ALINE SILVEIRA KRUGUEL
(coautora)
RENATA MIRANDA DE LIMA[1]
(orientadora)
RESUMO: O Exercício da liberdade religiosa vem sendo muito discutida em tempos da pandemia causada pela COVID-19, essa pesquisa tem como finalidade provocar algumas reflexões no exercício desse direito e analisar a legitimidade das intervenções estatais no tocante a essa liberdade, buscando compreender as ações dos administrados através do poder de polícia, verificando se houve excesso nas restrições e violações aos direitos fundamentais, de forma que rompesse o núcleo essencial de tais direitos. Como metodologia, trata-se de uma pesquisa aplicada, com abordagem qualitativa, com objetivos explicativo e exploratório, utilizando-se como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica, assim, pretende-se demonstrar o surgimento da liberdade religiosa e a sua relação com o Estado, sobretudo o tratamento conferido ao exercício da liberdade religiosa em tempos de pandemia causada pela COVID-19, versando sobre a razoabilidade e a proporcionalidade. Em síntese verificou-se que em alguns casos, esse direito fora de fato restrito de forma autoritária por parte do Estado.
Palavras-chave: Estado. Restrições. Liberdade Religiosa. Pandemia.
ABSTRACT: The religious freedom exercise has been discussed during the pandemic caused by COVID-19, this research aims to provoke some reflections about the exercise of this right and analyze the legitimacy of the state interventions when it come to this freedom, seaking to comprehend the actions of the administrators through the police power, verifying if there was excess in the restrictions and violations to the fundamental rights, in a way that would have a rupture on the essential nucleus of these rights. When it comes to the methodology, it is an applied research with a qualitative approach, with explicative and exploratory objectives, using as a methodological procedure the bibliographic research, thereby, it is intended to demonstrate the emergence of the religious freedom and its relation to the State, especially the treatment given to the exercise of religious freedom during the pandemic caused by COVID-19, talking about the reasonableness and proportionality. In summary, it was verified that in some cases this right was in fact restricted authoritatively by the State.
Keywords: State. Restrictions. Religious Freedom. Pandemic.
1.INTRODUÇÃO
Em março de 2020, mais especificamente no dia 11, a Organização Mundial da Saúde - OMS definiu o estágio de contaminação do COVID- 19 como pandêmico, desde então a liberdade religiosa vem sendo bastante discutida e diversas leis, decretos e medidas provisórias estão sendo editadas, seja no que diz as restrições para proteção da saúde e vida ou até onde a liberdade religiosa pode ser limitada.
Vem sendo editado decretos pelos governadores dos Estados e alguns prefeitos com medidas para tentar frear a proliferação desse vírus, esses decretos proíbem aglomeração de pessoas, restrições em horário de saída para a rua, entre outras restrições.
É importante salientar que, por mais que sejam necessárias essas medidas restritivas que estão sendo impostas, não podem limitar de forma absoluta que a população que segue uma religião, sejam impedidos de buscarem ensinamentos religiosos, seja de forma virtual ou presencial com as devidas medidas preventivas.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, dispõe em seu artigo 5º, sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, estabelecidos como direitos e garantias fundamentais. A liberdade Religiosa encontra-se prevista no inciso VI, onde consiste em um direito fundamental de primeira geração relacionado com os direitos civis e políticos.
O Estado, com seu poder de polícia, não pode fiscalizar intensamente as organizações religiosas e cultos domésticos ao ponto de representar de forma excessiva uma restrição do direito fundamental, pois estaria sendo uma negação de um direito fundamental, o que não é admitido nem mesmo por emenda constitucional, seria uma violação a uma cláusula pétrea.
Por fim, as organizações religiosas vêm adaptando seus cultos e encontros religiosos de acordo com os decretos, a fim de respeitar as normas e não causar aglomeração, contribuindo para que o vírus não se espalhe. Estão sendo realizadas transmissões de cultos online para os fiéis, facilitando a prestação religiosa à comunidade.
2.DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
A Constituição Federal de 1988, em seu título II estabelece os direitos e garantias fundamentais e são qualificados de fundamentais, porquanto constituem o alicerce, a base, o suporte, a pedra de toque do suntuoso edifício constitucional. (BULOS, 2018, p. 508).
Nesse sentido, necessária é a distinção entre direitos e garantias fundamentais, pois tais direitos não se confundem com garantias fundamentais. Os direitos fundamentais se referem aos direitos da pessoa humana consagrados em um determinado momento histórico e em um certo Estado. São direitos constitucionalmente protegidos, ou seja, estão positivados em uma determinada ordem jurídica. Os direitos fundamentais são os bens e vantagens disciplinados pela referida Carta Magna.
No que se refere às garantias fundamentais, são formas que protegem esses bens; assim dizendo, são os instrumentos jurídicos por meio dos quais tais direitos se exercem, limitando os poderes do Estado.
Assim, os direitos fundamentais consagram disposições meramente declaratórias (imprimem existência legal aos direitos reconhecidos). Já as garantias fundamentais contêm disposições assecuratórias (defendem direitos, evitando o arbítrio dos Poderes Públicos) [República: teoria e prática (textos doutrinários sobre direitos humanos e políticos consagrados na primeira Constituição da República), p. 121]. (BULOS apud BARBOSA, 2018, p. 533).
Ainda nos valendo das lições do professor Uadi Lammêgo Bulos, o mesmo explica que: em uma mesma norma constitucional, contudo, garantias podem vir disciplinadas junto com direitos. O direito de crença vem estabelecendo a garantia da liberdade de culto (Art. 5º, VI da CF/88), o direito de expressão vem estabelecendo a garantia da proibição à censura (Art. 5º, IX da CF/88) e o direito à ampla defesa vem estabelecendo a garantia do contraditório. (Art. 5º, LV da CF/88), entre outros. (2018, p. 533 grifo nosso).
Com a complexidade do mundo moderno a doutrina apresenta-nos a identificação de direitos fundamentais de primeira, segunda, terceira, quarta, quinta e sexta geração, os quais formatam novos conjuntos normativos, cuja autonomia gera, por decorrência, novos ramos, num processo permanente, fundamentando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos.
Nessa perspectiva, far-se-á uma conceituação ao direito de primeira, segunda e terceira geração, para melhor entendimento desse estudo e em especial aos direitos de primeira geração que compreende os direitos de liberdade, o qual se encontra a liberdade religiosa prevista no artigo 5º, inciso VI da Constituição Federal de 1988, onde consiste em um direito fundamental relacionado com os direitos civis e políticos, atrelada à dignidade da pessoa humana, uns dos princípios basilares que rege todo o nosso ordenamento jurídico brasileiro.
De acordo com o entendimento de MAZZUOLI apud PAULO BONAVIDES (2021. p. 43), os direitos da primeira geração são os direitos de liberdade lato sensu, sendo os primeiros a constarem dos textos normativos constitucionais, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, sob o ponto de vista histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo ocidental. Trata-se dos direitos que têm por titular o indivíduo, sendo, portanto, oponíveis ao Estado (são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado). Como exemplos, podem ser citados os direitos à vida, à liberdade (de locomoção, reunião, associação, de consciência, crença, etc.), à igualdade, à propriedade, ao nome, à nacionalidade, dentre tantos outros.
Ainda, segundo MAZZUOLI apud PAULO BONAVIDES (2021. p. 43), os direitos da segunda geração, por sua vez, nasceram a partir do início do século XX e compõem-se dos direitos da igualdade lato sensu, a saber, os direitos econômicos, sociais e culturais, bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo do Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Tais direitos foram remetidos à esfera dos chamados direitos programáticos, em virtude de não conterem para a sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Várias Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5.º, § 1.º). Com efeito, até então, em quase todos os sistemas jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os direitos da liberdade eram de aplicabilidade imediata, ao passo que os direitos sociais tinham aplicabilidade mediata, por via do legislador.
Os direitos de terceira geração, são os que se assentam no princípio da fraternidade, deles fazendo parte; entre outros, o direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade. Segundo pensa-se, tais direitos foram fortemente influenciados pela temática ambiental, nascida no mundo a partir da década de 1960, estendendo-se, depois, para outras áreas (como, v.g., a do direito à comunicação). De fato, se no plano do direito constitucional tais direitos já se estabeleceram, no que tange a órbita internacional, apenas recentemente os documentos internacionais começaram a prever alguns desses direitos (não todos). Dentre eles, destaque-se novamente o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, hoje consagrado tanto nos documentos internos (Constituições) como nos de índole internacional (tratados de direitos humanos), por MAZZUOLI apud BONAVIDES (2021. p. 43).
É importante salientar que não existe nenhuma ordenação ou continuação entre os direitos fundamentais, devendo ser tratados como valores interdependentes e indivisíveis. O crescimento desses direitos não seguiu a ordem cronológica de liberdade, igualdade, fraternidade em todos os lugares ou situações históricas. Em outras palavras, nem sempre foram reconhecidos os direitos de primeira geração para simplesmente depois serem reconhecidos os de segunda e terceira geração. A doutrina moderna vem defendendo a ideia de acumulação de direitos, assim, fazendo também a utilização da nomenclatura dimensões de direitos fundamentais.
2.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PRIMEIRA GERAÇÃO: DIREITOS INDIVIDUAIS;
Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar dos movimentos revolucionários que sacudiram especialmente a Europa e a América do Norte, nos Séculos XVII e XVIII, bem como do pensamento liberal-burguês que marcou tal período, identificado com a noção de que a finalidade do Estado consiste na realização da liberdade individual. (LINHARES, SEGUNDO, 2016, p. 383)
Ainda, no entendimento de (LINHARES, SEGUNDO, 2016, p. 383), são por tal motivo apresentados, como direitos de cunho “negativo”, uma vez que dirigidos a uma abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, nesse sentido, “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”. Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notória inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei, sendo posteriormente complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim, denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação, etc.) e pelos direitos de participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a democracia.
Nessa perspectiva, os direitos fundamentais de primeira geração, como vimos anteriormente, foram os primeiros direitos a surgirem na humanidade e a integrarem o instrumento normativo constitucional, são chamados de direitos Civis e direitos políticos e só poderiam ser alcançados por meio da privação do controle do Estado, já que o seu exercício interfere na liberdade do indivíduo.
Direitos Civis compreendem as liberdades, como direito de ir e vir, direito à religião, liberdade de expressão, direito de propriedade, a liberdade de ação e legalidade; as garantias constitucionais como, por exemplo o Habeas Corpus, o devido processo legal, tudo isso são de natureza Civil, são direitos voltados para o indivíduo, para a pessoa, ou seja, são direitos que defendem a dignidade da pessoa humana, por exemplo, a proteção à integridade física, psíquica e moral contra o abuso de poder ou qualquer outra forma de opressão estatal.
Os direitos políticos asseguram a participação popular na administração do Estado. O núcleo desse direito envolve o direito ao voto, direito a ser votado, direito a ocupar cargos ou funções políticas e por fim o direito a permanecer nesses cargos. São direitos de cidadania, que asseguram os direitos ligados ao processo eleitoral, como filiação partidária, alistamento eleitoral e a alternância de poder. (SOUZA, 2017)
Nesse sentido, a liberdade religiosa faz parte do rol dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 que compreende os direitos de liberdade, o qual pertence aos direitos fundamentais de primeira geração. Destarte, segundo (BULOS, 2018, p. 530), a primeira geração, surgida no final do século XVII, inaugura-se com o florescimento dos direitos e garantias individuais clássicos [...], prestigiavam-se as cognominadas prestações negativas, as quais geravam um dever de não fazer por parte do Estado, com vistas à preservação do direito à vida, à liberdade de locomoção, à expressão, à religião, à associação, etc. (Grifo nosso).
Conforme parecer emitido pelo o Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito e Religião – IBDR em março de 2020, destaca que a liberdade de pensamento, de consciência e de religião é um direito tutelado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, pela Convenção Americana de Direitos Humanos. Trata-se de um princípio que está intrinsecamente vinculado à inviolabilidade da dignidade da pessoa humana.
Como afirma a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 18. ‘’. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.’’ (Assembleia Geral da ONU, 1948).
Vale ressaltar que a Carta Magna de 1988, estabelece que o Brasil é um Estado Laico e consagra a inviolabilidade de crença religiosa, proporcionando também a proteção à liberdade de culto. Tal afirmativa, significa uma quase separação total entre o Estado e a religião, não existindo nenhuma religião oficial, porém, exigindo que o Estado preste proteção a garantia do livre exercício de todas as religiões.
O Estado Brasileiro enaltece a liberdade religiosa como as mais importantes garantias constitucionais, e reconhece como imprescindível na busca do bem comum social. Assim, a advogada especialista em direito eclesiástico, Drª Tais Amorim de Andrade Piccinini em sua obra, “Manual prático de direito eclesiástico”, ensina que a liberdade religiosa não é apenas um direito, mas um complexo de direitos, compreendendo:
1) a liberdade de consciência;
2) a liberdade de crer ou não crer;
3) a liberdade de culto enquanto manifestação da crença;
4) o direito à organização religiosa; e
5) o respeito à religião. A liberdade religiosa mais interna – a da consciência – é inatacável por qualquer poder que seja externo à individualidade do cidadão. A liberdade de consciência é prévia à liberdade de crença. A liberdade de consciência é a possibilidade de acreditar ou não. A liberdade de crença é a liberdade que gera a possibilidade de escolha daquilo em que se acredita. Ou seja, a liberdade de crença não se localiza no Estado e não permite interferência do Estado, vez que é um elemento da própria individualidade. A liberdade de crença, portanto diz respeito à esfera da intimidade e da privacidade do indivíduo. A liberdade de culto é a exteriorização e a demonstração plena da liberdade de religião que reside interiormente. (2015, pág. 48-49)
Os advogados, Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina, em sua obra ‘’Direito religioso: questões práticas e teóricas’’, ensinam que: os direitos fundamentais dos seres humanos, entre eles as liberdades de crença e de culto que expressam a liberdade religiosa, são os formadores das instituições democráticas, os quais só podem ter eficácia e vez num Estado Constitucional. (2020, p. 89).
O constitucionalista Alexandre de Moraes, ensina que a conquista constitucional da liberdade religiosa é a verdadeira consagração de maturidade de um povo [...] (2021, p. 144), assim sendo, importante na luta dos direitos fundamentais, mas também como um desenvolvimento da liberdade de pensamento e manifestação.
Não podemos olvidar que das liberdades, a liberdade religiosa é, senão a mais importante, uma das mais importantes liberdades. A liberdade religiosa é a pedra de toque dos direitos fundamentais e dela decorre a liberdade de consciência e de expressão. A liberdade de religião é gênero, enquanto a liberdade de consciência e de expressão é espécie da liberdade de pensamento. (VIEIRA, REGINA, 2020, p. 101).
Dito isso, a liberdade religiosa é uma liberdade matricial das demais liberdades, dela decorre todas as outras liberdades e sendo a mais importante, somente ela responde às principais indagações do homem como, por exemplo, quem somos? De onde viemos? Para aonde vamos? E todas as liberdades, tem a sua essencialidade, o seu núcleo direto, uma conexão direta com a dignidade da pessoa humana e tem como fim principal oportunizar dignidade para as pessoas.
Portanto, somente através da liberdade, inclusive religiosa que se consegue uma sociedade justa, fraterna e pluralista, devendo ter tolerância em relação às confissões religiosas, onde não haja nenhuma discriminação, abuso de poder ou qualquer outra forma de opressão estatal.
3.LIBERDADE RELIGIOSA E ESTADO
Iniciou-se a separação entre religião e estado a partir do século XVI, nesta época ocorreu a reforma protestante, em que influenciou na perda do poder papal. No século XVIII aconteceram vários episódios que contribuíram para o surgimento da laicidade nos países, como a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos, com esses acontecimentos os países começaram a separar a religião de estado, elevando cada vez mais o estado laico.
Com a separação entre o estado e a religião, aquele não deve adotar uma religião oficial, realizar alianças com qualquer instituição, ou mesmo adotar símbolos religiosos, ou seja, impõe-se ao estado uma obrigação de não fazer.
O Brasil, ao se afirmar como um país laico, tem o dever de proteger a liberdade religiosa e não influenciar determinada religião à população, essa liberdade religiosa, é o direito de expressar sua religião, viver conforme suas tradições, realizar cultos, sem que o Estado possa intervir, mas é claro que se o modo de exercício dessa religião for através de um crime disposto no código penal brasileiro, esse não ficará impune.
Nesse sentido, Paulo e Alexandrino ressaltam que “[...] não podem os direitos fundamentais ser utilizados como escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil, ou penal por atos criminosos, sob pena da consagração do desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. [...]” (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 104).
Um mestrando chamado Warton Hertz de Oliveira em sua monografia relata um fato muito importante sobre a liberdade religiosa na Constituição da República Federativa de 1988:
Não obstante, seja o nosso país um Estado laico, o constituinte de 1988
assume a responsabilidade de reconhecer a religiosidade da nação, invocando a Deus em seu preâmbulo, e não se contentando apenas em tutelar a liberdade de escolha religiosa, mas também assegurando e, até mesmo, facilitando e incentivando o livre exercício das várias religiões existentes no país. (OLIVEIRA, 2015).
O artigo 19 e 5º, inciso VI da Carta Magna dispõem sobre o exercício da liberdade religiosa:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles, ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
II - recusar fé aos documentos públicos;
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes
[...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (BRASIL, 1988).
O 2019-nCov surgiu em 2019 na cidade de Wuhan na China e foi identificado pela Organização Mundial da Saúde e pelas autoridades da China como coronavírus.
No dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde definiu o estágio de contaminação do COVID-19 como pandêmico, nesse cenário a liberdade religiosa vem sendo bastante discutida, seja no que diz às restrições para proteção da saúde e vida ou até que ponto essa liberdade pode ser restringida pelo Estado, se está ocorrendo violações graves a esse direito fundamental, se o Estado está interferindo, se está ocorrendo conflito de interesses, seja por parte do Estado, seja por parte da população religiosa, entre outros assuntos.
O Decreto de nº 10.292 de 2020 incluiu no decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020 a atividade religiosa como essencial e poderá ser exercida no período pandêmico:
Art. 3º As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 2020, deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 1º.
§ 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como:
[...]
XXXIX - atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas às determinações do Ministério da Saúde; e (Incluído pelo Decreto nº 10.292, de 2020). (BRASIL, 2020).
No que diz respeito às restrições, o art. 3º da lei 13.979/2020 dispõe sobre algumas medidas que poderão ser adotadas para o enfrentamento do coronavírus:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020)
III - determinação de realização compulsória de:
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
e) tratamentos médicos específicos;
III-A – uso obrigatório de máscaras de proteção individual; (Incluído pela Lei nº 14.019, de 2020)
IV - estudo ou investigação epidemiológica;
V - exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;
VI – restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020)
a) entrada e saída do País; e (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)
b) locomoção interestadual e intermunicipal; (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)
VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e
VIII – autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus, desde que: (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020).
Após o posicionamento contrário do Presidente da República no que diz respeito ao isolamento, surgiram vários questionamentos entre os governadores e prefeitos dos estados brasileiros; se deveriam ou não seguir o posicionamento do presidente, a questão foi levada ao Superior Tribunal Federal –STF sob a ADPF 672 / DF, que ratificou que os estados têm competência concorrente desta matéria, segue um trecho da decisão relatada pelo Ministro Alexandre de Morais:
Presentes, portanto, a plausibilidade inequívoca de eventual conflito federativo e os evidentes riscos sociais e à saúde pública com perigo de lesão irreparável, CONCEDO PARCIALMENTE A MEDIDA CAUTELAR na arguição de descumprimento de preceito fundamental, ad referendum do Plenário desta SUPREMA CORTE, com base no art. 21, V, do RISTF, para DETERMINAR a efetiva observância dos artigos 23, II e IX; 24, XII; 30, II e 198, todos da Constituição Federal na aplicação da Lei 13.979/20 e dispositivos conexos, RECONHECENDO E ASSEGURANDO O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS GOVERNOS ESTADUAIS, DISTRITAL E SUPLEMENTAR DOS GOVERNOS MUNICIPAIS, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras; INDEPENDENTEMENTE DE SUPERVENIÊNCIA DE ATO FEDERAL EM SENTIDO CONTRÁRIO, sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário. (BRASIL, 2020).
Os Estados possuem o dever de cuidar da saúde pública; e autonomia para reger suas normas de acordo com o número de casos ativos e leitos disponíveis nos hospitais. Por outro lado, o Estado também possui o dever de observar o excesso de restrições quanto à liberdade religiosa, excesso esse que em alguns Estados beiram à intolerância religiosa.
A Carta Magna não prevê explicitamente qualquer restrição à liberdade religiosa, mesmo que o país esteja em estado de defesa ou de sítio, mas é possível a restrição, seja para preservar a vida, a saúde ou integridade física das pessoas, pois nenhum direito é absoluto, mas as restrições não podem deixar de observar o núcleo essencial, a razoabilidade e a proporcionalidade, não atingindo assim, o “limite dos limites”, teoria idealizada pelos doutrinadores constitucionalistas Gilmar Mendes e Paulo Gonet.
É também importante destacar sobre a proibição do excesso e a preservação do conteúdo essencial sobre o primeiro. Citam-se as restrições em excesso em que ocorreram no período pandêmico, como as interrupções de culto sem justo motivo. Sobre o último, seria a preservação ao direito de realizar cultos, expressar sua crença, realizar confissões religiosas, entre outros atos inerentes à religião.
A recomendação de distanciamento social conflita com a aglomeração em cultos religiosos, há outras alternativas que vem sendo utilizadas desde o início das restrições, como a transmissão de cultos online, número reduzido de pessoas, utilizando máscara e com o uso do álcool em gel.
Os Estados, com o seu poder de polícia administrativa, vêm realizando a fiscalização desses cultos, como será demonstrado a seguir uma matéria que foi feita ao longo da pandemia, o culto foi interrompido mesmo sem aglomeração, simplesmente por ter duas a três pessoas no local, seja uma gravando, uma realizando o culto e outra auxiliando.
Segue o trecho da reportagem de uma interrupção injusta de uma transmissão de culto online:
No momento da chegada dos policiais, no entanto, a Igreja estava transmitindo um culto online com a presença do líder religioso e integrantes que fora escalado naquele dia para a realização da transmissão apenas. O líder religioso pediu liberdade de culto em um vídeo publicado nas redes sociais e mencionou que: independente do que está acontecendo a nível político, a igreja é sagrada, é inviolável o direito de culto, é inconstitucional simplesmente entrar em uma igreja cheio de policiais e fechar as portas. Ademais, afirmou ainda que, não havendo irregularidades no templo, os policiais ameaçaram multar os veículos estacionados em frente à Igreja.
(CPAD NEWS, 2020).
Percebe-se que essa interferência acaba por ferir o direito fundamental, que é a liberdade religiosa, chegando a ser uma intolerância religiosa.
A liberdade religiosa, como um direito fundamental, deve ser analisada quando em conflito com outro direito, como o da vida e saúde, pois não há hierarquia entre esses direitos, devendo haver uma conciliação entre esses direitos considerando cada caso, para que ambos os lados não sejam prejudicados.
Nesta perspectiva, os doutrinadores, Paulo e Alexandrino realizam uma síntese:
Em síntese: na solução de conflito entre direitos fundamentais, deverá o intérprete buscar a conciliação entre eles (adoção do princípio da harmonização), considerando as circunstâncias do caso concreto, pesando os interesses em jogo, com o objetivo de firmar qual dos valores conflitantes prevalecerá. Não existe um critério para solução de colisão entre valores constitucionais que seja válido em termos abstratos; o conflito só pode ser resolvido a partir da análise das peculiaridades do caso concreto, que permitirão decidir qual direito deverá sobrepujar os demais, sem, contudo, anular por completo o conteúdo destes. (PAULO; ALEXANDRINO, 2017).
Portanto, cabe ao legislador analisar até que ponto poderão ser feitas as restrições ao direito de culto, ou seja, sob a liberdade religiosa, pois em que pese nenhum direito ser absoluto, isso não quer dizer que as restrições a essas liberdades podem ser ilimitadas.
4.O EXERCÍCIO DA LIBERDADE RELIGIOSA EM TEMPOS DE PANDEMIA;
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde – OMS classificou a doença, como causa decorrente do Coronavírus 2019 (COVID-19), como uma pandemia, baseada na verificação da circulação do vírus em todos os países. Com isso, diversas liberdades foram e ainda estão sendo restringidas, parcial ou totalmente, como a proibição de grandes aglomerações; restrição ao funcionamento de estabelecimentos comerciais, de transporte público, fechamento de escolas e universidades, entre outras instituições. Entre as instituições afetadas estão as organizações religiosas.
Nesse sentido, a situação em que se encontra a liberdade religiosa, em especial a liberdade de culto no Brasil, é diversa em cada Estado ou Município, pois em diversos pontos do nosso país ela esteve sob ataque severo, com restrições ilegais, que violam a ordem constitucional, por outro lado, não houve nenhuma restrição absoluta à liberdade de culto, uma vez que o Município e o Estado tomaram as igrejas por aliadas do poder Público.
As autoridades buscam tomar medidas rápidas e eficazes, mas por vezes, se tornam confusas, conflitantes e desproporcionais, sem considerar os direitos e garantias fundamentais. A seguir demonstram-se algumas matérias que foram feitas ao longo da pandemia causada pela COVID-19, bem como, a atividade legiferante Brasileira, no tocante ao exercício da liberdade religiosa e o funcionamento de templos religiosos, os quais em alguns casos foram interrompidos de forma repentina e autoritária.
Em abril de 2020, uma família teve um culto doméstico interrompido pela polícia militar na cidade de Forquilhinha/SC. Vejamos um trecho da reportagem:
A Polícia Militar de Santa Catarina interrompeu um culto doméstico com cinco pessoas na última quinta-feira (2) na cidade de Forquilhinha. [...] De acordo com o Boletim de Ocorrência, havia cinco pessoas da família orando na casa de Carina Andrade da Silva, 40 anos, membro da Assembleia de Deus em Forquilhinha (SC). O culto doméstico foi interrompido por policiais, que alegaram impedir a aglomeração de pessoas e evitar a propagação do novo coronavírus (Covid-19). Nenhum dos membros da família tinha conhecimento da proibição de cultos caseiros, conforme o decreto 515/2020 do governador Carlos Moisés, que proíbe “os eventos e as reuniões de qualquer natureza, tanto de caráter público ou privado, incluídas excursões, cursos presenciais, missas e cultos religiosos”. (Grifamos) (CPAD NEWS, 2020).
A Constituição Federal de 1988 estabelece que a casa é asilo inviolável, assim como são invioláveis a intimidade e a vida privada. In verbis:
Art. 5º- Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
X - São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
[...] (BRASIL, 1988).
O Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito e Religião – IBDR em seu parecer emitido em março de 2020, alerta que as autoridades públicas e políticas que tem o dever de agir neste instante, devem, portanto, respeitar a legalidade, a manutenção do conteúdo essencial da liberdade de consciência e religião, bem como examinar a proporcionalidade de medidas mais drásticas [...]. Ademais, afirma que decretos ou medidas restritivas, neste momento, não podem restringir à liberdade religiosa dos cidadãos a ponto de tornar-se tal direito fundamental manifestamente impraticável.
Nessa perspectiva, o prefeito Firmino Filho, da cidade de Teresina/PI, em 29 de março de 2020, publicou o decreto de nº 19.548 o qual dispõe em seu artigo 3º, inciso XXXIII, sobre o funcionamento de templos religiosos durante a pandemia do novo coronavírus (Covid-19). In verbis:
Art. 3º - Observada a necessidade para o atendimento da população de atividades mínimas essenciais – nesse período de enfrentamento da grave crise de saúde pública decorrente do novo coronavírus (COVID-19) e enquanto durar o “estado de calamidade pública”, no Município de Teresina –, não se aplica a suspensão do funcionamento:
[...]
XXXIII - de Templos religiosos de qualquer crença, os quais podem manter suas portas abertas simbolicamente, sendo vedada a celebração de cultos, missas e rituais; (Grifo nosso).
[...] (BRASIL, 2020).
A OAB do Estado do Piauí, querendo proteger direitos e garantias fundamentais, por meio da Comissão de Liberdade Religiosa, em 31 de março de 2020, encaminhou ofício de nº. 001/2020 ao Prefeito de Teresina se manifestando sobre o assunto. Veja-se:
[...]
Vimos ponderar sobre os limites impostos pelo Decreto nº 19.548 de 29 de março de 2020, que afetam o núcleo inviolável dos direitos fundamentais relativos à liberdade religiosa, dentre os quais o direito de praticar atos de culto, receber e partilhar ensino e prestação religiosa, bem como de ser atendido por sacerdotes e demais pastores ou ter acesso a eles.
[...]
E, ante a redação do decreto, dúvidas angustiantes surgiram: o templo poderá receber doações de qualquer natureza que se façam necessárias para atender as necessidades da população? O líder religioso prestará algum tipo de atendimento individual a alguém que esteja padecendo de consolo espiritual? Afinal, o que significa uma igreja estar ‘’simbolicamente aberta’’? As pessoas poderão continuar realizando, no seio familiar, em seus domicílios (asilo inviolável), os seus cultos domésticos? Os líderes religiosos, poderão continuar transmitindo de dentro dos templos as mensagens religiosas aos membros da igreja pela internet ou quaisquer meios?
Esses são questionamentos que precisam ser dirimidos para evitar-se que as igrejas, guardadas, atendidas e seguidas as devidas recomendações, continuem a promover o bem-estar físico, mental e espiritual para as pessoas que necessitam, mediante transmissão on-line de mensagens orais, pregações, estudos bíblicos, recebimento e entrega de doações, atendimento individualizado de pessoas aflitas sem sofrer qualquer tipo de constrangimento ou embaraço por parte da autoridade policial.
[...]
Outro ponto importante de ser destacado é que, ainda no artigo 3º, inciso XXXIII do referido decreto Municipal, consta a clara vedação da celebração de cultos, missas e rituais. Ora, a celebração de cultos, missas e rituais é um direito constitucionalmente assegurado que não pode ser tolhido.
[...]
Por fim, cumpre a nós destacarmos que é questão de saúde pública a manutenção de templos de qualquer crença abertos, com a finalidade de transmissão de seus cultos, via internet ou qualquer outro meio. Isso porque a igreja pode ajudar muito na prevenção do suicídio. A maioria dos estudos reforça a hipótese de que a religiosidade diminui o risco de comportamento suicida nos indivíduos que professam algum tipo de credo e que participam de algum espaço religioso.
[...] (Grifo nosso). (OAB/PI, 2020).
Ora, sabemos que é correto a preocupação das autoridades políticas e profissionais da saúde, com a elevação de propagação do coronavírus (Covid-19) e as complexidades em combatê-lo, entretanto, o Estado ao editar um decreto ou medidas restritivas de isolamento que atinge as liberdades civis fundamentais, neste particular, especificamente o núcleo essencial da liberdade religiosa, que impede o funcionamento de templos, no que se refere aquele que resulta em aglomeração de pessoas na sua dimensão externa, não podem dar margem a interpretações de que nenhuma atividade religiosa pode ser realizada.
Ainda nos valendo das lições do ofício de nº 001/2020 da OAB do Estado do Piauí, o mesmo sugere a adequação do referido decreto no artigo supracitado, na seguinte redação. In verbis:
Sugerimos que o artigo 3º, inciso XXXIII, [...] passe ter a seguinte redação:
XXXIII – de templos religiosos de qualquer crença, os quais podem manter suas portas abertas para receber e entregar doações de qualquer natureza, oferta pecuniária de fiéis, sendo permitida a celebração, transmissão e apresentação (online, televisiva ou por qualquer meio) de mensagens, reflexões, cultos, missas e rituais de qualquer crença, atendendo as recomendações sanitárias, sem aglomerações de pessoas, utilizando-se a quantidade mínima e necessária de pessoas para ajudar o celebrante na realização e transmissão. (OAB/PI, 2020).
Dito isso, o poder político e o Religioso têm como finalidade principal o bem comum das pessoas, e especialmente em um Estado laico em que as organizações religiosas, fornecem às pessoas acolhimento e conforto espiritual. Cumpre salientar que os Estados juntamente com as Organizações Religiosas buscam o bem comum da sociedade, considerando que cada um possui uma esfera soberana de atuação, pois é constatado que as organizações religiosas sempre colaboraram com o Estado em tragédias e calamidades. Vejamos o trecho de uma reportagem:
Igrejas de Brumadinho se mobilizam para ajudar vítimas da tragédia:
As igrejas de Brumadinho/MG estão completamente envolvidas com a tragédia que se abateu sobre a cidade, atingindo famílias e membros das igrejas, provocando perdas materiais e de vidas humanas. A cidade com cerca de 40 mil pessoas, passa pelo pior momento de sua história de apenas 80 anos.
[...]
"O apoio das igrejas tem sido amplo, além de ações sociais com arrecadações de roupas, remédios e água, há um grande envolvimento de apoio espiritual, com visitas a casas e orações", destacou a presidente do Conselho de Pastores Evangélicos de Brumadinho, a pastora Maria da Conceição Lima dos Santos. [...] (BERNARDO, 2019).
Ainda, no tocante a colaboração das Organizações Religiosas em tragédias e calamidades, em fevereiro de 2021 em Manaus, a Igreja Adventista distribui oxigênio às famílias que cuidam de pacientes com COVID-19 em suas casas, alimentos e ofereceu também atendimento online gratuito psicossocial às vítimas da COVID-19 e seus familiares. Vejamos:
A Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA), um projeto ligado à Igreja Adventista do Sétimo Dia, distribuiu aproximadamente o equivalente a 19 mil horas de oxigênio a mais de 70 famílias na capital do Amazonas, durante a última semana.
[...]
‘’. Os hospitais estão superlotados e os leitos vagos são praticamente inexistentes. Por este motivo, muitas famílias são obrigadas a cuidarem de seus pacientes em casa. Mas, mesmo em casa, os pacientes precisam de oxigênio. Atualmente, para abastecer um cilindro de 50 litros do gás, as pessoas pagam 600 Reais em média. São muitos os casos de famílias que gastam um cilindro de oxigênio por dia durante mais de uma semana! Imagine o desespero quando o dinheiro começa a faltar! Precisamos ajudar”, pontua Fábio Salles, diretor da ADRA no Brasil.
[...]
A ADRA também realizará a entrega de cestas de alimentos a famílias de pacientes com covid-19 que enfrentam dificuldades econômicas. Serão 400 cestas no valor de 125 reais entregues durante o próximo final de semana.
Finalmente, é importante ressaltar o apoio da agência na área psicossocial. Em parceria com a Igreja Adventista do Sétimo Dia, a ADRA oferecerá atendimento psicossocial às vítimas da covid-19 e seus familiares, por meio da iniciativa Ouvido Amigo. O projeto prevê que profissionais de psicologia ofereçam atendimento online gratuito a quem precisa. O serviço será oferecido a partir da próxima semana. [...] (ALVES, 2021).
Mostra-se que a liberdade religiosa coexiste com as demais liberdades, são decorrentes dos fundamentos da Constituição Federal de 1988, assim como da maior razão para existir um mecanismo Estatal limitado, porém, eficaz: a garantia da dignidade da pessoa humana, garantia essa que está ligada ao Estado Democrático de Direito, bem como estabelecida como cláusula pétrea da referida carta magna.
Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos, ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas. (Grifo nosso) (MORAES, 2021, p. 26).
A liberdade religiosa é um pilar da democracia, a liberdade de culto é uma espécie de liberdade religiosa. A liberdade de culto com aglomeração esteve restrita. Agora a liberdade de expressão religiosa, a liberdade de organização religiosa, inclusive o serviço religioso, pelo líder religioso de forma online ou atendimento espiritual de pessoas que precisam de atendimento, não está; isso viola o direito pessoal subjetivo da expressão religiosa como um direito fundamental estabelecido pela carta magna de 1988.
Portanto, o correto seria que as normas não fossem conflitantes entre si, pois é essencial que os Municípios, Estados e União, através de seus decretos e orientações aos agentes públicos e aos cidadãos, estejam cientes que somos regidos pela dignidade da pessoa humana e que vivemos em uma democracia.
4. CONCLUSÃO
No contexto brasileiro atual, em meio ao enfrentamento da pandemia causada pela COVID-19, a liberdade religiosa, especialmente a liberdade de culto e sua simultaneidade juntamente com outros direitos fundamentais, acaba por provocar conflitos na esfera jurídico-legal, conflitos estes no tocante ao funcionamento de templos religiosos de qualquer crença.
O objetivo da presente pesquisa, fora justamente provocar algumas reflexões no exercício desse direito e analisar a legitimidade das intervenções estatais no tocante a essa liberdade, buscando compreender as ações dos administrados, verificando se houve excesso nas restrições e violações de forma que rompesse o núcleo essencial desse direito.
Sabemos que o direito à vida é um direito inegociável, e desse direito nascem todas as outras liberdades, as liberdades existem para servirem a vida e a vida com dignidade, a liberdade tem como fim principal, oportunizar dignidade para as pessoas. O ponto de partida é que as liberdades podem ser restringidas em situações como essa da pandemia causada pela COVID-19, mas tais restrições não podem ferir a essencialidade dessas liberdades, em especial a liberdade religiosa.
Salienta-se que é correto a preocupação das autoridades políticas e profissionais da saúde, com a elevação de propagação do coronavírus (Covid-19) e as complexidades em combatê-lo, entretanto, o Estado ao editar um decreto ou medidas restritivas de isolamento não podem dar margem a interpretações de que nenhuma atividade religiosa pode ser realizada.
Por mais necessárias que sejam os decretos de medidas restritivas que estão sendo impostas, não podem impedir que os cidadãos, que seguem uma religião, sejam privados de seu líder religioso, enquanto buscam ensinamentos conforme suas crenças, nos momentos mais difíceis de suas vidas.
O Estado democrático de direito funciona tendo regras, que são escritas e obedece-se a essas regras escritas, as quais possuem uma hierarquia de normas. Então é natural que não está se falando aqui de Igreja como Corpo de Cristo, pois no sentido teológico, nós somos a Igreja, pode-se ser em qualquer lugar. Fala-se aqui da organização religiosa, uma entidade que vive na comunidade política Brasileira e que é reconhecida pela Constituição Federal de 1988 e que a mesma garante e veda a administração pública da União, Estados e Municípios a criação de embaraços ao seu funcionamento.
Conclui-se que a liberdade de culto com aglomeração esteve restrita. Agora a liberdade de expressão religiosa, a liberdade de organização religiosa, inclusive o serviço religioso, pelo líder religioso de forma online ou atendimento espiritual de pessoas que precisam de atendimento, não está. Isso viola o direito pessoal subjetivo da expressão religiosa como um direito fundamental estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
Ademais, a laicidade do Estado mostra que ele é ignorante em matéria de fé e que ele não pode prover para o cidadão Brasileiro o seu direito fundamental à espiritualidade, por isso o Estado se curva diante da Constituição Federal, e entende que, embora ele seja laico, ele vai ser compassivo para com a relação com o fenômeno religioso e garantirá o funcionamento das instituições religiosas.
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[1] Professora orientadora do artigo. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Luterano – CEULJI, Ji-Paraná, RO. Especialista em Direito Administrativo pela Faculdade Dom Alberto, RS. Mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário São Lucas de JI-Paraná
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACEDO, Brisa Andrade de. Conflitos Legislativos: Estado e as organizações religiosas em tempos de pandemia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 maio 2021, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56487/conflitos-legislativos-estado-e-as-organizaes-religiosas-em-tempos-de-pandemia. Acesso em: 22 nov 2024.
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