KELLY NOGUEIRA DA SILVA GONÇALVES[1]
(orientadora)
RESUMO: Diante dos avanços da tecnologia, surge a necessidade de discussão quanto a manutenção da vida e a busca incessante da cura, mesmo na situação em que a morte é inevitável, que em alguns casos pode prolongar o sofrimento do paciente e dos familiares, violando o direito a autonomia privada, dignidade da pessoa humana e a proibição a tratamento desumano. O presente artigo conceitua as diretivas antecipadas de vontade e aborda a necessidade de sua regulamentação na legislação brasileira, fazendo uma análise entre o aparato jurídico encontrado na legislação atual e a resolução do Conselho Federal de Medicina, como forma de demonstrar a importância do reconhecimento da autonomia de vontade do paciente e a proteção jurídica do profissional de saúde.
Palavras-chave: Autonomia, Diretivas Antecipadas de Vontade, Testamento Vital, Mandato Duradouro
ABSTRACT: In view of advances in technology, there is a need for discussion regarding the maintenance of life and the incessant search for a cure, even in the situation where death is inevitable, which in some cases may prolong the suffering of the patient and family, violating the right private autonomy, human dignity and the prohibition of inhuman treatment. This article conceptualizes the advance directives of will and addresses the need for its regulation in Brazilian legislation, making an analysis between the legal apparatus found in the current legislation and the resolution of the Federal Council of Medicine, as a way to demonstrate the importance of the recognition of autonomy patient's will and the legal protection of the health professional.
Keywords: Autonomy, Advance directives of will, Living will, Lasting mandate
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Surgimento e Conceito das Diretivas Antecipadas de Vontade – 2.1 Mandato Duradouro – 2.2 Testamento Vital – 3. Aspectos Bioéticos da Terminalidade de Vida – 3.1 Eutanásia – 3.2 Distanásia – 3.3 Ortotanásia – 4. Implementação de Legislação Específica – 5. Atual Entendimento Jurisprudencial – 6. Considerações Finais – 7. Referências.
1INTRODUÇÃO
Pretende-se com o presente trabalho salientar a necessária regulamentação das Diretivas Antecipadas de Vontade no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que não há lei específica que discipline a questão.
Em virtude disso, a presente metodologia utilizada foi exploratória e explicativa, sendo direcionada pelo método de pesquisa documental e bibliográfica, através da utilização de consulta a legislação, doutrinas, artigos e jurisprudências referente as diretivas antecipadas de vontade no Brasil.
No primeiro capítulo, há a explanação do conceito, do surgimento e das principais formas de diretivas antecipadas de vontade, no segundo capítulo serão abordados os aspectos bioéticos e as questões que envolvem a terminalidade de vida e por fim, o estudo concentra-se na possibilidade de implementação de uma legislação específica, o aparato jurídico que dispõe nossa legislação sobre o tema e uma explanação do atual entendimento jurisprudencial.
Busca-se, portanto, elencar as necessidades abarcadas pelo tema, desde o olhar para o paciente, quanto pessoa de direitos até a preocupação com o profissional da saúde.
2 SURGIMENTO E CONCEITO DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
Com o avanço da tecnologia, a ligação de médico e paciente vem sofrendo diversas alterações. No inicio essa relação consistia na ideia de que o médico era o detentor de conhecimento e que o mesmo era quem tinha o poder e liberdade para decidir, conforme seu conhecimento técnico, como seria o tratamento ou cuidado do paciente. Já na metade do século XX, essa relação começou a sofrer mudanças e a ideia de que o médico precisaria do consentimento do paciente para realizar o tratamento médico, ganhou força.
Durante a Segunda Guerra Mundial, com os experimentos humanos, surgiram os debates sobre a necessidade do consentimento antecipado do paciente para a realização de procedimento médico, tornando-se em 1947, norma jurídica, a partir do conjunto de princípios que regem a pesquisa com seres humanos, conhecido como o Código de Nuremberg[2], e mais tarde, em 1964, tornou-se norma ética com a Declaração de Helsinque[3], desenvolvido pela Associação Médica Mundial para fornecer orientações aos médicos participes de pesquisas que envolvem seres humanos.
Surge a partir de então a bioética e a evolução da tecnologia a favor da preservação da vida e dos direitos humanos e em 1969, foi publicado o primeiro artigo sobre direito de morrer, pelo advogado norte-americano, Luiz Kutner, onde defendeu a ideia de que o paciente é livre para decidir sobre que tipo de tratamento médico deseja receber ao término de sua vida, quando tratar-se de impossibilidade de cura.
Kutner defendia a ideia de que um documento seria o necessário para garantir que os desejos do paciente seriam respeitados, desde que observadas as normas éticas da medicina, o que também evitaria a responsabilidade civil e criminal dos médicos, caso ocorresse a morte do paciente.
Nas palavras de Luciana Dadalto, Luiz Kutner, estabeleceu algumas orientações para o documento chamado de Living will:
(i) o paciente capaz deixaria, por escrito, sua recusa a se submeter a determinados tratamentos quando o estado vegetativo ou a terminalidade fossem comprovados; (ii) a vontade manifestada pelo paciente no living will se sobreporia à vontade da equipe médica, dos familiares e dos amigos do paciente e o documento deveria ser assinado por, no mínimo, duas testemunhas; (iii) esse documento deveria ser entregue ao médico pessoal, ao cônjuge, ao advogado ou a um confidente do paciente; (iv) deveria ser referendado pelo Comitê do hospital em que o paciente estivesse sendo tratado; e (v) poderia ser revogado a qualquer momento antes de o paciente atingir o estado de inconsciência. (2015, p. 26)
Na década de setenta, começaram a surgir outros documentos que são chamados de diretivas de vontade. Como espécies clássicas desse instituto têm-se o mandato duradouro e o testamento vital, legalizados pela lei norte americana, denominada Patient Self Determinaction Act de 1991. Depois de positivada essa lei, novas espécies de diretivas antecipadas começaram a surgir e por isso é importante ressaltar que quando se fala de diretivas antecipadas de vontade, trata-se de elaboração de documento específico para cada situação e não necessariamente de terminalidade de vida.
No Brasil as Diretivas Antecipadas de Vontade já são aplicadas mesmo não dispondo de uma lei específica que regulamente o instituto. A resolução 1995/2020 do Conselho Federal de Medicina as conceitua como “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. (2012, p.1)
Importante ressaltar que as diretivas antecipadas devem respeitar o ordenamento jurídico vigente, bem como não ser contrária ao que diz a ética médica sobre a patologia do paciente.
2.1 MANDATO DURADOURO
O Mandato Duradouro é uma das formas de diretivas antecipadas de vontade e diz respeito a nomeação de um mandatário (responsável legal ou curador para o cuidado da saúde) que será responsável pelas decisões referentes a tratamento ou procedimento a qual venha ser submetido o paciente em caso de incapacidade temporária ou definitiva e que não tenha deixado manifestação prévia.
Cabe ao mandatário verificar as ações de iniciativa médica e analisar a vontade do paciente para tomar a melhor decisão, representando o desejo do indivíduo incapacitado.
2.2 TESTAMENTO VITAL
O Testamento Vital é um documento pelo qual é expressa previamente a vontade do indivíduo sobre a sujeição ou não a tratamento ou procedimento médico a qual venha ser necessário em caso de incapacidade causada por doença incurável ou em caso de estado de terminalidade, ou seja, quando o mesmo não puder se manifestar sobre seus desejos quanto a cuidados médicos.
É importante salientar que o testamento vital não pode ser confundido com o testamento sucessório, enquanto o testamento vital é ato jurídico que produz efeitos em vida, o testamento sucessório produz efeitos post mortem e versa sobre questões patrimoniais.
3. ASPECTOS BIOÉTICOS NA TERMINALIDADE DE VIDA
A bioética na terminalidade de vida versa sobre finitude e para melhor entendimento é importante abordar os princípios que regem a bioética, são eles o princípio da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.
O princípio da autonomia remete ao poder de decisão que cada indivíduo tem sobre si, mas que é limitada em alguns casos a fim de que se possa evitar dano a outrem e pode ser violada quando o bem coletivo estiver acima do bem individual.
Cabe ao profissional de saúde, compreender e respeitar a autonomia do seu paciente, assegurando que o mesmo seja informado tecnicamente sobre o caso para uma melhor orientação, sem que o profissional se use de influencia na tomada de decisão do paciente.
O princípio da beneficência tem relação com o comprometimento de ajudar o outro, ou seja, fazer o bem a partir da análise do ponto de vista do bem estar humano e da saúde, é a obrigação ética de aumentar os benefícios e diminuir o dano e o princípio da não-maleficência destaca essa responsabilidade de se causar o menor dano possível, não fazer mal e em todo tratamento deve-se levar em consideração esse bem estar do paciente, analisando as suas necessidades em todos os aspetos, sejam eles físicos, psicológicos, sociais e espirituais.
O princípio da justiça está alicerçado no conceito de equidade, tratar cada indivíduo de maneira imparcial, segundo suas necessidades e nessa situação evita-se a interferência de aspectos religiosos, sociais, financeiros ou outros que possam influenciar na relação médica e paciente.
Dentro desse contexto, a autonomia do paciente é a maior dificuldade da bioética no fim da vida, pois o conceito de vida é diferente para cada indivíduo, assim como em vários países existem diferentes conceitos de vida e de morte no âmbito da ciência.
Por fim, acerca do campo da bioética destaca Daisy Gogliano:
[...]toda e qualquer terapêutica médica tem por fundamento e por pressuposto o respeito à dignidade humana, na tutela de direitos privados da personalidade e na relação médico-paciente, em que sobreleva o direito ao respeito da vontade do paciente sobre o tratamento; o direito do doente ou enfermo à dignidade e à integridade (físico-psíquica); o direito à informação que se deve fundar no consentimento esclarecido; o direito à cura apropriada e adequada; o direito de não sofrer inutilmente, na proporcionalidade dos meios a serem empregados, na diferenciação que se impõe entre terapêutica ineficaz e terapêutica fútil, isto é, na utilização de uma terapia racional e vantajosa, que não conduza a uma terapia violenta e indigna. (1993, p.7)
Essas considerações corroboram para as diferentes situações de manifestação de vontade, como a Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia, conceituadas a seguir.
3.1 EUTANÁSIA
A eutanásia é o termo utilizado nas situações de abreviação da vida sem dor, de uma pessoa, feita por um terceiro, a pedido do indivíduo e etimologicamente, deriva da expressão grega euthanatos (eu = boa + thanatos = morte).
Em alguns países a eutanásia é permitida e por isso a ação de abreviar a vida de alguém, não significa necessariamente a prática do crime de homicídio, diferente da legislação brasileira, na qual é tipificado no Código Penal no art. 121 “Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos”.
Além da vedação pelo Código Penal, o Código de Ética médica dispõe:
NOVO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA (RESOLUÇÃO 1.931/2009 do CFM)
É vedado ao médico:
Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
3.2 DISTANÁSIA
Enquanto na eutanásia tem se a busca da abreviação da vida pelo indivíduo, a distanásia é o termo utilizado quando se fala em prolongamento artificial da vida, também chamado de obstinação terapêutica ou excesso terapêutico.
Na distanásia tenta-se de todas as formas por meio de tecnologia que a morte não aconteça, mesmo que o resultado seja a piora no sofrimento do paciente, contra sua vontade.
3.3 ORTOTANÁSIA
A Ortotanásia ou morte correta, como é conhecida, é o oposto da distanásia, ou seja, não se busca prolongar a vida de forma artificial, busca-se o bem estar do paciente:
É a síntese ética entre o morrer com dignidade e o respeito à vida humana, que se caracteriza pela negação da eutanásia (abreviação da vida) e da distanásia (prolongamento da agonia e do processo de morrer). A ortotanásia permite ao doente que se encontra diante da morte iminente e inevitável, bem como aqueles que estão ao seu redor – sejam familiares, sejam amigos, sejam profissionais de saúde – enfrentar com naturalidade a realidade dos fatos, encarando o fim da vida não como uma doença para qual se deva achar a cura a todo custo, mas sim como condição que faz parte do seu ciclo natural. (PESSINE; BARCHIFONTAINE, 2008, p. 178)
Portanto, na ortotanásia, o paciente não é submetido a tratamento fútil, que objetiva apenas o prolongamento da vida, pelo contrário, suspende-se esse tipo de tratamento e assegura que desde que manifestada a vontade do paciente, lhe seja garantido cuidados paliativos para minimizar seu sofrimento.
4 IMPLEMENTAÇÃO DE LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA
No que concerne a implementação de legislação específica sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade, não há ainda no ordenamento jurídico brasileiro lei que regulamente o instituto.
Atualmente existe um projeto de lei sobre testamento vital, proposto pelo senador Laiser Martins em 03 de abril de 2018, projeto de lei nº 149/2018, que objetiva suprir a lacuna existente no ordenamento jurídico brasileiro no que tange as diretivas antecipadas de vontade.
Contudo, o tema encontra respaldo constitucional no princípio da dignidade humana, previsto no artigo 1º, III, corroborado pelos princípios da autonomia privada, legalidade e a proibição de tratamento desumano, constantes no artigo 5º, caput, II e III. Quanto ao respaldo legal, o mesmo encontra-se no artigo 15, do Código Civil Brasileiro, que dispõe: Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
Encontra-se ainda a matéria, disciplinada no enunciado 37 da I Jornada de Direito da Saúde pelo Conselho Nacional de Justiça, que dispõe:
As diretivas ou declarações antecipadas de vontade, que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar e autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito. (2014, p. 8)
E por fim a resolução nº 1.995/2012 do CFM regulamenta o posicionamento do Conselho Federal de Medicina, quanto as diretivas antecipadas de vontade e limita-se ao alcance de médicos e de outros profissionais de saúde.
A resolução nº 1.995 de 2012, do Conselho Federal de Medicina, dispôs sobre as diretivas antecipadas de vontade.
Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. §1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. §2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica. §3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. §4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente. §5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.
Embora o reconhecimento das diretivas de vontade pelo Conselho Nacional de Justiça por meio do enunciado 37 da I Jornada de Direito da Saúde e a resolução 1.995/2012 pelo Conselho Federal de Medicina, seja extremamente relevante, é de suma importância ressaltar que ambos fazem confusão quanto ao termo diretivas antecipadas de vontade.
O enunciado não cita a figura do responsável legal para cuidados de saúde, refere-se apenas aos cuidados e tratamentos médicos, limitando o conteúdo das diretivas antecipadas de vontade ao testamento vital.
A resolução do Conselho Federal de Medicina trouxe em suas disposições a regulamentação de somente parte do instituto, nomeando o testamento vital de diretivas antecipadas de vontade, dando a entender que se trata apenas de questões de terminalidade de vida.
5. ATUAL ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL
Em pesquisa jurisprudencial acerca das demandas judiciais que envolvem diretivas antecipadas de vontade, notou-se que o atual entendimento do Poder Judiciário tem assegurado o direito a autonomia de vontade, conforme ementas exemplificativas a seguir.
CONSTITUCIONAL. MANTENÇA ARTIFICIAL DE VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PACIENTE, ATUALMENTE, SEM CONDIÇÕES DE MANIFESTAR SUA VONTADE. RESPEITO AO DESEJO ANTES MANIFESTADO. Há de se dar valor ao enunciado constitucional da dignidade humana, que, aliás, sobrepõe-se, até, aos textos normativos, seja qual for sua hierarquia. O desejo de ter a "morte no seu tempo certo", evitados sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado, notadamente em face de meros interesses econômicos atrelados a eventual responsabilidade indenizatória. No caso dos autos, a vontade da paciente em não se submeter à hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento que impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser respeitada, notadamente quando a ela se contrapõe a já referida preocupação patrimonial da entidade hospitalar que, assim se colocando, não dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir. (Apelação Cível Nº 70042509562, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em 01/06/2011).
APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento"; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013)
(TJ-RS - AC: 70054988266 RS, Relator: Irineu Mariani, Data de Julgamento: 20/11/2013, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27/11/2013)
A compreensão de como os tribunais estão interpretando o instituto das Diretivas Antecipadas de Vontade é fundamental e se acentua no momento em que a sociedade brasileira passa por inúmeras transformações, onde uma sociedade tradicional está evoluindo para uma sociedade contemporânea, globalizada e conectada à tecnologia. Desta forma, o Direito deve ser adequado à realidade e dar guarida às necessidades de cada pessoa, observado o ordenamento jurídico vigente. (MASSAROLI; FABRO, 2017, p. 2)
Conforme observação dos autores cumpre destacar a análise feita, no sentido de que não só o direito deve estar adequado a realidade dos indivíduos, bem como os profissionais da saúde, o que pode vir a ser concretizado com a regulamentação das DAV.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando a relevância da discussão sobre o tema, com o presente trabalho buscou-se expor a necessidade de uma norma que regulamente as diretivas antecipadas de vontade, mesmo que diante da falta de lei o documento não perca a sua validade.
Em decorrência dessa realidade, destaca-se que pode existir uma resistência na aplicação das DAV por parte dos profissionais da saúde, pois estão sujeitos a sofrer sanções diante da falta de segurança jurídica que as diretivas proporcionam, pela falta de lei que defina questões, como os limites de sua aplicação, como devem ser manifestadas as vontades, quem está apto a fazer um testamento vital ou ser procurador nos cuidados de saúde, entre outros questionamentos.
Em virtude disso, torna-se imperioso que o paciente e o profissional da saúde sejam resguardados quanto ao cumprimento das DAV, desde que observados os limites de cuidados médicos e de autonomia vontade manifestada, e para isso, é essencial que sejam regulamentadas tais diretrizes e que o tema seja amplamente divulgado, pois muitos profissionais da área da saúde e do Direito, não tem conhecimento sobre tais disposições.
Ademais, a aprovação de uma lei sobre diretivas antecipadas de vontade, pode facilitar o diálogo sobre manifestações de vontade como a distanásia e ortotanásia, possibilitando que cada vez mais profissionais possam estar preparados para lidar com os questionamentos que abrangem a matéria, facilitando discussões sobre a morte digna.
Portanto, diante da certeza de vida finita e do conhecimento dos princípios que regem a dignidade humana, resta um questionamento: viver é um direito ou um dever?
7. REFERÊNCIAS
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[1] Especialista em Direito civil e Advogada. Professora da Faculdade Serra do Carmo - FASEC.
[2]Cf. CENTRO DE BIOÉTICA DO CREMESP. Código de Nuremberg. Disponível em: < http://bioetica.org.br/?siteAcao=DiretrizesDeclaracoesIntegra&id=2>. Acesso em: 18 set. 2020.
[3]Cf. CENTRO DE BIOÉTICA DO CREMESP. Declaração de Helsinque. Disponível em: < http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=DiretrizesDeclaracoesIntegra&id=4>. Acesso em: 17 set. 2020.
Bacharelanda em Direito pela instituição de ensino, Faculdade Serra do Carmo – FASEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MATHIAS, Daiana. Diretivas antecipadas de vontade e a necessidade de sua regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2020, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55655/diretivas-antecipadas-de-vontade-e-a-necessidade-de-sua-regulamentao-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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