RESUMO: A criação do Estado para estabelecer limites aos cidadãos e proporcionar desenvolvimento e prosperidade às nações foi acompanhada da implantação de um sistema de arrecadação para alcançar tais objetivos. No Brasil, em razão da organização político-administrativa federativa, as responsabilidades e competências foram constitucionalmente divididas entre entes autônomos (União, Estados, Municípios e Distrito Federal). Aos estados, foi disponibilizada a competência para a instituição de alguns tributos, tendo o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicações (ICMS) como a principal fonte arrecadadora desses. Embora sejam autônomos, a Constituição Federal impõe limites aos entes políticos almejando preservar a harmonia federativa. Entretanto, essa tem sido frequentemente abalada, com as disposições da Carta Magna sendo cotidianamente ignoradas pelos estados, resultando em dezenas de batalhas jurídico-tributárias, principalmente no que tange o ICMS. Desrespeito às normas, insegurança jurídica e prejuízos à maioria dos envolvidos é o que tem preponderado nesse cenário conhecido como Guerra Fiscal. Para entender um pouco sobre esse tema e vislumbrar os malabarismos que são utilizados para minimizar os impactos dessa batalha, foi elaborado este artigo, após pesquisas bibliográficas, jurisprudenciais e acadêmicas.
Palavras-chave: Pacto Federativo. ICMS. Guerra-Fiscal. Benefícios Fiscais Irregulares.
SUMARIO: INTRODUÇÃO. 1 DIREITO TRIBUTÁRIO. 1.1 Conceitos do Direito Tributário e o princípio da legalidade. 1.2 Direito Tributário na Constituição Federal do Brasil. 1.2.1 O pacto federativo. 1.2.2 ICMS e seus conceitos. 2 GUERRA FISCAL. 2.1 Leis Complementares. 2.2 Conceito da Guerra Fiscal. 2.3 Insegurança Jurídica. 3 REGULARIZAÇÃO DOS BENEFÍCIOS INCONSTITUCIONAIS. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
Nas últimas décadas, toda vez que o Brasil é atingido por alguma crise econômica, o debate sobre a necessidade de uma reforma tributária profunda também é aquecido. Além de das dificuldades políticas que fazem parte da história nacional e que emperram o desenvolvimento pátrio, a complexidade do sistema tributário brasileiro está cotidianamente presente entre os motivos mais indicados pelos economistas, investidores e empresários como um grande elemento impeditivo para o Brasil se tornar o tão esperado “país do futuro”.
Embora seja do senso comum que o sistema tributário brasileiro é tortuoso e que necessita de um essencial progresso, cada vez que a discussão sobre o tema se aprofunda, esbarra-se no venenoso e espinhoso Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), que deixa as classes política e econômica enroscadas no emaranhado de suas densas e tortuosas raízes.
Assim, a despeito de tratar-se do principal meio de arrecadação dos entes estatais para a manutenção das suas máquinas públicas, esse imposto estadual tem sido frequentemente utilizado pelos governos como instrumento de fomento econômico e como ferramenta de barganha. A concessão de benefícios fiscais utilizando tal tributo tornou-se uma prática comum entre os 26 estados e o Distrito Federal, todavia, destaco que, em sua maior parte, tais vantagens são inconstitucionais. Por essa razão, muitas disputas judiciais são estabelecidas, desaguando nos tribunais de todo o país. Somando-se a essa conjuntura as diversas disputas políticas, criou-se o cenário competitivo entre os entes federativos conhecido como Guerra Fiscal.
Tratando-se de um imposto com consequências que ultrapassam as barreiras estaduais, essa guerra produz efeitos colaterais que vão além da simples diminuição da arrecadação governamental, mas que provoca inseguranças jurídicas bilionárias aos atores envolvidos. Diante disso, com toda a questão política-econômica atinente e as intermináveis disputas judiciais, as opiniões políticas convergiram em uma única saída: a regularização dos benefícios fiscais de ICMS inconstitucionais. Mas será que essa seria a solução do problema ou apenas um remédio para o sintoma?
Neste trabalho, por meio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, buscar-se-á uma reflexão à questão levantada, introduzindo conceitos que envolvam o assunto, com o intuito de compreender o funcionamento do ICMS, entender como a condução política da desoneração desse imposto cria o cenário conhecido como Guerra Fiscal entre os estados, com reflexos na seara jurídica e econômica das empresas e da população como um todo e, por fim, abarcar o motivo pelo qual se tornou necessário convalidar tais irregularidades.
O Estado é diuturnamente cobrado por seus cidadãos para que lhes proporcionem os serviços mínimos necessários para se ter uma vida digna. Essas cobranças foram reforçadas pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), a qual estabeleceu preceitos fundamentais ao Estado como: a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, que pretenda garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promova o bem de todos (art. 3º, CF/88). Contudo, os Estados não criam suas próprias riquezas para poder financiar esses preceitos, assim, o meio historicamente implementando para subsidiar a máquina estatal foi o da cobrança de tributos de seus cidadãos. No entanto, o transcorrer da história evidenciou que é preciso estabelecer limites ao poder do Estado, pois, sem a existência desses, o poder central soberano que foi inicialmente instituído para proteger a sociedade e desenvolver a nação é capaz de, através de governos autoritários ou ilegítimos, se tornar o algoz do seu próprio povo. Diante disso, para limitar esse poder, estabeleceu-se que o Estado somente poderia agir dentro das condições estabelecidas em lei.
A Constituição pátria assegura essa proteção ao cidadão: art. 5º, II, CF/88: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Esse grande respeito e subordinação às leis é o que caracteriza o Estado de Direito. Todos os setores são regrados por esse princípio, não sendo diferente para a parte arrecadatória dos tributos. Para doutrinadores como Machado (2008 apud SABBAG, 2017, p. 35), o princípio da legalidade constitui o mais importante limite aos governantes na atividade de tributação. A relevância do princípio é tão especial e necessária, principalmente quando envolve tributos, que o constituinte originário fez questão de reforçar sua obrigatoriedade no capítulo da Constituição Federal que trata do Sistema Tributário Nacional:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça (BRASIL,1988).
Em razão da magnitude da matéria, da interferência na vida do cidadão e da complexidade que a rege, além da já citada obrigatoriedade legal, existe todo um ordenamento jurídico que gere o sistema tributário brasileiro e seu poder de tributar, o qual recebe o título de Direito Tributário. É possível resumir o Direito Tributário como “o conjunto de normas que regulam o comportamento das pessoas de direcionar dinheiro aos cofres públicos” (SABBAG, 2017, p. 41). Com isso, esse ramo do Direito regula a relação entre dois atores: o primeiro que dispõe de uma parte de seus frutos para que uma entidade maior possa lhe proporcionar coisas e situações que seriam impossíveis de se alcançar sozinho e outro que foi criado justamente para suprir as expectativas do primeiro.
No Brasil, essa relação tributária é exercida pelo contribuinte (pagador de tributos) e o Estado, o poder arrecadatório. Compete ao contribuinte cumprir suas obrigações de dar, que é o ato de pagar ou recolher tributos aos entes, e de fazer, que é o de seguir algumas regras que servem basicamente para que os órgãos de fiscalização e arrecadação consigam verificar e confirmar que aquela primeira obrigação esteja sendo efetuada de maneira correta.
Por ser um país de dimensões continentais e diante da necessidade de geri-lo de forma mais eficiente, o Brasil republicano importou o federalismo como forma de organização do Estado. Nesse modelo estatal, existe um Estado Federal soberano, interna e externamente, porém formado por unidades federativas internas autônomas. Para Mendes (2017, p. 850),
a autonomia importa, necessariamente, descentralização do poder. Essa descentralização é não apenas administrativa, como, também, política. Os Estados-membros não apenas podem, por suas próprias autoridades, executar leis, como também é lhes reconhecido elaborá-las.
Brandão Junior (2013, p. 24) conceitua Estado Federal como “uma especial forma de descentralização, constitucionalmente constituída e delimitada para uma maior aproximação do Governo com a sociedade”. “A característica mais importante de um federalismo verdadeiramente democrático é esta maior liberdade das instâncias políticas descentrais, autônomas e aproximadas da sociedade” (ZIMMERMANN, 2005, apud BRANDÃO JUNIOR, 2013, p. 24). Essa divisão política-administrativa autônoma existe para que cada governo atue dentro de suas necessidades, interesses e peculiaridades, pois esses variam muito dentro de um território mais amplo. Contudo, essa autonomia não significa anarquia ou hierarquia. Toda essa forma de organização do Estado é regulada pela Constituição Federal de cada país federalista. Para Mendes, (2017, p. 850), a Carta Maior
atua como fundamento de validade das ordens jurídicas parciais e central. Ela confere unidade à ordem jurídica do Estado Federal, com o propósito de traçar um compromisso entre as aspirações de cada região e os interesses comuns às esferas locais em conjunto.
Nos termos da CF/88, a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel de Estados, Municípios e Distrito Federal (art. 1º, CF/88), sendo que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição (artigo 18, CF/88). Organização essa que não é passível de modificação por emenda à constituição, nos termos do artigo 60, §º, I da CF/88, tornando-se, conforme preceitua a doutrina, a forma federativa do Estado brasileiro uma cláusula pétrea.
A Carta Magna brasileira não define apenas quais são os entes federativos, sua imutabilidade constitucional e suas autonomias, mas dentro de sua função de instrumento regulador e estabilizador da federação estabelece também a repartição de competências. Essa “consiste na atribuição, pela Constituição Federal, a cada ordenamento de uma matéria que lhe seja própria” (MENDES, 2017, p. 851). Assim, o autor preceitua que, como no modelo federalista existe mais de uma ordem jurídica incidente sobre um mesmo território e sobre as mesmas pessoas, a repartição de competências é o instrumento concebido para garantir a eficácia estatal e evitar conflitos. Entretanto, para que cada ente consiga exercer sua autonomia política-administrativa, é preciso que eles também tenham autonomias financeira e tributária.
Essas são aspectos centrais do pacto federativo, visto que esse “é o conjunto de dispositivos constitucionais que configuram a moldura jurídica, as obrigações financeiras, a arrecadação de recurso e os campos de atuação dos entes federados” (SENADO FEDERAL, 2015). Diante dessa essencialidade, o constituinte também estabeleceu a repartição de competência tributária entre os entes:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico (BRASIL, 1988).
Para conseguir legitimar a autonomia e garantir o pacto federativo, a constituição pátria estabeleceu em seu art. 145, I, que todos os entes poderão instituir impostos, entretanto, além da necessidade de respeitar diversas restrições constitucionais, reforça-se que somente poderão ser estabelecidos por lei. Conhecedores da função constitucional de garantir a autonomia entre os entes, os constituintes originário e reformador trouxeram na Carta Magna as delimitações de competência tributária de cada um daqueles, de modo a assegurar harmonia na relação federativa. Nessa repartição, foi definido que os Estados e o Distrito Federal poderiam instituir impostos sobre (art. 155 da CF):
I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
III - propriedade de veículos automotores (BRASIL, 1988).
Conforme se verifica no inciso II supra, a CF/88 manteve aos estados a competência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e incluiu nesse mesmo tributo outras competências, como a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, consolidando assim o conhecido Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS. Mas ela foi além, sabendo da complexidade do imposto e de natureza tributária deste, a qual envolve 27 entes federativos (26 estados mais o Distrito Federal), procurou-se estabelecer no próprio texto da Carta Magna, mais precisamente no §2º do artigo 155, regras objetivas para o melhor funcionamento da competência tributária:
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;
II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;
III - poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços;
O fato do ICMS ser um imposto plurifásico, isto é, ser cobrado cada vez que a mercadoria mude de posse ou seja movimentada entre os entes federativos, obrigou o constituinte a estabelecer regras basilares para a melhor sistemática da tributação pátria, ou seja, foram introduzidas no topo da pirâmide normativa brasileira limitações ao poder de tributar.
Uma delas é o princípio da não cumulatividade. Essa regra é basicamente: aquilo que é cobrado a título do imposto nas movimentações/operações anteriores poderá ser abatido do ICMS devido na próxima movimentação/operação (inciso I supra). Se essa compensação não existisse, o percentual de imposto no valor final do produto ou serviço, em sua maioria, seria maior que o percentual do valor da mercadoria em si ou da vantagem produzida pelo serviço. Isso incapacitaria o valor comercial ou útil dos objetos ou serviços tributados, isto é, o imposto praticamente confiscaria toda a vantagem do contribuinte e do consumidor. O Estado, que nada produz, em uma relação direta com o pagador do imposto, ficaria ao final em uma posição totalmente exploratória, o que invalidaria o seu real objetivo e desestimularia, com isso, a produção e o consumo, culminando com o enfraquecimento da economia como um todo.
Com essa limitação ao poder de tributar, criou-se para o ICMS a sistemática da compensação, assim, o imposto somente é acrescido sobre o real valor agregado à mercadoria. Em termos utilizados no cotidiano, o imposto que já tiver sido pago em operações anteriores será creditado pelo contribuinte adquirente do insumo ou serviço para que ele possa debitar (compensar) do imposto devido na operação posterior. Como é possível depreender, o respeito a essa norma não se restringe apenas ao princípio da não-cumulatividade, mas também acata o princípio da vedação ao confisco, o qual impede que o Estado tribute abusivamente seus cidadãos, evitando que ao final de uma cadeia de consumo, o ente fique com a renda ou um benefício maior do que aquele que produziu ou consumiu.
Infelizmente, esse processo de compensação do imposto não é tão simples, por conta do envolvimento de vários atores nessa relação. O comércio não fica restrito a apenas um local ou um estado, tudo é interligado e com reflexos em cada ação realizada. Como existe a subsunção legal para se tributar diversos tipos de ação (hipóteses de incidência), a partir do momento em que acontece no mundo fático aquilo que está previsto em lei como passível de tributação, ocorre o fato gerador. Quando isso se concretiza, compete ao contribuinte que vive em um Estado de Direito arcar com suas obrigações de dar e de fazer.
Entretanto, considerando o fato que as operações com mercadorias e os serviços de transporte e comunicação não ficam restritos a apenas um estado, como ficaria a tributação do ICMS se fosse simplesmente liberado aos entes autônomos as deliberações e regras de acordo com suas próprias políticas? Em exemplos hipotéticos, um estado poderia simplesmente decidir tributar com alíquotas no limite confiscatório enquanto outros poderiam, por diversos motivos, não cobrar o imposto; ou algum estado poderia estabelecer distinções que fogem daquelas objetivadas pela Constituição Federal para estabelecer alíquotas diferentes em operações semelhantes. Diante dessas diversas possibilidades e para evitar maiores aberrações, a Constituição preconizou que, através de resolução do Senado Federal, seriam estabelecidas as alíquotas aplicáveis entre as operações interestaduais e facultou o estabelecimento de alíquotas mínimas nas operações internas (dentro do mesmo estado) e máximas, quando for necessário para resolver conflitos entre esses entes (artigo 155, §2º, IV e V, CF):
IV - resolução do Senado Federal, de iniciativa do Presidente da República ou de um terço dos Senadores, aprovada pela maioria absoluta de seus membros, estabelecerá as alíquotas aplicáveis às operações e prestações, interestaduais e de exportação;
V - é facultado ao Senado Federal:
a) estabelecer alíquotas mínimas nas operações internas, mediante resolução de iniciativa de um terço e aprovada pela maioria absoluta de seus membros;
b) fixar alíquotas máximas nas mesmas operações para resolver conflito específico que envolva interesse de Estados, mediante resolução de iniciativa da maioria absoluta e aprovada por dois terços de seus membros;
VI - salvo deliberação em contrário dos Estados e do Distrito Federal, nos termos do disposto no inciso XII, "g", as alíquotas internas, nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais;
De acordo com o inciso VI supra, essas alíquotas internas estabelecidas pelo Senado não são totalmente rígidas, elas podem ser modificadas para acomodar as particularidades estaduais, contudo, mesmo sendo autônomos, os entes que pretendem fazer isso não podem realizá-las sem seguir o disposto no inciso §2º, XII, “g” do artigo 155 da Constituição Federal. Esse inciso dispõe:
XII - cabe à lei complementar:
g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
- grifos e negritos nossos –
Verifica-se que a CF delegou à Lei Complementar regular, dentre outras questões, a forma como os estados e o DF poderiam estabelecer as reduções de alíquotas e a concessão e revogação dos benefícios fiscais. Como se tratam de situações mais específicas e que necessitariam de uma maior estruturação, o constituinte considerou correto transferir a responsabilidade da regulação dessas questões relacionadas ao ICMS para a legislação infraconstitucional, no caso, para lei complementar.
Além do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/1966), que estabelece as regras básicas para todo e qualquer tributo nacional, existem duas leis complementares em vigor especificas para o ICMS. A primeira e mais ampla é a Lei Complementar 87/1996, também conhecida como Lei Kandir. Essa lei complementar, respeitando as exigências da Constituição Pátria, definiu as normas gerais do imposto como: quem são os contribuintes, estabeleceu as hipóteses de incidência e as bases de cálculo do ICMS, o local e o momento das operações ou prestações, pois essas definem a qual estado deverá ser recolhida a obrigação pecuniária, dentre dezenas de outros regramentos necessários. Já a parte mais importante para o objetivo do presente trabalho, aquela que regula a forma que os benefícios fiscais referentes ao ICMS podem ser estabelecidos, é constituída pela Lei Complementar 24/1975.
A partir da promulgação da Emenda Constitucional 1/1969, mais especificamente com o art. 23, §6º dessa, a Constituição de 1967 exigiu Lei Complementar para a regulação da concessão de benefícios fiscais vinculados ao Imposto sobre Circulação de Mercadoria (ICM). Com isso, foi aprovada e promulgada a LC 24/1975 que versa sobre a matéria em questão. Com a promulgação da CF/88, essa exigência foi mantida no texto constitucional, assim, apesar da Lei Complementar 24/75 ser anterior à atual Constituição, a especificidade de sua matéria fez com que ela fosse regularmente recepcionada no atual ordenamento jurídico. Isso é pacificado Supremo Tribunal Federal (STF):
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. "GUERRA FISCAL". BENEFÍCIOS FISCAIS: CONCESSÃO UNILATERAL POR ESTADO-MEMBRO. Lei 2.273, de 1994, do Estado do Rio de Janeiro, regulamentada pelo Decreto estadual nº 20.326/94. C.F., art. 155, § 2º, XII, g. I. - Concessão de benefícios fiscais relativamente ao ICMS, por Estado-membro ao arrepio da norma inscrita no art. 155, § 2º, inciso XII, alínea g, porque não observada a Lei Complementar 24/75, recebida pela CF/88, e sem a celebração de convênio: inconstitucionalidade. II. - Precedentes do STF. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.
(ADI 1179, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 13/11/2002, DJ 19-12-2002 PP-00069 EMENT VOL-02096-01 PP-00054)
A lei 24/1975 prescreve em seus artigos 1º e 2º:
Art. 1º - As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei.
Parágrafo único - O disposto neste artigo também se aplica:
I - à redução da base de cálculo;
II - à devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a terceiros;
III - à concessão de créditos presumidos;
IV - à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus;
V - às prorrogações e às extensões das isenções vigentes nesta data.
Art. 2º - Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal.
§ 1º - As reuniões se realizarão com a presença de representantes da maioria das Unidades da Federação.
§ 2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.
É nítido na lei que qualquer tipo de benefício fiscal do ICMS deverá ser concedido ou revogado nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal. Também é evidente que esses convênios somente serão celebrados em reuniões que tenham a presença de representantes da maioria das Unidades da Federação e, indubitavelmente, as matérias referentes a concessão de benefícios dependerão sempre de decisão unânime dos Estados representados nessas. Esse formato de concessão de benefícios preza pelo equilíbrio do pacto federativo. Nas palavras de Torres (2007, apud ADI 5467/MA, 2019, p. 3) “essa exigência constitucional específica evidencia a preservação do equilíbrio horizontal na tributação, dada a relevância do regime do ICMS para a manutenção da harmonia do pacto federativo”.
Embora seja nítido, a necessidade de unanimidade na decisão dos benefícios, conforme dispõe o §2º do artigo 2º supra, é um tema controverso, pois diversos doutrinadores consideram essa exigência uma afronta ao Estado Democrático de Direito, e que não deveria ser recepcionado pelo atual regime jurídico e político nacional, visto que unanimidade é incongruente à pluralidade de opiniões e decisões. Para Oliveira Junior (2015, p. 99), a unanimidade é inconstitucional “porquanto não se verifica na Constituição Federal de 1998 nenhuma menção expressa ou implícita de concordância unânime dos entes subnacionais para aprovação de incentivos fiscais do ICMS”. Reforça Carvalho (2012, apud DE OLIVEIRA JUNIOR 2015, p. 100) que a Constituição demanda “[...] apenas, que se tenha um iter procedimental legislativo, a adoção de norma que estabeleça os termos da isenção, incentivo ou benefício fiscal a que as pessoas políticas estão atreladas, caso optem por implementá-los”. Já Scaff (2014, apud DE OLIVEIRA JUNIOR, 2015, p. 102)ressalta que “trata-se de única regra de aprovação unânime existente em todo o sistema político brasileiro”.
No entanto, em corrente contrária, Carraza (2012, apud DE OLIVEIRA JUNIOR, 2015, p. 99) dispõe sobre a constitucionalidade da exigência da unanimidade:
a Lei Complementar nº 24/1975 simplesmente atendeu aos comandos constitucionais, disciplinando, com riqueza de detalhes, o exercício da competência para conceder ou revogar isenções, incentivos ou benefícios fiscais, em matéria de ICMS. Outro entendimento brigaria com a ideia de que o art. 155, §2º, XII, “g”, da CF visa evitar a ‘guerra fiscal’ entre as Unidades Federadas”.
Para o jurista Martins (2012, apud DE OLIVEIRA JUNIOR, 2015, p. 99), a unanimidade nas decisões dos convênios, com fulcro nos artigos 155, §2º, IV, V e VI, 146-A e 170, IV, da CF/88, é uma proteção constitucional, pois:
ao criar um sistema de controle de determinação de alíquotas internas e interestaduais pelo Senado Federal; determinou, também, a observância, pelos Estados e DF, do princípio da livre concorrência, como forma de evitar a descompetitividade dos produtos de um Estado em relação aos outros.
Diante de tamanha controvérsia, essa questão da unanimidade foi questionada na Suprema Corte brasileira mediante ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 198/DF, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA) e teve seu julgamento recentemente finalizado, prevalecendo a decisão pela constitucionalidade da norma.
Com a recepção da Lei 24/1975 reforçou-se a obrigação constitucional de aprovação dos benefícios fiscais pelo colegiado formado pelos representantes estaduais, isto é, qualquer benefício fiscal relativo ao ICMS deve ser aprovado pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) para ser legalmente instituído nos respectivos estados. Assim, fica definido que as leis que instituíram benefícios fiscais sem o seguimento dessas regras são irregulares, isto é, inconstitucionais. Consequentemente, todos os efeitos produzidos por essas também o são, o que acarretam sequências de atos irregulares em razão da natureza do imposto e da cadeia econômica em que ele é inserido. Esse entendimento é reiteradamente exarado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
EMENTA: CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR. ICMS. RESPEITO AO PACTO FEDERATIVO NA CONCESSÃO DE ISENÇÕES, INCENTIVOS E BENEFÍCIOS FISCAIS. EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE DELIBERAÇÃO DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL NA FORMA DA LEI COMPLEMENTAR. INCONSTITUCIONALIDADE NA CONCESSÃO UNILATERAL. PROCEDÊNCIA. 1. As competências tributárias deverão ser exercidas em fiel observância às normas constitucionais, que preveem, especificamente, limitações ao poder de tributar, com a consagração de princípios, imunidades, restrições e possibilidades de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais. 2. A deliberação dos Estados e do Distrito Federal para a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais de ICMS é exigência direta do texto constitucional, assim como a observância da disciplina constante na lei complementar, que constitui uma das matérias básicas de integração do Sistema Tributário Nacional, no sentido de desrespeito ao equilíbrio federativo (guerra fiscal). 3. Desrespeito à alínea “g” do inciso XII do § 2º do artigo 155 da Constituição Federal em decorrência da concessão unilateral de isenção fiscal no ICMS pela Lei estadual de Santa Catarina 11.557/2000. 4. Medida cautelar confirmada. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 2357, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-200 DIVULG 13-09-2019 PUBLIC 16-09-2019)
Os estados, atuando como fomentadores da economia local, vêm-se invariavelmente obrigados a implementar políticas públicas que aqueçam o mercado econômico e contribuam para o desenvolvimento regional. A perene cobrança pela diminuição do desemprego e por um crescimento econômico constante faz com que os governos estaduais busquem todo e qualquer tipo de alternativa para solucionar essas questões e transformar o ambiente no qual estão inseridos. Além disso, conforme estudo de Vogas (2010, p. 105), não obstante o mercado financeiro e empresarial estejam frequentemente discursando por uma menor intervenção do Estado na economia, quando necessitam estabelecer vantagens competitivas ou aumentar sua lucratividade, encontram como uma das primeiras alternativas a solicitação de auxílio governamental em termos fiscais.
Diante de tantas pressões, uma alternativa frequentemente encontrada pelos estados para a atração de investimentos privados é a instituição de benefícios fiscais no âmbito do ICMS. Como esse é o principal imposto de competência estadual em termos de arrecadação e por incidir sobre uma vasta cadeia (produção, circulação e o consumo), qualquer alteração em sua sistemática atinge fortemente os atores envolvidos. Todavia, por ser uma prática de dezenas de entes, tornou-se uma verdadeira disputa entre eles, alguns querendo atrair empresas e, assim, gerar desenvolvimento, outras querendo mantê-las e, com isso, não prejudicar a região onde ela se encontra. Contudo, essa “guerra fiscal” não é apenas ideológica ou argumentativa, ela influencia fortemente no âmbito econômico dos estados e das empresas, representando cifras bilionárias. Alves (2001, p. 29) conceitua a guerra fiscal “como um processo pelo qual os entes federativos buscam interferir no processo privado de alocação espacial dos investimentos, seja na realocação das plantas já existentes ou na alocação de uma nova planta”. Para Costa (2002, apud COUTINHO, 2011, p.124), a guerra fiscal caracteriza-se como uma “descoordenada política descentralizada de atração de investimentos privados, mediante renúncia explícita do ICMS”.
Em razão da ineficiência do governo federal em alcançar os objetivos constitucionais fundamentais de garantia do desenvolvimento nacional e da redução das desigualdades sociais e regionais, é defendida por muitos a implantação de políticas fiscais desonerativas como alternativa para buscar aqueles objetivos. No entanto, embora defenda o uso racional dessa política, Coutinho (2011, p. 124) declara que o ponto em que se chegou essa disputa entre os estados, com a desenfreada desoneração, ultrapassou os limites:
a guerra fiscal é sinal maior das radicalizações e ressentimentos locais e regionais, decorrentes de políticas públicas incapazes de conter o déficit na capacidade de investimento público, assim como as desigualdades regionais gritantes, fruto da ausência de projetos de desenvolvimento pactuados nacionalmente e de posturas políticas desesperadas, de caráter nitidamente desagregador.
Repisa-se que o ICMS é um imposto plurifásico que incide em todas as etapas da formação, transporte e comercialização de produtos, sendo que, os contribuintes que vendem o produto ou prestam o serviço debitam o imposto e aqueles que os compram se creditam do ICMS anteriormente pago. Infelizmente, dentro de um contexto de guerra fiscal, esse mecanismo do débito e crédito, que deveria proteger o consumidor final, torna-se um perigoso direito aos contribuintes compradores.
Apesar da tentativa de se criar legislações complexas para mascarar a concessão de benefícios fiscais inconstitucionais, os estados prejudicados rapidamente insurgem-se e procuram o respaldo judicial junto à Corte Maior brasileira para expelir do ordenamento jurídico esses benefícios fiscais. Entretanto, a morosidade do judiciário faz com que os estados busquem alternativas para diminuir as perdas estatais, sendo uma delas, a punição aos contribuintes situados em seus próprios territórios, quando esses adquirem produtos ou tomam serviços de empresas dos outros estados que se beneficiam de vantagens consideradas indevidas. Segundo Moreira (2001, apud VOGAS, 2010, p.104),
tais entes tributantes passaram a tomar medidas indiretas para exigir dos contribuintes, que adquiriram mercadorias ou tomaram serviços das empresas unilateralmente incentivadas, o valor equivalente à vantagem obtida junto ao estado de origem, limitando o creditamento do imposto relativo às operações anteriores, em total agressão ao regime jurídico do ICMS, estabelecido pelo Texto Maior.
Enquanto o judiciário não expurga a lei do ordenamento jurídico, o contribuinte adquirente de boa-fé, aquele que pagou pelo imposto quando da compra da mercadoria e normalmente se utilizou do direito ao crédito desse, é penalizado pelo seu próprio Estado, através da constituição do crédito fiscal pelo Fisco autuador. Em outras palavras, o contribuinte recebe Auto de Infração e Imposição de Multa (AIIM) por se creditar de um valor desconhecidamente irregular, mesmo pagando corretamente ao vendedor. Para Vogas (2010, p. 108), “este é um dos mais perversos efeitos da guerra fiscal, pois se trata de reação que atinge terceiro/contribuinte, na maioria das vezes, sem conhecimento de que a mercadoria adquirida é incentivada na origem”. Por outro lado, o Fisco, que existe justamente para resguardar a legalidade e a coletividade, também está correto em considerar esse crédito como indevido e irregular, pois se tratava de um benefício fiscal irregular e que nunca foi de fato devido e recolhido aos cofres públicos, nos termos das legislações vigentes
Nessas situações, o contribuinte adquirente tem o crédito do imposto glosado pelo Fisco, rompendo totalmente o princípio da não cumulatividade do imposto, pois ele pagará duas vezes pelo imposto, mesmo que esse não chegue aos cofres públicos. Primeiro no momento da compra (embutido no valor) e depois na venda, quando da cobrança do AIIM. Além da glosa, também será atingido por multas e juros, sem poder repassar ao seu cliente todo esse custo, pois a mercadoria já terá sido vendida pelo preço normal. Desse modo, fica claro que a guerra fiscal traz prejuízos e insegurança jurídica aos terceiros de boa-fé, por conta da tremenda dificuldade em se saber qual mercadoria adquirida ou serviço utilizado foi beneficiado ou não por um incentivo fiscal irregular. Conforme dispõe Vogas (2010, p. 111), “as armas que deveriam estar apontadas para as unidades federadas que concedem incentivos em desacordo com a Constituição Federal, na verdade, acabam se voltando para o contribuinte sediado no estado de destino”.
Dentro desse cenário de incertezas, dificuldades legislativas, interesses escusos e competitividade predatória, infelizmente, a população e os menores empresários acabam por suportar os efeitos colaterais dessa guerra que destrói a sociedade e a economia aos poucos.
A exigência de unanimidade nas decisões do CONFAZ praticamente impossibilita a aprovação da maioria dos benefícios pleiteados junto ao conselho, visto que a renúncia fiscal de um estado para atrair investimentos privados, na maioria das vezes, representa a perda desses em um outro. Constantemente, algum membro do conselho vota contra o benefício, o que impede o desenvolvimento dos projetos. Por conta disso, os estados simplesmente ignoraram as claras exigências legislativas e começaram a estabelecer incentivos fiscais unilaterais sem a chancela do CONFAZ.
Tal desenrolar dos fatos acarretou em constantes buscas de respaldo judicial para que fosse respeitada a Lei 24/1975 e, consequentemente, culminou com dezenas de decisões declarando a inconstitucionalidade das legislações que não a seguiam. O excesso de socorro junto ao Supremo e a consolidada posição do órgão levou à apresentação da proposta de Súmula Vinculante nº 69, com a seguinte redação: “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional”.
Todavia, em razão da enorme quantidade de benefícios concedidos e dos bilhões de reais em que as partes envolvidas poderiam ter que suportar com Autos de Infração e Imposições de Multas, a depender da modulação dos efeitos dessa súmula vinculante, fez com que o trâmite dessa praticamente parasse. Mas isso não era suficiente, pois a existência dessa proposta e a solidificada posição do Supremo em relação à inconstitucionalidade das legislações que não respeitam a Lei 24/75, ainda trazia insegurança as empresas envolvidas indiretamente na guerra fiscal. Desse modo, o Congresso Nacional chegou a uma solução política e aprovou a Lei Complementar nº 160/2017, a qual
dispõe sobre convênio que permite aos Estados e ao Distrito Federal deliberar sobre a remissão dos créditos tributários, constituídos ou não, decorrentes das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais instituídos em desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2o do art. 155 da Constituição Federal e a reinstituição das respectivas isenções, incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais”
Art. 1o Mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar no 24, de 7 de janeiro de 1975, os Estados e o Distrito Federal poderão deliberar sobre:
I - a remissão dos créditos tributários, constituídos ou não, decorrentes das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais instituídos em desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2o do art. 155 da Constituição Federal por legislação estadual publicada até a data de início de produção de efeitos desta Lei Complementar;
II - a reinstituição das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais referidos no inciso I deste artigo que ainda se encontrem em vigor.
Art. 2o O convênio a que se refere o art. 1o desta Lei Complementar poderá ser aprovado e ratificado com o voto favorável de, no mínimo:
I - 2/3 (dois terços) das unidades federadas; e
II - 1/3 (um terço) das unidades federadas integrantes de cada uma das 5 (cinco) regiões do País.
Art. 5o A remissão ou a não constituição de créditos concedidas por lei da unidade federada de origem da mercadoria, do bem ou do serviço afastam as sanções previstas no art. 8º da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, retroativamente à data original de concessão da isenção, do incentivo ou do benefício fiscal ou financeiro-fiscal, vedadas a restituição e a compensação de tributo e a apropriação de crédito extemporâneo por sujeito passivo.
Além disso, a entrada em vigor dessa lei possibilitou aos próprios entes estatais, através de convênio CONFAZ, solucionarem os conflitos vigentes da guerra fiscal, sem necessitarem aguardar o desfecho das decisões judiciais e a modulação dessas e, conforme visualiza-se no artigo 2º supra, quiçá ainda mais relevante, sem a imperativa unanimidade para a sua aprovação.
Carvalho e Martinelli (2018, p. 931) resumem brilhantemente a lei:
Tecnicamente, a lei tratou da regularização dos benefícios fiscais com (i) a remissão dos créditos tributários de fatos geradores ocorridos anteriormente à publicação da lei, quando previu em seu artigo 5º a publicação de lei remitindo o passado pelas diversas unidades federadas e gerando efeito retroativo no tocante às sanções previstas no artigo 8º da Lei Complementar nº 24/75; (ii) uma espécie de revogação tácita com a publicação, o registro e depósito dos benefícios regularizados; e (iii) a posterior reinstituição dos mesmos benefícios para fruição por prazos que variam entre um a quinze anos, contados a partir do primeiro dia do exercício seguinte ao de publicação da lei, de acordo com a natureza do benefício originariamente concedido.
Diante dessa maior facilidade para aprovação, em dezembro do mesmo ano, o conselho se reuniu e aprovou o Convênio ICMS 190/17:
Cláusula primeira Este convênio dispõe sobre a remissão dos créditos tributários, constituídos ou não, decorrentes das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais, relativos ao Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS, instituídos, por legislação estadual ou distrital publicada até 8 de agosto de 2017, em desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, bem como sobre a reinstituição dessas isenções, incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais, observado o contido na Lei Complementar nº 160, de 7 de agosto de 2017, e neste convênio.
Vislumbra-se que, compete aos estados-membros cumprir o que consta no respectivo convênio para que os benefícios fiscais irregulares instituídos até a data em que entrou em vigor a Lei 160/17 sejam regularizados e, com isso, traga segurança jurídica a todos os envolvidos.
Outra importante questão para resguardar os contribuintes envolvidos na guerra fiscal é a necessidade de os estados saírem da inércia e publicarem leis que remitam os débitos ou proíbam a constituição de créditos tributários que envolvam esses benefícios:
Cláusula décima quinta A remissão ou a não constituição de créditos tributários concedidas por lei da unidade federada de origem da mercadoria, do bem ou do serviço, nos termos deste convênio, afastam as sanções previstas no art. 8º da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, retroativamente à data original de concessão dos benefícios fiscais de que trata a cláusula primeira, vedadas a restituição e a compensação de tributo e a apropriação de crédito extemporâneo por sujeito passivo.
A reemissão, que “é o perdão da dívida pelo credor, é a liberação graciosa (unilateral) da dívida pelo Fisco” (SABBAG, 2018, p. 1002), que se trata de uma causa extintiva do crédito tributário (aquilo que é cobrado do contribuinte a partir de uma ação fiscal) e as futuras não constituições desses, somente poderão ocorrer quando os estados efetivamente publicarem as leis com esses fins, conforme entendimento do artigo 5º da Lei 160/17 e a cláusula 15ª do convênio CONFAZ 190/17. Assim, para que toda a farra de irregularidades seja revertida, não bastará a usual prática política de ignorar o malfeito e se beneficiar da morosidade dos tribunais superiores no julgamento desse tipo de questão, deverão, também, os estados que criaram toda esse problemática agirem dentro de suas competências, nos termos da legislação criada, para socorrer os contribuintes de boa-fé.
Enfim, depois de muita discussão, com a aprovação dessa regularização, procura-se garantir a segurança jurídica e o respaldo de que as empresas não serão autuadas por se apropriarem desses benefícios antigos, visto que os contribuintes são, concedendo o benefício da dúvida, partes de boa-fé em todo esse processo. Contudo, não é possível afirmar que tudo se resolveu e que a guerra fiscal acabará. Devido à usual prática de auxílios tributários às empresas e as consequências que uma abrupta retirada dos benefícios poderia proporcionar àquelas, os legisladores, através do artigo 3º, §2º da própria Lei 160/17, permitiram a manutenção desses benefícios fiscais em até 15 anos da data em que os efeitos do convênio começarem a produzir efeitos. Tal permissão significa que os benefícios que criaram todo esse dilema jurídico-tributário ainda serão concedidos e causarão muito debate por, pelo menos, 15 anos.
Além disso, todo esse malabarismo resolutivo foi em referência aos benefícios que já estavam em vigor, mas nada mudou em relação a instituição de novas renúncias tributárias referentes ao ICMS. Ainda prevalece no ordenamento legal que a instituição de novos benefícios fiscais deve seguir todo o rito da Lei 24/75, ou seja, perdoaram aquilo que estava errado, mas mantiveram o que originou tudo, o ICMS e seus complexos regramentos e a unanimidade para a validação de novos benefícios fiscais.
Diante de todo o exposto, se por um lado é pujante e cristalina a irregularidade dos benefícios que não seguem a Lei 24/75, por outro conclui-se que as regras da lei retro que exigem unanimidade nas decisões colegiadas são prejudiciais ao estado democrático. Ocorre que as soluções utilizadas pelos estados para contornar tais dificuldades durante as últimas décadas foram ainda mais nocivas à população e ao pacto federativo, já que o que havia sido proposto para impulsionar o crescimento autônomo dos entes, tornou-se, em verdade, uma derrocada competitiva, isto é, uma grande Guerra Fiscal.
Nesse cenário, é compreensível o desfecho político orquestrado para regularizar os benefícios fiscais inconstitucionais, em uma tentativa de se evitar crises financeiras e econômicas bilionárias que estavam sendo previstas como reflexos das decisões judiciais. No entanto, considerando toda a conjuntura exposta, a qual originou e provocou a situação em que se encontra a questão do ICMS, é de clareza solar a imperativa necessidade de uma reforma tributária consistente. Reforma essa que altere a estrutura e as regras de tributação sobre o consumo, deixando-as mais claras, compreensivas e com maior facilidade de implementação, de forma que mantenha a autonomia tributária dos estados e, simultaneamente, solidifique o respeito ao pacto federativo prescrito na Carta Magna, impedindo que aqueles se utilizem de manobras tributárias que poderiam conduzir ao cenário de constantes batalhas econômicas e judiciais.
A aprovação da Lei Complementar 160/17 e do convênio CONFAZ 190/17 foi um grande passo para perdoar os erros passados e garantir segurança jurídica ao sistema econômico do ICMS. Todavia, diante da possibilidade de prorrogação dos controversos benefícios fiscais por mais 15 anos, acrescida da manutenção das mesmas regras que originaram toda essa grande guerra fiscal, é reluzente a previsibilidade de, em um futuro breve, descobrir-se que tudo foi apenas um grande teatro político para burlar o sistema jurídico e econômico e, assim, normalizar as práticas ilegais, sem o real intuito de findar-se com elas. Enquanto isso, perpetua-se o anseio nacional por uma profunda reforma tributária, sendo essa a inevitável solução para o fim da guerra fiscal.
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Bacharelando do Curso de Direito da Universidade Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARENO, EVANDRO. Guerra fiscal e a regularização dos benefícios fiscais de ICMS inconstitucionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 abr 2021, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56347/guerra-fiscal-e-a-regularizao-dos-benefcios-fiscais-de-icms-inconstitucionais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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