Em 2003 foi editada pela Unesco em Paris, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 5.753, de 12 de abril de 2006, estabelecendo ações internacionais para a preservação dos bens culturais globais que formam a herança cultural da humanidade.
A convenção supracitada define o patrimônio cultural imaterial em seu artigo 2º, como sendo: “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados” a um grupo que o transmite de geração em geração, criando um sentimento de identidade e continuidade a sua história, à diversidade cultural e à criatividade humana.
Na segunda parte do artigo supracitado há exemplos desse tipo bens, quais sejam: a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma; “b) expressões artísticas; c) práticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais. ”
O Decreto nº 3.551, de 04 de agosto de 2000, no artigo 1º determinou o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, em um dos livros de tomo, a depender se sua classificação, são eles: dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão, dos Lugares.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 (CF) no artigo 216 define que o patrimônio cultural brasileiro é formado pelo conjunto de “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, e são incluídos entre esses bens “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
A Unesco inscreveu em sua Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, os seguintes bens brasileiros: Roda de Capoeira, Círio de Nazaré: procissão da imagem de Nossa Senhora de Nazaré na cidade de Belém - PA, Frevo: arte do espetáculo do carnaval de Recife, Yaokwa, ritual do povo enawene nawe para a manutenção da ordem social e cósmica, Museu vivo do Fandango, as expressões orais e gráficas dos Wajapis, Samba de roda do Recôncavo Baiano.
2. Patrimônio cultural e saúde
O homem se relaciona com o patrimônio cultural de diversas formas, a título de exemplo: (i) como instrumento para concretização de um costume, (ii) como expectador atribuindo significações e sentimentos a materialidade que lhe está sendo apresentada.
Com base nisso, Emanuel Lima (2017, p. 404) defende que o direito deve reconhecer que a etnosfera de um bem jurídico a ser tutelado eis que possui um valor per se, por ser diversidade cultural em si, que ganha contorno de bem imaterial, podendo ser tutelada de forma direta “com o reconhecimento de que a etnodiversidade possui um valor intrínseco” e de forma indireta “mediante a proteção ao direito à identidade étnica”.
A identidade social de um povo é formada por meio do arquetípico da estética daquela determinada população, produzindo imagens com as quais os membros se identificam de acordo com as construções sociais de gênero.
Em uma perspectiva sociológica, Stuart Hall (2003, p. 17) entende que a identidade cultural constitutiva de nosso eu mais interior é fixada no momento do nascimento, como parte da natureza, sendo impressa por meio da linhagem genética e parentesco.
A ciência do direito vem para preservar essa diversidade cultural, onde os governos passam a reconhecer como patrimônio cultural bens imateriais e, a legislar no sentido de reconhecer e proteger os povos originários, conhecimento tradicional, língua, costumes, festas, dentre outras práticas que possuam conteúdo de uma semântica universal.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos que estabelece, em seu artigo 27°, 1, que “toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. ”
No Brasil, o patrimônio cultural imaterial é tutelado pelo meio ambiente cultural no plano constitucional, pois “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação sob qualquer forma, processo ou veículo (art. 220 da CF)”, que esteja destinado “a satisfazer suas necessidades dentro de um padrão cultural vinculado à sua dignidade (art. 1º, III, da CF)” carece da “tutela jurídica do meio ambiente cultural (arts. 215 e 216 da CF).” (FIORILLO, 2013, p. 52)
2.1 O conhecimento tradicional indígena como identidade cultural
O conhecimento tradicional associado sobre a biodiversidade de um determinado local contribui, para transferência de conhecimentos sobre elementos da região, ficando a cargo do curandeiro a transmissão da tradição para um aprendiz, onde o conhecimento pode ser ampliado e transmitido entre as gerações formando a identidade do povo.
Os indígenas da tribo enawene nawe vivem às margens do Rio Juruena, nas florestas fluviais da Amazônia meridional, realizam na época da seca o ritual Yaokwa, “para prestar homenagem aos espíritos e garantir a manutenção da ordem cósmica e da ordem social entre seus diferentes clãs”.(UNESCO, 2017, online)
O ritual combina os conhecimentos teóricos e práticos sobre a agricultura, o tratamento de alimentos, relacionando a biodiversidade local a uma complexa cosmologia simbólica, o artesanato e a construção de casas e diques para a pesca, fazendo uma interação harmônica entre sociedade, cultura e natureza, tendo o ritual sido reconhecido patrimônio imaterial reconhecido pela Unesco. (UNESCO, 2017, online)
A perda da identidade cultural tem sido apontada como fator de desencadeamento de doenças psicológicas como ansiedade, depressão e suicídio na população indígena.
O Ministério da Saúde registrou entre 2011 e 2016, 62.804 mortes por suicídio, na comparação entre raça/cor, a “taxa de mortalidade entre os índios é quase três vezes maior (15,2) do que o registrado entre os brancos (5,9) e negros (4,7)”. (MINISTÉRIO DA SAUDE, 2017, online)
No caso dos indígenas, desde a colonização sofrearam “discriminação encoberta em um racismo velado das sociedades nacionais”, esse subjulgamento fez com que os pais fossem “obrigados a pressionar seus filhos aprender a língua majoritária e a viverem como pessoas das cidades urbanas”. (MORI, 2017, p. 102)
A antropóloga Lúcia Helena Rangel responsável pela elaboração do Relatório Anual de Violência contra os Povos Indígenas, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), aponta que os principais gatilhos para o suicídio entre indígenas são o racismo, as pressões sociais e as limitações de território motivadas por conflitos de terra. (FACHIN, 2018, online)
O jornalista Bruno Manso ao visitar São Gabriel da Cachoeira observou que as migrações vêm provocando certo desconforto cultural aos índios, relatando ter conhecido “um padre indígena, que usava batina, cocar e fazia paralelos inteligentes entre a cultura indígena e o cristianismo”, “o exército era formado por índios, os mais aptos a se embrenhar pelo mato”, “nos hospitais, havia pajés que trabalhavam com médicos para enfrentar a tuberculose”. (MANSO, 2014, online)
Citado jornalista, observou, ainda que “a cultura rural dos índios muitas vezes é menosprezada e ridicularizada, já que desvinculada dos valores universais do crédito e do consumo levado a todos pela televisão e internet”. (MANSO, 2014, online)
Da experiência acima, extraímos que o indígena se encontra em conflito com a sociedade, eis que busca o seu pertencimento e reconhecimento como sendo de um determinado grupo ante seus atributos culturais imateriais.
A cultura de um povo torna-se um “objeto do direito intrínseco aos direitos fundamentais” do cidadão, ante a sua integração, o que lhe confere status de bem que passa a ser tutelado. (D’ISEP, 2010, p. 65)
Embora, a Constituição Federal no artigo 231 reconheça os direitos básicos dos povos indígenas, “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
O ato suicida vem sendo adotado como uma manifestação, para demonstrar que o indígena não está em harmonia com o meio, na busca de um sentido de identidade, sendo que o jovem enfrenta o conflito tanto sua experiência passada quanto suas possibilidades futuras (GRUBITS, FREIRE e NORIEGA, 2011, online)
Émile Durkheim (1977, p. 50), entende que o fator determinante do suicídio está relacionado ao grau de integração de um indivíduo a um grupo social, sendo esse dividido em três espécies: (i) o suicídio egoísta praticado pelo indivíduo que não está integrado a um grupo social, (ii) o suicídio altruísta praticado no intuito de se sacrificar pelo bem do grupo (iii) o suicídio anômico que é cometido por indivíduos que vivem em uma sociedade em crise.
Neury José Botega (2007, online), ao estudar o suicídio concluiu que apesar dele “envolver questões socioculturais, genéticas, psicodinâmicas, filosófico-existenciais e ambientais, na quase totalidade dos casos um transtorno mental encontra-se presente”.
Em suma, os indígenas atualmente passam por diversos conflitos, tais como: a privação de praticar e revitalizar suas tradições e costumes culturais, a proximidade com a sociedade e a imposição de nova cultura, delimitação territorial das reservas, a poluição do meio ambiente, imposição de novas religiões, os fazem perdeu seus referenciais, levando os a um conflito interior pela ausência de identidade, que culmina na pratica de suicídio.
2.2 A saúde da população indígena
A Organização Mundial de Saúde (OMS) foi criada em 1948 como uma agência especializada em saúde pública, consta em sua Constituição a definição de saúde de uma forma positiva como a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social e, o conceito negativo de ausência de doença.
A atenção à saúde dos povos indígenas brasileiros é um subsistema vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS), implantada pela Lei nº 9.836 de 23 de setembro de 1999 pautada na ideia do direito à diferença e do multiculturalismo, comtemplando praticas específicas de atenção à saúde da biomedicina, observado os costumes das comunidades indígenas.
Ocorre que, na pratica, o sistema se mostra falho, eis que há uma falta de profissionais disponíveis para trabalhar em área indígena, por conta da distância do perímetro urbano e dificuldade de acesso as regiões da comunidade.
Destaca-se que, existe a psiquiatria transcultural, uma área da medicina que se concentra no tratamento do “desconforto” mental, que busca entender o impacto das dimensões psicológicas, comportamentais e socioculturais associadas a doença.
O suicido é um problema de saúde pública que envolve ordens psicológicas, sendo necessário construir e implementar estratégias de prevenção por meio das políticas públicas no Brasil voltadas para promoção da saúde da população indígena, além de aumentar o poder de fiscalização e polícia nas regiões de demarcação, a fim de evitar conflitos.
Assim, as expressões de património imaterial, sejam tradições e experiências orais, linguagem; artes cênicas, eventos sociais, rituais e festivos, conhecimentos e usos relacionados com a natureza e o universo; técnicas artesanais tradicionais, podem ser entendidas como uma herança que é transmitida de geração em geração, sendo recriada por comunidades e grupos em função de seu ambiente, cria um senso de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito pela diversidade cultural.
Conclusão
A proposta deste estudo foi demonstrar como as ações e omissões do homem com o patrimônio cultural imaterial impactam na saúde mental dos seres humanos, se fazendo necessário implementar políticas públicas de preservação.
No que tange do patrimônio cultural imaterial com as doenças mentais, observa-se o impacto dos conceitos atribuídos por uma determinada sociedade sobre um povo, onde a normalidade costuma ser um conceito multidimensional e, aos indivíduos que não se encaixam nela passam a vivenciar conflitos interpessoais, o que desestabiliza a psique do indivíduo, haja vista que a saúde mental depende de uma série de fatores biológicos, ambientais e socioeconômicos.
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Especialista em Contratos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Advogada.
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