PEDRO SPÍNDOLA.
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho acadêmico se propõe a analisar e discutir a problemática da desobediência civil que, ultrapassando os limites da licitude, abre precedentes para que o anarquismo social se instaure na sociedade, assim, traz como enfoque do tema, as liberdades públicas e, de modo específico, as liberdades de expressão, na tentativa de delimitar o momento em que estas liberdades deixam de ser um lícito ou, quando a desobediência civil, ultrapassa a linha para o anarquismo e ferindo direito de outrem. A partir da leitura e compreensão sobre a desobediência civil em Henry D. Thoreau bem como, da perspectiva do direito à resistência à opressão em Norberto Bobbio, que trazem uma exaltação aos direitos do homem e imprimem uma certa nobreza ao ato de confrontar o Estado, o que em todo, não está incorreto, pretende-se confrontar tais liberdades (direitos fundamentais) de modo a depreender se efetivamente existe uma forma de delimitar os atos que fazem o direito à desobediência civil, tendo como prerrogativa as liberdades públicas, se tornar um ilícito civil, ferindo direito coletivo e direitos individuais. A natureza desta será eminentemente qualitativa, com revisão das literaturas sobre o tema e exploração metodológica hipotético dedutiva.
PALAVRAS-CHAVE: Desobediência Civil. Liberdades Públicas. Limites. Ilícito Civil. Anarquismo Social.
ABSTRACT: The present academic work seeks to analyze and discuss the problem of civil disobedience, which, exceeding the limits of lawfulness, sets precedents for social anarchism to establish itself in the society, thus, bringing the theme of public freedoms and, specifically, freedoms of expression, in an attempt to delimit the moment when these freedoms cease to be licit or, when civil disobedience, crosses the line of the licitude to anarchism and injuring the right of others. From the reading and understanding about Henry David Thoreau’s Civil Disobedience as well as, from the perspective of the right to resistance to oppression in Norberto Bobbio, which bring an exaltation to human rights and impart a certain nobility to the act of confronting the State, which, as a whole, it’s not incorrect, its intended to confront such freedoms (fundamental rights) in order to understand if there is effectively a way to delimit the acts that make the right to civil disobedience, having as a prerogative the public freedoms, becomes an unlawfulness, violating collective and individual rights. The nature of the research will be eminently qualitative, with a review of the literature on the topic and hypothetical deductive methodological exploration.
KEYWORDS: Civil Disobedience. Public Freedoms. Limits. Unlawfulness. Social Anarchism.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. IMPÉRIO DAS LEIS E ESTADO DE DIREITO. 1.1 O Estado Moderno e o processo de Secularização. 1.2 Juspositivismo e a obediência civil. 1.3 As repercussões do Estado de Direito. . DESOBEDIÊNCIA CIVIL. 2.1 As Influências de Henry David Thoreau. 2.2 Dever de Obediência vs. Direito de Resistência. .3 Anarquismo Social e seus reflexos. 3. (DE)LIMITAÇÃO DAS LIBERDADES PÚBLICAS. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Com efeito, o processo de secularização contribuiu para a formação do estado moderno e, consequentemente, evoluindo para o atual Estado Constitucional de Direito, o qual só foi possível a partir da ruptura entre o divino e o político, permitindo a evolução e desenvolvimento do direito, com as contribuições teóricas, principalmente, do Juspositivismo.
Nessa perspectiva, princípios e teorias essenciais, desde o século XV, foram desenvolvidos por grandes filósofos e juristas; podemos citar grandes marcos como o modelo analítico de Hobbes e os ideais de Maquiavel, ambos tendo influenciado para que o ápice do Estado Moderno chegasse a partir das revoluções, posto às teorias contratualistas e de Estado de Direito no século XIX.
Assim sendo, as construções teóricas de Maquiavel e Hobbes contribuíram diretamente para uma nova visão de governo no seu cerne, sendo possível neste momento, a retomada dos princípios de legalidade e legitimidade.
De outro giro, surge no continente norte-americano, um novo pensamento quanto a estruturação do Estado, em que as Teorias Anarquistas punham em cheque a sua necessidade na sociedade, uma vez que direito e moral tornaram-se premissas indissociáveis, no pós-positivismo.
Nessa perspectiva, disposições como direito de resistência à ofensa passaram a ser tratados, mesmo que Norberto Bobbio já tenha abordado o tema de certo modo, passa a ser discutido com maior afinco por Henry David Thoreau em 1849.
O conceito de desobediência Civil, ainda que tratado em outras épocas, foi traçado pelo filósofo norte-americano (tido como pioneiro no desenvolvimento da teoria em razão da sua grande repercussão) que passou a discutir sobre as questões político-sociais que vivia à época da escravidão nos Estados Unidos, que neste período estava em guerra com o México.
A partir de então, Thoreau busca de forma nobre, ainda que, partindo dos ideais do anarquismo individualista, defender que não é possível aceitar um Estado em que a escolha do seus representantes se dá pela maioria, negligenciando as minorias o que, em contrapartida, confronta-se com o que Vladimir Safatle vai trazer como ponto relevante a qual iremos discutir, a Teoria do Populismo.
Prosseguindo. Thoreau exalta os nobres cidadãos que confrontam as decisões do Estado e que se utilizam dos direitos para alcançar seus objetivos, direitos estes que Bobbio traz em sua obra “ Era dos Direitos” - qual seja, o direito à resistência da opressão, uma vez que entende a desobediência Civil como uma legitimidade do cidadão de agir contra o Estado, quando este fere os valores morais do indivíduo.
Todavia, sabe-se que até mesmo os direitos tem seu limite estampado nos direitos de outrem, ainda que o Estado, na sua Carta Magna não tenha expressamente o delimitado.
Vale salientar que, não é intuito desta pesquisa discutir o direito de manifestação de pensamento, crenças políticas e religiosas em si, mas é entender o tempo em que o uso desses direito (liberdades públicas) se torna abusivo, ou seja, quando fere as liberdades de outrem, e a partir disto busca estabelecer parâmetros a serem seguidos, respeitados, pois se um governo não existe e não impõe normas para o bom convívio dos cidadãos e das nações, isso implica dizer que tudo é permitido: Ao psicopata é permitido matar, ao Estuprador que estupre, ao preconceituoso que se manifeste, as religiões que se firam, psicológica e fisicamente, aos agressores que violentem, ao comediante que faça suas piadas de forma pejorativa, denegritória, ao ator roteirista que mude as histórias e faça pouco caso das crenças, etc.
Para melhor elucidar a máxima, faremos uma análise sobre as liberdades de expressão, dita pelas liberdades públicas; Poderia concordar com o Título de Bobbio quando da sua obra “A Era dos direitos”, sim! Hoje o cidadão se vê cheio de direitos e, façamos jus a estas são gloriosas conquistas, mas que infelizmente estão sendo deturpados por essa sociedade individualista, fruto de, entre outros fatores, as contribuições de Thoreau em “Desobediência Civil”, o qual teve grande repercussão ao longo dos anos até os dias atuais.
Ora, claramente o legislador falhou ao não estipular limites para os direitos, lê-se, liberdades, passando a solucionar as lides por um princípio de ponderações. Cabe a reflexão: Ponderar? Ferir o direito alheio nestes casos deve ser ponderado?
Entretanto, não sendo foco desta pesquisa, tratar sobre as questões que versam sobre as ponderações de princípios, levanta-se tais questionamentos tendo em vista estar intrinsecamente interligado de modo a gerar uma breve reflexão, contudo saliente-se que a doutrina já traz discussões importantes sobre o tema.
Pois bem. As liberdades de expressão estão alcançando medidas cada vez mais alarmantes no mundo jurídico e social, como vemos hodiernamente manchetes nos jornais e em nossos próprios afazeres cotidiano, porque sem limites, a sociedade entende que tudo pode !
Este é o ensejo do presente estudo: analisar as liberdades públicas à luz da Constituição e dos princípios que lhe dão base e, bem como as situações cotidianas decorrentes destas liberdades a fim de refletir sobre esta utilização e consequentemente, buscar delimitar quando estas liberdades passam de um direito para um ilícito civil.
A intuição que guia esta pesquisa é a de que a sociedade atingiu um nível de individualismo e cheio de direitos que, repercute diretamente em suas posturas perante ao coletivo, ferindo os direitos alheios, transformando as conquistas de outrora em um caos social, e portanto não se tratando mais de liberdade ou qualquer propositura de cunho positivo, mas sim, em um anarquismo social.
Decerto, ouso dizer, partindo desta premissa, que o constitucionalismo futuro está comprometido, posto que não é possível a consolidação dos direitos de terceira dimensão (fraternidade e solidariedade) em uma sociedade que se encontra fechada, ensimesmada, individualista.
Urge repensar no direito contemporâneo, quais as falhas do atual sistema, a começar pelas liberdades públicas o que, para tanto, busca-se primeiramente a compreensão do direito à resistência à luz do princípio da Desobediência Civil.
O processo de secularização, diferente do que Saldanha associa ao advento da democracia, teve suas primeiras insígnias na Idade Moderna, na qual se fundamenta a desconexão ou, a ruptura entre o divino e o político (JUST, 2005).
A bem da verdade, foi a partir da crise do feudalismo que começa a surgir o chamado “Estado Moderno”, da segunda metade do séc. XV até o séc. XVIII. Segundo Saldanha (1976) “com ele, e com a unificação das fontes e do ordenamento, fez-se possível o moderno juspositivismo, com diversas variantes e conexões”.
Cumpre salientar que, o Estado Moderno teve seu ápice com as revoluções, uma vez que os ideais contratualistas e de Estado de Direito (com os princípios inerentes a este) ganharam força perante o povo.
Portanto, importa destacar nesse período, os principais pensadores, que dão base para a nova concepção de Estado, em que as teorias políticas passam pela transição do então Estado Medieval para o Estado Moderno (SILVA; VIEIRA, 2017), são eles: Maquiavel (séc. XVI) - o precursor desse processo de ruptura e, posteriormente, Thomas Hobbes (séc. XVII) com a teoria contratualista mais consolidada.
Aprioristicamente, Nicolau Maquiavel “defendia o Estado como uma instituição nascida do contrato entre o povo e o príncipe” (SILVA; VIEIRA, 2017, p. 2). Em sua obra “O Príncipe”, demonstrou a política como de fato é, fundamentado na teoria de que governar é uma arte (técnica), não uma virtude (ética). Isso significa que a arte de governar está calcada na máxima: o governante não é detentor de autoridade em virtude de atributos divinos (virtudes), mas por determinadas técnicas.
Em razão das suas alegações, a obra Maquiavélica foi rechaçada pela igreja católica, integrando o rol de livros proibidos na idade Média[1] - Index Librorum Prohibitorum.
Ademais, buscando fundamentar-se nas teorias contratuais para justificar a existência do Estado e o novo sistema político, Maquiavel vai dizer que o poder político tem origem na maldade inerente à natureza humana, portanto, “a única forma para se enfrentar o conflito e anarquia, se daria por meio do poder” (SILVA; VIEIRA, 2017, p. 4).
De outro giro, “O príncipe” sugere que o poder não vem do divino, mas que vem da autonomia, isto é, um homem livre de qualquer domínio religioso que pode então, articular o poder com a sabedoria (astúcia).
Decorrente disso, Maquiavel derrubou dois dogmas normativos que ditavam o sistema político da Idade Moderna: a religião e a moral. Isto posto, abrem-se as portas à secularização e, aqui, o modelo analítico de Hobbes ganha respaldo defendendo que o direito é um sistema que necessita de pureza jurídica, isto é, dissocia direito e moral (base para o pensamento positivista).
No século XVII, com a crise do sistema mercantil moderno, surge a figura do filósofo inglês Thomas Hobbes que em sua teoria contratualista defende que o Estado nasce de um contrato entre homens.
Nesse período a sociedade passou a questionar persistentemente a concentração do poder nas mãos do soberano que lhe era conferido pelo Divino e, portanto, agora a legitimidade se torna uma exigência.
Para tanto, Hobbes contribui com a publicação da sua obra “O Leviatã”, nela cria-se uma aversão ainda maior sobre a natureza humana e, portanto, vai dizer homo hominis lupus est - quer dizer, o homem é Lobo do próprio homem e a partir disso surge a figura do Leviatã. Os homens na tentativa de escapar dessas mazelas, se agrupam e transmitem poderes a uma autoridade central (SILVA; VIEIRA, 2017)
Neste seguimento, Hobbes desenvolve a teoria do contrato social que, apesar de ser resultado do Estado Absolutista, será mais adiante, a base para a estruturação e estopim do Estado Moderno consolidado.
O Contrato Social é aquele firmado entre homens que “abrem mão da sua individualidade, colocando-a plenamente nas mãos de um terceiro - o Estado-Leviatã - que passa a ter a única obrigação de protegê-los” (MONDAINI, 2006, p. 129).
Nesse cenário, o racionalismo ganha raízes com fulcro nos ideais filosóficos de Maquiavel e Hobbes que ao justificar a organização do Estado e seu poder soberano, abre uma lacuna na qual o Estado Moderno se instaura no início do século XIX, com o marco histórico das revoluções.
Importa frisar que, o Estado Moderno, como observado, nasceu em berços Absolutistas, onde superou-se os domínios dos feudos e passou a concentrar o poder nas dinastias, o que, posteriormente, ao longo do século XIX firmou-se no Estado Liberal (revoluções burguesas).
Assim sendo, as construções teóricas de Maquiavel e Hobbes contribuíram diretamente para uma nova visão de governo no seu cerne, organização e princípios, para tanto no Estado Liberal, a atuação do legislativo se torna mais aparente, pelo processo das codificações, bem como a mudança do seu eixo onde, agora, o poder está no povo.
Por outro lado, o prestígio da ideia de lei (correlatamente à ascendência política dos parlamentos) foi fazendo pôr de lado, em definitivo, a imagem do direito costumeiro: O Estado moderno, em seu estágio liberal, fez estado legislativo. (SALDANHA, 1976, p. 135)
De certo, por consequência da movimentação na estrutura governamental, “a exigência ética começou a propiciar a retomada de um velho tema que sempre surge, e que aliás no século vinte colocou forma expressamente nestes termos: o tema da relação entre legalidade e legitimidade” (SALDANHA, 1976, p. 66-67).
A medida em que o Estado tem sua organização e seu poder justificados pelos princípios da legalidade e da legitimidade, leva-nos, necessariamente, a delinear o conceito e fundamentação do princípio da obediência civil e seus efeitos, uma vez que se torna uma prerrogativa estatal ser obedecido pela sociedade, na forma da lei.
Pois bem. O Conceito de obediência civil e sua validade se dá pela legitimidade do Estado para governar o povo e, portanto, impõe-lhe, através do poder estatal de coerção, a submissão ao cumprimento ou não de certos atos decorrentes de situações fáticas.
Aqui introduzimos a ideia trazida pelo Positivismo que, no período da Idade Moderna, o direito natural é substituído pelo direito positivo, isto é, os costumes e o controle da igreja deixam de existir, de certa forma e, passa a vigorar as leis estatais e o próprio Estado, o que Olivier Beaud vai chamar de “surgimento da positividade do direito”.
Um pouco mais adiante, o neopositivismo ou juspositivismo, em seu sentido estrito, aponta que a validade da norma está condicionada ao ordenamento jurídico que lhe confere este caráter e, deste modo, impondo-as aos seus destinatários, sociedade, gera direitos e deveres.
Como mencionado anteriormente, a norma validada pelo ordenamento confere a legitimidade de imposição desta e, como legitimado, ao Estado é conferido o poder de coerção para que a norma se cumpra.
De outro giro, o juspositivismo em sentido amplo (ou positivismo moderado), mais aceito por Norberto Bobbio, vai dizer que a moral não será o meio definitivo para definir e aplicar o direito. Porém, para algumas sociedades, pode haver uma convenção social (costume) implicando em considera moral para determinar a validade e modo de interpretar as normas jurídicas, como é o caso dos Estados que adotam o sistema common law.
Desta forma, denota-se a obediência civil ganhando respaldo a partir da corrente do Positivismo Jurídico. Ou seja, justifica-se a sua aplicação no ordenamento jurídico pela legitimidade que lhe é dada pelo povo, conforme os princípios constitucionais: O Poder emana do povo e este dá legitimidade ao Estado para gerir o todo.
Ante o exposto, podemos dizer que o conceito de obediência civil estaria respaldado em ambos os sentidos: estrito e amplo (ainda que seja maior a incidência do sentido estrito) uma vez que tanto a lei como o costume podem ser ditas como fontes do direito e com isso, uma vez previsto no ordenamento jurídico do Estado, estão arraigadas de legitimidade.
Para elucidar esse aspecto basilar da corrente teórica, Bobbio destaca três sentidos de juspositivismo: (i) Positivismo jurídico como ideologia (do direito); (ii) Positivismo jurídico como Teoria (do direito); (iii) Positivismo jurídico como método (para estudo do direito).
Em um primeiro momento, os juspositivistas na vertente ideológica, como exemplifica Bobbio (1995), suscitam o princípio da Legalidade, contrapondo à ideologia jurídica do nazismo (defendida pelo positivismo extremista), como meio de frear as arbitrariedades do que ele chama de “Governo de Homens”. Afirma-se que a lei impõe limites ao próprio Estado e não alimentar um fascismo (positivismo moderado).
Dizer que a lei deve ser obedecida significava, sob o regime passado, defender a liberdade individual lesada pelos abusos do poder político, que não respeitava a lei (já que o dever de obedecer à lei diz respeito não só aos cidadãos, mas também aos órgãos do Estado). (BOBBIO, 1995, p.236)
O segundo aspecto do juspositivismo como Teoria vai trazer seis concepções que vão dar-lhe fundamento, quais sejam: a) teoria coativa; b) teoria legislativa; c) teoria imperativa; d) teoria da coerência do Ordenamento Jurídico; e) teoria completitude e; f) teoria da Competência lógica.
Detendo-se às três primeiras, por acreditar serem infundadas as críticas feitas à estas pelo antipositivistas, Bobbio enfatiza-as, portanto, como pilares para a Teoria do positivismo jurídico, sendo as três últimas apenas suportes secundários.
Nesse diapasão, cumpre salientar que, para ele, estes dois primeiros sentidos de juspositivismo não são acolhidos em sua plenitude, contrapondo-se ao sentido estrito do juspositivismo e ao extremismo do positivismo ético. Conclui, abraçando por completo o positivismo jurídico como método, por entender como puro método científico onde por ele perpassa a Teoria do Direito.
Em suma, vemos o Juspositivismo em uma postura descritiva do direito que vai abolir uma definição de direito que não leva em consideração sua legitimidade (seu mérito) e que, de igual modo, não se põe o dever de obediência ao direito positivo, princípio da legalidade isto é, à norma válida em determinado Ordenamento Jurídico, por conseguinte, compreendemos como premissa que dá fundamento a obediência civil, a corrente teórica do Positivismo Jurídico que, pelos princípios de legalidade e legitimidade confere ao Estado o poder coercitivo para que se faça o direito, a fim de proteger as liberdades individuais e coletivas.
De acordo com Saldanha (1976, p. 44), destacamos nesse processo de secularização, o Estado de Direito como modelo, isto é, “aquele em que limite e o fundamento da ação estatal se encontram na ordem jurídica e essencialmente na base desta, a constituição”.
Nesse seguimento, o Autor conclui defendendo sua tese sob três perspectivas: o constitucionalismo como processo, Estado de direito como um modelo e o liberalismo como um credo, que dispõe uma forma necessária de política: a discussão e o consenso.
De fato, esses três aspectos passam a contrapor o modelo absolutista da Idade Média, em que a vontade do soberano, agora passa a ser do povo. O sentido autoridade encontra-se agora, com o contrato social (no sentido liberal) e na “vontade geral”, em Rousseau, plasmada na Lei. Desse modo, o Estado e os indivíduos estão submetidos ao Direito.
Pode ser também, a expressão Estado de Direito, tomada amplamente, como equivalente ao próprio conceito do Estado Moderno: é no Estado moderno que o sistema jurídico assume posição central, é nele que os “poderes” se investem de sentido jurídico, é nele que a lei se torna modo por excelência de comando normativo. (SALDANHA, 1976, p. 43)
Portanto, podemos dizer que, o Estado de Direito significa um modelo de direito em que a objetividade do ordenamento está posta e é oriundo de uma fonte legítima de produção de lei - representantes do povo - o que nos permite inferir este modelo como arcabouço teórico da justificativa do juspositivismo; nascido como corrente teórica para fundamentar juridicamente esse novo Estado.
Como consequência, a estruturação do Estado ganha nova roupagem com a separação dos poderes (ou divisão de poderes) que se tornava princípio obrigatório, posto que o processo do constitucionalismo fundamenta nos poderes constituídos a delimitação nas suas áreas de atuação, a fim de que, possam gerir o estado, bem como serem fiscalizadores mútuos, tendo a constituição como núcleo vetor das suas atividades.
Igualmente, nesse período, podemos falar, de modo mais acentuado, sobre a racionalização decorrente da urgência de ruptura com o Estado Absolutista, esforços advindo do liberalismo que tendenciou a crescente racionalização, tais como: o pacto social, codificações e leis escritas - normatização das condutas (SALDANHA, 1976), por ser de demasiada importância, no pensamento moderno-liberalista, a dissociação do direito e a moral, quer dizer, dissociação das ingerência da Igreja sobre o Estado.
Mister salientar que, as codificações ocorridas no final do século XVIII e início do século XIX ainda estavam estruturadas sobre o conceito jusnaturalista, visto que o iluminismo tentou positivar o direito natural. De acordo com Bobbio (1995, p. 54) no movimento iluminista “o direito é a expressão ao mesmo tempo da autoridade e da razão” e, nisto temos uma pequena vertente do positivismo jurídico.
Todavia, ainda que na segunda metade do século XVIII o iluminismo tentasse fazê-lo, a racionalização crescente, resultou no direito um saber mais sistematizado (SALDANHA, 1976).
Como reflexo desta sistematização, “Direito e Razão” ganham um mesmo sentido, de modo que, o juspositivismo defende não haver direito sem razão, ou seja, que não admite a abstrativização, mas sim, busca a objetividade e a uniformização das normas.
Nesse aspecto, como grande exemplo resultante do rigoroso positivismo jurídico (stricto sensu), temos a codificação francesas do séc. XIX, ou melhor, o Código de Napoleão (BOBBIO, 1995) que não permitia, as “lacunas do direito positivo” e portanto, “a lei era a lei” e nela se exauriam todos os questionamentos.
Destarte, a máxima permite dispor a obediência civil como dever do indivíduo, em razão de uma lei (princípio da legalidade) que confere ao Estado, legitimado pelo povo (princípio da legitimidade), poder coercitivo para impô-la aos indivíduos e à coletividade, fruto de um Estado de Direito que está alicerçado sobre o positivismo jurídico.
Por fim, pudemos determinar, a grosso modo, os parâmetros histórico-jurídicos que sustentaram o modelo de Estado, e que lhe conferiram poder para gerir a sociedade, com fundamento na Lei (válida em razão os princípios de legalidade e legitimidade) e, assim, torna-se premissa para a obediência civil.
Em uma entrevista ao programa Direito & Literatura, mediado pelo jurista Lenio Streck, o Professor e Filósofo Castor Bartolomé Ruiz, comenta sobre a obra Desobediência Civil, a descrevendo da seguinte forma: “representa o resumo de uma experiência de vida, transformada num texto filosófico-jurídico-político”.
O fator que vai provocar o surgimento da Obra Desobediência Civil é, justamente, o momento da prisão de Thoreau que, ante a guerra dos Estados Unidos contra o México e a escravidão, se coloca na obrigação moral de resistir à um governo que ele considera ilegítimo e, assim, acaba sendo preso por não pagar os impostos individuais da época.
Nesse sentido, Bartolomé reforça que, essa foi a tática (não pagar os impostos) que ele encontrou para não ser cúmplice de um governo que ele considera injusto.
Se a injustiça é parte do inevitável atrito no funcionamento da máquina governamental, que seja assim: talvez ela acabe suavizando-se com o desgaste - certamente a máquina ficará desajustada. Se a injustiça for uma peça dotada de uma mola exclusiva - ou roldana, ou corda, ou manivela - aí então talvez seja válido julgar se o remédio não será pior do que o mal; mas se ela for de tal natureza que exija que você seja o agente de uma injustiça para outros, digo, então que se transgrida a lei. Faça da sua vida, um contra-atrito que pare a máquina. O que preciso fazer é cuidar para que de modo algum eu participe das misérias que condeno. (THOREAU, 1999, p.19-20)
Assim sendo, Bartolomé vai dizer que, imediatamente após sua prisão, Thoreau vê a necessidade de colocar por escrito as suas ideias a respeito do direito de desobediência civil e os argumentos desse direito à um governo considerado injusto, ilegítimo, tratando dentro desse contexto, questões como “até onde um governo deve ou não existir” (fundamentos anarquistas).
Como mencionado anteriormente, as nuâncias desta pesquisa versam sobre a compreensão teórica do positivismo jurídico que ganhou força na Europa com o advento do Estado Moderno, em que atualmente o Ordenamento Jurídico Brasileiro se alicerça, através do sistema de civil law, o qual está intrinsecamente ligados às contribuições do filósofo norte-americano, Henry David Thoreau.
A bem da verdade, ainda que Thoreau esteja inserido em outro contexto, isto é, do direito anglo-saxônico, pautado no sistema common law, vemos que o ordenamento brasileiro e o norte-americano têm forte embasamento sobre a mesma perspectiva teórica, posto que pertencentes à mesma tradição ocidental, como pano de fundo, influenciados amplamente pelo iluminismo e no projeto da modernidade, a qual pretende-se enfatizar.
Nascido nos Estados Unidos, Thoreau marcou o século XIX como precursor do movimento libertário (influenciado pelos ideais iluministas e liberalistas daquele período), também defendia os princípios do transcendentalismo contudo, diferente de seu grande amigo Ralph W. Emerson, dotado de forte individualismo.
O Filósofo norte-americano Emerson, um dos fundadores do movimento cultural chamado Transcendentalismo, descreve seu melhor amigo com tamanha propriedade de modo que, ao escrever sobre ele como forma de homenageá-lo, após seu falecimento, o grande homem que foi e para que o Mundo pudesse conhecê-lo como ele o conheceu, disse:
He lived for the day, not cumbered and mortified by his memory. If he brought you yesterday a new proposition, he would bring you to-day another not less revolutionary. A very industrious man, and setting, like all highly organized men, a high value on his time, he seemed the only man of leisure in town, always ready for any excursion that promised well, or for conversation prolonged into late hours[2] (Ralph W. Emerson, 1862)
Pois bem. Vemos em suas emblemáticas discussões, princípios teóricos enraizados já suscitados anteriormente, e, aqui, enfatizamos uma de suas principais obras que obteve grande visibilidade após seu falecimento, a chamada “Desobediência Civil”, publicado em 1849, em que Thoreau manifesta sua resistência ao Estado, o que, posteriormente, se tornou referência de luta contra a injustiça e a opressão.
Insta frisar que, outras teses acerca da desobediência civil foram desenvolvidas antes de Thoreau porém, em contexto diverso, como à exemplo da Antígona de Sófocles[3], em que a personagem Antígona desrespeita a ordem de um novo governante, num modelo político grego.
Todavia, foi atribuída ao filósofo norte-americano o papel de Pioneiro do conceito, vez que refletia exatamente o que sociedade necessitava, uma resposta ao Estado-Leviatã, retratado em Hobbes, isto é, o Estado nesse momento está bem estabilizado, tratando-se, portanto, de uma outra fundamentação de para a obediência.
Nesse diapasão, grandes nomes como Leon Tolstói na luta contra o totalitarismo do czar na Rússia, Mohanda Gandhi contra discriminação na África e pela independência da Índia e Martin Luther King contra a discriminação racial e pelos direitos civis, foram influenciados pelos princípios da desobediência civil, bem como teve grande impacto sobre os pensadores da ciência política como Hannah Arendt e John Rawls.
Contudo, é evidente que, este princípio foi moldado e, pode-se dizer, modificado, ao longo dos anos, enquadrando-se às situações e, portanto, foi acrescido de significados que em sua gênese não existia.
Em verdade, o princípio da desobediência civil construída em Thoreau fundamenta-se em um pensamento anarquista individualista, o qual iremos tratar posteriormente, com maior ênfase, haja vista que, em sua obra, o filósofo se depara com um ato contestável, isto é, o pagamento de tributos para financiar a guerra com o México e, a partir desta premissa, passa a discutir sobre o papel do estado, com base nos princípios teóricos do anarquismo.
Em contrapartida, é notório que, nas lutas pelos direitos libertários, os líderes vieram a adotar a desobediência civil como forma a findar um modelo de Estado que violentava o povo (psicológica, física e emocionalmente) levando-os a exaustão, o que gerou uma resposta que tornou o que hoje conhecemos de Estado Constitucional de Direito, onde o povo é legítimo detentor do Poder e, portanto, delega ao Estado para que gerencie o todo, fazendo-o legítimo.
Nesta perspectiva, trava-se uma discussão entre as perspectivas teóricas de Thoreau frente ao Juspositivismo que ganha espaço gradativamente, à medida em que, as revoluções reafirmam o binômio legalidade-legitimidade que dá ao Estado o poder de representar o povo.
Thoreau vai propor uma resistência a certos comportamentos do Estado, numa postura individualista e anarquista (ainda que venha a suavizar essa questão no final de desobediência civil), de modo que, quando questionado sobre suas obrigações como cidadão americano, responde: “a única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo.” (THOREAU, 1999, p. 5)
Isto posto, o filósofo se apresenta perante a sociedade com um olhar voltado para seus valores morais que, não está de todo errado, haja vista que cada ramificação da sociedade e cada indivíduo traz consigo uma bagagem de valores e conhecimentos específicos.
Contudo, as suas ideias chegam à um ponto tão radical que, afasta toda e qualquer possibilidade de olhar humanitário para a sociedade que sofre as consequências, positivas ou negativas, dos seus atos.
Pois bem. Ainda nesse movimento, Thoreau (1999) questiona se “deve o cidadão desistir da sua consciência, mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador?”
Um dos pontos que embasam o início deste conflito entre o Estado e a sociedade e, entre os próprios cidadãos vislumbra-se sobre o aspecto das liberdades públicas e a Teoria do Populismo, abordado em Vladimir Safatle, o qual trataremos mais à frente.
Cumpre ressaltar, primeiramente, o entrave entre o dever de obediência e os princípios da desobediência civil de Thoreau, o qual nos permitirá maior compreensão do tema antes de adentrarmos nos conflitos, núcleo deste certame.
Com efeito, dever obediência, como já mencionado, não está unicamente ligado à obrigação do cidadão, mas também ao Estado (BOBBIO, 1995), posto que a obediência faz referência às Leis e, de modo mais amplo, à Constituição, que no ápice do positivismo, entre o final do século XIX e início do século XX, determinar-lhe-á como a norma hipotética-fundamental[4] que norteia e dá validade à todas as demais normas.
Nesse sentido, entende-se que o dever de obediência seria na sua essência o dever de obediência à Lei que comporta obrigações tanto para o Estado, leia-se, órgão regulador e legitimado pelo Povo, quanto ao cidadão; não restando óbice que, para tanto, o Estado acaba por “herdar” a submissão à obediência do povo, quando deliberar mandamentos legítimos.
A premissa ganha extensão quando da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, a qual expressamente defende em seu art. 33, o dever de obediência, nos seguintes termos: “toda pessoa tem o dever de obedecer à Lei e os demais mandamentos legítimos das autoridades do país onde se encontra” (LARANJA; FABRIZ, 2018, p.131)
Dito isto, passamos à compreensão do direito de resistência. De acordo com Bobbio (2004, p. 132), a resistência como antítese da obediência comporta uma ruptura com o ordenamento, pondo o sistema em crise, mas não obrigatoriamente em questão, isto é, pode fazê-lo, mas não se trata de requisito para sua configuração.
Assim, segundo entendimento de Buzanello (2002, apud LARANJA; FABRIZ, 2018, p.132), a resistência, como conceito genérico, abarca três modalidades específicas: objeção de consciência, revolução e a desobediência civil.
Pois bem. Tratam-se de conceitos distintos, por óbvio, ainda que gere certa confusão na sua aplicação quando dos discursos sociais acalorados que, certamente, pelo desconhecimento de sua exegese, acabam no equívoco entendimento de dispor sobre os mesmos mecanismos para alcance de seus objetivos.
A objeção consciente em Buzanello (2002, apud LARANJA; FABRIZ, 2018) é um meio lícito (encontra fundamentação jurídica), em que o indivíduo emprega resistência à determinada situação quando esta fere algum valor moral, por questões políticas ou de crença, por exemplo.
Em contrapartida a revolução utiliza-se de violência e uma mudança repentina do poder e, do sistema de governo, de modo que, é tido pelo sistema predecessor como um ato ilícito.
De tal maneira, a principal diferença entre a desobediência civil, objeto da pesquisa e, as demais é que, na desobediência exige-se uma certa publicidade de seus atos, ou melhor dizendo, uma “manifestação pública”, bem como não comporta atos de violência; seu objetivo não é contrapor todo o sistema, mas apenas resistir à alguns aspectos do ordenamento jurídico (BUZANELLO, 2002, apud LARANJA; FABRIZ, 2018, p. 133).
Destarte, pelo não uso da força, o princípio da desobediência civil utiliza-se da punição do Estado para que sua repercussão possa atingir e “chocar” a sociedade, o que reafirma seu caráter de manifestação pública.
Desse modo, a desobediência civil pode ser descrita como um mecanismo (i) legítimo, visto que há submissão do indivíduo a sanção do Estado por determinado ato; (ii) ato ilícito, pois vai de encontro aos ditames do ordenamento (por isso, há sanção) e, (iii) não violento, como elencado anteriormente. (LARANJA; FABRIZ, 2018, p. 134)
Assim sendo, infere-se que para o sucesso de tal desobediência, esta dependerá da adesão dos indivíduos ou grupos sociais nas suas manifestações, bem como sua repercussão para que atinja seu objetivo.
Um dos maiores exemplos é o próprio filósofo Henry Thoreau que, em meio ao século XIX, nos Estados Unidos, negou-se a pagar os impostos que, à época, custeavam a guerra contra o México e, por esta razão, acabou sendo preso.
Foi no período de encarceramento que surge uma das obras mais conhecidas de Thoreau: A Desobediência Civil.[5] Nela o filósofo traça seus primeiros pensamentos sobre o tema, diante da realidade que vivia.
A lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir cotidianamente como mensageiros da injustiça. [...]Sai mais barato, em todos os sentidos, sofrer a penalidade pela desobediência do que obedecer. Obedecer faria com que eu me sentisse diminuído. (THOREAU, 1999, p. 6 e 28)
A máxima nos leva ao ensejo desta pesquisa, onde discute-se se a Desobediência Civil a partir das liberdades públicas, transcende os limites da licitude ensejando em anarquismo social e se, portanto, seria possível delimitar tais liberdades públicas a fim de que encontre tal equilíbrio.
Nessa perspectiva, importa replicar o pensamento de Norberto Bobbio, (2004, p. 140-141) quando faz crítica à sociedade atual, ao compará-la, no direito de resistência, com àqueles dos filósofos do século XVI e XVII que, mesmo trazendo questões idênticas (opressão, abuso de poder) que dão vazão a tal direito, estamos diante de uma nova ótica social, conforme descreve abaixo:
Seríamos tentados a dizer que ocorreu uma inversão radical da fórmula de Hobbes: para Hobbes, todos os Estados são bons (o Estado é bom pelo simples fato de ser Estado), enquanto hoje todos os Estados são maus (o Estado é mau, essencialmente, pelo simples fato de ser Estado)
Em que pese essa inversão é claramente percebida na contemporaneidade, vez que a tensão entre Estado e povo está latente, por diversos fatores sociais, políticos, econômicos, razão pela qual o anarquismo parece-nos cada dia mais próximo, isto é, um movimento natural dessa engrenagem que chamamos de sociedade.
De acordo com o dicionário da língua portuguesa, o anarquismo trata-se de uma “teoria política que afirma ser a sociedade independente do poder do Estado; teoria social e política que não aceita a submissão da sociedade aos poderes governamentais e/ou à autoridade do Estado.”[6]
Essa corrente teórica foi ramificada em diversas facetas, de modo que as integrações ao movimento anarquista se deram de modos distintos, contudo mantendo-se intocável em seu cerne: a oposição ao poder governamental do Estado.
Entre essas ramificações, surge o anarquismo individualista, o qual Henry Thoreau foi adepto, imprimindo-o em suas obras. Assim, desenvolvida no século XIX, especialmente nos Estados Unidos e na França, ainda que seus pensadores não tivessem qualquer conhecimento uns dos outros.
Importa destacar que os ideais anarcoindividualista de Thoreau não permaneceram apenas, deste lado do hemisfério; teve repercussões e influenciou filósofos na Europa, tendo seu ápice na metade do século XX, com a adesão de muitos pensadores, a exemplo de Henri Arvon, passando então a integrar o pensamento libertário europeu.
Nos Estados Unidos, Henry Thoreau defende o anarquismo individualista, embasado no transcendentalismo, isto é, acredita na conexão espiritual com a natureza, com teor individualista, onde o homem é capaz de se autogovernar, é autossuficiente, e que, portanto, as reformas sociais e políticas partem deste indivíduo, sendo desnecessário a figura do Estado, como ele mesmo vai dizer na abertura de sua obra Desobediência Civil: “o melhor governo é o que não governa de modo algum.” (THOREAU, 1999, p. 3)
Sob este olhar, é considerado um dos precursores do movimento libertário e, descrito pela Doutrina como um anarquista individualista libertário. Assim, suas obras mais conhecidas, “Walden: Uma vida nos bosques” e “Desobediência Civil” são reflexos desse posicionamento.
Inobstante, no individualismo, o filósofo norte-americano vai dizer que a Lei Moral do indivíduo deve sobrepor à autoridade estatal e seus mandamentos legítimos. Nesse viés, Thoreau (1999, p.6) vai dizer:
Deve o cidadão desistir da sua consciência, mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? [...] Não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direito. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo.
A visão do filósofo mostra a clara inversão da fórmula de Hobbes mencionada por Bobbio (2004), a qual traçamos anteriormente, e vai se reafirmando ao longo da obra Desobediência Civil à medida que o autor, à luz do anarcoindividualismo, defende que o Estado tornou-se um órgão impossibilitador do desenvolvimento e livre atuação do indivíduo no tocante aos seus direitos (nível moral) e que, portanto, o correto seria o “Homem que se autogoverna”.
Ante tais argumentos, esbarramos na questão da singularidade do indivíduo, ou seja, cada pessoa traz consigo, na formação do ser, valores morais, éticos, religiosos próprios o que, a grosso modo, nos leva a premissa “Qualquer governo é melhor que a ausência de governo”[7], isto porque, segundo Hobbes (2003), o anarquismo como elemento intrínseco ao indivíduo leva inevitavelmente à uma violência civil generalizada.
Importa lembrar que, não se defende aqui o Homem como ser incapacitado de viver em sociedade, mas que na realidade social contemporânea, este Homem tem se mostrado cada vez mais voltado à uma postura antissocial (individualista) do que pro societate.
Decerto, apenas esse argumento seria suficiente para demonstrar a inviabilidade de uma sociedade progredir quando está totalmente dividida e, pior, sem um órgão moderador que imponha limites a determinados abusos da “vontade” do indivíduo, afinal, o que cada pessoa julga certo, não está pautado em um mesmo valor (formação do ser humano).
Contudo, para melhor elucidar a máxima, tomemos como base a Teoria do Populismo, explicada em Safatle. O filósofo ao conceituar o populismo vai dizer que o governante busca atender as necessidades das massas (minoritárias), de modo a alcançar uma hegemonia e evitar um colapso (caos social).
Obviamente que, a medida que as massas estão insatisfeitas, se insurgem contra o Estado e, no auge de seu descontentamento tentam expurga-lo, na figura do seu representante. Isto reforça que, a sociedade é dividida em facetas e, ainda que o governante tente atender a medida do possível a necessidade das massas, elas ainda assim não estarão satisfeitas, posto que, aquilo que é bom para um, nem sempre será satisfatório para outro.
Não podemos olvidar que, a sociedade contemporânea marcada por um forte individualismo, frutos de uma diversidade de fatores, os quais não iremos nos deter nesta pesquisa, porém, é esse individualismo exacerbado que tem colocado em xeque a vivência harmônica entre os indivíduos.
Podemos dizer que, é justamente nessa Era de Direitos que o indivíduo tem se colocado como primeira e única prioridade, onde todos dizem ter direito, mas não conseguem enxergar além de si, isto é, não conseguem enxergar o direito do outro, muito menos da coletividade.
Por esta razão, entende-se que a desobediência civil, com base nas liberdades públicas, frente a essa sociedade de direitos (no seu aspecto negativo), acaba por gerar uma linha tênue para o anarquismo social (implosão; caos).
Vale ressaltar que, as liberdades públicas (com ênfase na liberdade de expressão) em si, não são o mal, pelo contrário, são conquistas históricas importantes que permitiram o desenvolvimento da sociedade e na proteção à dignidade humana, conforme veremos em sequência, todavia a sua utilização como prerrogativa para desobediência civil é que a coloca como um mal, possivelmente, irremediável.
Sob essa perspectiva, traremos o mecanismo da desobediência civil, fundamentando nas liberdades públicas, a fim de tentar delimitar a sua incidência para frear a engrenagem (sociedade moderna) que avança rapidamente ao anarquismo social.
É evidente que as liberdades públicas como ramificação dos direitos fundamentais requerem uma análise aprofundada, uma vez que a partir delas, decorrem demais liberdades. Entretanto, para fins desta pesquisa, iremos nos deter às liberdades públicas, especificamente na Liberdade de Expressão.
Na perspectiva do jurista francês, Jean Rivero (1973), as liberdades públicas “são liberdades que o direito positivo reconhece e organiza”, ou seja, tratam-se de direitos que são a gênese da liberdade do homem.
As Liberdades Públicas estão interligadas ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF/88) e, nesta, encontram-se diversos direitos fundamentais; entre esses, temos uma das mais discutidas liberdades públicas fundamentais: a liberdade de expressão.
Enfatize-se que, na atual conjuntura societária, esse mecanismo previsto no Constituição Federal de 1988, coloca-se como uma problemática latente, frente os ideais da desobediência civil, isto porque, o indivíduo tem buscado no individualismo de suas vontades, satisfazê-las, de modo que o jargão “Eu tenho direitos” se tornou preocupante.
Do ponto de vista jurídico, a liberdade de expressão encontra-se inserida numa posição delicada, em que faz-se necessário a ponderação de princípios, contudo ainda que a ponderação seja a única saída disponível ao legislador até então, a sociedade individualista não vislumbra os limites de seus direitos ante os direitos do outro, ou da coletividade, e nisso persiste o caos social no qual temos avançado gradualmente.
O paradigma de desobediência civil, ainda que tendo acrescido à evolução da sociedade, acaba distorcido na sociedade contemporânea quando utilizada de forma a embasar a conduta do cidadão no uso da dita liberdade de expressão sob o errôneo argumento de “fazer aquilo que acha certo” mesmo que ferindo direito individual e coletivo.
Nesse diapasão, trazemos à memória inúmeras situações que, infortunadamente, tornaram-se corriqueiras, tais como: a manifestação de grupos por meio de nudez, o desrespeito e a ofensa por meio da dita “liberdade artística” (à exemplo prático das piadas feitas pelos comediantes, cartunistas, entre outros).
Portanto, chegamos ao questionamento chave desta pesquisa: seria possível (de)limitar as liberdades públicas, alicerçada na teoria da desobediência civil, a fim de evitar o anarquismo social?
A bem da verdade, ainda que em um primeiro olhar não seja possível visualizar tal “delimitação”, tendo em vista os diversos estudos até então apresentado pelos juristas contemporâneos, pode-se dizer que as conquistas quanto a ponderação de princípios não mais satisfaz as necessidades da sociedade de forma plenamente eficaz.
A delimitação se encontra em um âmbito extremamente delicado pela própria matéria à qual ela está interligada, isto é, a Liberdade. A temática se torna sensível pois alcançar a vitória constitucional da Liberdade, não se trata de mero acaso ou vontade do Estado, mas de uma série de “lutas” pelo direito de liberdade e nele suas ramificações.
Mesmo que o sistema de ponderação de princípios não esteja a satisfazer a necessidade como outrora, por outro lado percebe-se que a sociedade não evoluiu de modo a superar a premissa anterior de “ponderação” para a nova premissa de “delimitação”, posto que para esta é necessário do indivíduo “abrir mão” de um direito a fim de respeitar o direito do outro que é latente na situação concreta.
Veja que na ponderação das liberdades de expressão a atuação é única e exclusiva do judiciário, uma vez que na situação concreta é ele quem vai determinar qual direito deve prevalecer, através de tal sistema.
De outro giro, a delimitação das liberdades trata-se de uma atuação conjunta, onde o Estado determina as suas limitações e a sociedade compreende e aplica tais considerações, de modo que a ponderação se torna um mecanismo subsidiário, ou seja, quando surge um possível hard case.
Contudo a Era dos Direitos (sentido negativo) e o enraizado individualismo anárquico não permitem o crescimento do direito nem o da sociedade que, por conseguinte, infelizmente permanece estagnada.
Portanto, não há que se falar em delimitação das liberdades públicas, enquanto não solucionarmos os ideais acima colacionados, posto que estes são empecilhos explícitos para o desenvolvimento da sociedade e do direito.
Decerto é sabidamente impossível desentranhar do núcleo da sociedade ideais já completamente enraizados em suas esferas, individuais, grupos sociais, concepções, entre outros, o que torna ainda mais difícil que a filosofia do direito, os juristas, os doutrinadores, consigam migrar de um sistema de ponderação de princípios (liberdades) para um sistema de limitação de liberdades.
A máxima nos permite inferir que desobediência civil em Thoreau, fundada no anarquismo individualista, assumiu uma vertente de tal modo que esta linha tênue pode gerar o caos social.
O desenvolvimento da presente pesquisa possibilitou uma análise ampla desde o Estado Moderno até o Estado Contemporâneo para demonstrar como o instituto da desobediência civil surge como uma ruptura do dever de obediência do indivíduo para com o Estado.
As conquistas trazidas por este instituto abarcavam também uma diversidade de questões que provam ser tóxicas às sociedades contemporâneas, a partir das contribuições de ideais filosóficos e sociológicos que permitiu-nos chegar a atual conjuntura, leia-se, uma engrenagem a ponto de entrar em colapso.
Ao verificar dentro do processo de secularização a legitimação do Estado, bem como a legalidade de seus atos, a sociedade ainda que detentora do poder[8], deve submeter-se à este Estado.
Nesse diapasão, trazemos as contribuições de Hobbes e Maquiavel, que tratam da ruptura do estado com a igreja e sobre um novo contrato social, onde o Estado Moderno vai sendo moldado na perspectiva de direitos e deveres em que a figura estatal se torna legítimo para atuar em prol da coletividade, impondo-lhe os mandamentos necessários para o bem-estar social.
Essa prerrogativa (dever de obediência), sofre impacto a partir da construção teórica de Thoreau, a desobediência civil, alicerçada nas ideias anárquicas individualistas, quando diz ser a Lei moral do indivíduo que deve prevalecer à autoridade estatal e seus mandamentos legítimos.
Dada a importância do assunto, uma vez que afeta diretamente os direitos e deveres do cidadão, as liberdades públicas tornam-se alvo de diversas discussões e conflitos, este trabalho acadêmico se atém a questionamentos essenciais, a fim de auferir a possibilidade de (de)limitação destas liberdades para que se evite um colapso social, onde os direitos individuais se tornam maiores que os coletivos ou até mesmo o único buscado pelo cidadão.
Nesse sentido, a tentativa de superar o sistema de ponderação de princípios, visto que não satisfazem por completo as necessidades contemporâneas sociais e de direito, a partir da limitação das liberdades (princípios) em cada caso concreto, foi se mostrando inviável, pois a atuação bilateral imprescindível a esta limitação é prejudicada, como já mencionado, pelos ideais enraizados do individualismo.
Uma sociedade em que os indivíduos são ensimesmados condenam-na ao anarquismo social, não progride, mas regride a tal ponto que em determinado momento certamente entrará em colapso.
A Era dos direitos tornou-se um problema inimaginável, posto que os ditos direitos, leia-se, liberdades públicas se tornaram maiores do que os deveres, maiores que os direitos de outrem.
Desse modo, a desobediência civil que, mesmo sendo um instituto legítimo, acaba por estar inserida na extrema linde para um anarquismo social, onde o autogoverno do homem pode significar a síncope própria e da massa.
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[1] A obra teve grande repercussão na Europa pela sua proibição e inclusão no Index librorum prohibitorum, índice de livros proibidos da Igreja Católica, editado em 1559. www.sabedoriapolitica.com.br
[2] Tradução Livre: “Ele vivia o dia, não sobrecarregado e mortificado pela sua memória. Se ele lhe trouxesse no dia anterior uma nova proposição, hoje lhe traria outra não menos revolucionária. Um homem muito diligente e determinado, como todos os homens altamente organizados, de grande valor em seu tempo, ele parecia o único homem de lazer na cidade, sempre pronto para qualquer excursão que prometesse algo bom, ou para uma conversa prolongada até tarde da noite.”
[3] A Peça Teatral “Antígona”, do dramaturgo Sófocles trata-se de uma tragédia grega que aborda diversas questões e, entre elas, discutiu-se sobre a obrigação de obedecer ou não às leis impostas pelo Estado. Nela, Antígona descobre que um dos seus irmãos que foi morto na guerra pelo Trono de Tebas, teve seu sepultamento negado. O novo soberano, Creontes, determinou que o corpo de Polinices ficasse exposto às aves. Ante essa situação, Antígona decide desobedecer ao decreto de Creontes e dá ao seu irmão um sepultamento digno.
[4]A Pirâmide de Kelsen dispõe sobre a validade da norma por uma norma anterior e superior, devendo todas as normas estarem fundadas nesta.
[5]A obra escrita em 1849 por Henry David Thoreau foi inicialmente intitulada de “Resistência ao Governo Civil” e, mais tarde, foi renomeada passando a chamar-se “Desobediência Civil”.
[7] Na teoria do filósofo, Thomas Hobbes vai dizer que o Homem é essencialmente mau e, por isso, o Estado se faz necessário para frear esse ser “anti social” e, para tanto, é preciso estabelecer, tanto vertical como horizontalmente, um contrato social para ordenar o convívio entre os indivíduos e entre as massas.
Bacharel em Direito pela Faculdade Imaculada Conceição do Recife - FICR. Pós-graduanda em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MONTEIRO, Maria Teresa Magalhães. Desobediência civil: uma linha tênue entre as liberdades públicas e o anarquismo social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2020, 04:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55971/desobedincia-civil-uma-linha-tnue-entre-as-liberdades-pblicas-e-o-anarquismo-social. Acesso em: 22 nov 2024.
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