RENATA MALACHIAS SANTOS MADER
(orientador)
RESUMO: O presente artigo trata-se da modalidade de responsabilização civil em razão do abandono afetivo Paterno-Filial. Tem por objetivo abordar quais são os víeis da possibilidade de compelir o genitor a pagar reparação civil decorrente do abandono. Pretende-se analisar quais as melhores oportunidades para serem tomadas em busca do melhor interesse da criança e do adolescente. Diante disso, evidenciar a importância do papel paterno nas relações familiares no sentido de acompanhar o desenvolvimento ético, moral e social da criança e do adolescente, bem como relatar as consequências atribuídas a essa omissiva de afeto. Analisar-se-á, por meio de pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais, a importância de haver o afeto incluso no exercício do poder familiar, quais seriam as responsabilidades dos progenitores na formação da criança ou adolescente, verificando por fim a possível reparação, em caso de abandono afetivo paterno filial.
PALAVRA-CHAVE: Abandono Afetivo Paterno-Filial; Direito de Familia; Responsabilidade Civil; Modalidades de abandono; Família.
ABSTRACT: This article deals with the civil liability modality due to the affective abandonment of Paternal-Filial. It aims to address what are the feasible possibilities of compelling the parent to pay civil reparations resulting from abandonment. It is intended to analyze what are the best opportunities to be taken in the best interest of the child and adolescent. the paternal role in family relationships in the sense of following the ethical, moral and social development of children and adolescents, as well as reporting the consequences attributed to this omission of affection. It will be analyzed, through bibliographic and jurisprudential research, the importance of having affection included in the exercise of family power, what would be the responsibilities of the parents in the composition of the child or adolescent, checking finally the possible reparation, in case of filial affective abandonment.
KEYWORDS: Affective Paternal-Child Abandonment, Family Law; Civil Liability, abandonment modalities, Family.
A presente pesquisa tem por foco primitivo abordar os casos em que é possível se configurar a omissão de afeto na modalidade paterno-filial, em que os filhos sofrem o que se denomina de abandono afetivo pelo genitor, destacando, para tanto, a possibilidade de aplicação do instituto da responsabilidade civil quando houver danos à criança ou adolescente.
Importante ressaltar que a família, inclusive em termos constitucionais, representa a base da sociedade, e é considerada uma instituição responsável por promover o desenvolvimento social, ético e educacional dos filhos, sendo indispensável a sua contextualização dentro do ordenamento jurídico pátrio.
Assim analisaremos como o ordenamento identifica e qualifica o afeto, já que é o cerne para a definição de família, focando especialmente em dois princípios que são cruciais para tanto: o Princípio da Paternidade Responsável e o Princípio da Afetividade, previstos explícita e implicitamente em diversos dispositivos do nosso ordenamento jurídico, inclusive da Constituição Federal. Além disso, foi com base no Princípio da Afetividade que várias decisões vêm se embasando para reconhecer e solucionar diversas questões ligadas ao direito de família: união estável homoafetiva, como também da filiação socioafetiva, da multiparentalidade, e da responsabilização civil por abandono afetivo, dentre outras.
Ademais, se faz importante ressaltar o papel paterno no desenvolvimento dos filhos na unidade familiar, destacando a importância do afeto nas relações entre pais e filhos, e as consequências do não cumprimento do dever de cuidado pelos genitores, inclusive com base em estudos científicos, de psicólogos e psiquiatras acerca do tema em questão.
Em sequência, verificam-se quais os requisitos para pretensão de responsabilização civil e a possibilidade de se requerer indenizações em razão do abandono afetivo, advindo da omissão do convívio e dever de cuidado paterno-filial.
O presente tema de artigo se dará por meio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, ligados aos estudos de doutrinas, revistas online, e artigos com fundamentos ligados ao assunto.
2.1 CONCEITO CONTEMPORÂNEO
Ao examinarmos alguns aspectos históricos relacionados ao conceito de família, é possível notar que este vem sendo atualizado a cada instante. De forma que, atualmente, pode-se dizer que família acontece quando um grupo de pessoas estão voltadas a uma única intenção: interação familiar constante, ou seja, está intimamente ligada com o afeto entre os membros.
A respeito das mudanças ocorridas no conceito tradicional de família MADALENO (2009, p. 19) explana:
A família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental, biológica, institucional vista como unidade de produção e de reprodução cedeu lugar para uma família pluralizada, democrática, igualitária, hetero ou homoparental, biológica ou socioafetiva, construída com base na afetividade e de caráter instrumental.
Ainda acerca da evolução do conceito de família, traz-se a definição de VENOSA (2018, p.3) acerca do assunto:
Entre os vários organismos sociais e jurídicos, o conceito, a compreensão e a extensão de família são os que mais se alteraram no curso dos tempos. Nesse alvorecer de mais um século, a sociedade de mentalidade urbanizada, embora não necessariamente urbana, cada vez mais globalizada pelos meios de comunicação, pressupõe e define uma modalidade conceitual de família bastante distante das civilizações do passado. Como uma entidade orgânica, a família deve ser examinada, primordialmente, sob o ponto de vista exclusivamente sociológico, antes de o ser como fenômeno jurídico.
Dessa forma, são diversos os tipos de família que se pode identificar atualmente: a família matrimonial, a monoparental, a anaparental, a unipessoal, a homoafetiva, dentre várias outras. Aqui não buscaremos conceituar cada uma delas, o mais importante, e que realmente interessa no momento, é perceber e entender que não importa qual o tipo de família, qualquer uma delas é baseada na reunião de três elementos para sua identificação como família: a afetividade, a estabilidade e a ostensibilidade.
O primeiro elemento, a afetividade, está ligada ao fato de que aquele grupo de pessoas possui uma identidade familiar, voltados a um bem estar plural de todos os membros pertencentes a essa família, este requisito é o fundamento e a finalidade da entidade; o segundo elemento, a estabilidade, está ligada ao vínculo, a ideia de fidelidade na prestação de cuidados e comprometimento para com os familiares, de forma a excluir relacionamentos casuais; e, por fim, o último elemento, a ostensibilidade, que nada mais é do que apresentação desse grupo de pessoas como unidade familiar para toda a comunidade.
Como bem assevera FARIAS e ROSENVALD (2015, p. 49):
Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora.
Logo, não restam dúvidas da evolução do conceito de família, que evolui na mesma velocidade que toda a sociedade evolui, não se admitindo que fique presa a conceitos ultrapassados e estáticos, presas a valores arcaicos e patriarcais. Por isso, é importante:
[...] vislumbrar na família uma possibilidade de convivência, marcada pelo afeto e pelo amor, fundada não apenas no casamento, mas também no companheirismo, na adoção e na monoparentalidade. É ela o núcleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. É o instrumento para a realização integral do ser humano. (DINIZ, 2018, p. 27)
Sendo assim, mais do que o conceito, é importante destacar o papel da família na importância existencial do ser humano, é na família que cada individuo busca a sua base intelectual, moral, histórica, tendo grande relevância no desenvolvimento do indivíduo
3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS ÀS ENTIDADES FAMILIARES
A Carta Magna de 1988 elevou a família como base da sociedade brasileira, não é à toa que em seu artigo 256 declara: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 1988). E, em razão disso, é que se pode verificar a existência de alguns princípios constitucionais norteadores do tema.
São vários princípios que podem ser citados, como o Princípio da ratio do Matrimônio e da União Estável, que determina a necessidade de affectio ou afeto como fundamento básico desses dois institutos; o Princípio da Igualdade, que se refere à igualdade de poderes entre os cônjuges nos deveres e direitos matrimoniais, bem como a igualdade entre todos os filhos, sejam os havidos dentro ou fora do casamento ou mesmo os adotados, sendo vedada qualquer conduta discriminatória; o Princípio do Pluralismo Familiar, que determina a possibilidade de se reconhecer os mais variados tipos de família, e não apenas a clássica e engessada família patriarcal e matrimonial; o Princípio da Liberdade, que possibilita que cada família escolha como irá administrar todas as questões a ela correlatas, desde o regime de bens até o planejamento familiar ou formação cultural, religiosa e educacional dos filhos; dentre tantos outros.
São inúmeros os princípios constitucionais que norteiam a família, mas dois princípios merecem destaque diante do presente estudo, são eles: o Princípio da Paternidade Responsável e o Princípio da Afetividade.
Sendo assim, trataremos de cada um em separado para melhor compreensão de sua importância em relação ao tema proposto: o abandono afetivo.
3.1 PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL
O Princípio da Paternidade Responsável representa o significado de responsabilidade a ser seguido na construção e na manutenção da família, que inicia desde a concepção e se estende até que seja necessário e considerado justificável a presença dos genitores perante seus filhos.
Este princípio está devidamente assegurado na Constituição Federal, em seu artigo 226, § 7°, in verbis:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (BRASIL, 1988)
O mencionado princípio pode ser analisado sob dois aspectos: de um lado poder ser compreendido como a total autonomia dos pais de decidirem sobre ter ou não ter filhos, e ainda sobre quantos filhos ter, isto é, liberdade de planejamento familiar; como também, por outro lado, pode ser interpretado sob o dever de cuidado dos pais para com os filhos, dever parental, responsabilidade de provê-los, tanto financeira quanto emocionalmente.
É necessário mencionar que os deveres atribuídos aos genitores na formação dos filhos são de cunho irrenunciável, uma vez que a criança e adolescente requerem alto índice de atenção e amparo. Dever este que se encontra destacado em vários dispositivos do ordenamento jurídico, implícita ou explicitamente, a começar pela nossa Carta Magna que destaca em seu artigo 227:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)
Conforme dito anteriormente, o princípio analisado está implícita e explicitamente contido em diversos dispositivos legais do nosso ordenamento pátrio, sendo assim, além dos retro mencionados, podemos citar a Lei 9.263/96, que regulamenta o artigo 226, § 7º da CF e regula o planejamento familiar; a Convenção sobre Direitos da Criança e do Adolescente, de 1989, ratificada pelo Brasil em 1990; bem como a Lei 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em seu artigo 27 garante o direito de reconhecimento da filiação como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível.
Além disso, o ECA e o Código Civil brasileiro, como bem preceituam DILL e CALDERAN (2011):
[...] evidenciam a existência de deveres intrínsecos ao poder familiar, conferindo aos pais, obrigações não somente do ponto de vista material, mas especialmente, afetivas, morais e psíquicas. Nesse sentido o artigo 3º do ECA preceitua que toda criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
No mesmo sentido O Código Civil, em seu artigo 1.634, impõe como deveres conjugais, o sustento, criação, guarda, companhia e educação dos filhos (1.566, IV). Já os artigos 1.583 a 1.590 discorrem sobre a proteção dos filhos em caso de rompimento da sociedade conjugal.
Desse modo, os destaques mencionados configuram a preocupação em manter-se o vínculo fraternal mesmo quando do afastamento (emocional, relacional) dos pais por ocasião do divórcio, ou mesmo quando em momento algum os pais tenham estabelecido vida comum, diante de tantas formas de família que temos hoje.
As obrigações para com os filhos não devem ser modificadas por nenhum motivo, não importando qual genitor detenha a guarda ou não, o dever de cuidado e amparo a eles deve ser uma prioridade dos pais, visando o seu contínuo bem estar, atribuindo de forma igualitária o acompanhamento da rotina dos menores no que diz respeito à saúde, educação, lazer e cultura, evitando assim a omissão de cuidado e afeto para com os filhos.
Importante ressaltar, ainda, que o princípio que analisamos neste tópico está intimamente ligado ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, e juntos são considerados os fundamentos do livre planejamento familiar, objetivando o pleno desenvolvimento de todos os seus membros, especialmente da criança e do adolescente.
3.2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
No tocante ao Princípio da Afetividade, podemos destacar a existência de três correntes pensantes quanto o assunto é AFETO: os que defendem a afetividade como um principio jurídico que se faz aplicável no âmbito do Direito de Família; os que o consideram como um valor, negando seu caráter jurídico; e, há ainda os que entendem que o afeto é simples sentimento, não devendo sequer ser valorado juridicamente.
A maior parte da doutrina, entretanto, reconhece a afetividade como um princípio jurídico aplicado ao âmbito familiar, conforme destaca LÔBO (2017):
O princípio da afetividade tem fundamento constitucional, não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade.
A afetividade, assim como o princípio anteriormente analisado, encontra-se implícita na Constituição Federal de 1988 (CF/88), bem como explícita e implícita em vários outros dispositivos do ordenamento jurídico pátrio. Em nossa Carta Magna é possível destacar quatro previsões cruciais em que é possível se verificar a presença do Princípio da Afetividade: no artigo 226, §4º da CF/88 que reconhece a existência de entidade familiar independentemente se formada por apenas um ascendente e seus descendentes; no artigo 227, §§ 5º e 6º da CF/88 a adoção como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano de igualdade de direitos de qualquer filho biológico sendo certo que todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem.
Sendo assim, é possível dizer que o Princípio da Afetividade possui duas nuances: uma voltada ao status de dever jurídico, como uma obrigação de cuidado e atenção dos pais para com os filhos; e outra representada por possibilitar o vínculo familiar, isto é, a possibilidade de se reconhecer vínculo familiar entre pessoas que não possuam vínculo primitivo reconhecido pelo sistema.
Apenas como forma de apresentar entendimento diverso, traz-se posicionamento contra o reconhecimento da afetividade como princípio jurídico, que entende pela impossibilidade de se tratar a afetividade como dever, já que para que haja afeto é crucial que exista espontaneidade, neste sentido ALMEIDA e RODRIGUES JÚNIOR (2010, p. 564):
A principal característica do afeto é a espontaneidade de um sentimento que se apresenta naturalmente e, por isso ,é autentico .O afeto – uma vez imposto – não é sincero e, assim não congrega as qualidades que lhe são próprias, dentre as quais o incentivo à sadia conformação da identidade pessoal dos envolvidos. Por isso, o direito não possui meios, e menos ainda, legitimidade para resolver a falta de afeto no âmbito das relações familiares.
Dessa forma, os autores apontam pela impossibilidade de se impor a afetividade como dever jurídico, sendo, no entanto, posicionamento minoritário.
Por fim, enfatizando a importância do reconhecimento da afetividade como dever jurídico em nosso ordenamento pátrio, é possível destacar que a afetividade foi determinante no reconhecimento jurídico da união estável homoafetiva, como também da filiação socioafetiva, da multiparentalidade, e da responsabilização civil por abandono afetivo que passaremos a analisar nos tópicos seguintes.
4 ABANDONO AFETIVO PATERNO-FILIAL.
Conforme já comentado nos itens anteriores, quando analisamos os princípios da paternidade responsável e da afetividade, fica claro que o ordenamento jurídico defende que os pais são responsáveis pelo desenvolvimento dos filhos em todas os setores: psíquico, emocional, educacional, etc., inclusive, reconhecendo o afeto como dever jurídico.
Aqui analisaremos justamente as consequências da falta de afetividade dos pais para com os filhos, em específico da afetividade paterna: o abandono afetivo paterno-filial.
Depreende-se por abandono afetivo paterno-filial a ausência do genitor para com a criança ou adolescente, que é omisso em cuidados em uma das fases mais relevantes para a contribuição do desenvolvimento psíquico e educacional dos filhos.
Essa omissão de afeto acaba por representar vários aspectos negativos para o desenvolvimento pessoal da criança ou adolescente, vários estudiosos, inclusive psicólogos e psiquiatras, estudam as consequências do abandono afetivo. Dentre as consequências mais comuns, é possível citar deficiências no comportamento mental e social para o resto da vida, apresentando-se como uma criança/adolescente isolado do convívio com outras pessoas, problemas escolares, depressão, baixa autoestima, tristeza recorrente, e vários outros problemas de saúde que na maioria das vezes se estenderá por toda a vida adulta, afinal, a infância é a base de formação do adulto.
Para demonstrar a importância do papel paterno na convivência com os filhos, podemos mencionar um artigo do ano de 2010, da Associação Americana de Psicologia, citado pelo site SEMPRE FAMILIA (2015), que apontou em seus estudos que a maioria das memórias de uma relação diária com a presença do pai na infância estará ligada de forma direta com a capacidade futura de lidar com as adversidades, pois o pai desempenha um reflexo importante associado à saúde mental dos filhos.
DIAS (2007, p.608), declara que com a imensa evolução das ciências, principalmente da psicologia, é sabido que a influência familiar se mostra essencial para o desenvolvimento sadio da pessoa em formação e ainda:
Não mais se podendo ignorar essa realidade, passou-se a falar em paternidade responsável. Assim, a convivência dos filhos com os pais não é um direito do pai,mas direito do filho .Com isso, quem não detém a guarda tem o dever de conviver com ele. Não é direito de visita-lo é obrigação de visita-lo.
As crianças nascem com uma predisposição para o aprendizado, os meios para adquirir personalidade, o desenvolvimento da fala, da percepção e do caráter vão se desenvolvendo na medida em que crescem, e dessa forma vão colocando em seu pensar tudo que está a sua volta, é como se representassem uma folha em branco e a cada gesto, hora e dia vão preenchendo-a com a convivência familiar, aprendendo a perceber o que é certo, errado, o que é permitido, bem como o que não é.
O que se deveria tutelar com a teoria do abandono afetivo é o dever legal de convivência. Não se trata aqui da convivência diária, física, já que muitos pais se separam ou nem chegam a viver juntos, mas da efetiva participação na vida dos filhos, a fim de realmente exercer o dever legal do poder familiar (SILVA,P,2020)
É claro que a presença de ambos os genitores é importante para a educação, cultura e desenvolvimento emocional e comportamental dos filhos, para que dessa maneira as partículas de convivência sejam colocadas em prática de forma equilibrada. Mas a figura paterna e a materna, em sua individualidade, tem suas peculiaridades nesse desenvolvimento. Desse modo, como bem explicou o site A VOZ DA SERRA (2020) mencionando a psicóloga Betty Monteiro:
[...] o pai é o primeiro ‘outro’ na vida da criança, a primeira pessoa que introduz uma relação além da materna. “Imagine uma planta que se alimenta da seiva da árvore. Este é o símbolo simbiótico, o primeiro tipo de vínculo que a criança estabelece com a mãe. O pai vem para quebrar este vínculo”, justifica a psicóloga.
Logo, é possível notar que existe sempre uma expectativa do filho para com o pai, é como se a criança tivesse na figura paterna a representação de proteção estendida, pois ambos os genitores atribuindo cuidados aos filhos proporcionam a eles a sua camada de importância, desenvolvendo os pontos necessários para uma convivência de afeto mutuo.
A figura paterna transfere aos filhos a possibilidade de poder contar com uma segunda voz, uma segunda fonte de aprendizagem, o pai representa na maioria das vezes a figura de primeiro amigo quando busca administrar momentos criativos com os filhos, estes simples exemplos demonstram o poder da relação afetiva, o poder de confiança e proteção .
Ainda neste sentido, dentre os grandes juristas estudiosos acerca do tema podemos destacar HIRONAKA (2009):
O dano causado pelo abandono afetivo é antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, sendo certo que esta personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar, responsável que é por incutir na criança o sentimento de responsabilidade social, por meio do cumprimento das prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a sua plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada. (HIRONAKA, s. d. p. 07)
Amparar, instruir e guiar, esses são cuidados que devem ser dispensados dos pais aos filhos além do dever de alimentar (financeiro). O afeto está no auxílio em todo o decorrer de sua linha de desenvolvimento, no educar, no acompanhamento da vida escolar do filho, no observar de forma presente todas as dificuldades escolares e não apenas em pagamento de mensalidades escolares e despesas alimentares, enfim, é no convívio salutar e dedicação fraternal que o pais cumprem com o seu dever de afeto. Sendo assim, como bem destaca KRIEGER e KASPER (2015):
[...] dentre as obrigações parentais previstas constitucionalmente encontra-se a convivência familiar, decorrente do princípio da parentalidade responsável. E deve-se ir mais além: essa convivência familiar precisa ser regrada pelo afeto e cuidado. Surge deste entendimento o princípio da afetividade no Direito de Família: as relações familiares constituídas através de laços de afetividade representam a base da sociedade, pois é por meio do afeto que damos sentido à existência humana, que aprendemos a respeitar o outro e que desenvolvemos nosso caráter. A ausência destes elementos na criação dos filhos produz sequelas emocionais que podem comprometer o desenvolvimento da personalidade da criança e adolescente, assim como a capacidade deste individuo vir no futuro constituir uma base familiar regrada pelo afeto, inclusive em relação a seus próprios filhos.
Em resumo, portanto, uma vez que o Princípio da Afetividade corresponde a um dever familiar, paterno-filial, de forma que sem afeto haverá sérios prejuízos em relação à formação do indivíduo, seja psicológica ou social.
Esse afeto entre pais e filhos deve ser emanado da convivência familiar, pois não consegue ser uma consequência biológica, tampouco econômica.
Neste contexto, configurado o abandono afetivo paterno, ou seja, quando o genitor deixa de conviver com seus filhos, não lhes entregando carinho e afeto, certamente viola a integridade da criança e/ou do adolescente, causando sérias consequências em sua formação emocional e pessoal. A negligência, uma das causas do abandono afetivo “[..] é caracterizada pela desatenção, pela ausência, pelo descaso, pela omissão ou, simplesmente, pela falta de amor’’ (GOMIDE apud ROSSOT ,2009, p.12). Ainda neste sentido:
[...] Já o abandono afetivo pode ser configurado quando há um comportamento omisso, contraditório ou de ausência de quem deveria exercer a função afetiva na vida da criança ou do adolescente. (BASTOS e LUZ, 2008, p.70)
Dessa forma, discute-se a possibilidade de se requerer indenização em razão do abandono afetivo sofrido, o que será tratado no próximo tópico.
5 RESPONSABILIDADE CIVIL EM RAZÃO DO ABANDONO.
Toda ação ou omissão que traga prejuízos a um bem juridicamente tutelado gera para o ofensor o dever de reparar o dano, é essa a determinação do direito civil acerca da responsabilidade civil. Entretanto, no direito de família nem sempre é tão fácil desenvolver este raciocínio, especialmente no que diz respeito ao dano moral, vez que, é preciso analisar cada caso em concreto com cautela, em razão da elevada subjetividade e delicadeza do assunto que muitas vezes dificulta a determinação do que é lícito ou ilícito.
Alguns requisitos auxiliam na forma de reconhecer essa possibilidade de reparação civil: primeiramente a doutrina destaca a conduta humana, que pode ser comissiva ou omissiva; a culpa genérica ou lato sensu, que atribui tanto o dolo quanto a culpa em sentido estrito, que se reflete na imprudência, negligência ou imperícia; nexo causal entre a conduta e o dano causado; e por fim, a imputação de dano ou de prejuízo.
Os danos perpetrados pelo agente e suportados pelas vítimas podem assumir caráter patrimonial ou extrapatrimonial (moral), os danos materiais são mais fáceis de serem comprovados e ressarcidos, já o dano moral tem prova mais complexa e nem sempre será ressarcido por completo, é apenas uma forma de tentar compensar o sofrimento.
Conforme anteriormente demonstrado, é indiscutível os danos trazidos pelo abandono afetivo, a omissão dos pais para com seus filhos pode gerar consequências sérias para o desenvolvimento psíquico do menor, bem como danos na construção de sua personalidade. Trata-se, portanto, de dano moral sofrido pelos filhos em razão da omissão paterna.
A responsabilidade civil em virtude do abandono afetivo advém, portanto, do objetivo de compensar a criança ou adolescente que recebe a negativa de afeto. Neste ponto:
[...] que os genitores além dos laços afetivos, mantém vínculos jurídicos com os filhos relacionados à ordem moral e material,e o não cumprimento dos deveres pode caracterizar danos e ,por consequência ,a responsabilização civil. (NADER 2016)
Assim, para a caracterização da possibilidade de responsabilidade civil, é necessário que ocorra a omissiva do genitor, o descumprimento do dever de afeto, caracterizado pelo não convívio harmonioso, a omissiva de prestações de auxílio na alimentação, desenvolvimento social, cultural e de formação da criança.
[...] é dever de a família evitar negligências contra a criança e o adolescente. Deixar um filho em abandono é desrespeitar um ato disciplinado na Constituição Federal. Desse modo, pode-se dizer que o pai que não cumprir com seu dever está praticando ato ilícito. (CANEZIN, 2006)
Como bem mencionado por MACHADO (2013):
[...] uma das primeiras decisões acerca do referido tema ocorreu em 15 de setembro de 2003, proferida pelo Juiz Mario Romano Maggioni, da 2ª Vara Cível da Comarca de Capão Canoa –RS (Processo nº 141/1030012032-0), na mencionada ação o genitor foi condenado a pagar 200 salários mínimos de indenização por dano moral, em decorrência do abandono afetivo e moral de sua filha de apenas 9 (nove) anos de idade. O magistrado em sua decisão enalteceu o art. 22 da Lei nº 8.069/90 (ECA), e destacou os deveres decorrentes da paternidade.
Em suma, os julgados acerca do tema em questão, reforçam a possibilidade de se recorrer ao amparo de uma indenização por responsabilização civil em detrimento do abandono afetivo, neste sentido, transcreve-se julgado que trata de apelação civil, proferida em 2007, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Apelação Cível nº 0012003-042004.8.190208-2006.001.62576:
Apelação Cível. Ação indenizatória. Dano moral causado pelo pai, por maus tratos e abandono afetivo à autora. Ação de improcedência. Improvimento do apelo. A Constituição Federal, de 05/10/88 (art. 227), e o Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n. 8.069/90 (art. 4.), adotaram, no ordenamento pátrio, a Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente, que assegura, com absoluta prioridade, a proteção dos direitos infanto-juvenis, os quais não se limitam à guarda, sustento e educação, inerentes ao exercício do poder familiar (antigo pátrio poder), na forma prevista no Código Civil. Assim, o dever-poder dos pais, de forma concorrente com o Estado e a sociedade, inclui, além daqueles, a garantia de direitos outros, dentre eles, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, além de colocá-los "a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não bastaria a Constituição e a lei prevê a garantia de tais direitos, impondo a proteção integral também aos pais, sem que autorizasse, em consequência, a devida punição dos mesmos pela infringência de tais normas. A evolução social e científica, ao reconhecer que as necessidades do homem vão além dos materiais e físicas, incluindo as emocionais e psíquicas, refletiu no ordenamento jurídico pátrio, que passou a contemplar normas que protegem os direitos expatrimoniais e, consequentemente, as que punem a infringência dos mesmos. Assim, não se pode limitar a aplicação do art. 159 do Código Civil/16, que tem no art. 186, correspondente no novo Código Civil/02, a inclusão do dano moral no rol dos atos ilícitos, passíveis de indenização. Com fulcro em tais fundamentos, este Colegiado se filia à corrente que entende possível a condenação dos genitores por danos morais causados a filho (os), quando devidamente comprovados em cada caso concreto, trazido ao exame do Judiciário.
Importante ressaltar, contudo, que para que se possa reconhecer a responsabilidade civil por abandono afetivo é imprescindível que haja o nexo causal entre a conduta paterna e os danos suportados pelo(s) filho(s), sendo tratada como uma responsabilidade objetiva, isto é, que não analisa a presença de culpa ou não.
Acontece que nem todos pensam da mesma forma, pois, embora muitos reconheçam a possibilidade de se responsabilizar civilmente em razão do abandono afetivo paterno, outros se posicionam em sentido contrário, entendendo pela impossibilidade de se responsabilizar civilmente pela falta de afeto, alegando que aconteceria a monetização do amor, além de alegarem que a ninguém se pode obrigar amar. Neste sentido:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL.AÇÃO DE INDENIZAZAÇÃO POR DANOS MORAIS.PAI .ABANDONO AFETIVO.ATO ILICITO.DANO INJUSTO.INEXISTENTE.IMPROCEDENCIA DO PEDIDO.MEDIDA QUE SE IMPÕE.O afeto não se trata de um dever do pai, mas decorre de uma opção inconsciente de verdadeira adoção, de modo que o abandono afetivo deste para com o filho não implica ato ilícito nem dano injusto, e, assim o sendo, não há falar em dever de indenizar, por ausência desses requisitos da responsabilidade civil. (TJ-MG, Apelação Cível nº 1.0499.07.006379-1/002; Relator: Exmo. Sr. Des. Luciano Pinto; Julgamento: 10/08/2006; Publicação: 07/09/2006)
Assim, a verdade é que apenas diante do caso concreto é que será possível verificar a existência ou não do dever de indenizar em razão de abandono afetivo, pois, como dito alhures, é necessário verificar o nexo de causalidade entre conduta e dano, bem como o grau das consequências perpetradas em desfavor do menor. Mas não restam dúvidas do dever de afeto juridicamente reconhecido, e nem da possibilidade de se responsabilizar em razão do abandono afetivo praticado pelo pai que se omite no dever de cuidado perante os filhos.
6 CONCLUSÃO
O conceito de família recepcionou modificações no decorrer do tempo, a própria Constituição Federal de 1988 contribuiu de forma significante para essas mudanças, trazendo reflexos nas relações sociais, principalmente no que diz respeito ao núcleo familiar, pois, até então, a família era subordinada ao poder patriarcal.
Atualmente, a família se apresenta de diversas formas, recebendo reconhecimento dentro de suas individualidades e necessidades, ou seja, são diversos os modelos de constituição familiar, não se limitando a família clássica composta pelos pais casados e sua prole, hoje o que determina a família é justamente a existência de afeto entre seus membros, de sua intenção de assim se manterem e de assim se apresentarem para a sociedade.
Além disso, o ordenamento jurídico volveu seus olhos para a criança e o adolescente, estabelecendo deveres (inclusive, mais uma vez, de cunho constitucional) de proteção e cuidado com o desenvolvimento em todos os setores da vida do menor. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil de 2002, vieram para ensejar os valores já legitimados constitucionalmente, especialmente no que diz respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, do interesse da criança e do adolescente, da paternidade responsável, da convivência familiar, entre outros.
Dentre os vários princípios que norteiam a família destacamos o Princípio da Paternidade Responsável e da Afetividade, que são cruciais para a compreensão do dever de cuidado e amparo que os pais tem para com os seus filhos.
Destacando a importância do afeto, importante mencionar que este se traduz na dedicação, no amor, no carinho, no cuidado além das questões materiais e financeiras, imprescindíveis na formação do caráter e da personalidade da criança.
Dessa forma, o não cumprimento deste dever de afeto pelos pais, pode acarretar na responsabilização civil dos mesmos. A jurisprudência brasileira durante muitos anos não formava um entendimento claro e conciso acerca do tema abandono afetivo, por se tratar de problemas diversos e com grande complexidade a respeito da causa e nexo causalidade.
Atualmente, embora não haja unanimidade acerca do assunto, é possível notar número considerável de julgados que reconhecem a possibilidade de se responsabilizar civilmente o pai que se omite no dever de cuidar, desde que se comprove o nexo de causalidade entre a conduta e os danos causados.
Neste artigo enfatizamos os efeitos advindos do abandono paterno-filial, o mais comum e recorrente em nossa sociedade, mas sabemos e destacamos a importância de ambos os genitores participarem da criação dos filhos.
Responsabilizar os pais civilmente não é apenas ter a intenção de receber uma indenização, mas sim de reparar um dano causado por aquele que deveria cuidar naturalmente da sua prole. O afeto não é um sentimento que pode ser obrigado a ter por alguém, contudo no momento que a pessoa se torna pai ou mãe, o dever de cuidado é inerente e indispensável na formação psíquica e emocional daquela criança.
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