflete uma contradição fundamental entre igualdade dos sujeitos de direito e desigualdade substancial dos indivíduos. A igualdade formal dos sujeitos de direito serve, em realidade, de instrumento de legitimação de profundas desigualdades materiais. Porque há, conforme assinala Barata, um nexo funcional entre os mecanismos seletivos do processo de criminalização e a lei de desenvolvimento de formação econômica. Afirma-se ainda que a realidade operativa dos sistemas penais jamais poderá se ajustar à planificação do discurso jurídico penal, já que todos os sistemas penais, quaisquer que sejam, apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder e anulam o discurso jurídico-penal. Porque "a seletividade", escreve Zaffaroni," a reprodução da violência, o condicionamento de maiores condutas lesivas, a corrupção institucional, a concentração do poder, a verticalização social, e a destruição das relações horizontais ou comunitárias, não são características conjunturais, mas estruturais ao exercício do poder de todos os sistemas penais". De fato, ainda que o próprio Deus ditasse as leis, ainda que os juízes fossem santos, ainda que promotores de justiça fossem super-homens, ainda que promotores de justiça formassem um exército de querubins, ainda assim o direito, e o direito penal em particular, seria um instrumento de desigualdade formal ou jurídica não anula a desigualdade material que lhe subjaz. (QUEIROZ, apud DIAS, 2018).
Na transição do Regime Ditatorial para o Regime Democrático, o cenário se agravou com a utilização político-ideológica da segurança púbica. Durante o golpe de 1964, transformado em governo militar através de atos institucionais, o domínio pela imposição do medo ganhou força transformando-se, o governo militar em uma “máquina de matar gente” em nome da preservação da “segurança nacional”, torturando em larga escala no objetivo de eliminar o inimigo antes mesmo dele obter capacidade de luta” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 461).
Devido aos estereótipos criados acerca do perfil de criminosos, mesmo no Judiciário, órgão que deveria ser imparcial, Andrade (2015) afirma que:
Existe uma tendência por parte dos juízes de esperar um comportamento conforme à lei dos indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores; o inverso ocorre com os indivíduos provenientes dos estratos inferiores. Orientados por uma imagem estereotipada da criminalidade, os juízes tendem [...] a procurar a verdadeira criminalidade, principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperá-la (ANDRADE, 2015).
No tratamento de indivíduo pobre, existem disparidades no tratamento pelo sistema judiciário que, por mais que o crime não tenha violência na sua prática, por pertencer a determinada classe social com agravante de desemprego o mesmo é mantido preso sob a fundamentação da garantia da ordem pública. Já para aquele que tem emprego fixo, o tratamento é outro. Dessa forma, através do sistema penal reitera-se que o exercício do poder tem o objetivo de “combate à criminalidade, à contenção de determinados grupos humanos que, diante da configuração socioeconômica, se traduzem em inconvenientes sociais” (WERMUTH, 2011, p. 117).
Baratta (1999), afirma que:
“O processo de criminalização, condicionado pela posição de classe do autor e influenciado pela situação deste no mercado de trabalho (desocupação, subocupação) e por defeitos de socialização (família, escola), concentraria as chances de criminalização no subproletariado e nos marginalizados sociais, em geral. Desse modo, o processo de criminalização cumpriria função de conservação e de reprodução social: a punição de determinados comportamentos e sujeitos contribuiria para manter a escala social vertical e serviria de cobertura ideológica a comportamentos socialmente imunizados” (BARATTA, 1999, p. 15).
O encarceramento de indivíduos acontece em condições desumanas e precárias, e “embora os direitos humanos sejam em teoria um valor universal, na verdade, eles são cultural e politicamente interpretados e modificados, como são os direitos civis em geral” (CALDEIRA, 2000, p. 344).
5 Considerações Finais
A criminalidade, na prática, é fomentada por estatísticas e meios de comunicação que reforçam a ideia de que os indivíduos são maus necessitando dessa forma a segurança repressiva do Estado. Dessa forma as classes mais pobres sofrem a repressão e por conseguinte uma seleção natural praticada pelo judiciário brasileiro.
No sistema penal brasileiro, existe uma necessidade de mudança de maneira que os indivíduos possam ser tratados o mais iguais possíveis independentemente da cor ou classe social. Os órgãos de controle formais e responsáveis pela rotulação social seletiva de determinados indivíduos, geram exclusões dos tais produzindo consequência graves para suas vidas.
Devido à rotulação e à seletividade o indivíduo ao ser excluído da sociedade, muitas das vezes de forma incorreta, não vive com dignidade deixando de prevalecer sua equiparação prevista na Constituição, levando-o de fato à vida de crime. As lutas de classes continuam nos dias atuais trazendo desigualdade e seletividade no tratamento entre os cidadãos como uma herança passada de um país escravista.
Para rotular como delinquente um indivíduo os principais elementos formadores de convicção são muitas vezes errôneos e frágeis de sustentação, apresentados como defeitos de socialização, onde não são considerados os fatores reais incriminadores como: o mau comportamento na convivência social, os antecedentes criminais, os fatos concretos que enfatizam a criminalização real e a pré-disposição para atos de delinquência.
A seletividade faz parte do judiciário rotulando os indivíduos muitas vezes, erroneamente, aplicando-lhes penas maiores que seus crimes simplesmente por serem negros ou pertencerem a uma classe social de menor poder aquisitivo.
Na aplicação e na criação das leis existe um caráter desigual ocasionando a seletividade penal e os preconceitos relacionados ao criminoso fazendo com que o sistema judiciário rotule o transgressor delinquente pela sua raça, sua classe social e até mesmo a aparência buscando sempre favorecer os interesses das classes dominante privilegiando-os, e condenando e criminalizando os demais.
O controle social é necessário, a aplicação da lei para garantir a ordem também, porém se faz necessária uma reflexão mais profunda sobre a seletividade existente no poder judiciário para que as leis sejam mais justas, seja com o negro, o judeu, ou qualquer outra raça e com aqueles que detém menor poder aquisitivo em contrapartida àqueles que cometem os crimes chamados de “colarinho branco” que, por possuírem recursos e status, não recebem as devidas punições pela seletividade praticada pelo judiciário.
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Acadêmico do Curso de Direito. Centro Universitário Luterano de Manaus
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTILLO, Eric Rangel dos Santos. À seletividade no Judiciário brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2020, 04:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55642/seletividade-no-judicirio-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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