Resumo: Este trabalho pretende analisar de que forma a desobediência civil pode ser entendida e fundamentada a partir da teoria elaborada por Kimberley Brownlee na obra Conscience and Conviction: The Case for Civil Disobedience.[1] A teoria de Brownlee é bastante densa e, por este motivo, esta revisão de literatura será restrita à compreensão de conceitos centrais construídos pela autora sobre o tema. Assim, será apresentada uma visão geral da obra e, após, analisaremos as definições de desobediência civil, bem como da convicção e da consciência, que consistem nas duas hipóteses que fundamentam a realização de atos de desobediência civil, de acordo com Brownlee. Eventualmente, para facilitar a compreensão das ideias destas e do raciocínio desenvolvido pela autora, serão realizados breves apontamentos relacionando os aspectos da teoria de Brownlee e pontos relevantes da teoria de John Rawls sobre a desobediência civil, trabalhada na obra em Uma Teoria da Justiça.[2] Nestes casos, destacarei o que são, a meu ver, pontos de aproximação e divergência entre estas teorias.
Palavras-chave: Desobediência civil; consciência; convicção; Kimberley Brownlee; John Rawls.
Abstract: This paper intends to analyze how Kimberley Brownlee defines and justifies civil disobedience, based on the study of the first two chapters of the book Conscience and Conviction: The Case for Civil Disobedience.[3] Brownlee’s theory is rather dense, and for this reason, this review of literature shall be limited to the comprehension of the core concepts developed by Brownlee. Therefore, I shall provide an overview of her book, and then try to define the concepts of conviction and conscience, which consist of the two hypotheses that underpin civil disobedience, highlighting how they relate to civil disobedience, from the perspective of the author. Eventually, I shall relate the aspects of Brownlee's theory with relevant points of John Rawls's theory about civil disobedience, approached in “A Theory of Justice”.[4] I will highlight what are, in my view, the main points of approximation and divergence between these two theories.
Key-words: Civil disobedience; conscience; conviction; Kimberley Brownlee; John Rawls.
Sumário: 1. Introdução e Metodologia – 2. A desobediência civil segundo Kimberley Brownlee - 2.2. O conceito-geral de desobediência civil segundo Kimberley Brownlee – a. Violência – b. Publicidade do ato e disposição em aceitar a punição – 2.3. Convicção – 2.3.1. A conscienciosidade – 2.3.2. O princípio comunicativo da conscienciosidade – a. Consistência – b. Universalidade – c. Não-evasão – d. Diálogo – 2.4. Consciência – 2.4.1. Consciência, pluralismo moral e o diálogo com as concepções monista objetivista e subjetivista – 2.4.2. Consciência e pluralismo moral – a. Demandas da consciência – b. Escopo para falhas – c. Consciência limpa - 2.4.3. A consciência e o ideal – 3. Conclusão – 4. Bibliografia
1. Introdução e Metodologia
Em 1955, uma mulher se recusou a sair do assento no qual estava sentada em um ônibus. Atualmente, pareceria improvável a qualquer pessoa que viva em uma sociedade democrática, que esta mulher estaria violando uma lei, e que esta simples recusa levou ao acionamento da polícia local. Rosa Parks, uma mulher negra, resistiu em sair do lugar em que estava sentada, a caminho de sua casa após um dia de trabalho, quando um homem branco disse para que ela o fizesse. Por causa disso, Parks foi condenada ao pagamento de uma multa, além de ser presa por conduta desordeira. Este episódio desencadeou, então, o “boicote aos ônibus de Montgomery”, dando início à luta contra o regime segregacionista nos Estados Unidos.[5]
Casos como o acima narrado podem parecer injustiças evidentes e que deveriam ser, de fato, corrigidas à época. No entanto, toda a resistência enfrentada por Rosa Parks, Martin Luther King, Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Aung San Suu Kyi e demais líderes de movimentos de desobediência civil, são evidências de que o Direito, ainda que inserido em ordenamentos supostamente democráticos, apresenta canais institucionais de comunicação muitas vezes ineficientes, limitando a possibilidade de a população reivindicar suas demandas.
Nesse sentido, a desobediência civil se coloca como uma alternativa para atrair a atenção da sociedade para restrições a direitos fundamentais de determinadas minorias. Por um lado, há quem possa entender que a existência da desobediência civil e seu reconhecimento pelo Direito consiste na negação deste instituto e na declaração de sua falibilidade. Entretanto, a conquista de diversos direitos fundamentais se deu através de condutas que foram, à sua época, consideradas à margem da lei, mas, após o reconhecimento destas reivindicações, deixaram de ser ilegais. Assim, a desobediência civil, justamente por ser considerada como ato ilícito, é um assunto que deve ser discutido dentro do Direito.
Tendo isto em vista, surge, de imediato, a questão: de que forma a desobediência civil se relaciona com o Direito e com os ordenamentos jurídicos? Assim, buscando contribuir para este debate, o presente trabalho se propõe a analisar os primeiros dois capítulos da teoria de Kimberley Brownlee sobre a desobediência civil, nos quais a autora trata dos conceitos de convicção e consciência, ambos fundamentos para a realização de atos de desobediência civil. A opção pelo estudo das ideias trazidas por esta autora se dá em função de sua produção ser relativamente recente e pouco difundida na literatura brasileira.
Brownlee tem como premissa o reconhecimento da diversidade moral e do impacto que comprometimentos morais, individuais ou coletivos, têm em nossa convivência em sociedade. A partir do princípio comunicativo da conscienciosidade e do pluralismo moral, explicados adiante, Brownlee propõe através de sua teoria a tolerância e a coexistência de posicionamentos diferentes dentro de uma única sociedade.
Este entendimento dialoga, com frequência, com a concepção de desobediência civil apresentada pela teoria clássica, da qual John Rawls é um dos principais representantes. Tendo em vista que Rawls traz o que hoje se entende pela definição clássica de desobediência civil, a qual influencia grande parte da literatura sobre o tema (apresentando influências na produção de Kimberley Brownlee, inclusive), o contato – ainda que breve - com esta teoria não é só relevante por este motivo, como também facilitará a compreensão da complexidade do raciocínio desenvolvido por Brownlee.
Assim, proponho-me a apresentar neste trabalho um panorama geral e breve sobre a obra Conscience and Conviction: The Case for Civil Disobedience. Abordarei, então, o conceito-geral de desobediência civil proposto por Brownlee, bem como os conceitos da convicção e da consciência. Ao longo do trabalho, buscarei destacar, de forma sucinta, pontos de diálogo entre as teorias de Brownlee e de Rawls, destacando o que são, a meu ver pontos de convergência e divergência entre elas.
Assim, as perguntas que direcionaram o desenvolvimento deste estudo, e que tentarei responder ao longo dele, são (i) o que propõe a teoria de Brownlee; (ii) o que são consciência e convicção para Kimberley Brownlee; (iii) qual a relação destes conceitos com a desobediência civil; e (vi) de que forma estes dois conceitos e a definição de desobediência civil desenvolvida por Brownlee dialogam com a teoria clássica de Rawls.
Por fim, uma ressalva importante em relação à proposta deste trabalho está no fato de que a obra estudada ainda é recente e apresenta complexidade bastante acentuada. Por esse motivo, e pela limitação de espaço, não me proponho a esgotar todos os aspectos da teoria estudada, bem como apresentarei a seguir uma interpretação dos conceitos trabalhados pela autora. Além disso, o estudo da teoria de Brownlee se deu a partir da sua obra original, em inglês. Assim, as definições foram livremente traduzidas. Para fins de clareza e fidelidade à obra, tais definições serão indicadas em itálico sempre que aparecerem no texto pela primeira vez.
Para contextualizar a discussão que se pretende desenvolver, cabe apresentar uma visão geral da teoria de desobediência civil de Kimberley Brownlee. Em sua obra Conscience and Conviction: The Case for Civil Disobedience, trabalho mais completo da autora sobre o tema, Brownlee busca fundamentar atos de desobediência civil, indicando em que casos tais atos são legítimos, ainda que consistam em violações às leis vigentes.
Assim, o livro é divido em duas partes: Moralidade e Direito. Na primeira, em que estão os primeiros quatro capítulos do livro, Brownlee se dedica a desenvolver os conceitos de desobediência civil, de convicção e de consciência, buscando demonstrar, ainda, como os dois últimos legitimam atos de desobediência civil e de que forma devem ser analisados no caso concreto. No último capítulo desta parte, a autora apresenta o argumento de que convicção e consciência dão origem a direitos morais de ação, o que, por consequência, fundamenta os atos de desobediência civil. A autora busca trabalhar neste capítulo, ainda, a noção de que o direito à desobediência civil é um direito moral, e que não deve ser positivado. Para ela, normas morais possuem, no mínimo, tanta força cogente quanto as normas jurídicas. Ademais, como se verá a seguir, os conceitos de convicção e consciência dificilmente poderiam ser positivados, tamanha sua amplitude e complexidade.
Na segunda parte do livro, Brownlee trata sobre como o Direito deve trabalhar com as noções apresentadas na primeira parte. Ainda que o direito à desobediência civil não deva ser incorporado aos ordenamentos jurídicos, ele deve ser observado pelos aplicadores do Direito, especialmente em relação à punição destes atos. Para a autora, a desobediência civil, quando praticada de acordo com as condições que descreve na primeira parte de sua obra, gera também um direito moral contra a punição. Isto não significa que nenhum ato de desobediência civil deva estar livre de quaisquer respostas, ressalva que a autora desenvolve melhor nos últimos dois capítulos do livro. De todo modo, tendo em vista a finalidade deste trabalho, não nos aprofundaremos nesta discussão.
No que se refere ao conceito de desobediência civil, é importante destacar que Brownlee não possui a pretensão de descrever precisamente os elementos que um ato de desobediência civil deve apresentar, ao contrário dos esforços geralmente observados na teoria clássica. Para a autora, definições muito fechadas podem simplificar o entendimento e a análise destes atos.[6] Assim, na obra de Brownlee, o excerto que mais se aproxima de uma definição de desobediência civil é o seguinte:
“(...) a desobediência civil deve conter uma violação à lei realizada com base em um comprometimento pessoal firme, com o intuito de comunicar a reprovação [pessoal ou de um grupo] em relação a uma lei ou política a uma audiência relevante (que é, normalmente, a sociedade ou o governo)”.[7]
O maior esforço da autora está em trabalhar com a motivação, a forma de ação e os fundamentos da desobediência civil, tendo em vista que, segundo Brownlee, a verificação destes aspectos confere legitimidade aos atos de desobediência civil. Assim, em termos gerais, a desobediência civil é um direito que pode ser fundamentado pela convicção ou pela consciência. Como explicaremos melhor a seguir, convicção e consciência se aplicam a casos distintos.
Ambas, entretanto, pautam-se na concepção de que devemos considerar os demais indivíduos com os quais convivemos em sociedade como seres racionais, não só capazes de formar suas próprias convicções moralmente motivadas, mas também qualificados para dialogar com as demais convicções existentes. Nesse sentido, Brownlee procura trabalhar a desobediência civil dentro de um enquadramento moral pluralista, no qual todas as visões morais devem igualmente respeitadas. Isto não significa que limites não devam ser observados, motivo pelo qual os conceitos de consciência e convicção, bem como os direitos morais delas decorrentes, são tão pormenorizadamente trabalhados pela autora.
Brownlee não só apresenta os elementos que considera essenciais em seu conceito-geral de desobediência civil, como também dialoga especialmente com a definição de Rawls, cuja definição de desobediência civil é fechada.[8] Brownlee dedica, então, algumas seções de sua obra para demonstrar os motivos por não abordar em seu conceito de desobediência civil os elementos centrais da definição de Rawls, quais sejam, a violência, publicidade e a disponibilidade por aceitar a punição.
Continuando a análise dos desdobramentos do conceito-geral de desobediência civil, Brownlee dedica algumas páginas para tratar especificamente do recurso à violência nestes atos de desobediência. Normalmente, o recurso à violência é prontamente refutada pela literatura por se considerar que a comunicação de uma insatisfação através de atos violentos não pode ser levada a sério, por não expressar uma mensagem de forma racional.[9] Brownlee, no entanto, discorda da presunção de que a violência é um ato não civilizado por três razões.
Em primeiro lugar, considera o conceito de violência como algo amplo, o que pode ir desde ações que se aproximam de ameaças (como um tiro para o alto, com uma arma de fogo[10]) até atos que sejam efetivamente violentos. Por esse motivo, a autora entende que classificar todas as condutas violentas realizadas na desobediência civil como uma única categoria de atos não civilizados é equivocado.
Em segundo lugar, de acordo com a autora, existem preocupações mais relevantes, e que superam o entendimento – muitas vezes simplista – de que a violência é um ato não civilizado, como a questão estratégica, por exemplo. Um ato violento pode atrair a atenção para si, afastando os interlocutores das pautas realmente centrais e reivindicadas pelo movimento de desobediência civil. Joseph Raz, autor frequentemente mencionado por Brownlee, aponta, nesse sentido, que há atos supostamente pacíficos ou, ainda, medidas legais que apresentam um potencial de dano maior do que um ato violento.[11]
Um exemplo que esclarece a afirmação acima seria o de uma greve de motoristas de ambulância. Neste caso, a manifestação se dá pela omissão em se realizar determinada função – o que à primeira vista não é entendido como um ato violento. Esta abstenção pode acarretar, no entanto, a morte de um paciente não socorrido a tempo por esse motivo.[12] De todo modo, Raz faz a ressalva de que a escolha por atos violentos devem ser sempre ponderados para que o recurso à violência como uma estratégia para a desobediência civil não seja banalizado, podendo gerar antipatia por parte da audiência, afastando aliados em potencial.[13]
Por fim, Brownlee ressalta que a violência não é antônima de civilidade, mas o são a barbaridade, o desrespeito, a depravação.[14] Para ela, ações tais como atos de desobediência civil, realizadas à margem da lei, não devem ser presumidamente consideradas irracionais e não civilizadas, pois o ordenamento jurídico não só não é a única norma vigente na sociedade, como também não mede a força das demais normas existentes. Merece destaque, nesse sentido, a existência de convenções morais existentes na sociedade e que são respeitadas sem a necessidade de cumprimento forçado (um exemplo, nesse sentido, seriam as filas).
Estes elementos estão relacionados e, por isso, são tratados em conjunto pela autora. A publicidade, para Brownlee, também não é um requisito obrigatório para a desobediência civil, pois pode por em risco a efetividade um movimento, seja pelo fato de o elemento-surpresa ser necessário para comunicação da mensagem desejada, seja pelo fato de as autoridades buscarem meios de impedi-lo de acontecer.
A disponibilidade em aceitar a punição, por sua vez, também é uma condição refutada pela autora como imprescindível. A punição pode ser, por exemplo, o próprio objeto contra o qual se insurge o indivíduo que recorre à desobediência civil, o que demonstra que não estar disposto a ser punido não é manifestação de ausência de civilidade.
Dito isso, todos os conceitos e ideias até apresentados podem ser sintetizados e relacionados na seguinte passagem:
“(...) sustento que a desobediência civil não se pauta na não-violência, na publicidade e na disponibilidade em aceitar a punição, mas nas motivações comunicativas e conscientes daqueles que praticam a desobediência civil. A desobediência civil envolve não só uma violação comunicada, mas uma violação do direito comunicativa e conscientemente motivada por um comprometimento moral firme, sincero, sério – ainda que possivelmente equivocado”.[15]
Nas próximas seções, abordarei os conceitos da convicção e da consciência. Não me proponho, neste trabalho, a esgotar a discussão sobre de que forma estes elementos podem ser avaliados em um caso prático. Ainda que seja bastante relevante, será tratada em uma segunda etapa do desenvolvimento deste estudo.
A convicção moral consciente pode motivar um indivíduo a recorrer à desobediência civil e a outras formas de desobediência comunicativa. Para Brownlee, a convicção se pauta no pressuposto de que os seres humanos são indivíduos racionais e sentimentais, capazes de se vincular a comprometimentos morais. A partir desta premissa, a autora define a convicção moral consciente (conscientious moral conviction),[16] que pressupõe um comprometimento moral sincero e sério,[17] sintetizado pela autora no conceito da conscienciosidade.
É possível identificarmos influência do trabalho de Rawls no conceito de convicção moral consciente[18] que, como mencionado acima, trata-se de um comprometimento moral sincero e sério e pode ser o fundamento para a desobediência civil, desde que observados os requisitos postos pelo princípio da comunicação conscienciosa. Da mesma forma, Rawls define o ato de desobediência civil como “politicamente consciencioso e sincero, e que tem o intuito de atingir o senso público de justiça”.[19] Observamos, então, que a conscienciosidade e a sinceridade de Rawls, e a convicção de Brownlee, são pontos comuns entre as teorias.
A conscienciosidade é, para Brownlee, critério central para análise e resposta à violação da lei por cidadãos baseada na convicção, pois separa as desobediências conscientemente motivadas das ofensas comuns, cuja fundamentação não foi formada por um processo de motivação consciente. Nesse sentido, a autora destaca que as pessoas que recorrem à desobediência civil de forma conscientemente motivada, fazem-no de forma profundamente engajada e cientes de seus atos, ao contrário dos demais indivíduos que violam determinada norma para protestar. A conscienciosidade revela-se, portanto, em um estado de profundo engajamento do indivíduo.
Ressalte-se que a valoração do mérito desta consistência moral – se é correto ou equivocado - não é relevante neste caso. O respeito às desobediências conscientemente motivadas se deve pelo simples fato de apresentarem um comprometimento moral sério e sincero, o que se dá pela observância do princípio comunicativo da conscienciosidade, que será tratado mais a frente.
Assim, um ato de desobediência civil baseado e fundamentado pela convicção deve se pautar, necessariamente, na conscienciosidade apresentada pelo indivíduo que pratica o ato desobediente. Nesse sentido, faz-se pertinente o questionamento sobre como a conscienciosidade de um indivíduo pode ser analisada e verificada. Para tanto, Brownlee cria o princípio comunicativo da conscienciosidade.
Como já mencionado, a convicção moral consciente deve se pautar, ao motivar atos de desobediência civil, no princípio da comunicação conscienciosa, ou princípio comunicativo da conscienciosidade. Este princípio é composto por quatro elementos, que devem ser necessariamente observados quando se pretende recorrer a formas de desobediência comunicativa fundamentadas pela convicção. São eles: consistência; universalidade; não-evasão; e esforço em dialogar.
Brownlee trabalha o conceito de cada uma destas definições através da seguinte lógica: em primeiro lugar, apresenta a respectiva definição. Após, traz possíveis questionamentos em relação à condição analisada e dialoga com estes questionamentos. Este segundo momento é bastante enriquecedor para a discussão da teoria, uma vez que nos leva a compreender melhor a sua complexidade, motivo pelo qual abordaremos alguns deles neste trabalho.
Brownlee entende que, em função do princípio da comunicação conscienciosa, dentre os indivíduos que praticam desobediências comunicativas e não-comunicativas, o mais consciente é o que pratica a desobediência civil. Esta forma de desobediência é a que reúne e observa de forma mais completa as condições de consistência, universalidade, não-evasão e diálogo.[20] Assim, a desobediência civil comunica uma convicção de forma séria e sincera, ao contrário da desobediência assistiva e da objeção pessoal, as quais não demonstram o comprometimento moral de forma clara.
No entanto, a autora ressalta que a verificação destes critérios em relação a uma conduta deve ser feita de forma crítica: a mera afirmação de comprometimento em relação a uma convicção não deve ser confundida com a existência de fato de uma convicção nos moldes da teoria elaborada por Brownlee.[21] Passemos, agora, a analisar estas condições.
A consistência se dá a partir do alinhamento, na maior medida possível, entre motivações, julgamentos e condutas adotadas nas práticas dos desobedientes. Isto significa que devemos procurar evitar condutas que contradigam nossa convicção moral e sincera, e agir de acordo com o que entendemos estar em consonância com esta mesma convicção.[22]
É possível depreender, a partir da teoria de Brownlee, a consistência como um desdobramento natural (mas não necessariamente simples de ser executado) da convicção. O próprio significado da palavra convicção[23] nos permite chegar a esta conclusão. O termo não é só definido como uma mera crença, mas como um estado de certeza firme, por ser fundado em evidências. Assim, esta coerência interna do indivíduo convicto deverá ser refletida em suas condutas – seja nas motivações de suas ações, seja em seus julgamentos em relação a condutas de terceiros.
Por outro lado, Brownlee reconhece que a consistência deve se dar na maior extensão a que somos capazes.[24] Na prática, haverá diversos impedimentos psicológicos, físicos e circunstanciais que dificultarão ou impossibilitarão a concretização da consistência – no todo ou em parte.
As dificuldades circunstanciais merecem, nesse sentido, destaque, pois muitas vezes implicarão no conflito entre duas convicções. Brownlee dá o exemplo[25] de uma mulher cuja filha muito está doente e, para buscar ajuda, precisará sair em público com sua cabeça descoberta (sendo que é convicta de que não deve ser vista, por homens, com a cabeça descoberta).
Neste caso, deve-se avaliar, se é possível conciliar estas duas convicções - cuidar de sua filha da melhor maneira possível e não ter seu rosto e cabelos vistos por homens. De acordo com Bronwlee, um cenário possível seria o de a mulher optar em andar em uma rua majoritariamente ocupada por mulheres. Nesse caso, escolher uma conduta em detrimento de outra não demonstra, segundo Brownlee, que esta teoria é falha. Uma convicção pode ser séria e sincera, ainda que haja casos em que não seja possível se comportar de forma completamente consistente diante dela – daí a ressalva de praticá-la na máxima medida possível. Isto é o que a autora chama de sensibilidade ao contexo (context sensitivety[26]).
A condição da universalidade nos leva a fazer julgamentos universais. Isto significa que o julgamento de um determinado ato ou comportamento deverá valer não só para a pessoa que possui a convicção moral consciente, mas também para todas as demais pessoas que estejam nas mesmas circunstâncias.
No entanto, a leitura do conceito de universalidade deve ser guiada por um julgamento moral levando o contexto em consideração.[27] Este contexto pode ser analisado sob os seguintes aspectos: (i) sensibilidade ao contexto e (ii) pluralismo moral. Caso estes dois requisitos não sejam observados, o julgamento universal passa a ser um dogma, reduzindo-se a uma perspectiva passionalmente direcionada.[28] Assim, os julgamentos serão moralmente universais na medida em que a situação permitir: um ato pode ser julgado, à primeira vista, como moralmente equivocado, mas, levando em conta todos os demais aspectos verificados na situação, o julgamento moral é alterado.
Essa interpretação pode abrir espaço para alguns questionamentos, com os quais Brownlee se propõe a dialogar e refutar. O principal deles é o de que há quem possa entender que a sensibilidade ao contexto e o pluralismo moral põem em xeque a profundidade e a sinceridade da convicção moral consciente de determinado indivíduo ou grupo social. Em resposta, a autora afirma que é necessário diferenciar a conscienciosidade como pressuposto de uma concepção moral séria das demais formas de convicção (como, por exemplo, a social).[29]
Brownlee trabalha com o questionamento acima com o seguinte exemplo: considere uma comunidade em que seus membros plantam uma flor para cada parente que vem a falecer. É possível que uma integrante desta comunidade considere que um sujeito que não é membro desta mesma comunidade esteja equivocado em não realizar esta prática. Mas isso não significa entender essa abstenção como algo moralmente errado.
A universalidade depende do conteúdo, da premissa deste julgamento – estando aí a chave para sua compreensão: a convicção de que não plantar uma flor para um ente que faleceu é moralmente errado é diferente daquela em que se acredita que membros desta comunidade devem seguir este ritual.
Neste caso, apenas o segundo posicionamento revela convicção moral consciente, uma vez que comporta os dois requisitos de universalidade: pode ser aplicada a todos os indivíduos porque é construída de forma sensível ao contexto e não pressupõe a imposição da noção individual de moral àqueles que não compartilham dela. Por este motivo, a universalidade é tão complexa; é necessário que a convicção seja compatível (ou sensível) ao contexto e que possa existir em uma sociedade que apresenta convicções morais plurais.
Caso o julgamento decorrente de uma suposta convicção deva ser adaptado caso a caso, não será possível reconhecer nesta convicção os aspectos de seriedade e sinceridade intrínsecos à conscienciosidade, o que impede, segundo a teoria de Brownlee, o recurso à desobediência civil.[30]
Não-evadir em relação a uma convicção significa aceitar os riscos decorrentes de um determinado comprometimento e, ainda, tomar iniciativas (indo além da abstenção, portanto) para defendê-lo, demonstrando a conscienciosidade de suas ações.[31]
Assim como as condições de consistência e universalidade, a não-evasão também é sensível ao contexto. Ainda que manifestar a seriedade de sua convicção seja essencial, este elemento não requer que esta demonstração se dê a todo momento e em relação a todas as pessoas com as quais convivemos. Não é necessário, também nesse sentido, a apresentação de condutas que nos tragam efetivamente a punição.
Em contraposição a este conceito, Brownlee levanta três possíveis críticas à não-evasão. Um primeiro questionamento seria, então, em relação à necessidade em se aceitar fardos, encargos, para “honrar nossas convicções”. Em resposta, a autora ressalta que, ao comunicarmos nossas convicções para outros indivíduos, haverá encargos a serem enfrentados, inevitavelmente. No mínimo, isto abalará alguns de nossos interesses – o que pode ir desde o estremecimento em nossa relação com os interlocutores do ato, até o enfrentamento de uma punição.
Esta conclusão, por sua vez, nos leva à indagação seguinte: deve-se optar sempre pela opção de comunicação que nos traga uma consequência mais gravosa? Não necessariamente. No entanto, aceitar encargos mais severos é uma forma de reforçar a seriedade e o comprometimento com a convicção comunicada.[32]
No que se refere à convivência em sociedade, a condição de não-evasão pode nos levar, a princípio, a crer que as condutas individuais, e que possuem impacto somente sobre nós mesmos, já demonstram suficientemente a seriedade da convicção. Brownlee, entretanto, afirma que a não-evasão pode implicar também em interferirmos na conduta de terceiros, sendo os casos em que esta interferência será necessária determinados através do exame da universalidade. A autora não deixa mais claro, no entanto, por que motivo esta interferência pode ser necessária.
O terceiro ponto com o qual Brownlee dialoga parte da premissa de que a condição de não-evasão é também sensível ao conteúdo e, por isso, algumas condutas poderão ser arbitrariamente entendidas como não conscientes[33] – o que, por consequência, descarta a relação do ato com a desobediência civil. Alguns críticos poderão considerar, portanto, que a não-evasão é uma condição que na realidade traz parcialidade à análise da conduta enquanto ato de desobediência civil.
Um exemplo trazido por Brownlee e que facilita a compreensão deste questionamento é o da ermitã,[34] cuja convicção é a de aversão ao convívio social. Entretanto, para chegar à condição de optar por esta convicção, recebeu cuidados ao longo de sua infância e, por isso, dependeu da relação com outros seres humanos. É possível entender que as convicções desta ermitã não observam a condição de não-evasão porque não consideram que, em algum momento, a convivência com outros seres humanos foi necessária – assim, houve uma evasão em relação aos riscos decorrentes da vida de ermitã.
Brownlee reconhece que a análise da não-evasão está centrada no comportamento apresentado pelo indivíduo, que não deve modificar nem sua conduta, nem suas convicções, para que não sofra determinada consequência. Nesse sentido, um aspecto importante para entendermos a não-evasão está no fato de que seu cerne não está no que a pessoa efetivamente acredita, mas sim como age em relação a este posicionamento.[35] Assim, se a ermitã não se evade aos riscos de sua convicção a partir do momento em que optou por se comprometer em relação a ela, então é possível concluir que ela cumpre com esta condição.
A autora conclui a análise sobre a não-evasão destacando três limitações que as manifestações baseadas na convicção moral devem se basear: não devem ser autoritárias; devem ser minimamente coerentes; e devem estar sempre de acordo com o requisito de julgamento universal.
O esforço em dialogar é a última das quatro condições do princípio comunicativo da conscienciosidade. Segundo ela, o desobediente deve se empenhar em dialogar com sua audiência, levando-a a se posicionar de modo informado em relação ao mérito do ato de desobediência civil – podendo decidir, assim, por apoiá-lo ou rejeitá-lo.[36]
A disposição em dialogar se reflete de duas formas: demonstra que não só acreditamos em nossas convicções, como também apresentamos fundamentos bem-embasados e racionais em relação a ela; e evidencia, além disso, que estamos tão seguros e firmes em relação à nossa convicção, que estamos dispostos a dialogar e assumimos os riscos por defendê-la. Em suma, reitera a sinceridade e a seriedade de convicção.[37]
Esta visão se contrapõe à de Rawls que, por sua vez, ressalta em vários momentos ao longo de sua teoria a necessidade de o desobediente agir buscando demonstrar que, ainda que esteja à margem da lei, possui uma relação de fidelidade em relação a ela.[38] Por isto, a comunicação destes com sua audiência deve buscar convencer a maioria de que determinada lei ou política desrespeita os princípios de justiça vigentes, mas sempre ressaltando sua fidelidade em relação a esta lei. Ainda, esta fidelidade à lei é o que demonstra à audiência, segundo Rawls, que o ato é politicamente consciencioso e sincero. Isto restringe a prática da desobediência civil de algumas formas.
A visão moral pluralista de Brownlee, por sua vez, entende que todos podem ter suas próprias convicções (ou, ainda, consciência em relação a um valor), desde que levem o outro à sério e busquem comunicá-las considerando seu interlocutor como um agente racional, comportamento que a demonstra a seriedade e o comprometimento moral em relação ao ato, o qual também é de relevância central para sua teoria.
No entanto, a autora entende que existem outras formas de demonstrá-los. Preocupa-se mais com o estabelecimento de um diálogo, entre os indivíduos de uma sociedade, em condições de tolerância e respeito. Ao contrário do que defende Rawls, para Brownlee, a fidelidade à lei não é um requisito para comunicação do repúdio a uma norma ou política.
Seguindo, para Brownlee, a condição do diálogo pode ser questionada sob algumas perspectivas. A primeira delas está no fato de que haverá, possivelmente, formas melhores de se demonstrar a convicção[39] - tais como a sabotagem. No entanto, o diálogo é a forma de comunicação que melhor considera o interlocutor como sujeito racional, capaz de compreender as motivações de uma determinada convicção para, então, poder avaliar o mérito de uma determinada conduta de desobediência civil. Este respeito e preocupação com o interlocutor não são prioridade nas demais formas de comunicação.
Além disso, é possível que se pontue que o esforço em dialogar pode ser mais desgastante para indivíduos que apresentem opiniões muito impopulares ou, ainda, que estejam em alguma condição de vulnerabilidade que os impeça de participar deste diálogo em condição de paridade com seu interlocutor, sem que isto lhe traga custos pessoais altos.[40]
Brownlee responde a este questionamento ressaltando que o esforço em dialogar não demanda tanto quanto parece.[41] É necessário que o indivíduo busque comunicar suas motivações levando em conta o contexto em que se insere. Assim, não é preciso obter sucesso na comunicação, mas apenas buscar fazê-la da melhor maneira possível, planejando a escolha dos meios e formas de comunicação mais adequados à situação em que se encontra. Portanto, o esforço em dialogar também é sensível ao contexto na medida em que não desconsidera vulnerabilidades dos desobedientes.[42]
Por fim, importante ressaltar que princípio da comunicação consciente é neutro quanto ao mérito do ato motivado pela conscienciosidade, motivo pelo qual a convicção é apontada por Brownlee como uma propriedade meramente descritiva. A avaliação do mérito é um aspecto relevante no âmbito da consciência, por outro lado, cujo conceito será trabalhado a seguir.
Segundo Brownlee, a consciência é “um conjunto de habilidades morais práticas que se originam de um conhecimento interno do funcionamento de nossos próprios coração e mente”.[43] Trata-se de conceito bastante abstrato, mas tentaremos atribuir maior concretude a ele nos parágrafos a seguir. A consciência se distingue da convicção moral consciente porque não só apenas leva a moral com seriedade e sinceridade (sendo composta também pela conscienciosidade, portanto), como também apresenta em uma capacidade de resposta genuína, autoconsciente e moral. Esta capacidade reativa será melhor explicada mais à frente.
Ainda, a autora destaca que o seu entendimento de consciência se pauta no enquadramento moral pluralista. Por esse motivo, Brownlee distancia seu conceito de consciência tanto do recorte amoral, quanto do religioso.[44]
Ainda no esforço de especificar o conceito, Brownlee destaca os embasamentos conceitual e empírico que influenciaram sua concepção de consciência. O primeiro consiste no conhecimento interno, que pressupõe a ausência de qualquer autoengano com relação à qualidade moral de nossas crenças, intenções e ações. O segundo, por sua vez, parte da evidência que as ciências vêm consolidando, a qual sugere que pessoas que buscam estados saudáveis de corpo e mente, apresentam não só uma percepção mais refinada de como estes mecanismos funcionam, como também possuem memória e percepção da realidade mais aprimoradas.[45]
Por fim, a autora afirma que a consciência não é um recurso ao qual qualquer indivíduo pode recorrer, em qualquer situação, como forma de proteção contra eventual reprovação de um comportamento ou para se esquivar da obrigação de cumprir determinada norma.
Como já mencionado, o conceito de consciência acima apresentado é analisado por Brownlee em um enquadramento moral pluralista. Por este motivo, a autora refuta as demais concepções de consciência trabalhadas pela filosofia, as quais não partem deste pressuposto. Não nos aprofundaremos nas razões específicas que levam a autora a essa conclusão.
Entretanto, Brownlee reconhece a relevância e a contribuição das correntes monista objetivista e subjetivista sobre a consciência. Por esse motivo, propõe-se a discutir de que forma a sua concepção de consciência baseada em uma moral pluralista não só possui o diferencial da capacidade de resposta moral, como também contempla três noções importantes trazidas por estas correntes.[46]
A primeira delas consiste na pressão psicológica que a “voz da consciência” ocasiona e que nos põe o dever de fazer o que consideramos correto. Em síntese, trata-se de um sentimento de dever. A segunda, que decorre da primeira, é chamada por Brownlee de demanda da consciência (demand of conscience[47]), e se revela através da motivação provocada por esta pressão psicológica da consciência nos leva a agir. Resumirei-a como a propensão em agir. Enfim, a terceira noção, a consciência limpa (clear conscience[48]), é o estado de satisfação moral que atingimos após termos agido de acordo com o dever posto pela consciência.
Tendo estes aspectos em vista, o enquadramento moral pluralista poderia ser questionado, segundo Brownlee, por impedir que a consciência definida segundo este pressuposto plural cumpra as funções úteis da consciência definidas segundo as correntes clássicas, previstas pelas concepções monista objetiva e subjetivista, de “classificar opções, guiar, (...), impulsionar, julgar”[49] determinada situação de acordo com as escolhas morais de uma pessoa. Brownlee se propõe, então, a dialogar com estes questionamentos.
A autora dialoga com o questionamento acima apresentado para desenvolver seu conceito de consciência. Busca demonstrar que sua concepção de consciência não só contempla as três ideias que apontei na seção anterior, como também reforçam sua relação com o enquadramento moral pluralista. Assim, Brownlee apresenta as três características de seu conceito de consciência, as quais sintetiza nas seguintes expressões: demandas da consciência, escopo para falhas (scope for error[50]) e consciência limpa. Discutiremos a seguir os conceitos de demandas da consciência, escopo para erros e consciência, estabelecendo a relação entre estes elementos e o enquadramento moral pluralista, verificando, ao final, como impactam o conceito de consciência que apresentamos acima.
Apresentar consciência, em um grau adequado, em relação a uma determinada questão, na concepção de Brownlee, significa estar apto a tomar decisões referentes a esta questão de modo informado, pois esta escolha passou por um processo de ponderação consciente, no qual a legitimidade de outros valores distintos daqueles que escolhemos como nossos foi também avaliada. Em outras palavras, as demandas de consciência motivam determinadas condutas, mas a consciência nos leva a ponderar nossos valores em relação aos demais valores existentes, também legítimos e, após esta avaliação, tomamos uma decisão informada em agir ou deixar de agir.
Para chegar a esta conclusão, a autora desenvolve raciocínio que envolve o papel e a responsabilidade morais. Um indivíduo verdadeiramente consciente é levado, por sua consciência, a escolher um determinado valor dentre os demais existentes. A partir disso, assume um papel moral (moral role[51]) e, quando se depara com determinadas situações, a escolha previamente feita em relação um valor específico dará origem a demandas morais, para que este indivíduo tome atitudes diante de determinados estímulos (encontra-se, aí, a capacidade de resposta moral e autoconsciente). Esta tendência em agir diante destes estímulos decorre da responsabilidade moral (moral responsibility[52]).
Assim, ao escolhermos um determinado valor, assumimos um papel moral do qual decorrem responsabilidades morais, que, por sua vez, fundamentam demandas morais as quais, por fim, criam uma pressão psicológica que buscamos aliviar através do cumprimento dos deveres morais postos.
Em um enquadramento moral pluralista, a consciência atua como uma espécie de filtro em relação a estas tendências, uma vez que nos leva a uma análise da situação e dos valores envolvidos sob uma perspectiva influenciada por valores de tolerância e respeito. Após essa ponderação, é possível decidir, de forma informada, por proceder ou não com o ato inicialmente pretendido.
Esta avaliação em relação ao mérito da motivação do ato que pretendemos realizar é o que diferencia a consciência da mera conscienciosidade (e, por consequência, da convicção), a qual é meramente descritiva (lembrando que, na hipótese da convicção moral, o ato desobediente é justificado com a observação apenas as quatro faces do princípio comunicativo da conscienciosidade, independentemente do mérito).
Ainda que a consciência exija um certo patamar minimamente qualificado de capacidade de resposta moral e autoconsciente, Brownlee reconhece que os atos pautados na consciência podem ser, em alguns casos, equivocados. Por esse motivo, o indivíduo que se entende como consciente deve admitir uma certa margem de erro, o que a autora chama de escopo para falhas. Dentre as falhas que podem ocorrer nesse sentido, Brownlee exemplifica algumas possibilidades, mas não nos aprofundaremos nesta discussão.
Para Brownlee, o senso comum normalmente atribui à consciência limpa um significado ambíguo e paradoxal. Por um lado, a consciência é considerada como um elemento indissociado de nosso corpo. Por outro, manifesta-se como se fosse uma entidade, separada de nosso corpo. A autora entende a consciência, entretanto, como um senso de conforto moral (sense of moral ease[53]) e de ausência de auto-censura.
É possível questionar, entretanto, se o estado de conforto moral e ausência de auto-censura é possível no contexto do pluralismo moral. Ao sabermos que optamos por determinado valor, mas deixamos de lado outros, igualmente legítimos do ponto de vista moral, é possível concluir que a sensação de consciência limpa jamais, ou raramente, torna-se uma realidade.
Brownlee rejeita esta perspectiva. A consciência limpa nada mais é do que o estado em que se está bem consigo mesmo, justificadamente. Agimos conscientemente e observamos o cumprimento de nossas responsabilidades morais. Os valores legitimados pelo pluralismo moral, mas que não são contemplados por nossos papel e responsabilidade morais, não devem impedir com que tenhamos uma consciência limpa.
O conceito de consciência, o modo como ela se relaciona com nossos papeis e responsabilidades morais, bem como com a noção de capacidade de resposta moral e autoconsciente são explicados pela noção do ideal.
Brownlee indica, nesse sentido, os dois motivos principais que a levam abordar a noção de ideal para desenvolver esta análise. Este conceito é central para compreensão do que é a consciência, uma vez que os ideais frequentemente influenciam as decisões tomadas no sentido de desobedecer uma lei. Além disso, o conceito de ideal nos permite diferenciar a consciência da virtude perfeita (perfect virtue[54]), um conceito que pode até estar relacionado à consciência, mas que não se confunde com ele – distinção que a autora busca deixar bastante evidente.
Nesse sentido, o ideal pode ser definido como “o que é objeto da nossa mais alta aspiração, alvo supremo de ambições ou afetos, ou, ainda, como modelo de perfeição ou excelência (que só existe na imaginação); perfeição suprema”[55]. O ideal, portanto, pode ser entendido como uma pretensão que direciona o desenvolvimento de comportamentos, crenças, relacionamentos, caráter no geral, etc.[56]
Para a autora, há quatro elementos relacionados à noção de ideal: (i) abrangência; (ii) aspiração; (iii) cultivação constitutiva; e (iv) não-exequibilidade[57]. Estes elementos distinguem o ideal dos valores comuns (ordinary values[58]) e objetivos comuns (ordinary goals[59]). Ainda, estes quatro elementos também são características do que é a consciência em sua melhor forma de desenvolvimento.
Assim, o primeiro elemento se revela em nossos comportamentos, pensamentos e sensações. Quando nos identificamos com um ideal, este se estende sobre todas estas formas de vivência. Por isso, o ideal se diferencia de um objetivo comum, pois impacta nossa vida de forma abrangente; ao contrário do que ocorre com propósitos cotidianos, os quais podem até estar contidos dentro de um ideal, mas não se equiparam a ele.
Além de nos influenciar, direcionando nosso comportamento no geral, o ideal também apresenta caráter aspiracional, tornando-se “objeto de nossa aspiração”. Isto também distingue o ideal de um objetivo comum, pois este é de concretização mais simples, palpável.
Por ser esta referência cuja aproximação é pretendida, podemos entender a dedicação em promover um ideal de modo constitutivo, nesse sentido, como um comprometimento incorporado a nossa vida e que nos leva a promover atos conexos e interdependentes entre si, os quais apresentam a intenção de concretizar ou, ao menos, de se aproximar do ideal que se tem como referência.[60] Por fim, a não-exequibilidade se revela no fato de o ideal ser um objetivo de realização difícil - caso contrário, não seria um ideal.
A desobediência civil, segundo Brownlee, apresenta um conceito fluido, sem requisitos taxativos, e pode ser fundamentada de duas formas: pela convicção moral consciente ou pela consciência. Cada uma delas gera um direito moral à desobediência civil; portanto, estes fundamentos se aplicam a casos distintos e são independentes entre si.
A primeira delas, a convicção, consiste em um comprometimento moral sério e sincero (a conscienciosidade), cuja análise independe do mérito. Por este motivo, a verificação da convicção relativa a um ato de desobediência civil é meramente descritiva, pois deve atender às quatro condições do princípio comunicativo da conscienciosidade: consistência, julgamento universal, não-evasão e diálogo. A conscienciosidade observada na convicção moral consciente, além disso, é um dos componentes da consciência, segunda hipótese de fundamentação da desobediência civil.
A consciência, por sua vez, está diretamente relacionada ao mérito do ato e, por isso, apresenta caráter avaliativo. A partir dos valores morais com os quais nos comprometemos, manifestamos a consciência ao realizarmos um juízo de valor, que se revela através de uma análise da situação através das demandas de nossa consciência, como um reflexo do papel moral que assumimos e que nos impulsiona a obter uma consciência limpa.
Este impulso, no entanto, é contido pelo reconhecimento de que consciência pode ser formada de forma equivocada, bem como pelo enquadramento moral pluralista, que funciona como um filtro de ações. Assim, o diferencial de Brownlee em relação às teorias clássicas da filosofia que discutem o conceito de consciência, está em identificar nela uma capacidade de resposta ponderada, moral e autoconsciente em relação a determinados estímulos de caráter moral.
A consciência não se confunde com a virtude. Por ser uma aspiração, Brownlee a identifica com o conceito de ideal, o que se revela através das demandas da consciência e da consciência limpa (que refletem o caráter aspiracional da consciência), mas que também admite um escopo para falhas (que, por sua vez, reflete a não exequibilidade).
Vale destacar a distinção entre a convicção e a consciência. Em primeiro lugar, Brownlee aponta que a convicção é meramente descritiva (caracteriza-se a partir da presença das quatro condições do princípio comunicativo da conscienciosidade), enquanto a consciência é uma propriedade avaliativa.[61] De maneira simplificada, é possível dizer que a convicção é caracterizada pela presença da conscienciosidade; a consciência, por sua vez, apresenta não só a conscienciosidade, como também uma capacidade de resposta moral, que pode ser entendida, a meu ver, como uma habilidade de ponderação e avaliação da necessidade de se recorrer à desobediência civil.
Por fim, vale destacar que Brownlee apresenta em sua obra diversas referências diretas e indiretas a John Rawls. De forma breve, as teorias apresentam divergências em relação ao conceito de desobediência civil, uma vez que Brownlee não apenas constrói um conceito aberto, como também nega a imprescindibilidade de elementos que Rawls estabelece como necessários em sua definição (quais sejam, a não-violência, a publicidade e a disposição em se aceitar punição). Por outro lado, apresentam um entendimento próximo no que se refere à necessidade de o ato de desobediência civil revelar um comprometimento sério e sincero. Divergem, entretanto, na forma como este comprometimento pode ser demonstrado: para Rawls, deve-se demonstrar fidelidade à lei; para Brownlee, deve-se tomar o interlocutor como um sujeito racional e capaz de diálogo.
BROWNLEE, Kimberly. Conscience and Conviction: The Case for Civil Disobedience, Oxford: Oxford University Press, 2012.
BROWNLEE, Kimberley, "Civil Disobedience", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2017 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/civil-disobedience/>. Acesso em: 29 out. 2017.
BROWNLEE, Kimberly. Features of a Paradigm Case of Civil Disobedience. Res Publica 10, 2004.
FERREIRA, Ricardo Alexandrino. Rosa Parks deflagrou luta pelos direitos civis dos negros nos EUA: entrevista. São Paulo: Jornal USP. Entrevista concedida a Simone Lemos. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/rosa-parks-deflagrou-luta-pelos-direitos-civis-dos-negros-nos-eua/. Acesso em 18 set. 2018.
RAWLS. John. Uma Teoria da Justiça. 4 ed. Martins Fontes: São Paulo, 2016.
RAZ. Joseph. The Authority of Law: Essays on Law and Morality.
QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Monografia Jurídica Passo a Passo: projeto, pesquisa, redação e formatação. 1. ed. São Paulo: GEN - Método, 2015. v. 1.
[1] BROWNLEE, Kimberly. Conscience and Conviction: The Case for Civil Disobedience, Oxford: Oxford University Press, 2012.
[5] FERREIRA, Ricardo Alexandrino. Rosa Parks deflagrou luta pelos direitos civis dos negros nos EUA: entrevista. São Paulo: Jornal USP. Entrevista concedida a Simone Lemos. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/rosa-parks-deflagrou-luta-pelos-direitos-civis-dos-negros-nos-eua/. Acesso em 18 set. 2018.
[6] Em Features of a Paradigm Case of Civil Disobedience, Brownlee menciona, ainda, que esta definição não possui limites claros. As pessoas optam por recorrer à desobediência civil por motivos variados e, por consequência, tais atos tomam formas distintas. Nem sempre há uma diferenciação evidente entre a desobediência civil e outras formas de protesto (tais como terrorismo, objeção de consciência, dentre outros). Ainda, uma última objeção à apresentação de um conceito fechado está no risco de este conceito ser generalizado e aplicado à atos diversos que, na realidade, não correspondem à desobediência civil. BROWNLEE, Kimberly. Features of a Paradigm Case of Civil Disobedience. Res Publica 10, 2004. p. 339.
[8] Para Rawls, a desobediência civil é “(...) ato político público, não violento e consciente contra a lei, realizado com o fim de provocar uma mudança nas leis ou nas políticas do governo. Ao agir assim, quem o pratica se dirige ao senso de justiça da maioria da comunidade e declara que, em sua opinião ponderada, os princípios da cooperação social entre homens livres e iguais não estão sendo respeitados” RAWLS. Ob. cit., p. 455.
[11] RAZ. Joseph. The Authority of Law: Essays on Law and Morality, apud BROWNLEE, 2012, Ob. cit. p. 22.
[21] A aceitabilidade de uma convicção moral é tratada em capítulos seguintes da obra Conscience and Conviction: The Case for Civil Disobedience.
[23]“Crença ou opinião firme a respeito de algo, com base em provas ou razões íntimas, ou como resultado da influência ou persuasão de outrem; convencimento ‹c. religiosa› ‹c. política› ‹c. morais›”. CONVICÇÃO. In: DICIONÁRIO da Língua Portuguesa. Brasil: Houaiss. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#3. Acesso em: 5 set. 2018.
[27] Na versão original, Brownlee define este requisito como pro tanto moral judgement. No intuito de tornar este conceito mais acessível, optei por chamá-lo de julgamento moral levando o contexto em consideração. BROWNLEE, 2012, Ob. cit. p. 35.
[42] Ainda nesse sentido, Brownlee analisa duas situações em que fragilidade de uma determinada minoria aparentemente colide com a condição de diálogo. Na primeira delas, é possível que, ainda que determinada pauta seja relevante, não se deseje expor e lutar por ela. A autora ilustra esta hipótese com o exemplo das leis que proibiam a sodomia na África do Sul, cuja repúdio poderia ser considerado uma exposição indesejada para alguns. Ainda que seja um sacrifício, Brownlee considera que iniciativas contra tais leis trariam benefícios para a sociedade ao promover a liberdade da minoria por elas oprimida.
A segunda circunstância dá-se quando uma pauta relacionada a uma minoria, e considerada por ela um assunto privado, é levada à discussão pública. Neste caso, a minoria tem o direito se opor, apresentando a convicção de que aquela questão possui caráter privado. Este último cenário trata, sobretudo, da liberdade de expressão. BROWNLEE, 2012, Ob. cit. pp. 45-46.
[46] Brownlee apresenta, a seguir, as concepções da “voz da consciência”, da demanda da consciência e da consciência limpa, segundo a perspectiva de cada uma das correntes. Aqui, não trataremos destas noções, tendo em vista que nos importa mais a análise de como a autora se apropria destes conceitos e os desenvolve dentro de sua teoria da consciência.
[55] IDEAL. In: DICIONÁRIO da Língua Portuguesa. Brasil: Houaiss. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#1. Acesso em: 17 set. 2018.
[57] Originalmente: comprehensiveness, aspirationality, constitutive cultivation and unrealizability. Para tratar destes elementos, Brownlee parte das contribuições de C. A. J. Coady and Nicholas Rescher. BROWNLEE, 2012, Ob. cit. p. 73.
Advogada da área de Mídia e Entretenimento no Baptista Luz Advogados. Na graduação, foi aluna intercambista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (WWU Münster), na Alemanha, e participou de atividades de extensão como o Núcleo de Direito, Internet e Sociedade e o Departamento Jurídico XI de Agosto. Em 2019, realizou o Curso Extensivo de Proteção de Dados – Teoria e Prática, ministrado pelo Data Privacy, e o curso de Direito Digital Aplicado, na FGV.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVEIRA, Ana Paula Varize. Desobediência civil: a convicção e a consciência na teoria de Kimberley Brownlee Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 maio 2021, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56491/desobedincia-civil-a-convico-e-a-conscincia-na-teoria-de-kimberley-brownlee. Acesso em: 22 nov 2024.
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