PATRÍCIA MENDES CABRAL[1]
(coautora)
JOÃO SANTOS DA COSTA[2]
(orientador)
Resumo: A presente pesquisa versa acerca possibilidade de flexibilização do rol taxativo das causas de perda do direito de herdar à luz dos princípios da afetividade, dignidade da pessoa humana e da solidariedade. O objetivo geral do estudo é apresentar a evolução da concepção de família e os seus efeitos no direito sucessório. Esta pesquisa foi desenvolvida através de análises bibliográficas, baseada em materiais já elaborados, compostos por livros, artigos científicos e jurisprudências. Devido ao aumento do abandono afetivo inverso, ou seja, os filhos abandonando os pais, e a inclusão da afetividade como ponto fundante das relações familiares, surgiu a necessidade de estudar a flexibilização do rol taxativo da perda do direito de herdar, tendo em vista que o direito sucessório e o direito de família andam juntos. Por esse motivo, coloca-se a possibilidade de flexibilização das causas de perda do direito de herdar no Código Civil.
Palavras-chave: Abandono afetivo inverso. Afetividade. Exclusão sucessória. Flexibilização.
Abstract: This research is about the possibility of flexibilization of the exhaustive list of causes of loss of the right to inherit in light of the principles of affectivity, dignity of the human person and solidarity. The general objective of the study is to present the evolution of the concept of family and its effects on inheritance law. This research was developed through bibliographic analysis, based on materials already prepared, composed of books, scientific articles and jurisprudence. Due to the increase in the opposite affective abandonment, that is, children abandoning their parents, and the inclusion of affectivity as a foundational point of family relationships, the need to study the flexibility of the definitive list of loss of the right to inherit emerged, considering that inheritance law and family law go hand in hand. For this reason, there is the possibility of flexibilization of the causes of loss of the right to inherit in the Civil Code.
Keywords: Inverse affective abandonment. Affection. Inheritance Exclusion. Flexibilization.
Sumário: Introdução 1. Da família: a sua concepção no direito conteporâneo e a inclusão dos princípios constitucionais em sua estrutura 2. A concepção de família no sistema jurídico contemporâneo 2.1 Dos princípios constitucionais na estrutura familiar 2.2 Os deveres familiares: o papel dos filhos na proteção de seus pais na velhice 3. Da exclusão sucessória 3.1 A capacidade sucessória no código civil vigente 3.2 Exclusão por indiginidade: abordagem conceitual e as hipóteses de incidência 3.3 A perda da capacidade sucessória pela deserdação: compreensão do conteúdo, forma e hipóteses de incidência 3.4 Interpretação teleológica do direito sucessório 3.5 Interpretação teleológica do direito sucessório 4 Do abandono afetivo inverso como causa de perda do direito de herdar 4.1 Compreensão crítica do conceito de abandono afetivo inverso 5 Do abandono afetivo inverso como hipótese de exclusão sucessória: uma anàlise a partir da constituição federal 5.1 O abandando afetivo inverso na jurisprudência: uma questão ainda a ser amadurecida. Considerações finais. Referências.
Para acompanhar e regulamentar as relações jurídicas, o direito deve sempre se renovar, seja por meio de alterações legislativas, bem como por meio de novos entendimentos jurisprudenciais. A introdução da afetividade como elemento essencial de existência da entidade familiar fez surgir novas discussões, entre elas, a possibilidade de exclusão do herdeiro na linha sucessória em razão do abandono afetivo inverso, já que a doutrina e a jurisprudência têm caminhado para essa possibilidade.
A conquista de avanços tecnológicos, sobretudo, na medicina, fez com que melhorasse a qualidade de vida no país, aumentando a expectativa da longevidade e, consequentemente, o aumento da população idosa. Essa fase da vida é marcada, contudo, pela vulnerabilidade acerca de diversos fatores, dentre eles, o acometimento de enfermidades graves, como a depressão. Essa anomalia é frequente quando, mesmo com a valorização e importância que a Constituição Federal de 1988 dar ao princípio da dignidade da pessoa humana, bem como a afetividade passa a ser essencial para a configuração da entidade familiar, é crescente o número de idosos que são abandonados afetivamente.
Dessa forma, a presente pesquisa tem como estudo o abandono afetivo inverso – caracterizado quando filhos abandonam os pais, na maioria das situações, idosos – destacando, assim, as consequências desse problema social e o seu alcance, mesmo em uma sociedade que garante constitucionalmente o dever de amparo, pela família, às pessoas idosas. É um tema que carrega polêmica por causar comoção diante da falta de empatia aos mais vulneráveis, além de enfurecer aqueles que lutam por situações igualitárias e por justiça.
Ademais, sabendo que o conceito e a finalidade da família estão em constante alteração devido ao enaltecimento do princípio da afetividade, tem-se como objetivo demonstrar a necessidade de alteração nas hipóteses de exclusão sucessória, justamente, em virtude do crescente abandono afetivo inverso e a realização da última vontade do de cujus, pois é repugnante à ordem jurídica alguém abandonar os pais e, mesmo assim, tirar vantagem destes.
Da mesma forma, a própria Constituição Federal de 1988 também preconiza em seus dispositivos legais o princípio da dignidade da pessoa humana, no qual confere ao indivíduo a liberdade de agir, pensar e ser, assegurando que a sua liberdade de escolha e de uma vida digna sejam respeitadas. Por isso, o presente trabalho possui como objetivo apontar a necessidade de novas interpretações acerca das normas sucessórias, uma vez que essas situações pré-concebidas pelo poder legislativo devem ser relativizadas em prol do indivíduo, para que este tenha direito a escolher quem irá usufruir dos seus bens, considerando a atual concepção do direito de família, bem como o crescente abandono afetivo.
Logo, surge a necessidade de não permitir que o autor desse ato ilícito fique impune e, ainda, se beneficie com o patrimônio do de cujus. Sendo importante ressaltar que o direito sucessório já prevê circunstâncias sobre a exclusão do direito de herdar, possuindo, no entanto, um rol taxativo. A reflexão que ora se coloca, portanto, é a possibilidade de incorrer uma flexibilização, ou seja, uma interpretação da norma sucessória levando-se em consideração os princípios constitucionais que norteiam o novo conceito de família.
Nessa linha de pensamento, é evidente que o direito sucessório permanece arcaico diante da nova realidade social, deixando de acompanhar as transformações do direito de família. Nesse sentindo, é necessária uma ponderação entre os princípios fundantes do novo direito de família, bem como o da taxatividade que regula o direito sucessório. A pesquisa em comento será desenvolvida através de análises bibliográficas com abordagem dedutiva, do tipo descritiva e na forma qualitativa.
1 DA FAMÍLIA: A SUA CONCEPÇÃO NO DIREITO CONTEMPORÂNEO E A INCLUSÃO DOS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS EM SUA ESTRUTURA.
1.1 A concepção de família no sistema jurídico contemporâneo.
A sociedade moderna sofre constantes alterações com a evolução do tempo, de modo que vem a afetar diversos setores, como o econômico, político, cultural e, consequentemente, os aspectos pessoais e sociais. Tais mudanças influenciam fortemente no instituto da família, uma vez que esta é a unidade social mais antiga do ser humano, visto que, antes mesmo de existir organizações políticas, diversas pessoas já se relacionavam a constituir uma entidade familiar.
Antigamente, no direito romano, a família era organizada sob a autoridade do “pater”, de modo que este era o responsável pelas decisões de todos os familiares, cujas ordens deviam ser respeitadas e seguidas por todos. Portanto, o homem detinha toda a direção da entidade familiar, não cabendo às esposas e aos filhos o poder de escolha. Imperioso destacar que, precipuamente, a família era formada apenas por laços sanguíneos, de modo a formar um núcleo mais restrito.
Com o passar do tempo, o conceito de família foi mudando drasticamente. Hoje, após diversas transformações históricas, bem como com a promulgação da Constituição Federal de 1988, muitos paradigmas foram quebrados; assim, o modelo igualitário de família contemporâneo se sobrepõe ao modelo autoritário anterior, afinal, os ideais democráticos, igualitários e a busca pela dignidade da pessoa humana foram cruciais para tamanha alteração do que vem a ser a entidade familiar.
Outrossim, na visão de Maria Berenice Dias (2015), a família é uma construção cultural, e, por isso, o seu conceito se reinventa de acordo com o momento histórico. Dessa forma, constata-se que a família na atual sociedade contemporânea passa a priorizar a afetividade no ambiente de convivência e a solidariedade entre os seus membros. Portanto, o presente trabalho possui o objetivo de demonstrar a atual concepção de família norteada pelos princípios constitucionais, uma vez que tais princípios se tornaram base para sua configuração, como também, a necessidade de tais princípios serem observados no direito sucessório.
Em suma, diante da constitucionalização do Direito Civil, a qual determina um novo parâmetro interpretativo às relações familiares, é cediço que, hoje, para a configuração de família, é necessário o vínculo afetivo. Nesse viés, segundo Paulo Lôbo (2019) “A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida”.
À luz do exposto, é notório que o princípio da afetividade é base das relações familiares, e a ausência da afetividade poderá descaracterizar a entidade familiar, não bastando apenas a existência de laços sanguíneos ou mesmo exclusivamente a provisão de bens materiais, devendo ir além, considerando os demais deveres familiares de cuidado, atenção, convivência familiar, educação, proteção, dentre outros.
Ademais, é de suma importância trazer à baila que a passagem do fato natural dos laços de sangue para o fato cultural da afetividade é materializada em diversos artigos do Código Civil, dentre eles, o artigo 1.614, que demonstra a possibilidade de o filho rejeitar a filiação. No primeiro caso, se o filho maior não reconhecer a paternidade mesmo esta sendo biológica, não será admitida. E, no segundo caso, o filho menor pode impugnar a paternidade até quatro anos após completar 18 anos. Portanto, está mais do claro que a afetividade é a pedra angular do atual conceito de família, em virtude da sua relevância nas relações familiares, deixando de lado o mero laço sanguíneo.
Da mesma forma, segundo Dimas Messias de Silva Carvalho (2019), a Constituição de 1988 acolheu as transformações sociais da família brasileira, incluindo no seu texto três eixos modificativos de extrema relevância, sendo eles: a igualdade em direitos e deveres do homem e da mulher na sociedade conjugal; igualdade absoluta dos filhos e a pluralidade dos modelos de família. Com isso, ao analisar o novo conceito de família norteado pelo princípio da afetividade, faz-se necessário analisar a falta deste. Dessarte, a presente pesquisa visa demonstrar a importância da inserção do abandono afetivo inverso como causa de perda do direito de herdar.
1.2 Dos princípios constitucionais na estrutura familiar
A priori, é importante ressaltar a importância dos princípios no ordenamento jurídico, tendo em vista que a realidade/sociedade antecede o Direito, de forma que se faz necessário a incidência deles para a interpretação das normas pelo operador do Direito, uma vez que há situações que não estão previstas no ordenamento, surgindo, portanto, os princípios como pontos fundamentais à suprir as lacunas da lei. José Afonso da Silva (1982), define os princípios jurídicos como sendo uma ordenação que se irradia e imanta os sistemas de normas, servindo de base para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.
No mesmo sentindo, na visão de Rodrigo da Cunha Pereira (2016), o papel dos princípios é, também, informar todo o sistema, de modo a viabilizar o alcance da dignidade da pessoa humana em todas as relações jurídicas, ultrapassando, dessa forma, a concepção estritamente positivista, que prega um sistema neutro. Assim, é inegável a importância dos princípios no atual Direito contemporâneo.
Em seguida, após tecer um pouco sobre o conceito do que venha ser princípios, passamos agora a analisar a incidência destes no Direito de família. Precipuamente, imperioso destacar, o princípio mais universal de todos, qual seja, o da dignidade da pessoa humana, no qual além de ser um princípio constitucional, trata-se de um fundamento à ordem jurídica, no qual é perceptível a preocupação do legislador pela pessoa humana e a sua dignidade. Desse modo, nesse "novo" Direito, a família deixa de ser um núcleo social fechado e individualista, pois na sociedade patriarcal apenas a figura paterna gozava da dignidade para assumir a função de realização da dignidade de todos os integrantes, com base sempre no afeto e no respeito entre os indivíduos.
Logo, a inclusão do princípio da dignidade da pessoa humana no Direito de família se materializou em diversas alterações do Código Civil ocorridas após a promulgação da Constituição Federal de 1988, dentre elas, a igualdade de direitos entre o homem e a mulher na sociedade conjugal (art 226, § 5); e o planejamento familiar voltado para o princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art 226, § 7).
Na sequência, no tocante ao princípio da solidariedade, segundo Paulo Lôbo (2020), caracteriza-se como um vínculo de sentimento guiado e autodeterminado, que se materializa por meio de uma oferta de ajuda desde moral a material. É uma forma de superar o individualismo jurídico e buscar a formação de uma sociedade justa. Desse modo, após a implementação do princípio da solidariedade no contexto familiar, o cuidado e o zelo com os demais membros da família deixaram de ser algo indispensável para a sua configuração, tornando-se um dever jurídico.
Destarte, com a implementação do denominado princípio, frizamos o dever de todos os membros da família em prestar assistência uns aos outros, destacando o dever de cuidado dos filhos perante os pais, dando a estes os devidos cuidados para que tenham uma velhice segura, respeitada e digna.
Quanto ao princípio da igualdade entre os membros da família, este operou imensa transformação, principalmente, no que concerne a igualdade entre o homem e a mulher, entre os filhos oriundos dentro e fora do casamento e entre as entidades familiares, rompendo, mais uma vez, os pontos fundantes da família tradicional. Esse princípio tem o objetivo de superar as desigualdades a medida que enaltece a ideia de aplicação da mesma lei a todos os sujeitos de direito.
Nesse raciocínio, não podemos ceder à noção de enxergar o Direito de família apenas como um instituto de normas que visa a proteção da entidade familiar, quando, na realidade, o seu papel vai muito além disso, pois as relações familiares são ostentadas por cada pessoa humana, cuja dignidade, como já tratada acima e esclarecido que é o princípio regulador do ordenamento jurídico, merece o mais elevado amparo constitucional.
Além desses, temos o princípio da afetividade. É, justamente, a importância do cuidado, carinho e atenção em todo relacionamento, especificamente, na família. Mostra-se como um complemento de todos os outros, formando um conjunto indispensável para a humanidade, pois a família não pode ser confundida com um leque de entidades familiares, ela é, antes que qualquer corpo intermediário, um complexo de relações humanas com base no fundamento de parentesco, afinidade e socioafetividade.
Portanto, percebe-se que o conceito de família decorre de um fato social que está em constante transformação e que precisa de um acompanhamento jurídico a sua altura. Contudo, verifica-se que nem sempre o Direito regulamenta as relações existentes de acordo com a atual conjuntura, surgindo, assim, a necessidade de flexibilização de normas ainda arcaicas.
Portanto, a presente pesquisa possui como possibilidade, justamente, a flexibilização do direito sucessório. Isso se deve ao fato de o rol previsto no Código Civil que enumera os casos de causas de perda do direito de herdar ainda ser taxativo, não enumerando, especialmente, o abandono afetivo inverso como hipótese. É inadmissível que alguém usufrua dos bens deixados por outro, mesmo tendo lhe abandonado, apenas pela justificativa de laço sanguíneo. Vale se perguntar se o afeto existiu, a convivência, o cuidado, a proteção. Até porque são obrigações, inclusive, previstas na lei. Por isso, o afeto é, hoje, um termo marcante no Direito de família e, consequentemente, no Direito sucessório.
1.3 Os deveres familiares: o papel dos filhos na proteção de seus pais na velhice
O aumento da expectativa de vida dos brasileiros, segundo os dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aumentou de 2017 para 2018, em três meses e quatro dias, alcançando o patamar de 76,3 anos. Um dado que deveria ser encarado como positivo para todos, no entanto, para os idosos, têm sido um momento de angústia.
Segundo Carlos Alberto Maluf (2018), os idosos merecem, assim como as crianças e adolescentes, uma tutela diferenciada em virtude da vulnerabilidade decorrente da velhice. Logo, com objetivo de conceder uma tutela positiva ao idoso, justamente, em virtude de sua vulnerabilidade, foi instituído um microssistema que reconhece e restabelece as necessidades especiais para os idosos, o denominado Estatuto do Idoso.
Roberto Mendes de Freitas Júnior além de destacar importância social do estatuto vigente, também evidencia as suas tutelas específicas que proporcionam garantias e também obrigações, tanto para o Estado, quanto para a sociedade e a família, ao estabelecer no seu artigo 3º, como obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (FREITAS JUNIOR, 2015).
Dessa forma, tal estatuto assegura os direitos das pessoas nessa faixa etária e, inclusive, seleciona crimes em espécies para quem atentar contra o bem-estar dessa camada mais vulnerável. Assim, de acordo com o artigo 99 dessa lei, expor a perigo a integridade e a saúde, física e psíquica, do idoso, submetendo-o a condições degradantes é crime e possui todo um amparo jurídico para punir o indivíduo que age desta maneira.
Nesse sentido, o direito a ter um envelhecimento digno tornou-se um direito personalíssimo protegido, inclusive, em diplomas internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem. No entanto, mesmo com tanto amparo legal, ainda há a negligência quanto a esse dever de cuidado dos filhos perante os pais.
Além de tais diplomas, preceitua o artigo 229 da Constituição Federal, que os filhos têm o dever de ajudar e de amparar os pais na velhice, carência e enfermidade. Em suma, o cuidado jurídico que o filho deve ter perante o pai, apesar de possuir um valor imaterial, é uma obrigação que engloba toda a solidariedade da família e segurança afetiva que deve se fazer presente. Ainda, preceitua o artigo 230 da mesma lei que é dever da família cuidar das pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar, garantindo-lhes o direito à vida.
Ocorre que, com a vida corrida e o aumento da expectativa de vida, os idosos estão sendo cada vez mais deixados em asilos, e, consequentemente, esquecidos pelos seus familiares. Isso tem ocasionado diversas enfermidades, como depressão e ansiedade, o que causa o sofrimento e um final de vida angustiante. Tudo isso acontece, muitas vezes, por egoísmo, falta de empatia e, certamente, é um desrespeito a diversos princípios constitucionais que hoje são bases fundantes para as relações familiares, como o da afetividade. Nessa lógica, é evidente que essa atitude merece ser punida pelo Estado na função de protetor dos mais vulneráveis, bem como para efetivar os princípios constitucionais.
Na maioria das vezes, os familiares acreditam que manter financeiramente o idoso já basta. Ora, é inegavél a importância do dinheiro para a subsistência dos idosos, no entanto, a afetividade e o cuidado, devem se fazer presentes, uma vez que no atual direito de família, passaram a ser pontos essenciais para a constituição da entidade familiar, portanto, a falta destes requisitos merece ser punido.
Desse modo, quando se trata de um filho (a) que tem o dever de cuidar, à luz da Constituição Federal, dos pais idosos e, por alguma ocasião, os abandona e, mesmo assim, tem o direito de herdar os bens adquiridos pelos pais ao longo da vida é de extrema afronta os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da personalidade, e ao ideal de justiça.
2.1 A capacidade sucessória no Código Civil vigente.
A capacidade sucessória é a propensão para adquirir os bens que eram do de cujus, ou seja, a legitimidade para determinada pessoa titular os bens deixados pelo falecido, sendo apurada no momento da abertura da sucessão, aplicando-se a legislação vigente, de acordo com o artigo 1.787 do Código Civil. Além da aptidão para suceder, é necessário que o herdeiro ou o legatário sobreviva ao autor da herança, ou seja, que sobreviva no momento da morte, salvo as exceções.
Com a morte do titular dos bens, o patrimônio passa a ser chamado de ‘herança’ e será aberta a sucessão, sendo submetida às regras do direito sucessório. De acordo com Pablo Stolze (2019), a sucessão é, justamente, a modificação da titularidade de bens. O patrimônio deixado pelo falecido, vale lembrar que não é apenas os bens corpóreos e sim toda a gama de relações jurídicas (direitos e obrigações de crédito e débito) valoráveis economicamente, jamais poderá remanescer sem titular. A sucessão mortis causa, ou seja, a transferência de titularidade dos bens decorrente da morte do de cujus, será o caminho desta pesquisa. Esse tipo possui como espécie a sucessão hereditária que é subdividida em legítima e testamentária.
Em casos que o autor da herança não declara a sua última vontade, ocorre totalmente a sucessão legítima; ela decorre da lei, os seus bens serão transmitidos a quem o legislador estabelece como herdeiro. Ainda, mesmo em situações que o de cujus deixe algum testamento de doação da herança, essa sua liberdade de escolher a quem beneficiar é limitada pelo artigo 1.846 do CC, pelo qual, diz: ‘Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima’. Os herdeiros necessários, pelo artigo 1.845, são os descendentes, ascendentes e cônjuges, sendo deferida a herança a partir da ordem do artigo 1.829 do CC.
Já a sucessão testamentária é quando a transmissibilidade da herança ocorre por um ato jurídico negocial, especial e solene, denominado testamento. No entanto, por mais que seja tratada de forma exaustiva e abrangente no Código Civil, não possui aceitação social por não ser típico da
cultura brasileira a preocupação com o destino do seu patrimônio após a morte.
Segundo Dimas Carvalho (2018), na sucessão legítima, possuem capacidade sucessória as pessoas físicas existentes e o nascituro; sobretudo, na sucessão testamentária, é admitido serem chamadas a suceder, além das pessoas nascidas ou concebidas, a prole eventual de pessoas certas existentes no momento da morte, as pessoas jurídicas e as fundações a serem constituídas.
Paulo Lôbo dispõe que estão legitimados a suceder no direito brasileiro, tais sujeitos: as pessoas físicas; os nascituros; as pessoas físicas ainda não concebidas, ou prole eventual das pessoas, contempladas em testamento; as pessoas jurídicas designadas em testamento; as entidades não personificadas, porém existentes, como as sociedades em comum ou as sociedades em conta de participação, designadas em testamento; e as pessoas jurídicas futuras, que serão constituídas com legados deixados pelo testador, sob a firma de fundações.
Nesse sentido, o principal fundamento para o direito de herança é, sem dúvidas, a relação de parentesco, por isso, tamanha é a ligação do Direito de Família com o Direito Sucessório. Com o falecimento, os bens auferidos no decorrer da vida precisam de novo proprietário para poder administrá-lo, sendo, de primeira mão, chamados os membros da família, com preferência para os herdeiros necessários elencados no artigo 1845 do Código Civil, para que possam administrar os 50% reservados na lei e, posteriormente, os herdeiros testamentários, caso existam, para que titulem o restante.
Há, ainda, a possibilidade de exclusão dos indivíduos da herança, isso ocorre em virtude de dois institutos: a indignidade e a deserdação, ou a hipótese de renúncia, quando o próprio hereditando se recusa a receber o patrimônio. A direção da presente pesquisa será com base nas duas possibilidades de exclusão. O primeiro caso possui as hipóteses em rol taxativo no artigo 1.814 do Código Civil para que aconteça, já o segundo, é feito pelo próprio autor da herança, quando ainda vivo, através de escritura. Dessa forma, o estudo tem como objetivo a ideia de acrescentar o abandono afetivo inverso como causa de perda do direito de herdar.
Isso decorre da indignação por considerar apto a suceder os pais aqueles filho ou filha que os fez mal, trapaceou, maltratou. Os princípios da afetividade, da solidariedade, da dignidade da pessoa humana vieram trilhar essa problemática e enaltecer que não é justo herdar sem cuidar.
2.2 Exclusão por indignidade: abordagem conceitual e as hipóteses de incidência
A sucessão hereditária é revestida de razões para sua existência, dentre elas, tem-se a de ordem ética: a afeição real ou presumida do de cujus para com o herdeiro ou legatário. Por isso, a legislação prevê a possibilidade de afastar da herança o herdeiro e/ou legatário que falhar com essa afetividade, mediante a prática dos atos previstos taxativamente no artigo 1.814 do CC contra o autor da herança, o tornando indigno de recolher os bens hereditários. Assim, a indignidade é uma sanção civil que tem como consequência a perda do direito sucessório.
Orlando Gomes (2015) comenta que o fundamento da indignidade está na presumida vontade do defunto que excluiria o herdeiro caso tivesse feito declaração de última vontade. Continua que alguns preferem atribuir os efeitos da indignidade ao propósito de prevenção ou contenção do ato ilícito.
Para Carlos Roberto Gonçalves (2020), esse instituto é inspirado ‘num princípio de ordem pública’, pois resiste à consciência social que um indivíduo receba os bens de outro depois de haver cometido contra ele diversos atos reprovados. Assim, a indignidade será a privação do direito de herdar a quem cometeu atos ofensivos à pessoa ou ao interesse do hereditando.
Álvaro Villaça Azevedo (2019) caracteriza os casos de indignidade do seguinte modo: o primeiro caso de indignidade é por homicídio doloso por cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente, presumindo o afeto do de cujus com essas pessoas do seu convívio, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar. Sendo o homicídio culposo, resultante de negligência, imprudência ou imperícia, como também em casos de legítima defesa ou exercendo regularmente seu direito, ou, ainda, em caso de embriaguez ou de demência não legitima a exclusão do responsável. Esse motivo de exclusão, como prevê o inciso I do artigo 1814 do CC, existe mesmo que o herdeiro tenha apenas participado do delito, como coautor, colaborador ou partícipe.
O segundo caso de indignidade é quando o herdeiro ou legatário dar causa a instauração de investigação policial ou de processo judicial contra o autor da herança, mesmo sabendo que este é inocente. Não basta que seja qualquer acusação, é preciso que ela seja veiculada em juízo criminal, mediante queixa e se revele falsa e dolosa, nos termos do artigo 339 do Código Penal. Além disso, faz mister que o acusador tenha certeza do ilícito penal. A segunda parte do inciso II do artigo 1814 do CC trata dos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) praticados pelo indigno ao de cujus ou ao seu cônjuge ou companheiro.
O terceiro e, até então, último caso é o atentado contra a plena liberdade do autor da herança de dispor dos seus bens por ato de última vontade. Configura-se, assim, um ato fraudulento ou de falsificação.
A exclusão do herdeiro ou legatário, em qualquer dos três casos citados, deve ser, de acordo com o artigo 1.815 do CC, declarada por sentença judicial, extinguindo-se o direito de demandar essa exclusão em quatro anos. Pelo artigo 1817, antes da sentença, são válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiro de boa-fé e os atos de administração legalmente praticados por ele. Contudo, os herdeiros que forem prejudicados poderão requerer perdas e danos. A partir disso, o excluído deve restituir os frutos e rendimentos que dos bens da herança houver percebido, obtendo direito a ser indenizado das despesas com a conservação deles
De acordo com o artigo 1.816 do CC, os efeitos da exclusão são pessoais, assim os descendentes do herdeiro excluído podem representá-lo e se beneficiar com a herança, como se ele estivesse morto antes da abertura da sucessão. O excluído da sucessão não terá direito ao usufruto ou à administração dos bens que a seus sucessores couberem na herança, pois ele é equiparado ao morto civil, não podendo, ainda, ser eventual sucessor desse mesmo patrimônio.
Depois de incorrer em atos que determina a exclusão, será admitido suceder, pela redação do artigo 1.818 do CC, desde que se faça por testamento ou por outro ato autêntico, como a escritura pública. A reabilitação por testamento deve ser feita expressamente; no entanto, quando não há essa previsão expressa, é aceita se quando o testador, no momento de testar, já era ciente da causa de indignidade testamentária, devendo ocorrer no limite da sucessão. Dessa forma, não há autorização para o aceite da reabilitação de modo tácito ou presumido.
2.3 A perda da capacidade sucessória pela deserdação: compreensão do conteúdo, forma e hipóteses de incidência.
Embora a deserdação possua os seus efeitos e causas geradoras parecidas com a indignidade, são institutos diferentes e que merecem ser tratados separadamente. A deserdação ocorre quando o herdeiro necessário é privado de sua legítima por um ato unilateral realizado pelo testador antes de seu falecimento, ou seja, o hereditando é proibido de ser titular dos bens do de cujus, perdendo tanto a reserva como a sua cota na parte disponível do espólio.
Dentre os requisitos desse regime, como o próprio conceito já nos remete a essa ideia, tem-se a necessidade de o herdeiro ser necessário, aqueles indicados no artigo 1845 do Código Civil, logo, herdeiro testamentário não entra nesse quadro, além da realização de alguma das causas previstas no rol taxativo dos artigos 1814, 1962 e 1963 do Código Civil e a propositura de ação ordinária pelo herdeiro instituído ou àquele em que aproveite a deserdação para que se prove a veracidade da causa alegada pelo testador, como relata o artigo 1965 do Código Civil.
Segundo Clóvis Beviláqua, a deserdação é um instituto carregado de sentimentos pesados, como o ódio, pois imprime a noção de castigo/vingança às últimas vontades do de cujus. Por outro lado, Cunha Gonçalves declara que é um procedimento plausível por fortalecer a família, enaltecendo a necessidade de respeito, amor, cuidado, além de conter os maus instintos e suas explosões entre pais e filhos, pois a deserdação é uma forma de o testador excluir do benefício da sua herança quem o maltratou.
O artigo 1814 do Código Civil traz as seguintes hipóteses para excluir da sucessão, sendo elas: herdeiros que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
Os artigos 1962 e 1963 do Código Civil coincidem em dar causa à deserdação àqueles descendentes e ascendentes que praticarem ofensa física e injúria grave um ao outro, lembrando que, quando se trata de ofensa física não importa a intensidade, mesmo que seja leve é motivo para deserdação, já no caso de injúria é necessário que ela seja grave, intolerável e marcado pelo animus de injuriar, só assim para ser uma causa de deserdação.
Ademais, o artigo 1962 autoriza a deserdação dos descendentes por seus ascendentes em virtude de relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto e o desemparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade. O artigo 1963 do Código Civil também enumera mais causas de deserdação dos ascendentes pelos descendentes, como: relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta e o desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade. Podem ser invocados mais de um desses fundamentos legais, bastando, apenas, que se prove a ocorrência de pelo menos um deles para a procedência do pedido.
Com essas legações e provada a veracidade dos fatos dentro do prazo de quatro anos, a contar da abertura do testamento, será dado o efeito da deserdação expressamente indicado no testamento. Vale ressaltar que os efeitos da deserdação são pessoais, não podendo ir além da pessoa que agiu de forma indigna, podendo os seus sucessores ocuparem o seu lugar. Caso o herdeiro instituído ou aquele que aproveite da deserdação não tome a iniciativa de ajuizar a ação, assiste ao próprio deserdado o direito de ajuizar ação para que seja fundamentada aquela deserdação, provando os fatos alegados. Nestes termos, se não for provado o que deu causa à deserdação, são nulas tanto a instituição como as disposições que prejudicarem a legítima do deserdado, vindo a fazer jus à sua quota legítima.
Pablo Stolze (2021) coloca que a deserdação é uma matéria que necessita de aperfeiçoamento, pois é tratada em artigos pouco uniformes, além de o codificador não ter se preocupado em incluir o cônjuge no rol dos herdeiros passíveis de deserdação, os artigos 1961 1963 não abrange esse sujeito, e seria uma colocação plausível, haja vista que ele é um herdeiro necessário. Ou seja, enquanto não concertada essa falha na escrita, pode-se defender que o cônjuge pode ser excluído por indignidade, pois está no rol do artigo 1814 do Código Civil, mas não poderá ser excluído por deserdação.
Nesse sentido, pela importância dada à letra da lei, com toda razão, faz-se necessário o acréscimo do abandono afetivo inverso no rol de causas de perda do direito de herdar, tanto na derserdação como na indignidade. É inadmissível deixar usufruir do patrimônio do de cujus alguém que dele não cuidou, amou, se solidarizou.
2.4 Interpretação teleológica do direito sucessório
Com base no vínculo existente entre o Direito de Família e o Direito sucessório, é interessante trazer a ideia da principiologia do afeto para a sucessão e compreender esta disciplina de forma mais humana e igualitária. Pois, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves, 2020, o Código Civil de 2002 procurou ajustar-se à evolução cultural e aos bons costumes adotando as alterações legislativas oriundas das últimas décadas do século passado.
No que diz respeito ao direito de herdar, há a possibilidade de beneficiar tanto pessoas ligadas por sangue como pessoas sem esse vínculo. A legislação protege, preferencialmente, um grupo de indivíduos como herdeiros necessários e, assim, limita a liberdade de escolha do defunto, por se presumir o convívio e intimidade do defunto com essas pessoas.
No entanto, por mais que o ligame biológico seja um pressuposto de cuidado e de dever de cuidar, ocorre, em muitos casos, a falha e a quebra do compromisso de parentes para com uma pessoa, no caso, o de cujus. A própria Constituição Federal coloca essa obrigação em seu texto, presentes nos artigos 229 e 230, além do louvor dado ao princípio da dignidade da pessoa humana que, até na sua literal ideia, traz a noção de busca por uma vida digna, cercada de respeito.
Assim, Paulo Lôbo, 2020, declara que o Direito de sucessão deriva da cultura, da evolução cultural, da trajetória entre comunidade, indivíduo e solidariedade. Por isso, hoje, a sociedade e o Direito de família são regidos pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da afetividade, princípios e ideias tão lembradas pela Constituição Federal de 1988, o que mostra a evolução dos valores sociais e do enaltecimento do “ser” sendo uma contribuição cedida ao direito sucessório por ser um ramo que trata de pessoas/famílias em situação de angústia, momento de luto.
Com isso, a legislação sucessória tem o esculpro de estabelecer a distribuição dos bens do de cujus com base na última vontade deste, sendo hipocrisia entregar o patrimônio para uma pessoa que pouco contribuiu com a saúde, bem-estar e qualidade de vida do falecido, e tampouco cumpriu o seu dever de cidadão que é obedecer as imposições determinadas pela Constituição Federal. Desse modo, a pesquisa em fomento enaltece a necessidade do acompanhamento da lei sucessória à evolução trazida pela sociedade, pelo Código Civil e, principalmente, pela necessidade visível de cada caso.
3.DO ABANDONO AFETIVO INVERSO COMO CAUSA DE PERDA DO DIREITO DE HERDAR
3.1 Compreensão crítica do conceito de abandono afetivo inverso.
O abandono afetivo é um tema muito discutido que, apesar de não possuir uma legislação específica, tem amplo debate doutrinário e jurisprudencial. É comum se atrelar ao falar de abandono afetivo, das crianças e adolescentes que foram abandonadas pelos seus genitores. No entanto, pouco se discute sobre o abandono afetivo inverso, em que os filhos abandonam seus pais afetivamente na fase idosa, objeto da presente pesquisa.
A denominada expressão “abandono afetivo” surgiu em decorrência de um histórico julgado em que a Ministra Nancy Andrighi analisou o caso de uma filha no qual o seu genitor não queria manter nenhum tipo de relacionamento com ela. Na realidade, trata-se da ofensa ao dever de cuidado que se encontra expresso no texto constitucional e no Código Civil.
No entanto, com o aumento da expectativa de vida dos idosos e a vida corrida dos filhos, constatou-se que essa omissão do dever de cuidar não estava ocorrendo apenas com relação aos genitores e sua prole, como também, com relação aos pais idosos que são abandonados à sua própria sorte pelos seus filhos adultos, configurando, assim, abandono afetivo inverso.
Nesse sentindo, o desembargador Jonas Figueredo Alves (2013) diz que o abandono afetivo inverso é a inação do afeto, ou mais precisamente a não permanência do cuidar dos filhos para com os genitores, de regra idosos, momento em que o cuidado é mais necessário, em virtude da vulnerabilidade decorrente da fase idosa.
Maria Berenice Dias define o abandono afetivo inverso como: “O inadimplemento dos deveres de cuidado e afeto dos descendentes para com os ascendentes, conforme impõe a Constituição Federal em seu art. 229” (DIAS, 2016, p.648).
Em suma, o abandono afetivo consiste em um dano imaterial que afeta o psicológico de quem sofre tal ato, se tornando um prejuízo no qual sua reparação não pode ser mensurada em valores. No caso dos idosos, o abandono gera um sentimento de solidão, tristeza, que, dependendo do estado de saúde, pode agravá-lo. A falta de contato com seus filhos tende a mudar os estímulos de interação dos idosos, e até mesmo o interesse com a própria vida. Segundo Roberto Mendes de Freitas Junior: “Garantir a manutenção do idoso no seio familiar, portanto, constitui uma estratégia para manutenção da estabilidade física, moral e psíquica do idoso” (FREITAS, 205, p. 144).
Destarte, como já mencionado anteriormente, o dever de cuidar dos familiares está previsto no Art. 229 da Constituição Federal, in verbis:“Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Logo, à família cabe o dever de proporcionar um envelhecimento tranquilo e participativo baseado no dever mútuo de cuidado e respeito entre os familiares.
Ocorre que, a ajuda financeira, as vezes, serve como um “pretexto”, de forma que os filhos acreditam ser o bastante no auxílio para com seus pais, de maneira a substituir o cuidado afetivo. Ora, não se questiona a importância do alicerce financeiro, no entanto, a sua exclusividade não encobre a falta de afeto e de amparo aos pais, tendo em vista que hoje o afeto é o princípio norteador das relações familiares.
4.Do abandono afetivo inverso como hipótese de exclusão sucessória: uma análise a partir da Constituição Federal.
A teoria tridimensional do Direito, aquela formulada pelo professor Miguel Reale, correlaciona três fatores independentes que fazem do Direito uma estrutura social axiológico-normativa, sendo os elementos: fato, valor e norma, devendo estar referidos ao plano cultural da sociedade onde se apresentam. Assim, é buscada a unidade do fenômeno jurídico, no plano histórico-cultural, sem teorias unilaterais ou reducionistas.
Dessa maneira, a aplicação da lei decorre de uma análise muito mais profunda que apenas a simples leitura do seu texto. É essencial trazer a lei para o fato e, assim, haver a ponderação a partir dos valores e norma. Mostra-se inviável o uso da lei em desconformidade à evolução cultural e às mudanças atreladas ao cotidiano
A partir disso, para Carlos Roberto Gonçalves, 2021, as leis vigentes no século passado, inclusive o Código Civil de 1916, regulavam apenas a família constituída pelo casamento, de modelo patriarcal e hierarquizada, ao passo que hoje o moderno enfoque tem realizado inúmeras alterações no contexto familiar e, consequentemente, na doutrina e na jurisprudência, destacando-se a formação de famílias apenas pelo vínculo afetivo.
Com isso, a Constituição Federal de 1988 abraçou essa ideia e adotou novos valores, como comprova a implementação do princípio da dignidade da pessoa humana que realizou importantes mudanças no direito de família. Como consequência, o artigo 226 da mesma lei expressa a possibilidade da entidade familiar ser constituída de diversas forma. Ainda, outra revolução foi o artigo 227, parágrafo 6º, coloca a igualdade entre os filhos havidos ou não fora do casamento. Por fim, tem-se no artigo 5º, inciso I, e artigo 226, parágrafo 5º, a igualdade entre homens e mulheres, derrubando a ideia patricarcal.
Esse novo modelo traz consigo a evidência das causas de exclusão do direito de herdar, pois, com esse instrumento é possível privar do benefício da herança aquele que, mesmo sendo filho ou filha, não cuidou devidamente dos pais. Até porque é um dever constitucional amparado no artigo 229 da Constituição Federal, tal seja: filhos maiores têm o dever de ajudar e cuidar dos pais na velhice, carência ou enfermidade. Na falta dos filhos, é essencial a participação do restante família
Dessa forma, é patente a preocupação dos juristas com o cuidado que os filhos devem ter com os pais. No entanto, é crescente o descaso que vem sendo noticiado para com o cumprimento desse dever. É evidente o sofrimento sentimental de idosos que se encontram abandonados em asilos, sozinhos em casa sem nenhum cuidado especial que requer a terceira idade. Muitas vezes, não é por falta de dinheiro, mas sim pela falta de uma pessoa capaz para administrar o salário e oferecer tratamento adequado. Não tem como compactuar com a ideia de desfrute do patrimônio alheio por alguém que nada fez para melhorar a existência do falecido. É, no mínimo, injusto.
Portanto, faz mister a presença expressa nas causas de perda do direito de herdar sobre o abandono afetivo inverso, pois é uma causa que tem toda proteção constitucional, além do próprio Estatuto do idoso, uma lei criada pela sabedoria da vulnerabilidade advinda nessa fase da vida, além da necessidade de não tratar o Direito como um ramo individual, separado dos anseios da sociedade e dos valores sociais. As vítimas clamam por uma flexibilização à luz dos princípios constitucionais.
4.1 O abandando afetivo inverso na jurisprudência: uma questão ainda a ser amadurecida.
“Amar é faculdade, cuidar é dever”. Assim afirmou a ministra Fátima Nancy Andrighi da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em um julgado de 2012, caracterizando, assim, como ilícito civil o abandono paterno-filial. A partir desse julgado, os Tribunais brasileiros vêm entendendo e aplicando a reparação civil nos casos que ocorrem o abandono afetivo, na busca de minimizar os efeitos de tais condutas, bem como uma forma de evitar a reiteração de casos.
Decerto que, até pouco tempo atrás, só se falava em abandono dos pais para com seus filhos, principalmente, na infância. Contudo, com o aumento do número de idosos, tornou-se possível a visibilidade do abandono afetivo dos filhos para com seus pais, na fase idosa. No entanto, verifica-se a falta de punição/reparação nesses casos. Dessa forma, o presente trabalho possui como objetivo, justamente, demonstrar a necessidade de uma flexibilização das normas, para que os filhos não tenham direito de herdar em virtude desse abandono.
Nesse sentindo, através do estudo feito de decisões de alguns Tribunais, observa-se que a posição majoritária diz não ser possível interpretações extensivas ou análogas, das causas de exclusão sucessória presentes no rol taxativo dos artigos do Código Civil.
Nos julgados com nº 10358160021707001-MG e nº 10212231820198260554 SP 1021223-18.2019.8.26.0554, bem como em outros não mencionados, que versam acerca da exclusão do herdeiro por abandono afetivo, os Juízes ao denegarem o pleito justificam que a exclusão do herdeiro na sucessão deve decorrer da deserdação ou da indignidade, que são penas aplicadas aos sucessores, em razão da prática de certos fatos típicos taxativamente previstos em lei contra o autor da herança.
Logo, constata-se que ainda há resistência dos Tribunais em relação às causas de exclusão sucessória, uma vez que os princípios da taxatividade com o da dignidade da pessoa humana e afetividade, entram em conflito, logo, surge a indagação, o que é mais importante, a taxatividade ou os idosos terem o direito de deserdar aqueles que lhe abandonaram na velhice?
Ora, é clarividente que é de grande relevância a necessidade de uma flexibilização das normas, de acordo com a nova principiologia do direito civil, uma vez que, hoje, tanto o direito de família como o sucessório, são norteados pelos princípios constitucionais. Portanto, faz-se-á necessário que operador do direito, a fim de acompanhar as modificações que as relações familiares sofreram com o passar dos tempos, utilize-se dos princípios para suprir tais lacunas que ainda existe nas normas, visto que o afeto é a base fundante da família contemporânea, no entanto, o direito sucesssório ainda não se atentou a tal fato.
Diante do exposto, é notório que o tema possui extrema importância na medida em que a afetividade passou a ser crucial para configuração das entidades familiares. Logo, mesmo diante de diversas alterações no Direito de Família, em virtude da constitucionalização do direito civil, percebe- se o não acompanhamento do direito sucessório frente a essas mudanças.
Ainda, como tratado na presente pesquisa, a medicina está em constante evolução, de modo que a expectativa de vida das pessoas está aumentando e, concorrente a isso, tem-se a vida atribulada advinda da globalização, com isso, o aumento do abandono de idosos em asilos é considerável e causa grande preocupação, pois esses danos causados aos mais velhos em decorrência desse abandono afetivo é propenso a diversas enfermidades, haja vista que essa é uma fase de maior vulnerabilidade.
Portanto, o presente artigo possui como objetivo demonstrar, justamente, a nova família contemporânea, baseada não só nos laços sanguíneos, como também, no afeto, no cuidado e na solidariedade.
Em que pese o entendimento majoritário em considerar as causas de perda do direito de herdar em um rol taxativo, surge a necessidade de novas interpretações conforme as transformações sociais. Dessa forma, percebe-se que tais causas estão arcaicas, uma vez que não consideram como hipótese a falta de afetividade, como acontece nos casos de filhos que abandonam os pais idosos, desrespeitando deveres constitucionais e o estatuto do idoso.
Desse modo, tendo em vista as mudanças ocorridas na sociedade, não é conivente que atitudes como o abandono afetivo não sejam punidas, bem como o desrespeito ao princípio universal da Constituição, qual seja, o da dignidade da pessoa humana. Portanto, além de ser possível a flexibilização desse rol taxativo, levando-se em consideração a atual concepção de família, é necessário a inclusão do abandono afetivo inverso nas causas de perda do direito de herdar.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOURA, LARA BEATRIZ BARBOSA. A perda do direito de herdar em virtude do abandono afetivo inverso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jun 2021, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56708/a-perda-do-direito-de-herdar-em-virtude-do-abandono-afetivo-inverso. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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