ANDRÉ DE PAULA VIANA
(orientador)
RESUMO: O presente artigo destina-se a consignar algumas reflexões a respeito do erro médico no exercício de sua atividade profissional, e suas implicações jurídicas no âmbito da responsabilidade civil, penal e ética. A falibilidade inerente do exercício profissional médico, somada aos atributos subjetivos e vulneráveis de cada paciente, resultam em na ocorrência de eventos adversos, intensificando o número de demandas judiciais, tendo em vista a violação à premissas fundamentais constitucionais como direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana. A relação médico-paciente, apesar de se tratar de um contrato de prestação de serviços, deve envolver confiança e responsabilidade e devido sua natureza obrigacional “de meio”, não há o compromisso de alcançar um resultado, sendo relevante o empenho com a diligência e dedicação na execução do serviço. Dessa forma, por mais que haja, tanto para o paciente, quanto para a sociedade, expectativas de resultado de reestabelecimento da saúde sem o comprometimento da integridade física do paciente, é dever do médico agir com prudência no desempenho de suas atividades. Caso não aja em consonância com o dever que lhe é imposto por seu ofício, viola o direito e causa dano ao paciente, surgindo o dever de reparação nas esferas civil, penal e ética, as quais serão analisadas neste artigo, discutindo-se inclusive a responsabilidade de hospitais e planos de saúde na ocorrência de evento adverso.
Palavras-chave: Evento Adverso. Erro Médico. Responsabilidade Civil. Responsabilidade Penal. Responsabilidade Ética.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 2. ERRO MÉDICO: EVENTO ADVERSO; 3. RESPONSABILIDADE CIVIL; 3.1 Responsabilidade Dos Hospitais; 4. RESPONSABILIDADE PENAL; 5. RESPONSABILIDADE ÉTICA; 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
No que tange à responsabilidade médica, é dever deste profissional desempenhar sua função com qualidade, competência e cuidado, visando à tutela da vida humana e assegurando sua integridade, ponderando-se a possibilidade de risco de eventos adversos, inerentes à atividade exercida.
Nesse sentido, a responsabilidade civil subjetiva está diretamente ligada ao conceito genérico de obrigação, existindo a figura do devedor (agente/médico) e do credor (vítima/paciente), em que se necessita a reparação do prejuízo sofrido.
Sendo assim, o médico que, no exercício de sua função pratica um ato ilícito a um paciente, ou seja, uma conduta culposa, seja esta negligencia, imprudência ou imperícia, fica subordinado às consequências de seus atos, obrigando-se a reparar o mal cometido, se restar comprovado haver elemento de ligação (nexo) entre a conduta culposa e o resultado danoso.
Além disso, em virtude do dano praticado em seu labor, quando ocorre a violação de bens jurídicos fundamentais, como ocorre no caso de erro médico, o Estado deve exercer o jus puniendi por meio do ramo do Direito Penal, com a finalidade de coibir a prática de novos eventos adversos.
À vista disso, ao passo que a sociedade evolui, surge a problemática do aumento exponencial de demandas judiciais cíveis, criminais e também administrativas acerca da relação médico paciente, possivelmente devido a desumanização desta relação, sobretudo quando prestados pelo serviço público de saúde.
O objetivo geral deste trabalho é analisar os principais aspectos que envolvem o erro cometido pelo médico. Os objetivos específicos são examinar as responsabilidade civil, penal e ética do médico no exercício de sua função.
Para melhor elucidação do tema em comento, o primeiro capítulo aborda a conceituação do erro médico, e suas diversas classificações.
Por sua vez, o segundo capítulo versa a respeito da responsabilidade civil, demonstrando-se a natureza jurídica da obrigação de prestação de serviços médicos. Outrossim, o estudo ocupa-se em discorrer sobre a teoria da adotada pelo ordenamento jurídico em relação à culpa, qual seja, a Teoria da Responsabilidade Civil Subjetiva, asseverando seus elementos e peculiaridades.
Finalizando o segundo capítulo, apresenta-se a modalidade de responsabilidade civil suportada pelos hospitais e planos de saúde.
O terceiro capítulo trata especificamente acerca da responsabilidade penal, considerando-se que, além de romper o com o equilíbrio social, concomitantemente, ofende um bem jurídico individual.
Por fim, o último capítulo discorre sobre as repercussões do erro médico no âmbito do Código de Ética Médica, tendo em vista que os deveres do médico em sua relação com o paciente são regidos por esse diploma legal.
O presente estudo possui a metodologia baseada na revisão bibliográfica, fundamentando-se em inteligências doutrinárias, artigos, e jurisprudência dos tribunais superiores correlata ao tema em debate. Além disso, a pesquisa se ampara em dispositivos constitucionais e demais legislações pátrias correlatas ao tema.
2 ERRO MÉDICO: EVENTO ADVERSO
As primeiras lições acerca de erro médico foram tratadas pelo Código de Hamurabi, cujas regras previam punições em evento adverso.
Não obstante os indubitáveis avanços em todas as áreas da medicina, o antigo problema da ocorrência de erros médicos continua presentes na vida cotidiana, sendo cada dia mais comuns, inclusive.
Atualmente, entende-se por erro médico como a falha do médico no exercício da sua profissão. Nesse sentido:
Conduta praticada com imprudência, negligência ou imperícia, provocadora de danos à saúde do paciente. Será considerado erro médico, outrossim, quando o procedimento do médico destoar daquele reconhecido como correto pela ciência médica no momento da intervenção (NADER, 2016, p. 363).
Importante salientar que, não há, juridicamente, erro médico sem danos ou agravo à saúde de terceiro. Maria Helena Diniz, ao apresentar o conceito de dano, afirma: “O dano pode ser definido como a lesão (diminuição ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa, contra a sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral” (DINIZ, 2018, p.37).
É sabido que profissionais de diversas áreas estão suscetíveis a cometerem erros no exercício de suas atribuições, porém em relação à medicina, existe uma proibição formal de erro, tendo em vista que paira sob a sociedade um entendimento que o médico, na função de reestabelecer a saúde do paciente, deve promover a cura e o bem estar da pessoa humana. Não obstante, o risco de evento adverso é inerente à função médica.
Basta ver os casos de ocorrência de eventos adversos, no Brasil e no mundo. No tocante ao Brasil, um estudo realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) demonstrou que a cada 5 minutos, 3 pessoas morrem em hospitais no Brasil devido a erros médicos.
Além disso, o fato mais preocupante é que o Conselho Federal de Medicina puniu 2186 médicos entre 2010 e 2017, sendo que 59% das punições foi sigilosa e 96,3% dos punidos ainda exercem a medicina.
Em setembro de 2019, a OMS divulgou dados sobre o tema, onde constam que mais de 138 milhões de pessoas são afetadas anualmente por erros médicos, das quais 2,6 milhões morrem, no mundo todo (OMS, 2019).
Reconhecendo a magnitude do problema da segurança do paciente a nível global, diante da repercussão internacional do tema, nota-se que esforços têm sido direcionados para proporciona qualidade em relação à segurança do paciente e evitar danos causados durante a prestação de cuidados à saúde. Sendo assim, visando garantir a segurança do paciente, que está sujeito ao risco de sofrer eventos adversos, a OMS, em 2004, criou a Aliança Mundial pela Segurança do Paciente, com o escopo principal de coordenar, disseminar e acelerar melhorias para segurança do paciente em termos mundiais por meio do lançamento de programas voltados para alcançar este objetivo (GOMES et al., 2010; WHO, 2008).
A doutrina majoritária considera que são espécies de erros médicos: erro no diagnóstico; erro no tratamento; e erro na dosagem de medicamentos. Além disto, podem ocorrer eventos adversos oriundos de defeitos técnicos, estruturais ou instrumentais das circunstancias de trabalho (DINIZ, 2018).
Faz-se necessário a distinção entre erro médico, tratado como evento adverso, e acidente imprevisível, havendo neste um “dano à integridade do paciente causado por caso fortuito ou força maior durante a atividade médica, insusceptível de ser evitado por não poder ser previsto” (DINIZ, 2018, p.746).
Relativamente ao resultado incontrolável, não há responsabilidade do profissional, posto que, tratando-se de relação em que se busca atuar com prudência em busca do êxito benéfico ao paciente, é possível que ocorra o resultado incontrolável, decorrente da própria evolução do paciente, levando em consideração a incerteza da ciência médica, que não está relacionada aos desvios da conduta médica.
3 RESPONSABILIDADE CIVIL
Consoante lição de Cavalieri Filho (2014, p. 29) “a responsabilidade é a sombra da obrigação”. À vista disso, a natureza da prestação de serviços médicos é classificada como obrigação de meio, pois a finalidade não integra o negócio jurídico. O adimplemento contratual se concretiza quando o médico presta seu ofício com diligencia, atenção e cuidado, independentemente da consecução efetiva do resultado. Nesse sentido:
Obrigação de meio é aquela na qual o que se exige do devedor pura e simplesmente é o emprego de determinados meios sem ter em vista o resultado. É a própria atividade do devedor que está sendo objeto do contrato. Dessa forma, a atividade médica tem de ser desempenhada da melhor maneira possível com a diligencia normal dessa profissão para melhor resultado, mesmo que não seja conseguido. O médico deve esforçar-se, usar de todos os meios possíveis para alcançar a cura do doente, apesar de nem sempre alcança-la (CAHALI, 1989, p. 59).
Relevante asseverar que em casos de cirurgia plástica estética, a doutrina majoritária pátria entende que a obrigação ostentada pelo médico é de resultado, se obrigando a realização de um resultado final, responsabilizando-se pelo dever de assegurar o resultado esperado pelo paciente, ou seja, de desempenhar a função de acordo com o que foi convencionado.
Na hipótese de cirurgia plástica estética, há presunção de culpa do médico, podendo esta ser afastada mediante aspectos externos e alheios à sua atividade, tais como: culpa exclusiva do paciente, caso fortuito ou força maior. É o entendimento dos Tribunais Superiores:
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. ART. 14 DO CDC. CIRURGIA PLÁSTICA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. CASO FORTUITO. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE. 1. Os procedimentos cirúrgicos de fins meramente estéticos caracterizam verdadeira obrigação de resultado, pois neles o cirurgião assume verdadeiro compromisso pelo efeito embelezador prometido. Nas obrigações de resultado, a responsabilidade do profissional da medicina permanece subjetiva. Cumpre ao médico, contudo, demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à sua atuação durante a cirurgia (STJ - REsp: 1180815 MG 2010/0025531-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 19/08/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/08/2010).
Considerando as obrigações de meio prestadas pelo profissional da medicina, do prejuízo causado pelo ato danoso advindo do descumprimento culposo de um dever, surge a noção de responsabilidade civil. No entender de Cavalieri Filho (2014, p. 14): obrigação é “dever jurídico originário, enquanto responsabilidade é dever jurídico sucessivo”, decorrente da violação do primeiro, ensejando a configuração de ato ilícito.
Em verdade, a responsabilidade civil manifesta-se perante “descumprimento obrigacional, pela desobediência de uma regra estabelecida em um contrato, ou por deixar determinada pessoa de observar um preceito normativo que regula a vida” (TARTUCE, 2014, p. 306).
Destaca-se que a responsabilidade civil é conceituada pela doutrina como:
A aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar o dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal (DINIZ, 2018, p. 34).
Tal como dever jurídico sucessivo, é tratada pelo artigo 927, Código Civil: “Aquele que por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a reparar”.
O supra citado diploma legal estabelece as seguintes disposições acerca de ato ilícito:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
À vista disso, o Código Civil brasileiro adotou a responsabilidade civil subjetiva em caso de eventos adversos causados por profissionais médicos:
Art. 1.545, CC. Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento.
O Código de Defesa do Consumidor também consagra a responsabilidade civil subjetiva em seu art. 14, §4º: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.
Nesse contexto, a doutrina considera que a responsabilidade civil subjetiva pressupõe conduta, dano, nexo de causalidade e a culpa, esclarecidos a seguir.
Relativamente à conduta, entende-se que é “o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiros, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause danos a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado (DINIZ, 2018, p. 56). É necessário que a conduta (ação ou omissão) decorrente do comportamento humano seja voluntária, embora não precise ser intencional.
A exteriorização da conduta culposa, por meio da falta de cautela, se revela através da imprudência, negligencia e imperícia. Sobre tais modalidades, entende-se:
A imprudência é a falta de cautela ou cuidado por conduta comissiva, positiva por ação. Negligencia é a mesma falta de cuidado por conduta omissiva. O médico que não toma os cuidados devidos ao fazer uma cirurgia, ensejando a infecção do paciente, ou que lhe esquece uma pinça no abdômen, é negligente. A imperícia por sua vez, decorre da falta de habilidade no exercício de atividade técnica, caso em que se exige, de regra, maior cuidado ou cautela do agente. O erro médico grosseiro exemplifica a imperícia (CAVALIERI FILHO, 2014, p. 52).
Em resumo, caracteriza-se imprudência o médico que que deveria ter se atentado a um padrão de prudência e resolve enfrentar desnecessariamente o perigo. Por outro lado, é negligente o profissional que deixa de observar um cuidado. Por fim, o médico imperito é aquele que age com culpa profissional ou habilidade específica.
Por conseguinte, no que se refere ao dano, trata-se de elemento intrínseco da responsabilidade civil, posto que, se não há um dano a se reparar, não há que se falar em responsabilidade civil. Além disso, não é suficiente tão somente a ocorrência do dano, ele deve ser também indenizável.
A Constituição Federal garante, por meio do art. 5º, inciso X, o direito à reparação do dano: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Classifica-se o dano ou prejuízo como material (patrimonial), em que o patrimônio do ofendido sofre lesão, seja através da efetiva perda de patrimônio (dano emergente), ou do não aferimento de lucro razoável (lucros cessantes); ou ainda dano moral (extrapatrimonial), mediante lesão aos direitos da personalidade. Graças à essa natureza imaterial, o dano moral é insusceptível de avaliação pecuniária, podendo tão somente ser reparado com a obrigação pecuniária forçosa ao causador do dano, sendo esta mais uma satisfação do que uma indenização.
Ressalta-se também a possibilidade de ocorrência de dano estético, caracterizado por “qualquer anomalia que a vítima passe a ostentar no seu aspecto físico, decorrente de agressão à sua integridade pessoal (MELO, 2011, p. 58).
Já em relação ao nexo, trata-se do liame que conecta a conduta do agente ao dano. A responsabilidade civil não pode subsistir sem a relação de causalidade entre o dano e a ação que o motivou (STOCO, 1997, p. 63).
Por consequência, no que diz respeito ao pressuposto culpa, é imprescindível a existência desse elemento para que seja configurado o erro médico. Salienta-se que a culpa do médico não se presume, ou seja, deve esta ser provada para haver responsabilização pessoal do médico, não bastando apenas o insucesso de um procedimento. À respeito da culpa, a jurisprudência entende:
Em caso de obrigação de meio, a análise da falha no serviço e da culpabilidade do médico, devem ser minuciosamente observadas, uma vez que a prova do defeito no tratamento médico deve ser inequívoca, e a culpa do profissional não se presume, deve ser cabalmente comprovada (TJMG - APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0431.06.030997-5/001 – DJU 26/04/2008).
Em um recentíssimo julgado, o entendimento se consolida no sentido da comprovação da culpa:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE DANOS MORAIS – MÉDICO – RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA – ERRO MÉDICO – AUSENCIA DE COMPROVAÇÃO – INDENIZAÇÃO INDEVIDA
A responsabilidade civil do médico perante o paciente, com base no Código de Defesa do Consumidor, é de natureza subjetiva – Em se tratando de erro médico, a culpa é um dos requisitos da responsabilidade civil, devendo ser comprovada a imprudência, imperícia ou negligencia do profissional. (TJ-MG – AC:10283070069283001 MG, Relator Fernando Caldeira Brant, Data de Julgamento: 16/09/2020, Data de Publicação: 21/09/2020).
Portanto, a vítima do dano tem a incumbência de provar a imprudência, negligencia ou imperícia do profissional, pois caso não haja comprovação, o médico estará isento de qualquer responsabilidade.
3.1 Responsabilidade Dos Hospitais
Como visto, em regra, a obrigação médica enquadra-se como uma obrigação de meio, baseando-se essa relação no princípio da boa-fé objetiva, devendo prestar informações ao paciente de forma clara, completa, precisa e objetiva.
Cabe ao médico lhe propiciar todos os cuidados referentes a prestação do seu serviço, dessa maneira, “se o tratamento não surtiu o efeito esperado, isso por si só não caracterizaria inadimplemento contratual” (CAVALIERI FILHO, 2014, p. 403).
À vista disso, no que tange à modalidade contratual existente nessa relação médico paciente, pode ser classificada como contratual, quando há um contrato tácito ou expresso, ajustado livremente entre paciente e profissional, caracterizando uma prestação do serviço intuitu personae, direta e pessoalmente pelo médico (enquanto profissional liberal); ou ainda pode ser extracontratual, quando, não existindo o contrato, o contexto do cotidiano colocam frente a frente médico e doente, delegando àquele o dever de prestar assistência, como acontece no encontro de um ferido em plena via pública, ou na emergência de intervenção em favor de incapaz por idade ou doença mental, entre outros.
No primeiro caso, conforme já explicitado neste trabalho, a relação entre os médicos - enquanto profissionais liberais - com seus pacientes enquadra-se na responsabilidade subjetiva.
No que diz respeito à segunda hipótese, qual seja, a relação extracontratual entre médico-paciente, nota-se que o hospital se enquadra no conceito de fornecedor exposto no art. 3º, CDC. Dessa forma, aplica-se a responsabilidade objetiva (Teoria do Risco) para o hospital em razão de evento adverso, nos termos do art. 14, CDC, tendo em vista a hipossuficiência do consumidor (paciente) frente ao fornecedor (hospital).
Essa relação funda-se na teoria do risco da atividade, sendo que a responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a ideia de risco, de modo que, para a responsabilização do estabelecimento, faz-se necessário demonstrar somente a falha do serviço e a relação de causalidade com o resultado lesivo.
À título de exemplo, nota-se no julgado do STJ a responsabilização objetiva do hospital no caso de falha na esterilização de instrumentos cirúrgicos:
3. A responsabilidade objetiva para o prestador de serviço fixada no art. 14 do CDC, na hipótese do hospital, limita-se aos serviços que possuem relação com o estabelecimento empresaria, tais como à estadia do paciente (internação), instalações, equipamentos e serviços auxiliares.
4. É obrigação dos hospitais adotar o conjunto de atividades executadas deliberada e sistematicamente visando à diminuição máxima possível da incidência e da gravidade das infecções hospitalares, sobressaindo sua responsabilidade objetiva quando a infecção for adquirida em razão da hospitalização do paciente.
Caso seja comprovada também a culpa do médico, quando restar comprovada a responsabilidade do hospital, restará configurada a solidariedade do médico e do hospital pela reparação do dano sofrido pelo paciente.
Nos termos do art. 14 do CDC, nos casos em que restar configurado uma cadeia de fornecimento para a realização de determinado serviço, ainda que o dano decorra da atuação de um profissional liberal, apurada a culpa deste, surge a responsabilidade solidária dos que participam da cadeia de fornecimento do serviço, como é o caso dos autos. (STJ, 4ª T., AgRg no AREsp. 209.711/MG, Rel. Min. Marco Buzzi, ac. 12.04.2016, DJe 22.04.2016).
Em síntese, demonstrado a culpa do profissional médico mediante responsabilidade subjetiva, incidirá sobre o estabelecimento hospitalar a teoria da responsabilidade civil objetiva, em consequência do reconhecimento da relação de causalidade entre a conduta e o dano, restando configurada a obrigação solidária do hospital de reparara-lo, sem comprovação de culpa deste estabelecimento.
Por fim, ressalta-se a possibilidade de afastamento da responsabilidade hospitalar se constatado defeito inexiste na prestação de serviço, culpa exclusiva da vítima ou de terceiros, consoante entendimento do artigo 14, §3º do Código de Defesa ao Consumidor.
4 RESPONSABILIDADE PENAL
Visando a proteção dos bens jurídicos fundamentais, tais como a vida e a integridade física, a ocorrência de um evento adverso no exercício da atividade médica pode sujeitar o agente também à responsabilidade na seara criminal, que é independente da civil, conforme estabelecido no art. 935, Código Civil.
É dever do médico agir com cautela, principalmente em relação à realizações de cirurgias, em que: “a concentração, a capacitação, a integração entre a equipe, são fundamentais para o êxito do procedimento. Havendo riscos previsíveis, tem por obrigação evita-los” (MARTINS, 2008, p. 54).
No que tange à teoria do crime, à luz do conceito analítico de crime, considera-se o delito como fato típico, ilícito e culpável. Com base nisso, a conduta é caracterizada como movimento humano voluntário. Caso o comportamento realizado, mesmo que tipificado como infração penal, não reste comprovado que houve uma vontade precedente do agente, não existirá conduta, e, dessa maneira, desfigurado está o fato típico (substrato do crime). À vista disso, a voluntariedade no crime apresenta as formas de dolo ou de culpa:
Art. 18, do CP – Diz-se o crime:
Crime doloso:
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
Crime culposo:
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Para melhor elucidação da questão, é necessário o estudo do dolo e suas modalidades: dolo direto de primeiro e segundo graus, bem como dolo eventual.
No dolo direto, o agente deseja e direciona sua vontade à produção do resultado típico coma sua conduta. Dolo direto de primeiro grau consiste na hipótese do resultado delitivo é o fim principal do agente. Dolo direto de segundo grau ocorre quando a vontade do agente se concentra aos instrumentos empregados para obtenção deliberado fim. Abrange também os efeitos colaterais, de verificação praticamente certa, para ocasionar o evento almejado.
Por outro lado, em havendo dolo eventual, o resultado paralelo é incerto e eventual, pois o agente prevê pluralidade de resultados, dirigindo sua conduta para realizar um determinado evento, mas assume o risco de provocar outro.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal julgou haver indícios de dolo eventual no caso de o único médico plantonista de um posto de saúde que se recusou, diversas vezes, a atender uma criança que veio a falecer, sob a escusa de que não era pediatra (STF – HC: 92304 SP, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 05/08/2008, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-157, Data de Divulgação 21/08/2008).
No que tange a responsabilidade penal por culpa, essa provém em decorrência de condutas imprudentes, negligentes ou imperitas, já explicitadas ao longo deste trabalho, sendo que os crimes culposos envolvem, necessariamente, dano a um dever objetivo de cuidado. Com relação à isso, decidem os Tribunais da seguinte maneira:
A conduta típica do crime de homicídio, praticada pelo médico na forma culposa, consistiu em deixar de praticar atos que poderiam evitar a morte da vítima, ou seja, por não ter observado os cuidados objetivos necessários, que estariam aptos a evitar o resultado morte. (…) a prova pericial constatou falha técnica do profissional que impediu que a vítima recebesse, em tempo hábil, o tratamento adequado, fazendo com que o trauma acidental evoluísse ao óbito (STJ – HC 220.120, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe. 15.8.2012).
É comum que os eventos adversos cometidos pelo médico configurem os tipos penais de lesões corporais, grave e gravíssima, e até mesmo homicídio. Logo, além da comprovação da autoria e materialidade do delito, é necessário que haja comprovação do elemento subjetivo culpa, em sentido amplo. Nesse sentido:
APELAÇÃO CRIMINAL. LESÕES CORPORAIS GRAVES. ERRO MÉDICO. DOLO EVENTUAL COMPROVADO. CONDENAÇÃO IMPOSITIVA. Trazendo, os autos, elementos suficientes capazes de demonstrar que mesmo o acusado antevendo a possibilidade de ocorrência do ato ilícito, assumiu o risco e agiu indiferente ao resultado, resta configurada a essência do dolo na sua modalidade eventual, impondo a reforma da sentença absolutória. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ-GO APR: 02448206820058090051 GOIANIA, Relator DES. AVELIRDES ALMEIDA PINHEIRO DE LEMOS. Data de Julgamento: 02/02/2012, 1ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: DJ 09/03/2012).
Ressalta-se que é entendimento da jurisprudência nacional que a atuação profissional cuidadosa exclui a responsabilidade penal, haja vista a ausência de atividade culposa:
Restando comprovada a atuação cuidadosa e profissional dispensada pelo paciente, não se vislumbra justa causa para a deflagração da ação penal em seu desfavor, imputando-se-lhe a prática do crime de homicídio culposo em razão da negligência na conduta médica (STJ – HC 100.130, Rel. Jorge Mussi, DJe. 11.10.2010).
Fundamentando-se na premissa constitucional que livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, inciso XIII, CF/88), preza-se a observação do dever objetivo de cuidado com o paciente, haja vista a importância dos bens jurídicos tutelados, cujo exercício ilegal ou insucessos decorrentes de tais condutas trazem consequências punitivas, seja no âmbito cível ou criminal.
A finalidade do Direito Penal é proteger valores fundamentais garantidos constitucionalmente. Embora o médico goze de autonomia no exercício profissional, a reação dos pacientes é singular ante tratamentos estritamente iguais, sendo a falibilidade dessa atividade é uma consequência natural. Nesse sentido, a repressão penal visa que a conduta dolosa ou culposa não se repita novamente, compelindo os profissionais a atuarem de forma zelosa e tecnicamente correta.
5 RESPONSABILIDADE ÉTICA
O Código de Ética Médica foi atualizado recentemente, por meio da Resolução CFM Nº 2.217/2018, contemplando artigos sobre inovações tecnológicas e avanços científicos, o uso das mídias sociais pelos médicos, entre outras alterações, preservando corolários deontológicos da profissão.
O Código de Ética Médica regulamenta a responsabilidade ético-disciplinar, tutelando pelo cumprimento irrestrito da boa prática médica, sendo atribuído aos Conselhos Regionais de Medicina a responsabilidade pela fiscalização do exercício da profissão.
O supra citado diploma legal compele o profissional a atuar com honra e dignidade, observando o respeito ao ser humano, além de praticar seu ofício em prol da saúde dos indivíduos e da coletividade, sem discriminações.
No capítulo referente aos princípios fundamentais, o Código de Ética estabelece que “o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.
Acerca da responsabilidade profissional, a legislação assevera:
É vedado ao médico:
Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.
Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.
Isso posto, entre as proibições, consta a vedação de prática de conduta ilícita do profissional, seja por conduta imprudente, imperita ou negligente. Perante a ocorrência de dano, deverá ser apurada a sua responsabilidade subjetiva, ou seja, não há que se falar em culpa presumida. Isso porque busca-se que o status quo ante dos lesionados seja recomposto de forma digna, com o dano devidamente reparado.
O evento adverso provocado pelo médico propicia a responsabilização nos âmbitos civil e criminal, inclusive administrativo, com processo ético-profissional, pois são esferas independentes e autônomas.
Em decorrência da má prática médica, os médicos que efetuarem faltas graves são passíveis de ter o exercício profissional suspenso por meio de procedimento administrativo específico, se a continuidade do trabalho apresentar riscos de danos insanáveis ao paciente ou à sociedade.
As sanções administrativas disciplinares podem ser desde advertência, censura e até cassação do exercício profissional, de acordo com o disposto na lei no 3.268, que versa sobre os Conselhos de Medicina.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atuação médica não é ciência exata, não se tratando de uma atividade fim, mas sim de meio, sendo o próprio afinco do médico é o objeto do contrato com o paciente. Porém, o profissional não fica desobrigado a devotar-se da de modo mais adequado e acertado em favor do seu paciente, devendo esgotar todos os meios possíveis para que os fins sejam atingidos.
O que se pretende é cautela e diligência, com absoluta seriedade na condução das técnicas, para evitar ou gerar o menor mal possível ao seu paciente, adotando condutas prudentes e adequadas para diminuir sua dor, almejando a cura de sua enfermidade.
Como destacado ao longo deste trabalho, a responsabilidade civil do profissional liberal decorrente do evento adverso, à luz da responsabilidade civil subjetiva, apresenta condições fundamentais: conduta, dano, nexo e culpa, que não se presume, carecendo de devida comprovação.
Adotando-se a teoria subjetiva em razão das disposições do Código Civil e do Consumidor, o paciente só poderá lograr êxito na reparação de seu dano mediante prova de culpa do causador da ofensa, ou seja, demonstrando a atuação profissional inadequada, mediante imprudência, negligencia ou imperícia. No caso da responsabilidade solidária dos hospitais, assume caráter objetivo quanto à estes.
Quando ocorre lesão a bens jurídicos relevantes tutelados pela lei penal, deve haver responsabilização médica na esfera penal, sujeito à correta aplicação da lei, com imposição de sanções devidas ao caso concreto, de acordo com o delito cometido.
O evento adverso provocado pelo médico também possibilita a abertura de procedimento administrativo específico, com previsão de punição mais grave de cassação do desempenho da atividade, reprimindo o médico pela atuação com ausência do dever de cuidado.
Tratando-se da vida humana, o erro médico deve ser avaliado em todos os seus aspectos, magnitude e reflexos, a fim de ser imputada a punição mais adequada diante da avaliação do caso concreto, objetivando a reparação do dano cometido. A reparação do dano é um direito não apenas do paciente, como da sociedade, também é dever do Estado.
REFERÊNCIAS
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1989.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VEIGA, Pedro Alberto Gianotto. Responsabilidade civil na atividade médica em face da ocorrência do evento adverso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 mar 2021, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56298/responsabilidade-civil-na-atividade-mdica-em-face-da-ocorrncia-do-evento-adverso. Acesso em: 22 nov 2024.
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