RESUMO: O presente trabalho busca fazer uma análise da polêmica existente no direito sucessório quando se tem um caso de multiparentalidade, concluindo pela possibilidade de ocorrência da multi-hereditariedade. Para esclarecer a questão, o fenômeno da multiparentalidade será detalhadamente analisado, trazendo sua possibilidade no ordenamento jurídico, seus princípios conformadores e as consequências jurídicas oriundas do seu reconhecimento. Decisões judiciais e entendimentos doutrinários serão colacionados, mostrando-se as contradições de ideias concernentes à possibilidade ou não de um filho participar da sucessão de seu pai biológico e socioafetivo, concomitantemente. Ao final, será apresentado um caso concreto relacionado à paternidade socioafetiva e à multiparentalidade, aliado a questionamentos que corriqueiramente surgem diante da situação. Concluir-se-á pela possibilidade de um filho participar de duas heranças, a do pai biológico e a do pai socioafetivo.
PALAVRAS-CHAVE: Filiação. Paternidade socioafetiva. Multiparentalidade. Efeitos da multiparentalidade. Divergência judicial e doutrinária. Multi-hereditariedade.
ABSTRACT: This paper seeks to make an analysis of the controversy existing in the inheritance when it is a case of multiparentality, concluding for the possibility of occurrence of multi-heredity. For the question to be clarified, the phenomenon of multiparentality will be analyzed in detail, bringing its possibility in legal order, his fundamentals principles and the legal consequences arising from its recognition. Judgments and doctrinal understandings will be collated, showing the contradictions of ideas concerning the possibility or not of a child participate in the succession of their biological and socio-affective father concomitantly. In the end, a concrete case will be developed related to socio-affective paternity and multiparentality, allied to questions that usually arise in the face of the situation. It will be concluded that a son may participate in two inheritances, a biological father and a socio-affective father.
KEYWORDS: Filiation. Socio-affective filiation. Multiparentality. Effects of multiparentality. Doctrinal and jurisprudential divergence. Multi-heredit.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Multiparentalidade: 2.1. A possibilidade de dupla paternidade no Ordenamento Jurídico; 2.2. Princípios consagradores da multiparentalidade: 2.2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana; 2.2.2. Princípio da busca da felicidade; 2.2.3. Princípio do afeto; 2.2.4. Princípio da igualdade entre filhos; 2.2.5. Princípio do maior interesse da criança e do adolescente; 2.2.6. Princípio da paternidade responsável; 2.3. Efeitos do reconhecimento da multiparentalidade. 3. Sucessão na multiparentalidade: 3.1. Reflexos da multiparentalidade no direito sucessório; 3.2. Caso concreto: um filho e dois pais, um biológico e outro socioafetivo. Em qual sucessão ele será herdeiro?. 4. Conclusões. 5. Referências.
Antes da Constituição de 1988, a filiação era tratada de forma discriminatória, isto é, os filhos eram classificados em legítimos e ilegítimos, sendo os primeiros originados dos pais unidos pelo casamento, portanto, merecedores de tutela do Estado. Já os ilegítimos eram aqueles nascidos fora do casamento, de relações extramatrimoniais, não tendo direitos garantidos pelo Código Civil e nem sequer podendo ter sua paternidade reconhecida.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, não restou mais qualquer distinção entre os tipos de filiação, haja vista a consagração do princípio da igualdade entre os filhos disposto no parágrafo 6º, do art. 227.
Apesar de o ordenamento jurídico pátrio não trazer regulamentação expressa acerca da afetividade, mesmo ela estando presente na realidade das famílias brasileiras, ela é capaz de gerar efeitos de cunho pessoal e patrimonial. Como as relações familiares devem se basear no amor, no carinho e na compreensão, esse princípio da afetividade ganhou destaque nos dias atuais, sobretudo ao nortear as relações entre pais e filhos de criação (filiação socioafetiva).
Diante disso, hoje é possível se falar no reconhecimento do fenômeno da multiparentalidade, situação em que o filho tem mais de um pai ou mãe. É preciso que haja reciprocidade no seio familiar, ou seja, assim como o filho deve reconhecer o padrasto como pai, este também deve reconhecer aquele como seu filho. Portanto, reconhecida a filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, não existe mais óbice legal para o reconhecimento da multiparentalidade e, consequentemente, são devidos todos os direitos e deveres inerentes à filiação ao filho multiparental, bem como o direito ao recebimento da herança na qualidade de herdeiro legítimo e necessário.
Em que pese o julgamento do STF no Recurso Extraordinário 898.060/SC, admitindo que a filiação seja reconhecida por vínculos biológicos e socioafetivos simultaneamtente, o tema ainda é polêmico na doutrina e na jurisprudência. Isso porque os efeitos jurídicos gerados por esse instituto não foram totalmente delimitados e, além disso, são irrevogáveis e não se limitam só ao âmbito do direito familiar, mas se estendem por todo o ordenamento jurídico civilista.
No que concerne ao direito sucessório na multiparentalidade, será demonstrado que não se pode aplicar uma fórmula predeterminada de forma indistinta. O escopo deste trabalho é afirmar que cada caso deve ser analisado detidamente, mas que é plenamente possível os vínculos multiparentais concederem aos seus integrantes o direito legítimo à herança, haja vista que se encontram presentes na multiparentalidade todos os requisitos legais para a concessão da herança aos herdeiros na qualidade de legítimos e necessários.
Diante de todos os tipos de família existentes na sociedade – nem todos previstos expressamente no ordenamento jurídico –, espera-se que, independentemente de sua conformação, a família seja eudemonista. Em outras palavras, espera-se que seu objetivo seja a felicidade e a realização pessoal de seus membros, em consonância com sua função social que é proteger e promover a dignidade daqueles.
O objetivo desta seção é elucidar temas importantes acerca da multiparentalidade, como a sua possibilidade no Ordenamento Jurídico vigente, os princípios que lhe dão embasamento e os efeitos jurídicos do seu reconhecimento. Será feita, ainda, uma introdução ao principal tema a ser discutido neste trabalho, qual seja, os efeitos jurídicos da multiparentalidade concernentes ao direito sucessório.
A multiparentalidade pode ser entendida como sendo:
A possibilidade de uma pessoa possuir mais de um pai e/ou mais de uma mãe, simultaneamente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles. Inclusive, no que tange a eventual pedido de alimentos e herança de ambos os pais (ZAMATARO, 2013).
Em um primeiro momento, a discussão que surge é se a paternidade biológica se sobrepõe ou não a socioafetiva. Todavia, já há entendimento, inclusive jurisprudencial, de que é possível a soma de filiação, sem qualquer hierarquia entre o afeto e a biologia, ou seja, a possibilidade de uma pessoa ter mais de um pai e/ou mais de uma mãe com reconhecimento jurídico legal, restando assim configurada a multiparentalidade.
A questão da afetividade, mormente da possibilidade e os critérios do reconhecimento múltiplo da parentalidade, ainda é um tema não expressamente disciplinado no ordenamento jurídico brasileiro, embora encontre respaldo na jurisprudência e na doutrina.
Durante muitos anos, o entendimento quase unânime era o de que não havia a possibilidade de coexistência entre dois critérios de reconhecimento de filiação, ou seja, o julgador deveria optar pelo reconhecimento de apenas um critério de paternidade, biológico ou socioafetivo, para fins de registro civil e geração de efeitos pessoais e patrimoniais. Nesses casos, verificou-se certa preferência dos doutrinadores e juristas pelo reconhecimento da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica.
Contudo, com o passar do tempo, tendo em vista que a prevalência de uma filiação sobre a outra nem sempre é a medida mais justa, adequada e proporcional, passou-se a discutir a possibilidade da ocorrência da multiparentalidade, com todas as consequências decorrentes do reconhecimento da filiação.
Contribuição fundamental para tal entendimento foi encontrada no julgado do STF do tema de Repercussão Geral 622, sendo a tese fixada no dia 22 de setembro de 2016. Ao deliberar sobre o mérito da questão, o STF fixou a seguinte tese:
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, fixou tese nos seguintes termos: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios", vencidos, em parte, os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio. Ausente, justificadamente, o Ministro Roberto Barroso, participando do encontro de juízes de Supremas Cortes, denominado Global Constitutionalism Seminar, na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 22.09.2016.
(BRASIL, STF, RE 898060, Rel. Luiz Fux, Julgado em 22/09/2016).
A Suprema Corte, dessa forma, apontou para a possibilidade do reconhecimento concomitante da paternidade socioafetiva e da paternidade biológica, não trazendo hierarquia nem prevalência entre essas modalidades de vínculo parental.
Com a fixação da referida tese e a consolidação da ideia da possibilidade da multiparentalidade, alguns aspectos se mostraram relevantes, como: a) a afetividade passou a ser reconhecida juridicamente, sendo princípio inerente à ordem civil-constitucional brasileira; b) a paternidade socioafetiva firmou-se como forma de parentesco civil; e c) o vínculo socioafetivo se mostrou em igual grau de hierarquia jurídica com o vínculo biológico.
Ainda concernente ao julgamento do STF no Recurso Extraordinário 898060/SC, caso paradigmático que fixou a referida tese e que balizará as futuras relações parentais, o Ministro Luiz Fux (2016), relator do processo, disse que a proteção jurídica dispendida ao vínculo socioafetivo de parentalidade deve ser igual àquela empregada na filiação biológica. Da mesma forma, ele dá uma lição ao dizer que:
Não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário (BRASIL, STF, RE 898060, Rel. Luiz Fux, Julgado em 22/09/2016).
Nesse mesmo sentido, Rodrigo Janot, Procurador Geral da República (ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO IBDFAM, 2016), em seu parecer diz que o direito é que deve se adequar à realidade social, e não o contrário. Com isso, ele quis dizer que não é o Direito que vai conceituar o instituto da família, impondo determinado padrão de entidade familiar. São as famílias, em suas múltiplas configurações, é que definirão os diferentes modelos, sendo que todos devem ser protegidos pelo ordenamento jurídico. Diante dessa ideia, a Procuradoria Geral da República propõe que é possível sim o reconhecimento jurídico da existência de mais de um vínculo parental em relação a um mesmo sujeito.
Diante de tudo que foi exposto, é imperioso destacar quais são os critérios a serem analisados no momento do reconhecimento da multiparentalidade. É claro que não são critérios absolutos a serem aplicados indiscriminadamente a todos os casos, mas são diretrizes que nortearão os aplicadores do direito no momento de verificação da ocorrência ou não da multiparentalidade.
O primeiro critério é a legitimidade para requerer o reconhecimento da multiparentalidade. A partir de uma interpretação literal do ordenamento jurídico, pode-se dizer que somente o filho tem o condão de requerer a investigação de paternidade e o reconhecimento do seu estado filiatório. Isso porque o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente assim dispõe: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.” (BRASIL, 2013, p. 1.045).
Ainda sobre o reconhecimento da paternidade, o art. 1.606 do Código Civil de 2002 traz o segundo enunciado: “A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.” (BRASIL, 2014, p. 351).
Todavia, não é esse o entendimento que vem prevalecendo na jurisprudência. Tem-se entendido que é legitimado para pleitear o reconhecimento do estado de filiação/paternidade qualquer um dos sujeitos diretamente envolvidos na relação parental, seja o pai biológico, o pai afetivo ou o filho.
Outro critério que pode ser levado em consideração para o reconhecimento da multiparentalidade é a presença do critério biológico e/ou afetivo na segunda filiação que se busca reconhecer. Isso quer dizer que tanto o filho que quer ver reconhecida outra paternidade, quanto aquele que quer ter reconhecida sua condição de pai de pessoa que já tem outro pai registrado na certidão de nascimento devem comprovar o elo biológico e/ou afetivo.
Por derradeiro, o terceiro e último critério é a efetivação das garantias e dos princípios constitucionais relacionados ao Direito de Família. É necessário comprovar que o reconhecimento da multiparentalidade, naquele caso concreto, é a solução que dará maior efetividade aos princípios constitucionais, especialmente ao do melhor interesse da criança e do adolescente e de sua proteção integral.
Concluindo, o fato de o ordenamento jurídico brasileiro ser omisso quanto ao reconhecimento dos mais diversos arranjos familiares não pode servir de escusa para que situações de multiparentalidade não sejam protegidas. Logo, agora é possível afirmar que pessoas tenham vários pais.
2.2. PRINCÍPIOS CONSAGRADORES DA MULTIPARENTALIDADE
Como dito anteriormente, a legislação brasileira não traz expressamente a possibilidade do reconhecimento múltiplo da paternidade. Assim, é imprescindível analisar o sistema legislativo como um todo, dando atenção especial aos princípios e às disposições da Constituição Federal, a fim de se fazer uma releitura do Código Civil vigente – é o chamado Direito Civil Constitucional –, especialmente no que se refere ao direito de filiação.
Nos dias atuais, a Constituição desloca-se para o ápice do ordenamento jurídico, indicando os novos caminhos da compreensão da legislação civil e do direito privado. Dessa forma, não se pode negar a vinculação do Juiz e dos demais órgãos estatais ao texto constitucional, bem como a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).
Diante da simbiose entre o direito privado e o direito público, os institutos privados passaram a ser analisados a partir da Constituição, conforme se verá a seguir com a principiologia a ser seguida pelo Direito de Família.
2.2.1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Os princípios da dignidade humana e da afetividade efetivam a multiparentalidade, reconhecendo no campo jurídico a filiação (leia-se amor, afeto e atenção) que já existe no campo fático.
Assumindo caráter de superprincípio do ordenamento, a dignidade humana passa a exercer papel fundamental nesse contexto, pois é qualidade intrínseca a todo e qualquer ser humano, independentemente de qualquer condição. No campo da família, a dignidade humana exige a superação de óbices impostos por arranjos legais ao pleno desenvolvimento dos formatos de família construídos pelos próprios indivíduos em suas relações afetivas interpessoais.
O pluralismo das entidades familiares foi uma vertente alcançada graças ao princípio da dignidade humana. Ou seja, a Constituição Federal de 1988, ao consagrar esse princípio como o norteador das relações sociais, buscou acabar com o preconceito e dar proteção àquelas entidades familiares que estavam à margem da sociedade. Assim, novos tipos de arranjos familiares foram surgindo, antes não reconhecidos legitimamente pelo Estado Democrático de Direito, e consequentemente surge a multiparentalidade resultante da paternidade socioafetiva.
Portanto, no que se refere ao reconhecimento da multiparentalidade, percebe-se uma estreita ligação com a maior parte dos princípios constitucionais aplicáveis ao Direito das Famílias, sobretudo a dignidade da pessoa humana.
2.2.2. PRINCÍPIO DA BUSCA DA FELICIDADE
O princípio da busca da felicidade procura tratar o ser humano como um fim em si mesmo, e não como um meio (objeto). Referido mandado de otimização está intrinsecamente conectado com a dignidade humana, dela procedendo ao mesmo passo que constitui o seu âmago.
Quando se fala que há um dever de respeito decorrente da dignidade da pessoa humana, quer dizer que o Estado e os particulares não podem adotar medidas que violem a dignidade humana. Dessa forma, utilizando-se mais uma vez o voto do Ministro Luiz Fux (2016), proferido no RE 898.060/SC, as capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos não podem ser reconhecidas isoladamente, devendo o Estado, também, deixar de escolher as finalidades a serem alcançadas pelo ser humano nos mais diversos ramos da vida. Logo, “nenhum arranjo político é capaz de prover bem-estar social em caso de sobreposição de vontades coletivas a objetivos individuais” (BRASIL, STF, RE 898060, Rel. Luiz Fux, Julgado em 22/09/2016).
Trazendo essa ideia para o Direito de Família, o direito à busca da felicidade é uma proteção conferida ao sujeito frente ao Estado, quando este tenta adequar a realidade social familiar em modelos pré-concebidos de família pela lei.
Portanto, como já foi exposto no presente estudo, o direito deve servir às vontades e necessidades das pessoas, não o contrário.
O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de invocar o direito à busca da felicidade, como se colhe dos seguintes arestos:
O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. - Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.” (BRASIL, STF, RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-8-2011, DJe de 26/08/2011).
“Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da ‘dignidade da pessoa humana’: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual.” (BRASIL, STF, ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011).
Assim, tanto a dignidade humana quanto o direito à busca da felicidade mostram que indivíduos são senhores dos seus próprios destinos, condutas e modos de vida, sendo vedado a legisladores e governantes pretender submetê-los aos seus próprios projetos.
A afetividade é a principal razão do desenvolvimento psicológico, físico e emocional. A Constituição Federal, ao aceitar os mais diversos arranjos como entidade familiar e proclamar a igualdade entre os filhos (antes chamados de “legítimos” ou “ilegítimos”), quis, ainda que implicitamente, garantir valoração jurídica ao afeto.
É certo dizer que o princípio do afeto, implicitamente consagrado pela Constituição Federal de 1988, representa na atualidade o princípio norteador do Direito das Famílias. Em consequência dessa nova realidade, os critérios para o estabelecimento da filiação também devem ser revistos, adequando-os aos princípios constitucionais. A paternidade, diante da atual carga valorativa da dignidade da pessoa humana, do pluralismo das entidades familiares, do direito à busca da felicidade e, sobretudo, do afeto, não pode ser reconhecida com base exclusivamente na aplicação de regras impostas na letra da lei, tendo em vista que nem todos os conflitos se amoldam aos casos previstos pelo legislador.
Como explica Flavio Tartuce:
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade humana e da solidariedade. (TARTUCE, 2015, p.1116).
Nesse ponto, conclui-se que a filiação socioafetiva deve ser aceita, tendo em vista o princípio da afetividade, e que o filho biológico é igual ao afetivo, pelo princípio da igualdade das filiações.
2.2.4. PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE FILHOS
Segundo esse princípio, não pode haver prevalência de um critério de determinação da parentalidade sobre o outro quando constatado que, ao mesmo tempo, uma pessoa se sinta filho de duas pessoas (uma pelo critério afetivo e outra pelo critério biológico, por exemplo). Aceitando o princípio do pluralismo das entidades familiares, os filhos, ainda que não concebidos na constância de um casamento, passam a ter tratamento igualitário em respeito à sua dignidade como pessoa.
A Carta Magna enfatizou que espécies de filiação dissociadas do matrimônio entre os pais merecem equivalente tutela diante da lei, sendo vedada discriminação e, portanto, qualquer tipo de hierarquia entre elas. O parágrafo 6º do art. 227 é assertivo ao determinar que: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (BRASIL, 2014, p. 132).
Um exemplo da aplicação desse princípio pode ser visto na adoção. Ela é capaz de estabelecer um vínculo parental na ausência de casamento ou liame sanguíneo, bastando o amor entre os indivíduos que se recebem como pais e filhos.
Assim, tem-se admitido a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade, pois vai ao encontro do princípio da dignidade da pessoa humana, da pluralidade das entidades familiares, do afeto e da igualdade das filiações.
2.2.5. PRINCÍPIO DO MAIOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
O reconhecimento da multiparentalidade está diretamente relacionado ao princípio do maior interesse da criança e do adolescente. Isso porque:
Se a ideia do reconhecimento da multiparentalidade é, de alguma forma, complementar à condição humana tridimensional – afetiva, biológica, ontológica –, o reconhecimento de uma segunda ou mais paternidades/maternidades não tem razão de ser se vier a prejudicar ou diminuir a efetividade dos princípios constitucionais, especialmente quando está em jogo o interesse da criança ou do adolescente. (SCHWERZ, 2015, p. 213).
O filho deixa de ser considerado objeto para ser alçado a sujeito de direito, ou seja, a pessoa humana merecedora de tutela do ordenamento jurídico. Em reforço à proteção do melhor interesse do menor, o art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente assim dispõe:
Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (BRASIL, 2013, p. 1.043).
Logo, a criança, sendo parte mais frágil na busca de seus direitos e interesses, precisa ser amparada pelo poder estatal, que tem o dever de buscar, independentemente de qualquer outro, o melhor interesse da criança e do adolescente.
O reconhecimento múltiplo da parentalidade, mesmo que de difícil compreensão no campo abstrato de análise, pode ser a medida mais adequada e justa aos interesses das partes envolvidas, quando analisado sob a perspectiva do caso concreto. Portanto, diante das peculiaridades de cada caso, deve o julgador sempre buscar promover a almejada justiça e a preservação do melhor interesse da criança.
2.2.6. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL
O princípio da paternidade responsável está consagrado expressamente no art. 226, parágrafo 7º da Constituição Federal:
Art. 226, §7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (BRASIL, 2014, p. 132).
Esse princípio aduz para que a responsabilidade seja observada tanto na formação, como na manutenção da família. Em outras palavras, a responsabilidade dos pais deve começar na concepção e perdurar até que seja necessário e justificável o acompanhamento dos filhos pelos pais.
Ser pai é muito mais do que apenas gerar o filho, mas sim criar, dar amor, afeto, carinho, educação, atenção etc. Enfim, ser pai é ser sujeito de direitos e deveres relativamente à pessoa dos filhos.
2.3. EFEITOS DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
A multiparentalidade, conforme dito ao longo de todo o trabalho, confere a possibilidade de o filho conviver com a paternidade biológica em conjunto com a socioafetiva. Dessa forma, ela traz para o mundo do direito o que ocorre no mundo dos fatos.
Ao se admitir a possibilidade de ocorrência da multiparentalidade, essa passa a trazer efeitos na vida familiar e no campo jurídico. Os efeitos jurídicos são diversos, podendo ser divididos em pessoais e patrimoniais. De antemão, é importante esclarecer que o efeito desse novo fenômeno no que tange ao direito sucessório será analisado no capítulo seguinte, tendo em vista ser o tema central do presente estudo.
O parentesco é um dos efeitos do reconhecimento da multiparentalidade. De acordo com Karina Azevedo Simões de Abreu (2015), embora a relação familiar principal se dê entre pais e filhos, a criação do vínculo se estende aos demais graus e linhas de parentesco. O filho, então, teria parentesco em linhas retas e colateral (até o quarto grau) com a família do pai afetivo e com a família do pai biológico, passando a produzir todos os efeitos patrimoniais e jurídicos pertinentes.
Outro efeito de importante valor diz respeito ao nome e ao registro público. O Tribunal de Justiça de São Paulo, julgando de forma inédita em 2012, deferiu pedido para acrescentar na certidão de nascimento de jovem de 19 anos o nome da mãe socioafetiva, sem ser retirado o nome da mãe biológica. A ementa do julgado assim diz:
MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido.”
(SÃO PAULO, TJ, APL: 64222620118260286, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 14/08/2012).
Reconhecida a multiparentalidade, o filho pode ter seu nome composto pelo prenome e o apelido de família de todos os pais, sem qualquer impedimento legal. Tal entendimento já foi fruto de decisão judicial:
“DECISÃO. Diante do exposto e por tudo o que mais dos autos consta, embasado no artigo 227, § 5º, da Constituição Federal, combinado com o artigo 170 e artigos 39 e seguintes da Lei 8069/90, considerando que o adolescente A. M. F, brasileiro, filho de E. F. F. e R. M. F., nascido em 16 de janeiro de 1996, registrado sob o nº XXX, folhas 24, do Livro A/10, perante o Registro Civil de B. V. Da C. -PR, estabeleceu filiação socioafetiva com o requerente, defiro o requerimento inicial, para conceder ao requerente E. A. Z. J. A adoção do adolescente A. M. F., que passará a se chamar A. M. F. Z., declarando que os vínculos se estendem também aos ascendentes do ora adotante, sendo avós paternos: E. A. Z. E Z. Z.. Transitada esta em julgado, expeça-se o mandado para inscrição no Registro Civil competente, no qual seja consignado, para além do registro do pai e mãe biológicos, o nome da adotante como pai, bem como dos ascendentes, arquivando-se esse mandado, após a complementação do registro original do adotando.”
(PARANÁ, AUTOS Nº 0038958-54.2012.8.16.0021, 2013).
Essa alteração do nome no registro civil é possível porque, além de o direito do uso do nome do pai pelo filho ser direito fundamental e não poder ser vedado, a multiparentalidade é uma forma justa de se reconhecer a paternidade e a maternidade de um filho que é amado por ambos os pais, sem que para isso necessite a exclusão de um ou de outro.
No que concerne à submissão do filho ao poder familiar e, consequentemente, à guarda do filho menor, a multiparentalidade deve ser guiada fundamentalmente pelo princípio do maior interesse da criança e do adolescente. É primordial analisar cada caso concreto. Contudo, com a evolução da realidade social das entidades familiares, é evidente que a afetividade deve sempre ser levada em consideração, sendo critério mais adequado para se analisar. Portanto, é possível dizer que os pais afetivos levam sensível vantagem em detrimento dos pais biológicos na obtenção da guarda dos filhos menores.
A jurisprudência do Tribunal de Santa Catarina confirma esse posicionamento, dizendo:
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA – PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE – MANTENÇA DA GUARDA COM O CASAL QUE VEM CRIANDO A MENOR – ARTIGOS 6º E 33 DO ECA – PEDIDO INICIAL PARCIALMENTE PROCEDENTE – ÔNUS SUCUMBENCIAIS MODIFICADOS – RECURSO PROVIDO. Tendo como foco a paternidade socioafetiva, bem como os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e do melhor interesse do menor, cabe inquirir qual bem jurídico merece ser protegido em detrimento do outro: o direito do pai biológico que pugna pela guarda da filha, cuja conduta, durante mais de três anos, foi de inércia, ou a integridade psicológica da menor, para quem a retirada do seio de seu lar, dos cuidados de quem ela considera pais, equivaleria à morte dos mesmos. Não se busca legitimar a reprovável conduta daqueles que, mesmo justificados por sentimentos nobres como o amor, perpetram inverdades, nem se quer menosprezar a vontade do pai biológico em ver sob sua guarda criança cujo sangue é composto também do seu. Mas, tendo como prisma a integridade psicológica da menor, não se pode entender como justa e razoável sua retirada de lugar que considera seu lar e com pessoas que considera seus pais, lá criada desde os primeiros dias de vida, como medida protetiva ao direito daquele que, nada obstante tenha emprestado à criança seus dados genéticos, contribuiu decisivamente para a consolidação dos laços afetivos supra-referidos”.
(SANTA CATARINA, 2006).
Por fim, os alimentos na multiparentalidade precisam ser compreendidos a partir do art. 1.696 do Código Civil de 2002, que assim dispõe: “O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.” (BRASIL, 2014, p. 356),
A obrigação alimentar é aplicada tanto ao pai biológico, quanto ao pai socioafetivo.
Portanto, seguindo o binômio possibilidade/necessidade e a reciprocidade na prestação de alimentos, é de se concluir que todos os pais poderão prestar alimentos ao filho, bem como este poderá prestar alimentos a todos os pais.
3. SUCESSÃO NA MULTIPARENTALIDADE
Esta seção final é de extrema importância, pois aborda uma temática ainda controvertida, tanto na jurisprudência quanto na doutrina. Com isso, buscar-se-á apresentar os efeitos da multiparentalidade no direito sucessório, bem como trazer um caso concreto para que toda a teoria possa ser adequada à resolução de um caso prático.
3.1. REFLEXOS DA MULTIPARENTALIDADE NO DIREITO SUCESSÓRIO
Primeiramente, deve-se partir do pressuposto de que o procedimento utilizado no direito sucessório de uma relação multiparental nada distingue daquele usado em uma família em que esse fenômeno não ocorre. O filho é herdeiro de seus pais (sejam biológicos ou afetivos) e esses herdeiros de seus filhos, além dos vínculos com os demais parentes. Desse modo, a multiparentalidade atende a todos os requisitos necessários para fazer a relação socioafetiva merecedora de herança.
O direito das sucessões traz as normas referentes à transmissão dos bens da pessoa do de cujus. A Constituição Federal de 1988 traz expressamente o direito à herança, em seu art. 5º, inciso XXX. Além disso, o Código Civil 2002 também regula essas relações, a partir do art. 1.784.
Tratando da sucessão causa mortis, esta pode ser legítima ou testamentária. Naquela, a indicação dos herdeiros e a consequente partilha dos bens se dão segundo critérios fixados pelo legislador (art. 1.786, do Código Civil de 2002: A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade). Já na sucessão testamentária – não interessando no presente estudo –, o patrimônio é distribuído por vontade expressa do falecido.
A sucessão é feita a título universal, isto é, transfere-se todos os bens do de cujus, quais sejam: ativo, passivo, direitos e obrigações. É imperioso compreender o princípio da saisine, que diz que a sucessão ocorre no momento da morte do de cujus. Assim, nesse momento, a totalidade dos bens passa, automaticamente, a pertencer aos herdeiros do falecido.
No que tange aos herdeiros legítimos, o art. 1.829 do Código Civil traz um rol taxativo e preferencial daqueles que irão suceder, conforme se expõe:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens; ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais. (BRASIL, 2014, p. 364).
A ordem de vocação sucessória prevista nesse dispositivo foi estabelecida conforme a classe da relação do parentesco, seja ele consanguíneo-biológico, seja ele por afinidade.
Além dos legítimos, o art. 1.845 do Código Civil traz um rol de herdeiros necessários, que consiste nos descendentes, ascendentes e o cônjuge. Essa classificação tem por objetivo impedir a afastabilidade deles por simples vontade do de cujus e criar uma proteção especial para certa classe de herdeiros vinculados ao autor da herança por laços de parentesco mais estreitos. Estes herdeiros necessários fazem jus à metade da herança, parte que se denomina legítima.
Voltando ao caso da multiparentalidade, o princípio da igualdade entre os filhos, estabelecido pela Constituição de 1988, é de suma importância para resolver a questão do direito sucessório. Isso porque não se pode ter qualquer tipo de discriminação relativa à filiação, ou seja, todos os filhos são herdeiros legítimos e necessários. Cristiano Farias e Nelson Rosenvald corroboram desse mesmo entendimento, veja-se:
A incidência da isonomia entre os filhos produzirá efeitos no plano patrimonial e no campo existencial. Com isso, pondo fim às discriminações impostas aos filhos adotivos, a igualdade assegura que um filho tenha o mesmo direito hereditário do outro. Ou seja, não há mais a possibilidade de imprimir tratamento diferenciado aos filhos em razão de sua origem (biológica ou afetiva) (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 133).
Portanto, hoje é muito importante assegurar a herança em igualdade de situação a todos os filhos, sejam eles concebidos na vigência do matrimônio ou não. Ainda assim, o legislador é claro ao utilizar o termo “descendentes” no art. 1.829, englobando tanto filhos (biológicos, pressupostos, afetivos, adotivos), quanto netos, bisnetos, tataranetos e assim por diante.
Quando se tem uma relação afetiva registrada ou reconhecida judicialmente e coexistente com uma relação de parentalidade biológica, tem-se reconhecida a multiparentalidade, havendo efeitos sucessórios oriundos dos dois tipos de filiação: o filho socioafetivo se torna herdeiro legítimo e necessário daquele que o reconheceu como filho. Entretanto, conforme aduz Tauã Lima Verdan Rangel:
O registro não pode afigurar como um óbice para a sua efetivação, considerando que sua função é refletir a verdade real. Logo, se a verdade real é concretizada no fato de várias pessoas exercerem funções parentais na vida dos filhos, o registro deve, imperiosamente, refletir esta realidade. Mais do que isso, não reconhecer as paternidades biológica e socioafetiva, ao mesmo tempo, com a concessão de todos os efeitos jurídicos, é negar a existência tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade humana, na proporção em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica, devendo-se, portanto, manter incólumes as duas paternidades, com o acréscimo de todos os direitos, porquanto ambas integram a trajetória da vida humana (RANGEL, 2016).
Logo, em relação ao direito sucessório, deve-se ter tantas linhas sucessórias quanto forem os pais, não havendo fundamento jurídico para tratamentos diversos e admitindo-se a ocorrência de multi-hereditariedade. Porém, é preciso observar a ressalva de não se estabelecer a multiparentalidade com vistas exclusivas para atender a interesses patrimoniais.
3.2. CASO CONCRETO: UM FILHO E DOIS PAIS, UM BIOLÓGICO E OUTRO SOCIOAFETIVO. EM QUAL SUCESSÃO ELE SERÁ HERDEIRO?
Toda a parte teórica do presente trabalho teve como escopo trazer fundamentos para que o conflito do caso concreto que se expõe a seguir pudesse vir a ser resolvido da forma mais justa e adequada diante da realidade social dos dias de hoje.
Imagine uma situação em que o filho é gerado em decorrência de relações sexuais entre mãe e pai não casados. O pai biológico, então, registrou a criança como seu filho, porém o abandonou, não dando afeto, carinho, amor e educação. Somado a isso, ainda há o fato de o pai ter se encontrado muito pouco com o menor e não ter prestado alimentos ao longo de toda sua vida, não contribuindo financeiramente para o crescimento do filho. Diante de tais acontecimentos, a mãe formou união estável com outro homem e este passou a criar o filho daquela, considerando-o como seu também. Vários anos se passaram e a relação entre o companheiro daquela mãe e seu filho ganhou fortes laços de afetividade, fazendo com que a paternidade/filiação passasse a ser considerada reciprocamente.
Pode-se inferir que surgiu uma paternidade socioafetiva, tendo em vista que o padrasto ao longo de toda sua vida, sempre educou, deu atenção, carinho, afeto e amor ao seu enteado. Além disso, sempre contribuiu financeiramente para a formação pessoal e profissional do seu agora filho.
Acontece que, tal filiação nunca foi requerida judicialmente e muito menos houve alteração no registro, vindo o filho a possuir ainda o nome do pai biológico em sua certidão de nascimento. Contudo, aos olhos da sociedade e da própria família, padrasto e enteado sempre foram pai e filho, ou seja, sempre tiveram essa relação paterno-filial, tendo a consciência de que ganharam direitos e obrigações mútuos em decorrência da relação de parentesco surgida.
Diante de tais fatos, várias perguntas passam a ser feitas, como: a) Existe uma paternidade socioafetiva? b) Está presente o fenômeno da multiparentalidade? c) Quais são os efeitos jurídicos derivados dessa relação familiar? d) O filho é herdeiro de qual pai, do biológico e/ou do socioafetivo?
Essa é uma situação bastante peculiar, mas que ocorre com certa frequência na sociedade atual.
Como foi dito ao longo de todo o trabalho, para que ocorra a paternidade socioafetiva se faz necessária a posse do estado de filho. Os critérios para essa configuração são: i) nome (nomen); ii) tratamento (tractatus); e iii) fama ou reputação (reputatio). No caso em tela, apesar de o requisito “nome” não se fazer presente a fim de constatar a ocorrência da socioafetividade, os outros requisitos estão claramente postos.
Nos últimos anos havia um entendimento consolidado na justiça brasileira de que a paternidade socioafetiva poderia superar a biológica. Vários julgados admitiam que o registro do filho, no que concerne ao pai biológico, seria cancelado a fim de prevalecer o do pai afetivo, o de criação. Todavia, a decisão do STF no Recurso Extraordinário 898060/SC abriu a possibilidade de o filho, de acordo com seu interesse, optar por manter no registro o nome dos dois pais. Assim, o princípio do maior interesse da criança e do adolescente dá margem para que o filho, querendo, possa ter mais de um pai no seu registro e, consequentemente, assumir direitos e obrigações no ramo jurídico.
O que o presente trabalho almeja é mostrar que não existe óbice por parte do ordenamento jurídico para o estabelecimento de vínculo sucessório recíproco, diante do reconhecimento de dois pais para o filho.
O reconhecimento judicial da filiação socioafetiva poderá produzir efeitos sucessórios, assim como já ocorre com a filiação biológica. Destarte, se ambos tratarem de vínculos legítimos, não há causa que justifique que um se sobreponha a outro ou o afaste, devendo, desta maneira, ambos acarretarem os mesmos efeitos jurídicos, inclusive sucessórios.
Um caso exemplar ocorreu em Santa Catarina, envolvendo a filha de uma empregada doméstica que foi criada pelos patrões em razão da morte da mãe biológica. A mãe afetiva obteve a guarda provisória da menina e a educou por toda vida, dando amor, afeto e carinho. Com a morte da mãe afetiva e consequente abertura do processo sucessório, a filha socioafetiva foi excluída da respectiva sucessão, que entrou com uma ação de reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva para todos os fins hereditários. A decisão foi unânime em reconhecer a existência de paternidade e maternidade socioafetiva. Portanto, conclui-se que a sucessão depende do vínculo de amor e afeto, e não do vínculo de parentesco.
Considerável parte da doutrina e muitos tribunais ainda relutam em reconhecer a multiparentalidade, entendendo que a admissão desse fenômeno traria muitos inconvenientes, por exemplo a possibilidade de estabelecimento da filiação apenas para atender fins patrimoniais. Dessa forma, os tribunais têm decidido pela sobreposição entre os critérios de paternidade, isto é, estão hierarquizando as modalidades de paternidade e, com isso, não há geração de efeitos sucessórios no tocante às famílias com vínculos multiparentais.
O risco de um aumento significativo de demandas sem importância, que visem exclusivamente a fins patrimoniais, deverá ser analisado com certa cautela por parte dos operadores do direito, mas não parece ser preocupante.
O parecer do Ministério Público Federal, apresentado no caso concreto julgado pelo STF em que se fixou a tese da multiparentalidade (RE 898060/SC), também trouxe esses alertas. Contudo, confiou na existência de precauções dentro do próprio sistema, afirmando que os eventuais abusos podem e devem ser controlados no caso concreto.
O Direito deve prestigiar a realidade da família e não fechar os olhos para esses institutos. É preciso tutelar as consequências jurídicas da multiparentalidade de forma idêntica ao que ocorre com a família nuclear, levando-se sempre em consideração os princípios constitucionais.
Portanto, está evidenciada a necessidade de uma reforma legislativa, a fim de tutelar com igualdade todas as famílias brasileiras e afastar as divergências hoje existentes.
4. CONCLUSÕES
Depois de conhecer afinco o instituto da multiparentalidade, coerente se faz tecer algumas conclusões a respeito da possibilidade ou não de um filho participar da sucessão, tanto do seu pai biológico, quanto do seu pai socioafetivo, respeitando, sempre, o prolongamento da discussão do tema.
No caminhar do presente estudo, constatou-se que o vínculo afetivo hoje em dia é imprescindível para a constituição dos núcleos familiares, o que faz com que tal elemento ganhe grande relevância jurídica, saindo do campo dos fatos e tendo o condão de produzir direitos e obrigações na órbita do direito.
A multiparentalidade, que é a possibilidade da múltipla filiação na qual um filho é reconhecido pelo pai biológico e, concomitantemente, pelo pai afetivo, apesar de ser um fenômeno jurídico novo, está garantida implicitamente pelo ordenamento jurídico no tocante ao reconhecimento da igualdade entre os filhos. Assim, a Constituição Federal, ao consagrar o princípio da igualdade entre os filhos, assegurou o direito de filiação a todos os filhos, independentemente desse vínculo ter se originado por meio de um critério biológico, legal, afetivo ou adotivo, sendo que todos possuem os mesmos direitos e obrigações.
O grande problema desse instituto diz respeito às questões meramente patrimoniais, em que o filho busca o reconhecimento da filiação biológica ou socioafetiva apenas para ter ganhos econômicos. Algumas decisões jurisprudenciais sobre o assunto e parte da doutrina tem entendido que a multiparentalidade vem trazer alguns absurdos, pois transformaria uma questão delicada ligada ao estado de filiação em uma indústria que visasse apenas o aproveitamento econômico.
Dessa forma, caberá aos operadores do direito analisar caso a caso a fim de evitar tais manejos por parte de quem quer que seja, mas nunca poderão deixar de tutelar essas situações que ocorrem com frequência no âmbito das famílias.
Diante de tudo que foi exposto até aqui, o presente trabalho defende a ideia de que não há qualquer empecilho para que se reconheça a filiação socioafetiva e, com isso, a multiparentalidade e a geração de efeitos jurídicos das mais diversas ordens, principalmente no que tange ao direito sucessório.
O direito à herança na condição de herdeiro legítimo e necessário para os indivíduos integrantes de vínculos multiparentais deve ser totalmente resguardado. Isso faz com o que um filho possa participar da sucessão, tanto do seu pai biológico, quanto do seu pai socioafetivo.
No último tópico, foi proposto um caso concreto no qual se pôde constatar que essas situações do dia-a-dia geram diversas dúvidas. Procurou-se esclarecer pontos que facilmente surgem com as transformações sociais ocorridas nas entidades familiares, sobretudo no que tange ao direito sucessório, tendo em vista que o direito acompanhar as transformações sociais é tarefa extremamente difícil, mas necessária.
O julgamento do Recurso Extraordinário 898.060/SC pelo STF, em setembro de 2016, clareou, de certa forma, a questão controvertida. A multiparentalidade é um instituto que, apesar de não estar expresso no ordenamento jurídico, é totalmente aceitável, gerando efeitos jurídicos para todos os envolvidos no seio da relação familiar.
Enfim, o que se deve ter como certo quando se trata da possibilidade ou não de um filho participar da herança de dois pais (biológico e socioafetivo) é que, apesar de dificuldades, não há óbices intransponíveis capazes de negar tal possibilidade, sendo mais coerente e adequado que um filho, de acordo com a situação concreta, tenha seu direito de participar das duas sucessões reconhecido, baseado nos princípios do maior interesse da criança e do adolescente, da afetividade, da igualdade entre os filhos e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana.
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Graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Pós-Graduado pela PUC Minas. Oficial Judiciário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Tulio Barros. Um filho, duas heranças: a possibilidade de o filho participar da sucessão de bens do pai biológico e do pai socioafetivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jan 2021, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56078/um-filho-duas-heranas-a-possibilidade-de-o-filho-participar-da-sucesso-de-bens-do-pai-biolgico-e-do-pai-socioafetivo. Acesso em: 22 nov 2024.
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