1.INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende realizar uma análise sobre o IPVA, expondo o seu histórico, natureza jurídica, função, competência, receita e seu fato gerador. Da mesma forma, será possível perceber uma análise crítica das decisões mais importantes do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de incidência do IPVA sobre aeronaves e embarcações.
2. O IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES
2.1. HISTÓRICO
Num primeiro momento, com o fim meramente didático, é salutar destacar o atual posicionamento do STF acerca da impossibilidade de incidência desse imposto sobre veículo e aeronaves, para, posteriormente, demonstrarmos a partir de uma perspectiva histórica, a razão pela qual os argumentos da Suprema Corte não merecem prosperar.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos RE 134.509 AM, RE 255.111 SP e RE 379.572 RJ, decidiu pela inconstitucionalidade da incidência do IPVA sobre veículos náuticos e aéreos, ainda que sejam considerados “automotores”. Lastreado numa interpretação histórica do IPVA, a Suprema Corte acabou por privilegiar de forma desarrazoada e desproporcional as camadas mais ricas da população brasileira que ostentam veículos automotores náuticos e aéreos de elevadíssimo valor, mas não pagam sobre sua propriedade[1].
Ultrapassada a exposição da jurisprudência da Corte Superior, passemos a analisar o histórico que fundamentou as decisões. A possibilidade de tributação incidente sobre veículos automotores surgiu em nosso país com as taxas para remuneração e custeio de serviços públicos prestados em relação às ruas e rodovias. A Constituição de 1967 permitia que os entes federativos cobrassem taxas a título de remuneração de serviços como, por exemplo, eram diversas taxas cobradas com a finalidade de custear as estradas construídas pelo Estado. Nesse sentido fora instituída a Taxa Rodoviária Federal, pelo Decreto-Lei n. 397/68, que previa em seu art. 1º:
A Taxa Rodoviária Federal será devida por todo veículo motorizado que transitar no território nacional e o produto de sua arrecadação será integralmente aplicado no custeio de projetos e obras de conservação e restauração de estradas de rodagem federais. [2]
A criação da TRF provocou severas críticas da Doutrina, inclusive pertinentes à sua inconstitucionalidade, bem ressaltada por Aliomar Baleeiro:
Ora, a Constituição de 1967, no art. 19, II, veda limitaçaões ao tráfego no território nacional, tendo a Emenda n. 1/1969 eliminado a ressalva relativa a pedágios em estradas. Pedágios são cobrados de cada veículo quando penetra numa via de transporte sujeita por lei a esse tributo. O fato gerador é a utilização efetiva de certa estrada, ponte, túnel, etc.
Mas, admitindo-se que tal taxa seja modalidade de pedágio tendo como base de calculo o valor do veiculo, parece certo que não poderia incidir sobre veículos que apenas transitem nas rodovias municipais, urbanas ou não. Nem mesmo nas interestaduais. Taxa cabe a quem tem competência para executar o serviço e efetivamente o executa. Não parece taxa a que a União pretende exigir de veiculo que não trafega nunca em rodovias federais ou enquanto não transitar por elas.
Tal taxa se reveste do caráter de imposto sobre o patrimônio, não previsto na Constituição e, por isso, reservado à competência federal. [3]
A TRF foi extinta pelo Decreto-Lei n. 999, de 21 de outubro de 1969, que instituiu a Taxa Rodoviária Única, “na busca de viabilizar uma exação de menor complexidade e sem afronta ao ordenamento jurídico pátrio”, segundo poder-se-ia extrair da justificativa que antecedia o texto legal.
Observe-se o art. 1º e seu §1º do diploma que instituiu a TRU, com a seguinte redação:
Art. 1º. É instituída a Taxa Rodoviária Única, devida pelos proprietários de veículos automotores registrados e licenciados em todo o território nacional.
§1º. A referida taxa, que será cobrada previamente ao registro do veículo ou à renovação anual da licença para circular, será o único tributo incidente sobre tal fato gerador.
Observação interessante, feita por Rogério Silva Martins, é a de que “pelo que se verifica do texto normativo supra, a taxa era devida pelos proprietários de veículos automotores, mas tinha sua incidência sobre a circulação dos mesmos” [4]. Não enxergamos dessa forma, uma vez que a circulação dos veículos não poderia figurar como fato gerador de uma taxa.
A TRU também foi alvo de severas críticas doutrinárias, sobretudo por não se encaixar na modalidade tributária pretendida, pois ali não se via uma contraprestação de serviço publico específico e divisível, utilizado ou colocado à disposição do contribuinte, bem como não se vislumbrava o exercício do poder de polícia. A exação repetiu, enfim, o mesmo equivoco da antiga TRF, por não conseguir se encaixar no conceito da taxa. Misabel Abreu Machado Derzi assim se manifestou sobre o tema:
Com razão, mais uma vez, Aliomar Baleeiro. O Decreto-Lei 999, de 21-10-1969, instituiu a Taxa Rodoviária Única, incidente sobre o registro e licenciamento de veículos em todo o território nacional (mesmo nas rodovias estaduais e municipais). O tributo agredia, nessa parte, a competência de Estados e Municípios para fiscalizar e executar o serviço de licenciamento em suas próprias rodovias. A base de cálculo, igualmente, era o valor venal do veiculo licenciado, a exação revestindo-se novamente do caráter de imposto sobre o patrimônio. [5]
Com o advento da EC n. 27, de 28 de novembro de 1985, fora conferida aos Estados membros e ao Distrito Federal a competência para a instituição de um imposto sobre a propriedade de veículos automotores que, segundo o próprio Rogério Martins, veio “em substituição à denominada Taxa Rodoviária Única (TRU)”[6]. A referida emenda constitucional alterou o art. 23, III da Constituição de 1967 – EC n. 1/1969.
Obviamente, por se tratar de uma nova modalidade de imposto, o IPVA não estava disciplinado pelo Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966), editado muitos anos antes da criação desse tributo. O referido diploma trazia normas com força de lei complementar e ocupava espaço de verdadeira lei nacional de normas gerais em matéria tributária. Aliás, frise-se que o sistema constitucional tributário da época possuía contornos diferentes do hodierno [7], pois
(...) não era necessário, como é atualmente (...), que uma lei complementar definisse as regras gerais sobre imposto, tal como a definição de contribuinte, fato gerador e base de cálculo para que esse tributo pudesse ser exigido pelos entes estaduais. [8]
A Constituição Federal de 1988 manteve a referida exação entre os seus impostos estaduais, com expressa menção ao tema em seu art. 155, III e respectivo §6º. O Brasil, até hoje, continua sem elaborar uma lei complementar nacional para o IPVA, estando em pleno vigor as leis ordinárias estaduais que regulam a matéria, às vezes, de forma diferente em cada Estado da federação.
Há contundente corrente doutrinária e jurisprudencial na defesa da tese de que o IPVA veio “substituir” a Taxa Rodoviária Única, nos mesmos moldes de tributação desta, inclusive há manifestações do Supremo Tribunal Federal nesta linha, conforme mencionado acima.
Com a devida licença, está equivocada a tese de que o IPVA substituiu a extinta TRU. Acreditamos que a TRF e, posteriormente, a TRU, foram instituídas em momento embrionário da evolução da malha rodoviária brasileira, tempos em que a quantidade de pessoas que utilizavam as estradas era irrisória, razão pela qual o legislador parece ter preferido criar uma taxa, e não um imposto.
Obviamente, a opção legislativa mereceu todas as críticas recebidas da doutrina, já que a construção e o melhoramento de estradas não se tratavam de um serviço divisível e específico, beneficiando toda a sociedade, ainda que em graus diferentes. Contudo, essa discussão não constitui o objeto deste estudo, razão pela qual tangencia-se a questão sem adentrar no âmago do problema.
É imperioso destacar que a instituição de um imposto sobre o patrimônio obriga o intérprete a voltar sua atenção à capacidade contributiva de quem pode adquirir veículos automotores e, negar a incidência em relação aos veículos aéreos e náuticos, é atentar contra a justiça fiscal.
A instituição de um imposto pela Constituição Federal representa verdadeira modificação no curso do tratamento do tema. Há de se ter em conta que o legislador promoveu uma quebra no sistema que antes estava desenhado, percebendo que a aquisição de embarcações e aeronaves estava crescendo, e que a propriedade de tais bens indicava a presença da capacidade contributiva. Sendo assim, optou o constituinte em criar um imposto, desvinculado à antiga idéia da TRU.
Realizada a abordagem histórica que culminou no aparecimento do IPVA, passemos às análises jurídicas mais detidas, que dedicaremos primeiro, aos diversos aspectos importantes dessa exação.
2.2. NATUREZA JURÍDICA
O IPVA é um imposto sobre o patrimônio, não havendo maiores discussões sobre este ponto, uma vez que incide sobre a propriedade de determinados bens, vale dizer, os veículos automotores.
Note-se que, além de ser um tributo incidente sobre o patrimônio, o IPVA é classificado como um imposto real, e não pessoal.
Nos impostos reais apenas se leva em conta para fins de tributação determinado bem individualmente considerado. Não se considera a pessoa do sujeito passivo nem a totalidade de seu patrimônio ou renda, mas unicamente o bem a ser tributado. Sempre que determinada manifestação de riqueza individualizada em um bem for regulada pela norma tributária, há um imposto real e não um imposto de caráter pessoal. [9]
O Imposto sobre propriedade predial e territorial urbana (IPTU) é, sob este ponto de vista, muito semelhante ao IPVA, já que aquele incide sobre o patrimônio imobiliário do contribuinte, caracterizando-se como imposto real. A função dessas duas exações é a mesma, arrecadar fundos para custear as atividades gerais do Estado e a sua finalidade desses impostos é eminentemente fiscal.
2.3. FUNÇÃO
O IPVA é um imposto fiscal, vale dizer, seu objetivo principal é a arrecadação de recursos para os cofres públicos. Esta característica do IPVA possui grande relevância e deve ser considerada no procedimento da análise da possibilidade de incidência da exação sobre os veículos náuticos e aéreos.
Possuindo o tributo uma função eminentemente fiscal, menor razão há para realizar a discriminação sustentada pelo Supremo Tribunal Federal, afinal, o imposto visa arrecadar dinheiro para o erário, sujeitando quem pode pagar a contribuir para o custeio da máquina pública. Não se mostra adequada a não sujeição tributária passiva de quem possui capacidade contributiva, como muitos dos proprietários de aeronaves e embarcações.
Importante lição sobre o tema foi escrita por Soraya David Monteiro Locatelli, que diz:
O IPVA não é um imposto com objetivos extrafiscais, como o imposto de importação, imposto de exportação, IPI e IOF, cujas alíquotas podem ser alteradas pelo governo para controle de mercado. Ao contrário, submete-se a todos os princípios constitucionais, não possuindo os Estados, liberdade ilimitada, ampla, para legislar sobre tal tributo. [10]
No mesmo sentido preleciona Hugo de Brito Machado, ao dizer que “o IPVA (...) tem função predominantemente fiscal. Foi criado para melhorar a arrecadação dos Estados e Municípios.”[11]
O entendimento da Suprema Corte fere, de forma contundente, a justiça fiscal e mostra-se incompatível com a própria função do tributo cujo objetivo é munir o Estado dos recursos necessários para o custeio de sua existência. Aliando-se o caráter real do imposto à função fiscal, cremos que há evidente equívoco do STF ao limitar a incidência do IPVA aos veículos terrestres. Os proprietários de veículos automotores aéreos e náuticos também possuem capacidade contributiva e, obviamente, devem contribuir para os cofres públicos, assim como os proprietários de veículos terrestres.
2.4. COMPETÊNCIA E RECEITA
Segundo o art. 155, III, da Constituição Federal de 1988, os Estados e o Distrito Federal possuem competência privativa para instituir imposto sobre a propriedade de veículos automotores. Ao lado da competência para a instituição do imposto, vale dizer que “(...) o IPVA convive com o sistema de rateio de receita, cabendo aos Municípios cinqüenta por cento do produto de sua arrecadação recolhida sobre os veículos licenciados em seus territórios, conforme determina o art. 158, III, da CF.” [12]
Interessante observar que as receitas provenientes dos impostos não possuem destinação específica, vale dizer, não se direcionam a determinado órgão ou devem, obrigatoriamente, ser ministrados em certa atividade. As verbas decorrentes do recolhimento de impostos se destinam ao custeamento geral das atividades do Estado, cabendo ao Chefe do Poder Executivo deliberar acerca do uso e gasto do numerário, respeitadas as disposições constitucionais.
É importante deixar isso claro, sobretudo, para não incentivar os recorrentes erros que se cometem no cotidiano, quando cidadãos leigos afirmam, por exemplo, ser um absurdo pagar IPVA e não ter ruas com asfalto de qualidade para se locomover em sua cidade. Em relação ao IPVA, acredita-se que tal alegação tenha justificativa histórica, afinal, a receita da TRU deveria ser destinada para as estradas do país, como estabelecia o art. 6º [13], do DL 999, de 21 outubro de 1969. Contudo, a referida taxa não existe mais, assim como não há mais a obrigação de emprego das verbas nas estradas do Brasil, contando o Estado, agora, com o imposto sobre a propriedade de veículos automotores.
2.5. FATO GERADOR
Aqui se inicia, propriamente, a situação-problema que foi o objeto de análise das decisões do Supremo Tribunal Federal e o fundamento utilizado para justificar a não-incidência do IPVA sobre veículos automotores náuticos e aéreos. Data maxima venia, falece de razão a Corte Superior e, a seguir, demonstraremos os motivos pelos quais se acredita ser possível e, até mesmo adequada, a incidência do IPVA sobre veículos automotores náuticos e aéreos.
A controvérsia teórica que se pretende pesquisar reside exatamente na hipótese de incidência do IPVA, analisando o acerto ou equívoco de limitar à propriedade de veículos terrestres o fato gerador que proporciona o nascimento da obrigação tributária relativa ao pagamento da exação em comento.
Não existe uma lei complementar nacional dispondo sobre o IPVA, como ocorre com o ICMS (Lei Complementar n. 87, de 13 de setembro de 1996) e com o ISS (Lei Complementar n. 116, de 31 de julho de 2003). Os Estados - membros elaboraram suas respectivas leis ordinárias, implementando a sistemática normativa do imposto, razão pela qual há diferentes regramentos sobre o IPVA no Brasil. Contudo, podemos encontrar, obviamente, traços gerais que se repetem em todas as legislações estaduais.
Segundo preceitua o art. 155, III da Constituição Federal, o imposto deve ser instituído sobre a “propriedade de veículos automotores”. A expressão merece detida análise, em todos os seus termos, pois não se deve inferir que o constituinte utilize palavras inúteis na elaboração da Magna Carta.
A palavra propriedade tem sentido técnico próprio, pertencente ao direito civil, sendo também utilizada para a incidência de outros tributos, como o IPTU e o ITR. Não paira qualquer controvérsia na doutrina em relação à utilização desse vocábulo, inclusive, o CTN possui norma expressa que se aplica ao caso em seu art. 110.
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
O terreno começa a se mostrar tormentoso quando se tenta encontrar a definição do que a lei considera “veículo”. À lei, realmente, não cabe o estabelecimento de conceitos e definições, ficando para a doutrina e jurisprudência o custoso trabalho de fixar o que se deve entender por veículo.
A palavra veículo ‘procede do latim vehiculo, de vehere (conduzir, transportar)’; vehere significa, mais precisamente, ‘transportar por terra ou por mar, por meio de qualquer veículo, a cavalo, me navio, levar às costas’. Veículo, assim, ‘é o instrumento ou aparelho que, dotado de certos requisitos, serve ao transporte de coisas ou pessoas, de um para outro lugar. [14]
Parece que a palavra vehere remonta à época tão antiga que não se vislumbrava o desenvolvimento de veículos aéreos, detalhe que se deve ter em conta para se evitar confusões sobre o tema. Ruth Rocha elenca 3 interessantes significados para a palavra veículos: “1 Qualquer meio de transporte. 2 Tudo o que transmite ou conduz. 3 Aquilo que auxilia ou promove.” [15] Parece que é recomendável aceitar a definição mais ampla do termo, afinal, a Constituição restringiria o conceito se assim desejasse.
Importante notar que “a idéia de movimento, viu-se, é elementar à idéia de veiculo; veiculo é, essencialmente, o meio através do qual se transporta, vale dizer, se conduz de um ponto a outro.” [16]
Obviamente, como os Estados instituíram o IPVA e elaboraram suas leis regulando o imposto, a norma estadual poderia esclarecer o que entende por veículo, estabelecer critérios de identificação, ou definir o termo da maneira que melhor entender. Gladston Mamede apresenta importante dado sobre as leis de alguns Estados – membros do país:
Muitas das legislações estaduais, a exemplo da baiana (Lei 6.348/91, art. 1º, caput), da paranaense (Lei 6.017/96, art. 1º, caput) ou da fluminense (Lei 2.877/97, art. 1º, caput, 1ª parte) falam apenas em veículos automotores de qualquer espécie. Outras especificam tratar-se de veículo automotor aéreo, aquaviário ou terrestre, como ocorre nas leis potiguar (Lei 6.967/96, art. 2º, caput), ou goiana (art. 397 do Regulamento do Código Tributário de Goiás).
A última palavra da expressão em análise também traz tormentosa delimitação. É certo que o qualificativo “automotor” restringe o substantivo antecessor veículo, mas não se encontra qualquer referência sobre o termo na legislação de caráter nacional. Difícil encontrar significados nos dicionários nacionais, pois muitos não contemplam essa palavra em sua obra. A Lei carioca 2.877/97 traz interessante conceito que pode nortear a busca pela mais adequada definição. Assim está fixado em seu art. 1º, §1º: “para o efeito desta lei, veículo automotor é qualquer veículo aéreo, terrestre, aquático ou anfíbio, dotado de força motriz própria, ainda que complementar ou alternativa de fonte de energia natural.” [17]
Yoshiaki Ichihara tenta conceituar o termo, dizendo que veículo automotor seria “qualquer veículo com propulsão por meio de motor, com fabricação e circulação autorizada e destinada ao transporte de mercadorias, pessoas ou bens”.[18] Na mesma linha do quanto comentado anteriormente, o Carta Política teria limitado o conceito do termo caso quisesse fazê-lo. Entende-se que a definição adequada deve ser a mais ampla possível.
Não nos convence o argumento de que o Anexo I do Código de Trânsito brasileiro (Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997) revela o conceito legal de veículo automotor nos seguintes termos: “todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas” [19]. O próprio diploma legal explica, de forma explícita, que aquelas definições estabelecidas pelo Anexo I são adotadas apenas para os efeitos daquele código. Tal legislação rege tão-somente “o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional”, segundo seu art. 1º. Resta rechaçado, desta sorte, o conceito do CTB pela impropriedade de sua aplicação às esferas aéreas e aquaviárias, fora do alcance da lei pela própria opção legislativa.
Contudo, cabe dizer, ainda, que se tal argumento não fosse suficiente, é de clara visualização que a expressão cravada numa lei reguladora de trânsito não possui aptidão para afetar as normas tributárias sobre o tema. A tributação independe da definição utilizada no regramento de utilização de veículos, podendo-se utilizar o critério da especialidade para suplantar dúvidas em relação ao conceito que deve ser tomado como adequado.
Enfim, não importa qual é o nome ou expressão utilizada por outras leis para indicar o que seria, no exemplo dado, veículo automotor. A realidade é capaz de destruir qualquer indagação, pois o essencial é que o objeto seja um veículo automotor, e nada mais.
Na mesma linha argumentação, não é sustentável tentar excluir do conceito de veículo automotor as embarcações e as aeronaves em razão das definições destes termos estabelecidas nos atos normativos que abordam o trânsito aéreo e aquaviário. Não interessa à discussão se o conceito de embarcação é compatível ou se encaixa na definição de veículo automotor. O que importa, diga-se mais uma vez, é que o objeto seja, no mundo dos fatos, um veículo automotor que satisfaça a pretensão constitucional.
De pouco interessa se podem existir aeronaves sem motor, como as projetadas apenas para planar, pois todas as aeronaves que sejam veículos automotores estarão no campo da incidência da norma tributária. Reconhecendo essa situação problemática, mas indicando que isso apenas não permite generalizar a tributação sobre toda e qualquer aeronave, se manifestou Rogério Lindenmeyer Vidal Gandra da Silva Martins:
(...) chega-se à conclusão de que um elemento essencial para caracterização de veiculo automotor não é requisito essencial para a aeronave: ‘a propulsão por meio de motor’. Dessa forma, podemos afirmar que nem toda aeronave é veículo automotor, não podendo o legislador do IPVA generalizar a tributação sobre ela. [20]
Não se vislumbra, neste sentido, nenhum empecilho à possibilidade teórica de incidência do IPVA sobre os veículos automotores náuticos e aéreos. Quando a Constituição Federal deseja restringir o alcance ou conteúdo de determinado conceito, ela deve fazê-lo de maneira expressa. O texto constitucional não coloca nenhum óbice à tributação de tais veículos, estabelecendo tão somente que os Estados e o Distrito Federal terão competência para instituir imposto sobre a propriedade de veículos automotores.
Não fora excetuado nenhum tipo específico de veículo automotor, nem mesmo quanto ao meio pelo qual trafega, seja pelo ar, seja pela água ou pela terra. Compartilhamos a precisa lição de Gladston Mamede, que leciona com razão:
Para o IPVA, observe-se que a Constituição não restringiu a idéia de veiculo à movimentação terrestre, o implica incluir veículos para movimentação pela água e pelo ar. Porém, houve uma qualificação expressa na autorização constitucional: no universo dos veículos, somente os automotores carreiam para seus proprietários a obrigação tributária. [21]
Pode-se ver que o fato gerador do IPVA, segundo a Constituição Federal, é a propriedade de veículo automotor, mas não somente a propriedade de veículos automotores terrestres. Contudo, equivocou-se, data maxima venia, o Supremo Tribunal Federal excluindo a incidência do imposto sobre os veículos náuticos e aéreos. Tal entendimento afronta de forma contundente a unidade do sistema jurídico, desafia a interpretação teleológica e, infelizmente, aparenta possuir elevada e negativa carga política.
3. CONCLUSÃO
Portanto, considerando o equívoco histórico sobre a ascendência do IPVA – já que a CF rompeu com o paradigma normativo até então vigente alterando, inclusive, sua natureza de taxa para imposto –, a sua natureza fiscal e seu fato gerador, não há razão capaz de justificar a não incidência desse imposto sobre as embarcações e veículos aéreos. Fica claro que o Supremo Tribunal Federal ao exarar as decisões mencionadas buscou privilegiar as camadas mais abastadas da sociedade, protegendo-os em face do poder de império do Estado de impor o pagamento da exação.
[1] Publicamos artigo científico defendendo a possibilidade de incidência do IPVA sobre aeronaves e emabrcações na Revista JusNavigandi, onde estão algumas das razões que aqui reproduzimos. GARCIA, Ricardo O. Freaza. O fato gerador do IPVA: breve defesa da incidência sobre veículos aéreos e náuticos. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3264, 8 jun. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21966>
[2] BRASIL. Decreto-Lei 397, de 1968 apud MARTINS, Rogério Lindenmeyer Gandra da Silva. O perfil do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Curso de Direito Tributário, 13. ed. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 858.
[3] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, 11. ed., atualizadora Misabel Abreu Machado Derzi, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 567. In: MARTINS, Rogério Lindenmeyer Gandra da Silva. O perfil do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Curso de Direito Tributário, 13. ed. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 858.
[4] MARTINS, 2011, p. 859.
[5] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, 11. ed., atualizadora Misabel Abreu Machado Derzi, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 567 apud MARTINS, 2011, p. 860-861.
[6] MARTINS, 2011, p. 857.
[7] Art. 146. Cabe à lei complementar:
I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
[8] MARTINS, 2011, p. 862.
[9] MARTINS, 2011, p. 866.
[10] LOCATELLI, Soraya David Monteiro. O Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores. Tratado de Direito Tributário. Coords.: Carlos Valer do Nascimento, Ives Gandra da Silva Martins e Rogério Lindenmeyer Vidal Gandra da Silva Martins apud Martins, 2011, p. 864-865.
[11] MACHADO, 2008, p. 384.
[12] TORRES, 2007, p. 327.
[13] Art. 6º. O produto arrecadado da Taxa Rodoviária Única, na parte que couber ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, segundo o disposto no artigo 4º, dêste Decreto-lei, integrará o Fundo Especial de Conservação e Segurança de Tráfego criado pelo artigo 4º, inciso II, do Decreto-lei nº 512, de 21 de março de 1969. Os Estados, Territórios, Distrito Federal e Municípios disporão, nas suas leis orçamentárias, sôbre a aplicação da parte que lhes couber, em gastos de conservação, melhoramentos e sinalização de vias públicas e despesas administrativas e custeio dos serviços de arrecadação da taxa e de registro de veículos e respectiva fiscalização.
[14] MAMEDE, 2002, p. 52.
[15] ROCHA, Ruth; PIRES, Hindenburg da Silva. Minidicionário. 9. ed. São Paulo: Scipione, 1996, p. 634.
[16] MAMEDE, 2002, p. 53.
[17] RIO DE JANEIRO. Lei 2877, de 22 de dezembro de 1997 apud: MAMEDE, 2008, p. 53.
[18] ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário na nova Constituição. São Paulo: Atlas, 1989, p. 144 apud MARTINS, 2011, p. 866.
[19] BRASIL. Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Brasília. Diário Oficial da União. Publicado em 24/09/1997. Retificado em 25/09/1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9503.htm>. Acesso em 9 de novembro de 2011.
[20] MARTINS, 2011, p. 872.
[21] MAMEDE, Gladston. IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores. Colaboração de Eduarda Cotta Mamede, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 52-53.
Pós graduado em Direito do Estado Lato Sensu pelo Instituto Excelência LTDA(JusPodivm); Defensor Público do Estado de Santa Catarina desde 2014.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Ricardo Oliveira Freaza. Imposto sobre a propriedade de veículos automotores: uma análise crítica às decisões do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2020, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55703/imposto-sobre-a-propriedade-de-veculos-automotores-uma-anlise-crtica-s-decises-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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