JACINTHO ARRUDA CÂMARA[1]
(orientador/coautor)
RESUMO: O artigo demonstra a origem da classificação das empresas estatais entre prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividade econômica e como essa criação doutrinária foi encampada pelo STF, proporcionando a aplicação em casos concretos de diferenças de regime jurídico que não estão previstas no direito positivo brasileiro. Aponta-se, na sequência, uma discreta movimentação da jurisprudência do STF na aplicação da tese e a opção reafirmada pelo legislador de não atribuir efeitos à diferença entre prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividade econômica ao editar o estatuto jurídico das empresas estatais. Ao final, como conclusão, são apresentados argumentos para referendar a constitucionalidade do tratamento previsto na legislação brasileira.
ABSTRACT: The article demonstrates the origin of the classification of state-owned companies among public service providers and operators of economic activity and how this doctrinal creation was taken over by the STF, providing for the application in concrete cases of legal regime differences that are not provided for in the Brazilian positive law. It follows, then, a discreet movement of the STF's jurisprudence in the application of the thesis and the option reaffirmed by the legislator of not attributing effects to the difference between public service providers and operators of economic activity when preparing state-owned companies bylaw. At the end, as a conclusion, arguments are presented to endorse the constitutionality of the treatment provided in the Brazilian legislation.
Palavras-chave: Organização administrativa; empresas estatais; estatuto jurídico das estatais; estatais prestadoras de serviços públicos; estatais exploradoras de atividades econômicas.
Keywords: Administrative organization; state-owned companies; state-owned companies bylaw; state-owned public service providers; state companies exploring economic activities.
Sumário: 1. Introdução. 2. O surgimento das estatais no Brasil. 3. A dicotomia empresa estatal prestadora de serviços públicos vs empresa estatal exploradora de atividade econômica. 4. A jurisprudência do STF. 5. Questionamentos à aplicação de regime jurídico diferenciado em função da atividade desenvolvida pela empresa estatal. 6. Conclusões.
A Constituição e a legislação brasileiras contemplam uma distinção entre as empresas que integram a administração pública, as chamadas empresas estatais. A classificação positivada separa tais empresas em empresas públicas, cujo capital é exclusivamente estatal, e sociedades de econômica mista, com maioria do capital votante sob controle estatal, mas com participação acionária privada.
Goza de prestígio em parte considerável da doutrina e jurisprudência brasileiras, contudo, uma classificação sobreposta à prevista no direito positivo e que produz reflexos práticos mais contundentes do que a própria distinção positivada. Trata-se da concepção segundo a qual o regime jurídico das estatais seria definido pelo tipo de atividade que exercem. As estatais prestadoras de serviços públicos, embora com natureza jurídica de direito privado, teriam direito a regime jurídico de proteção próprio das pessoas jurídicas de direito público (como a imunidade tributária e a impenhorabilidade de bens). As estatais exploradoras de atividades econômicas, por sua vez, estariam sujeitas ao regime jurídico próprio de direito privado, salvo quanto às derrogações previstas na Constituição (necessidade de realização de licitação e concurso público, por exemplo), mas sem gozar de prerrogativas próprias do regime de direito público. Essa classificação em função da atividade desempenhada foi criação da doutrina brasileira e passou a ser adotada pelo Supremo Tribunal Federal – STF, mesmo sem contar com previsão expressa no direito positivo. Trata-se de criação doutrinária e jurisprudencial de sensíveis efeitos práticos.
A classificação surgiu na Década de 1960, mas sua ampla difusão e incorporação pela jurisprudência da mais alta corte no país se deu após a Constituição Federal de 1988. A tese busca respaldo em interpretação do art. 173 do texto constitucional, que disciplina a atuação estatal no campo do domínio econômico. Essa interpretação parte da premissa segundo a qual o constituinte só teria imposto o regime próprio das empresas privadas às estatais exploradoras de atividades econômicas e isso para evitar uma concorrência desleal quando atuassem no âmbito da livre economia. A partir dessa premissa sustenta-se, numa interpretação a contrario senso, que as prerrogativas decorrentes da natureza jurídica de direito público só não seriam aplicáveis às estatais para evitar que elas gozassem de privilégios na competição com empresas privadas. Estatais que não competissem com o setor privado, como as prestadoras de serviços públicos, mereceriam as proteções que o ordenamento confere às pessoas com natureza jurídica de direito público.
O acolhimento da tese pelo STF parece ter sido o auge da influência desta classificação no Direito brasileiro. Essa fase, contudo, começa a dar mostras de esgarçamento. A tese tem sido objeto de questionamentos doutrinários e, também, a ser objeto de alguma modulação pelo próprio STF, ao restringir sua aplicação diante de certas empresas estatais que, embora prestadoras de serviços públicos, concorrem com prestadoras privadas dos mesmos serviços ou que negociam ações em Bolsa de Valores e estão voltadas à remuneração do capital de seus acionistas.
A edição da lei federal 13.303, de 30 de junho de 2016, que instituiu o estatuto jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista intensificou o debate. Isso porque a nova lei, a primeira editada sob a égide da Constituição de 1988, embora posterior aos precedentes do STF favoráveis à dicotomia, reafirmou a postura constante da legislação anterior e conferiu regime jurídico uniforme às empresas prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividades econômica.
O presente estudo pretende expor a origem da construção doutrinária e os fundamentos de sua incorporação pelo STF, analisando em seguida a procedência dos argumentos empregados. O objetivo geral do artigo é se posicionar a respeito da falta de sintonia entre o direito positivo brasileiro e a defesa do regime de prerrogativas para as empresas estatais prestadoras de serviços públicos. A hipótese de trabalho é a de que a classificação das empresas estatais baseada na atividade por elas desempenhada, após atingir seu apogeu com o seu acolhimento pelo STF, passa a ser questionada pelo próprio STF e por estudos contemporâneos, assumindo uma tendência de perda de efeitos práticos e de prestígio.
O tema é atual e proporciona relevantes desdobramentos práticos, na medida em que projeta como deve ser o regime jurídico de um importante segmento da administração indireta nacional. Para desenvolver o estudo será empregado como método a pesquisa e análise de doutrina, especialmente a nacional, bem como o levantamento e análise crítica da jurisprudência do STF sobre a matéria, além do levantamento e análise da legislação sobre as empresas estatais.
No item 2 será apresentada a origem das empresas estatais no direito brasileiro, bem como sua evolução até os dias atuais. No item 3 será apresentada a criação e desenvolvimento da tese que pretende separar em duas categorias as empresas estatais em função das atividades que desempenham e conferir a um grupo específico delas, o das prestadoras de serviços públicos, prerrogativas próprias de pessoas jurídicas de direito público. No item 4 serão apresentados a evolução e o estágio atual da jurisprudência do STF sobre a matéria. No item 5 será apresentada análise crítica da classificação das empresas estatais em função da atividade desempenhada e de seus efeitos, apontando um juízo a respeito da constitucionalidade da opção adotada pelo legislador, que preferiu manter uma unicidade de regime jurídico sobre as empresas estatais. No item 6 serão resumidas as conclusões do estudo.
O surgimento das empresas estatais no Brasil foi fruto de demandas políticas e econômicas. Bem antes de a doutrina e a legislação nacional debruçarem-se sobre as estatais e até sobre o fenômeno da descentralização, a administração pública brasileira, já no início do século XIX, fundou sua primeira estatal, o Banco do Brasil, no ano de 1808[2].
No século XX, a criação das estatais foi intensificada como o propósito de instrumentalizar a intervenção do Estado na economia, a fim de acelerar o processo de industrialização tardio brasileiro. São exemplos de estatais fundadas naquela época o Instituto de Resseguros do Brasil, em 1939; a Companhia Siderúrgica Nacional, em 1942; a Companhia Vale do Rio Doce, também em 1942; a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, em 1945; e a Petróleo Brasileiro, em 1959[3].
Naquele momento, as estatais sequer tinham previsão constitucional. Vigorava a Constituição de 1937, que tratava de forma muito incipiente da intervenção do Estado na economia e não as mencionava. Na doutrina, uma voz pioneira a ecoar o tema das empresas estatais foi a de Trajano de Miranda Valverde, em 1945[4]. A partir daí outros autores passaram a tratar das empresas estatais, quando já eram realidade consolidada no contexto da administração pública brasileira[5]. A submissão dessas sociedades ao direito dito por comum era opinião majoritária, sem distinções decorrentes do tipo de atividades que exerciam.
A Constituição Federal de 1967 trouxe para o direito constitucional positivado as empresas estatais, embora ainda de forma vaga. O seu art. 163 dispôs sobre a intervenção do Estado na economia e os seus §§ 1º a 3º reconheciam e, ao mesmo tempo, restringiam a possibilidade de o Estado explorar atividades econômicas, limitando-a a uma atuação suplementar à da iniciativa privada[6]. A intervenção estatal na economia só estava autorizada por intermédio de empresas públicas, autarquias e sociedades de economia mista, sobre as quais incidiriam as normas aplicáveis às empresas privadas, inclusive quanto ao direito do trabalho e das obrigações, salvo quando exercessem atividade monopolizada, hipótese em que haveria a derrogação do regime tributário privado para a incidência das regras, nesse ponto específico, próprio do regime público.
Na sequência à promulgação da Constituição de 1967, foi editado o decreto-lei 200, de 25 de fevereiro de 1967, primeira iniciativa legislativa a tratar de forma sistemática do processo de descentralização brasileiro, conceituando as empresas públicas e sociedades de economia mista e as incluindo na administração indireta. A emenda constitucional 1/1969 alterou por completo o texto da Carta Maior vigente e, no que se refere à intervenção estatal na economia, especificou as hipóteses em que o Estado poderia exercer diretamente atividades econômicas, substituindo a vaga ideia de uma atuação suplementar à da iniciativa privada pela especificação dos casos em que seria admitida. Com a alteração do dispositivo constitucional, as autarquias foram excluídas do rol dos instrumentos utilizados pelo Estado para a exploração da atividade econômica[7].
A legislação não sinalizava qualquer distinção entre as normas e o regime aplicáveis a tais sociedades em razão do tipo de atividades que exerciam.
A classificação das empresas estatais em função da atividade desempenhada, como já apontado, não encontra amparo no direito positivo brasileiro, tampouco na doutrina estrangeira[8]. É criação da doutrina nacional, que a adota não apenas para efeito taxonômico, mas, especialmente, para defender a aplicação de relevante diferença quanto ao regime jurídico a lhes ser aplicável.
É difícil estabelecer, com precisão, a origem da classificação. Celso Antônio Bandeira de Mello talvez tenha sido o autor que mais contribuiu para a difusão da ideia[9]. Ela foi apresentada em seu livro “Prestação de serviços públicos e administração indireta”[10] e, posteriormente, incorporada em seu “Curso de direito administrativo”[11], com grande adesão e influência entre publicistas nacionais[12]. Suas lições foram citadas como fundamento nos julgados do STF que determinaram a extensão de algumas prerrogativas típicas de entidades de direito público a estatais prestadoras de serviços públicos, como será visto a seguir.
Eros Grau é outro autor que exerceu grande papel na formulação e propagação da tese. Em seu “Ordem Econômica na Constituição de 1988”, defende leitura do art. 173 da Constituição Federal que justificaria o tratamento favorecido às estatais prestadoras de serviço público[13]. O autor teve ainda oportunidade de sustentar, como Ministro do STF, a aplicação de sua tese em casos concretos, atuando para formar maioria em torno desse entendimento. Por essas e outras influências o posicionamento que defende tratamento diferenciado às empresas estatais em função da atividade que desempenham passou a predominar na literatura jurídica nacional, especialmente nos manuais e cursos da disciplina[14], obras comumente utilizadas para fundamentar decisões judiciais no país.
André Cyrino e José Vicente Mendonça parecem ter localizado a referência pioneira em defesa de um tratamento de direito público às empresas estatais prestadoras de serviço público[15]. Trata-se de artigo de autoria de Alfredo de Almeida Paiva, publicado na Revista de Direito Administrativo, em 1960[16]. Nesse texto, o autor defende que
“Nas hipóteses em que o Estado tenha em vista estimular ou amparar a iniciativa privada, equiparando-se ao simples particular, não haverá dúvida quanto à caracterização da personalidade jurídica de direito privado. Ao invés disso, quando a sociedade de economia mista se constitui em simples instrumento do poder público, na realização de um serviço público concedido ou delegado, a personalidade jurídica de direito público melhor se ajustaria à realidade, sem prejuízo de suas atividades, com relação a terceiros, continuem regidas pelos princípios de direito privado, a não ser naquilo em que a lei específica haja por bem dispor em contrário à legislação comum, que lhes é aplicável.”.
Este pode ter sido o embrião da dicotomia. Mas ainda não se percebia no artigo a defesa da aplicação do regime de prerrogativas às prestadoras de serviços públicos, ou mesmo da flexibilização das regras de controle sobre as exploradoras de atividades econômicas. A divisão parece ter objetivo mais taxonômico, de distinção entre organismos que atenderiam a funções diversas e que, por este motivo, deveriam ser classificados como pessoas de naturezas diversas (públicas, as prestadoras de serviços públicos, e, privadas, as exploradoras de atividades econômicas).
A classificação ganhou adeptos e passou a servir de fundamento para a adoção de consequências práticas, criadas a partir de interpretações sem base em texto expresso constitucional ou legal. As consequências práticas sobre as quais se passou a construir certo consenso diziam respeito à aplicação de regras protetivas, previstas no direito positivo para beneficiar pessoas jurídicas de direito público.
A tese é a de que a sujeição ao regime de direito privado previsto no art. 173 da Constituição Federal teria abrangência restrita às estatais exploradoras de atividades econômicas. A finalidade da regra seria a garantia da isonomia na ordem econômica (dever de observância da justa competição). Assim, a barreira constitucional à aplicação de um regime jurídico mais vantajoso para as estatais só incidiria sobre aquelas que disputassem mercado com empresas privadas. Seria, portanto, algo a atingir apenas as exploradas de atividades econômicas e não as prestadoras de serviço público.
Esse argumento pode servir para legitimar a criação de um regime de prerrogativas para as estatais prestadoras de serviços públicos, mas ele é incapaz de, isoladamente, justificar a existência de privilégios para as prestadoras de serviços públicos que não tenham sido previstos em norma constitucional ou legal expressa. Também seria necessário apresentar razões jurídicas para que uma entidade, definida como sendo de direito privado pela legislação, passasse a usufruir de regras de proteção concebidas para entidades com natureza jurídica de direito público, como são as regras de imunidade recíproca entre entes federativos e de impenhorabilidade de bens.
Para tanto, passou-se a sustentar a ideia de que a forma escolhida para a entidade estatal deveria ser relativizada em função da natureza da atividade desempenhada. Se a atividade for de caráter público, como a prestação de serviços públicos, deveriam ser preservadas proteções típicas de entes com natureza jurídica de direito público. Empresa estatal, mesmo com personalidade de direito privado, deveria merecer o regime protetivo de direito público, sob pena de se prejudicar a atividade por ela desempenhada. Se esses benefícios são garantidos quando o Estado oferta serviços públicos por meio de entidade autárquica ou da administração direta, não seria razoável suprimi-los pela circunstância de o poder público haver optado por desempenhá-las por meio de empresa estatal. Num caso ou noutro seria o Estado ofertando serviços públicos, devendo, por identidade de razão, contar com as mesmas prerrogativas em ambos os figurinos.
Este, em síntese, é o raciocínio concebido doutrinariamente para criar um regime jurídico híbrido em favor das empresas estatais prestadoras de serviços público. Como será visto a seguir, a criação foi encampada pelo STF.
É possível identificar três etapas na evolução da corte a respeito do tema[17]. Na primeira, a distinção foi empregada para tentar flexibilizar o regime de controle aplicável às empresas estatais exploradoras de atividades econômicas. A segunda etapa marca a utilização da classificação para determinar, por criação judicial, a aplicação de benefícios do regime jurídico de direito público a empresas estatais prestadoras de serviços públicos. A terceira etapa, ainda em construção, passa a reconhecer limites à extensão das prerrogativas de entes públicos a empresas estatais prestadoras de serviços públicos, descortinando um processo que pode gerar revisão na jurisprudência consolidada na segunda etapa acima referida. O presente estudo fará referência a alguns julgados tomados como representativos de cada etapa[18].
A primeira etapa do debate judicial calcado na dicotomia entre empresas estatais em função das atividades desempenhadas teve como objetivo afastar a regra do concurso público para admissão de empregados. Com a promulgação da Constituição de 1988, o concurso passou a ser necessário tanto para o preenchimento de cargos efetivos como para a admissão de empregados públicos, regra a ser respeitada por toda a administração pública, seja ela direta ou indireta, inclusive as empresas públicas e sociedades de economia mista. (art. 37, II). Contudo, nos primeiros anos de vigência da Constituição de 1988 surgiu a tese segundo a qual referida regra não seria aplicável às estatais exploradoras de atividades econômicas, devido à previsão de que tais empresas, por força do art. 173, § 1º, estariam sujeitas ao “regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas”. A tese tornaria o regime jurídico das estatais exploradoras de atividades econômicas mais flexível do que o das prestadoras de serviços públicos, uma vez que a exigência de concurso só seria aplicável às últimas. O STF, contudo, rejeitou essa interpretação, consolidando o entendimento de que o dever de realizar concurso não estava afastado de qualquer ente integrante da administração direta ou indireta, inclusive das empresas estatais exploradoras de atividades econômicas. A decisão foi proferida em julgamento de mandando de segurança interposto em face de decisão do Tribunal de Contas da União que exigia a realização de concurso na Companhia Docas do Estado do Ceará[19]. No acórdão, embora se tenha acolhido a classificação entre as estatais em função da a atividade desempenhada, considerou-se que, para o fim de aplicação da regra do concurso, a classificação não importava, pois a Constituição havia estendido a exigência para toda a administração pública, por meio do art. 37, II.
A segunda etapa da evolução jurisprudencial marca a aceitação de diferença de regime jurídico em função da atividade desempenhada. É o estágio que dispõe de maior variedade de julgados e de empresas atingidas. Aqui se constata a adesão do tribunal à tese doutrinária de que as estatais prestadoras de serviços públicos não deveriam se sujeitar ao mesmo regime jurídico das exploradoras de atividades econômicas. Julgamento marcante dessa mudança de postura do STF envolve o reconhecimento da impenhorabilidade de bens da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, ocorrido em 2000[20]. Na oportunidade o tribunal reuniu o julgamento de 5 recursos extraordinários envolvendo a mesma tese defendida pela empresa, de que faria jus aos benefícios da fazenda pública, tal como assegurado em sua lei de criação, anterior à Constituição de 1988 (art. 12 do decreto-lei 509/1969)[21]. Até então o STF rejeitara essa tese, em decisão de uma de suas turmas[22]. No caso, houve o reconhecimento de que a Constituição de 1988 seria compatível com o regime jurídico de prerrogativas especiais da fazenda pública previsto no decreto-lei de criação da ECT. O STF fixou o entendimento de que a imposição às empresas estatais do regime jurídico próprio às empresas privadas e a vedação da concessão de privilégios que não fossem a elas extensivos seriam regras aplicáveis apenas às exploradoras de atividades econômicas. Empresas como a ECT, prestadoras de serviços públicos, não estariam submetidas às previsões dos §§ 1º e 2º do art. 173 da Constituição Federal. Depois desse precedente o STF estendeu o entendimento da impenhorabilidade de bens de estatais que não contavam com previsão em lei desse benefício. Assim, sem qualquer base legal, o tribunal passou a decidir que os bens de empresas estatais prestadoras de serviços públicos não se sujeitariam a penhora, por considerar que a extensão dos benefícios próprios da execução contra a fazenda pública seria uma decorrência indireta da inaplicabilidade das regras que exigem a isonomia de tratamento com empresas privadas (art. 173, §§ 1º e 2º)[23].
Essa postura também se estendeu para outros benefícios, como o da imunidade prevista no art. 150, VI, “a” da Constituição Federal (imunidade recíproca). O privilégio em matéria tributária também foi inaugurado em favor da ECT[24], sendo a partir daí também aplicado a outras estatais prestadoras de serviço público, inclusive de esferas federativas distintas da federal[25].
A jurisprudência do STF, que aparentemente estava consolidada, pode estar passando por processo de revisão. Duas importantes decisões sinalizam a mudança no entendimento da corte. A primeira negou a aplicação da prerrogativa da impenhorabilidade de bens a Eletronorte, sociedade de economista federal, prestadora dos serviços de geração e transmissão de energia elétrica[26]. O julgamento teve início com a reprodução do entendimento já consolidado da corte, com o então relator do acórdão, ministro Ayres Britto, aplicando a regra da impenhorabilidade e equiparando, nesse ponto, o regime jurídico da estatal ao de uma pessoa jurídica de direito público. O ministro Joaquim Barbosa, porém, abriu divergência agregando argumentos factuais relacionados à atuação da Eletronorte que refutavam as premissas incorporadas pelo tribunal até então. Segundo o ministro, sem abrir mão do posicionamento anterior, que excluiria as estatais prestadoras de serviços públicos do tratamento similar ao das empresas privadas, a Eletronorte não deveria ser caracterizada como mera prestadora de serviço público. Isso, basicamente, por duas circunstâncias: a empresa disputava o mercado de energia elétrica com empresas privadas; e, por se tratar de uma sociedade de economia mista, distribuía lucro entre acionistas privados. Tais características afastavam a ideia de que a concessão de prerrogativas às prestadoras de serviços públicos estatais não violaria as regras de igualdade de competição previstas nos parágrafos 1º e 2º do art. 173 da Constituição Federal. Os argumentos convenceram a maioria dos ministros e o STF negou o regime de impenhorabilidade de bens à Eletronorte.
O julgado não responde a algumas dúvidas que podem ser projetadas para novos casos que venham a chegar ao STF: a existência de competição com particulares afastará o regime de impenhorabilidade de qualquer empresa estatal prestadora de serviços públicos? A participação acionária privada seria suficiente para eliminar a extensão dos privilégios estendidos por força de entendimento jurisprudencial? Em rigor, pelos fundamentos adotados pela maioria nesse julgamento da Eletronorte, a resposta deveria ser positiva, ensejando uma sensível revisão no entendimento do tribunal, inclusive em relação a empresas já beneficiadas, como ECT, que tem parte relevante de suas atividades submetidas a concorrência com particulares (v. o segmento de encomendas expressas, para citar um dos mais evidentes).
Mais recentemente, o STF deu um segundo passo na revisão de seu entendimento. Trata-se do acórdão que apreciou o tema 508 da repercussão geral e negou provimento a recurso extraordinário da Companha de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP, sociedade de economia mista prestadora dos serviços públicos de distribuição de água e esgotamento sanitário, interposto em face de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que reconheceu a inaplicabilidade à recorrente da imunidade tributária recíproca prevista no art. 150, IV, “a”, da Constituição Federal[27]. A decisão da relatoria do ministro Joaquim Barbosa disse estar presente no caso concreto peculiaridade que o afastaria da jurisprudência anterior da corte, qual seja, o fato de a SABESP negociar ações na Bolsa de Valores e estar direcionada a remunerar o capital de seus acionistas. Após calorosas discussões, o relator teve adesão da maioria do Plenário do STF. A tese fixada em repercussão geral deixou expresso que a imunidade tributária recíproca não poderia ser estendida à sociedade de economia mista unicamente em razão das atividades que desempenhe.
Esses precedentes, de todo modo, acenam para uma perspectiva de rediscussão das premissas gerais assentadas na segunda etapa da jurisprudência do STF sem maiores reflexões e esforço de comprovação. No caso da Eletronorte, duas foram as circunstâncias consideradas ao se negar a aplicação do regime próprio das pessoas jurídicas de direito público à estatal: a atuação em mercado competitivo e o fato de captar recursos no mercado de ações e, consequentemente, distribuir seus lucros entre os acionistas. No caso as SABESP, que presta serviços públicos sob monopólio natural, bastou a constatação da segunda circunstância para que fosse afastada a possibilidade de gozo da imunidade recíproca. .
No momento encontra-se aberta a oportunidade de a corte rever e uniformizar seu entendimento a respeito da matéria. A revisão será necessária em virtude do questionamento a respeito da constitucionalidade da lei 13.303, de 2016, o chamado Estatuto Jurídico das Empresas Estatais (Estatuto das Estatais)[28]. A referida lei foi editada para dar cumprimento à previsão do § 1º do art. 173 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi dada pela emenda constitucional 19/1998, que previa a instituição por lei de um estatuto jurídico para disciplinar a atuação das empresas públicas e sociedades de economia mista. Se predominasse a leitura adotada pela maioria da doutrina nacional e que foi encampada pela segunda etapa da evolução jurisprudencial do STF sobre a matéria, referida lei deveria disciplinar exclusivamente a atuação de estatais exploradoras de atividades econômicas. Todavia, a lei seguiu rumo oposto. De modo expresso consignou, logo em seu art. 1º, sua incidência para todas as estatais, inclusive as prestadoras de serviços públicos, afirmando que abrangia “toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos”. As regras ali dispostas não tratam de modo diverso as exploradoras de atividades econômicas e prestadoras de serviços públicos. Normas de governança, de licitação e de contratações atingem igualmente as prestadoras de serviços públicos e as exploradoras de atividades econômicas. Este é um dos pontos impugnados em ação direta de inconstitucionalidade proposta contra a lei. Ao julgá-la, o STF terá oportunidade de deixar assentado até que ponto a dicotomia baseada em função da atividade desempenhada pela empresa estatal deve ir, sem contar com qualquer amparo legal.
Existem sólidos argumentos para abandonar os efeitos dessa sistematização baseada na atividade desenvolvida pela empresa, como será demonstrado a seguir.
Embora a classificação das empresas estatais entre prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividade econômica tenha surgido e se expandido na literatura jurídica especializada nacional, ela não ficou imune a críticas durante todo esse período[29]. Sempre existiram autores nacionais que, ou simplesmente não aderiram à formulação ou chegaram a contestar abertamente a proposta. Neste tópico, pretende-se apontar razões que justificam a revisão da jurisprudência do STF, com o abandono da proposta criacionista surgida na doutrina nacional e encampada pela corte constitucional do país.
A principal razão para se abandonar a dicotomia é a sua absoluta falta de base normativa. André Cyrino e José Vicente Mendonça apontam a dicotomia entre prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividades econômicas como um dos “mitos fundadores do estudo das estatais”[30]-[31]. Para os autores, o uso de classificações para a imposição de tratamentos diferenciados a certos grupos de sujeitos em função da atividade que desempenhem é fenômeno comum no Direito, porém, nessa específica situação analisada no Direito brasileiro, haveria grave impropriedade, assim resumida: “O Direito Positivo pode atribuir realidade distinta para pessoas jurídicas que realizem certas atividades. Todavia, não se pode, a partir da atividade realizada, redefinir, por exercício hermenêutico, todo um regime jurídico”.
A ausência de amparo no direito positivo também é registrada por esses autores como aspecto primordial para rever a diferença de regime jurídico entre estatais prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividade econômica[32]. Além dessa causa principal, eles destacam a impropriedade de resumir o universo de atividades desenvolvidas pelas estatais em apenas duas categorias[33]. O referido estudo indica como exemplo de relevante consequência da revisão da classificação em função da atividade exercida, o reconhecimento da constitucionalidade da opção legislativa de criar, para todas das empresas estatais (inclusive as prestadoras de serviços públicos) um regime próprio e mais flexível de licitações[34].
Os argumentos empregados para, diante da ausência de diferenciação prescrita no direito positivo, defender a aplicação de regime jurídico diverso às empresas estatais em virtude da atividade que desempenham são insubsistentes. Adota-se como premissa para desenvolver todo o raciocínio a ideia de que o regime de direito privado só se justificaria em função da concorrência com as empresas do setor privado. Em função dessa concorrência é que seria proibida a atribuição de privilégios às estatais que não forem extensíveis às empresas privadas. Numa leitura a contrario sensu, defende-se a adoção das prerrogativas conferidas a pessoas jurídicas de direito público às estatais que não disputassem mercado com empresas privadas, mesmo sem previsão constitucional ou legal nesse sentido. A ausência de proibição para se criar benefício em favor das estatais que não disputem mercado com particulares, sem maiores esforços demonstrativos, passou a significar o reconhecimento da extensão de prerrogativas que só deveriam beneficiar, de acordo com o direito positivo, entidades de direito público.
A pressuposição de que a equiparação com as empresas privadas para fins concorrenciais está na raiz das diferenças de regime jurídico entre estatais e pessoas jurídicas de direito público acaba levando também à equivocada interpretação de que certas vantagens do regime de direito privado deveriam ser vedadas às prestadoras de serviço público. É justamente isso o que defendem aqueles que pregam a aplicação do Estatuto Jurídico das Estatais apenas às exploradoras de atividade econômica, apontando suposta inconstitucionalidade da aplicação de certas regras contidas nesta lei em benefício de estatais prestadoras de serviços públicos, como seria o regime próprio de licitação[35].
Estudos que tiveram como objeto a análise da dicotomia sob a ótica de seus efeitos apontam incongruências das premissas consideradas para a adoção de regime jurídico diferenciado entre estatais prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividades econômicas. Veja-se a linha de contestação da ideia segundo a qual regras de gestão mais eficientes só se justificariam para as empresas estatais exploradoras de atividade econômicas:
Contudo, apenas as estatais que desenvolvem atividades econômicas (em sentido estrito) devem ser regidas pelo direito privado? Não seria necessário que uma estatal como a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), que têm ações listadas em bolsa, contasse com um regime garantidor de sua competitividade empresarial, por exemplo? Por outro lado, como até o momento da assinatura do contrato de concessão para a prestação de serviço público, a estatal atua como qualquer agente econômico – isto é, em competição com outros prestadores –, a incidência de privilégios em seu regime jurídico envolve, em última análise, a possibilidade de distorção da concorrência no setor[36].
Seguindo essa linha, seria ainda possível acrescentar: empresas públicas, que não têm ações em bolsa, deveriam ser privadas de um regime jurídico mais ágil e eficiente? Qual o sentido da imposição de regime mais rígido e burocrático a empresas que precisam buscar eficiência na oferta de serviços públicos à sociedade? Empresa estatal destinada à pesquisa, ou ao monitoramento do tráfego ou à proteção do meio ambiente, entre tantas outras atividades, não deveriam ter regime jurídico que conferisse maior agilidade em suas ações? A visão segundo a qual a maior dinâmica inerente ao direito privado só se justifica em ambiente de competição é míope e despreza a escolha do figurino empresarial como opção legítima para dotar a administração de maior eficiência em suas diversas ações.
No que diz respeito à extensão do regime da impenhorabilidade de bens às prestadoras de serviços públicos, a posição da jurisprudência e daqueles que a defendem em sede doutrinária parece presumir alto nível de desídia do legislador em relação à matéria. Isso porque se portam como se a ausência de previsão em lei ou na Constituição decorreria de omissão. Por ignorância ou falta de sensibilidade, o legislador teria descurado do interesse público, deixando de protegê-lo expressamente, ao não prever a impenhorabilidade de bens das empresas estatais prestadoras de serviços públicos.
E não faltaram oportunidades para criar expressamente a regra, desde 2000, quando o STF a encampou expressamente em julgado que favoreceu a ECT. Em 2002, foi aprovado novo Código Civil (lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002) e nada foi dito para conferir aos bens integrantes do patrimônio de empresas estatais prestadoras de serviços público o status de bem público; em 2015, foi a vez de o Código de Processo Civil ser renovado (lei 13.105, de 16 de março de 2015) e, mais uma vez, o legislador perdeu a oportunidade de fixar de modo expresso que não seria admitida a penhora desses bens. O novo CPC renovou a lista extensa de bens impenhoráveis, mas não protegeu os bens das estatais prestadoras de serviços públicos (art. 833). Finalmente, em 2016, ao criar o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais (lei 13.303, de 2016), o legislador deixou de indicar qualquer regra que protegesse de modo especial os bens das empresas prestadoras de serviços públicos, nominalmente incluídas entre as atingidas pela lei, mas sem merecer qualquer tratamento diferenciado. O constituinte reformador também teria deixado de considerar a necessidade de prever um regime próprio para a execução das estatais prestadoras de serviço público, mesmo havendo reformado o dispositivo que trata do tema dos precatórios (art. 100) em duas oportunidades desde 2000 (em 2002, com a emenda constitucional 37, e em 2009, com a emenda constitucional 62).
É inverossímil que as estatais prestadoras de serviços públicos, tão bem-sucedidas na defesa de seus interessantes perante o STF, não tenham se mobilizado ou não tenham tido acesso ao Congresso Nacional em tantas oportunidades para expor a ideia de tornar impenhoráveis os bens de seu acervo. Se não foi aprovada regra específica com esse teor, ou o Congresso, soberanamente, não concordou com essa solução; ou não houve, de fato, qualquer iniciativa no sentido de aprovar uma regra geral e abstrata nesse sentido. A última hipótese parece mais plausível e revela, em verdade, que a submissão dos bens das estatais prestadoras de serviços públicos à possibilidade de penhora constitui vantagem operacional para essas empresas. Isso porque a condição de empresa e, por consequência, a possibilidade de dispor de seus bens e de oferecê-los em garantia, é instrumento relevante para a obtenção de financiamentos e celebração de outras contratações imprescindíveis para a boa prestação de serviços públicos. Ser empresa e dispor de patrimônio próprio, sujeitando-se às regras do direito privado, portanto, é útil e importante para a estatal desempenhar com mais eficiência sua função social (prestar serviços públicos). Esta última pode ser a verdadeira razão para o legislador não ter atribuído a impenhorabilidade aos bens das estatais prestadoras de serviços públicos.
A adoção do regime de impenhorabilidade a partir de decisão judicial parte de premissas equivocadas e confere incoerência e assimetria ao ordenamento jurídico. As empresas estatais, quando lhes convém, assumem o regime jurídico prescrito nas leis e reconhecem o regime de direito privado aplicável a seus bens, gozando das vantagens de os oferecer como garantia a empréstimos e outras contratações. Contudo, nas situações que entender conveniente, invoca perante o Judiciário a tese da impenhorabilidade para retardar execução indesejada (como em relação a débitos trabalhistas).
O risco à descontinuidade do serviço público é outro argumento incapaz de justificar, por si, a criação pela via judicial de regime genérico de impenhorabilidade de bens de empresas estatais prestadoras de serviço público. Em alguns casos, o problema da desafetação dos bens e do consequente perigo de descontinuidade sequer se põe. Isso porque, certos ativos, por questões materiais, não serão desvinculados à prestação do serviço público, mesmo que venham a ser alienados devido à penhora. É o caso, por exemplo, de equipamentos atrelados irremediavelmente à destinação pública, tais como equipamentos empregados em estações de tratamento de esgoto, de usinas hidroelétricas, de ferrovias, de aeroportos. Não haverá interesse econômico do adquirente destes bens em desvinculá-los à prestação do serviço público. A detença desses ativos, caso ocorra, servirá apenas para a transferência da renda decorrente da utilização desses bens pelas prestadoras de serviços públicos. A hipótese de descontinuidade, em tais casos, é simplesmente retórica. Noutros casos, quando houver efetivo risco, caberá ao poder concedente, pessoa jurídica de direito público, adotar as providências cabíveis para assumir o acervo da concessionária e, com isso, conferir proteções especiais em face da penhora[37]. A simples invocação do risco de descontinuidade não justifica a criação da regra geral que impeça qualquer penhora sobre bem de estatais prestadoras de serviços públicos.
A extensão do regime de imunidade recíproca às estatais prestadoras de serviços públicos é ainda mais difícil de sustentar. Contraria regra expressa da Constituição Federal, que afasta referida imunidade do patrimônio, da renda e dos serviços relacionados a empreendimentos em que “haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário” (art. 150, § 3º da Constituição Federal). Como as prestadoras de serviços públicos normalmente desenvolvem atividades nas quais há pagamento de tarifas pelo usuário, a opção constitucional foi claramente a de excluir da imunidade recíproca o patrimônio, a renda e os serviços prestados pelas estatais prestadoras de serviços públicos[38].
Os argumentos utilizados pelo STF para negar vigência ao § 3º do art. 150 e estender a imunidade recíproca às estatais prestadoras de serviços públicos também são frágeis. Não há afronta ao pacto federativo se houver cobrança de impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços de estatais prestadoras de serviços públicos. O risco ao pacto federativo está no oposto, isto é, em criar uma imunidade judicialmente, caso a caso, a partir da impugnação realizada por certas empresas. O pacto federativo em matéria tributária se perfez em função do que foi estabelecido no art. 150 da Constituição Federal. Negar vigência a um de seus parágrafos, justamente o que esclarece os limites da chamada imunidade recíproca, representa a verdadeira desobediência ao pacto.
Também é impertinente apontar a proteção ao usuário dos serviços para impedir a cobrança de impostos sobre estatal prestadora de serviços públicos[39]. A Constituição Federal não impediu a cobrança de impostos sobre serviços públicos. Nem protegeu de modo especial quem os prestasse. Ao contrário, admite expressamente a incidência de impostos sobre alguns deles[40]. Ademais, por esse raciocínio, também seria necessário tornar imune o patrimônio, a renda e serviços prestados por empresas privadas concessionárias de serviços públicos, pois tais encargos acabam, de modo indireto, compondo o valor da tarifa cobrada dos usuários de seus respectivos serviços. Além disso, essa suposta externalidade positiva da imunidade recíproca, que seria baratear o valor das tarifas dos serviços prestados pelas estatais, também causaria uma correspondente externalidade negativa, que seria a redução das receitas dos entes tributantes, reduzindo sua capacidade de investimentos em serviços gratuitos, como segurança pública, saúde e educação. O legislador constituinte parece haver sopesado as vantagens e desvantagens de impedir a cobrança de impostos sobre empresas estatais prestadoras de serviços públicos e, soberanamente, optou por autorizá-la (art. 150, § 3º). É impróprio que o STF, por meio de argumentos de conveniência sobre política arrecadatória, venha a desconsiderar a decisão do constituinte originário e impeça entes federativos de exercerem de modo pleno sua competência tributária.
Em síntese, este estudo conclui que não há razão jurídica para deixar de aplicar regime jurídico uniforme às empresas estatais exploradoras de atividades econômicas e prestadoras de serviços públicos. A uniformidade de regime jurídico entre essas categorias decorre da fiel aplicação da Constituição e da legislação vigente no país. O criacionismo doutrinário e jurisprudencial precisa ser revisto.
A classificação das empresas estatais em prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividades econômicas foi criada pela doutrina tradicional brasileira. A tese é a de que a aplicação do regime de direito privado conforme previsão do art. 173, §1°, da Constituição Federal teria como propósito evitar a concorrência desleal em favor das estatais quando em disputa com a iniciativa privada. Sob essa lógica, não haveria razão para se deferir o regime dito por comum às prestadoras de serviços público e negar-lhes as prerrogativas próprias das pessoas jurídicas de direito público.
A posição foi encampada pela corte constitucional do país. É possível identificar três fases em sua jurisprudência. Na primeira a tentativa da distinção entre prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividades econômicas serviu de base para a defesa da inaplicabilidade da obrigação de realização de concurso público por estas últimas. O STF não acolheu o argumento, mas aceitou a classificação, dando o passo inicial na dicotomia. A segunda fase representa o apogeu da classificação. Foi quando o STF acampou a tese criada pela doutrina de prestígio nacional e atribuiu às prestadoras de serviços públicos prerrogativas e proteções próprias das entidades de direito público, com enormes repercussões de ordem práticas.
Na terceira e atual fase a classificação começa a dar sinais de esgarçamento. As premissas acolhidas pelo STF para fins de distinguir o regime jurídico aplicável a cada uma das duas espécies de empresas estatais foram revistas. Nesse momento a corte constitucional negou as prerrogativas próprias do regime de direito público à sociedade de economia mista prestadora de serviços públicos, a Eletrobras, em razão desta concorrer no mercado privado e distribuir lucros aos seus acionistas. À SABESP foi negado o gozo da imunidade tributária pelo fato de negociar ações na Bolsa de Valores e estar vocacionada a remunerar o capital de seus investidores. A utilização do racional pelo STF em seus futuros casos, por dever de coerência, deve implicar na revisão da posição anterior, que fez da classificação das estatais um divisor de águas para a definição do regime jurídica aplicável a cada qual.
Surge agora a oportunidade de o STF rever e uniformizar seu entendimento a respeito da matéria. A revisão se mostra necessária em razão do questionamento a respeito da constitucionalidade da lei 13.303, de 2016, o chamado Estatuto Jurídico das Empresas Estatais, mediante ação direta de inconstitucionalidade. Há sólidos argumentos para se abandonar de vez a classificação baseada no tipo de atividade desenvolvida pela empresa estatal. O principal deles é a total ausência de base normativa para a dicotomia. Mas não é só.
Inexistem razões capazes de justificar o desapego à clara opção do legislador ao criar um estatuto único aplicável a todas as empresas estatais, independentemente da atividade que exerçam. A ideia segundo a qual a maior flexibilidade e dinâmica inerentes ao direito privado só se justifica em ambiente de competição desconsidera figurino empresarial como opção legítima para dotar a administração de maior eficiência em suas diversas ações e não justifica a extensão às prestadoras de serviços públicos de prerrogativas próprias das entidades de direito público. Não é possível ignorar o silêncio do legislador quando à impenhorabilidade dos bens das estatais, atribuindo às estatais o privilégio, tampouco é correto desconsiderar regra expressa da Constituição Federal, que prevê a incidência de tributos sobre o patrimônio, a renda e os serviços relacionados a empreendimentos em que “haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário” (art. 150, § 3º da Constituição Federal), para fins de estender às empresas estatais a imunidade tributária. Improcede a tese de que a proteção ao usuário dos serviços impediria a cobrança de impostos sobre as prestadoras de serviços públicos. Esta ideia afronta igualmente o texto da Constituição.
A uniformidade de regime jurídico entre essas categorias decorre da fiel aplicação da Constituição e da legislação vigente no país. Não há mais espaço para tamanho desapego ao legislador. A sistematização das empresas estatais segundo as atividades que exercem precisa ser superada, demarcando a queda da dicotomia criada pela doutrina e jurisprudência brasileiras.
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[1] Pofessor de Direito Administrativo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (Brasil). Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (Brasil)
[2] O Banco do Brasil foi criado através do Alvará assinado pelo então Príncipe-regente Dom João de Braganca em 12 de outubro de 1808. A imagem da primeira página do Alvará está disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Banco_do_Brasil#/media/Ficheiro:Alvará_Banco_do_Brasil_01.tif. Acesso em 01/06/2020.
[3] FERREIRA, Sérgio Andréa. O direito administrativo das empresas governamentais brasileiras. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 136, p. 1-33, abr./jun. 1979.
[4] VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedades anônimas ou companhias de economia mista. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 429-441. 1945.
[5] Como exemplo, veja: PINTO, Bilac. O declínio das sociedades de economia mista e o advento das modernas emprêsas públicas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 32, p.1-15. 1953.
[6] “Art 163 - Às empresas privadas compete preferencialmente, com o estímulo e apoio do Estado, organizar explorar as atividades econômicas.
§ 1º - Somente para suplementar a iniciativa privada, o Estado organizará e explorará diretamente atividade econômica.
§ 2º - Na exploração, pelo Estado, da atividade econômica, as empresas públicas, as autarquias e sociedades de economia mista reger-se-ão pelas normas aplicáveis às empresas privadas, inclusive quanto ao direito do trabalho e das obrigações.
§ 3º - A empresa pública que explorar atividade não monopolizada ficará sujeita ao mesmo regime tributário aplicável às empresas privadas.”
[7] Veja-se a nova redação conferida ao art. 163 pela emenda constitucional 1/1969:
“Art. 163. São facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais.
Parágrafo único. Para atender a intervenção de que trata êste artigo, a União poderá instituir contribuições destinadas ao custeio dos respectivos serviços e encargos, na forma que a lei estabelecer.”
[8] Não se verifica citação a obra estrangeira para respaldar a tese nas obras dos principais autores nacionais. Embora a atuação de empresas estatais para explorar atividades econômicas ou prestar serviços públicos seja difundida nos países de tradição romano-germânica, não se percebe que esse aspecto seja considerado como relevante para determinar o regime jurídico aplicável às entidades. Para exemplos de tratamento da matéria no exterior, ver: GORDILLO, Agustín A., Tratado de Derecho Administrativo, parte general, tomo 1, 2. ed., Buenos Aires: Macchi, 1994, p. XI-24 – XI-36; GIANNINI, Massimo Severo, Derecho Administrativo, traduzido por Luis Ortega, vol. I, Madrid: MAP, 1991. p. 229-235; ENTERRÍA, Eduardo García de; y FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, Curso de Derecho Administrativo, vol. 1, 7 ed., Madrid: Civitas, 1995. p. 401-408; RIVERO, Jean; WALINE, Jean, Droit administratif, 15. ed., Paris: Dalloz, 1995. p. 424-439; VEDEL, Georges; DELVOLVÉ, Pierre, Droit administratif, tome 2, 12. ed, Paris: Puf, 1992. p. 624-649; BÉNOIT, Francis-Paul, Le droit administratif français, Paris: Dalloz, 1968. p. 243-244; LAUBADÈRE, André de; VENEZIA, Jean-Claude; GAUDEMET, Yves, Traité de droit administratif, tome 1, 12. ed., Paris: LGDJ, 1992. p. 242-243.
[9]A influência deste autor é registrada em monografias e artigos que tiveram como objeto a distinção entre estatais prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividades econômicas. Conferir: MOTTA PINTO, Henrique. Empresa estatal: modelo jurídico em crise?. São Paulo, 2010. 200f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. p. 31 e ss.; COUTINHO, Diogo R.; MESQUITA, Clarissa Ferreira de Melo; NASSER, Maria Virginia Nabuco do Amaral Mesquita. Empresas estatais entre serviços públicos e atividades econômicas. Revista Direito GV, v. 15, n. 1. p. 9 e ss. jan./abr. 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201902; e CYRINO, André; MENDONÇA, José Vicente. Estatais prestadoras de serviços públicos e as estatais concorrenciais: rever ou romper com a dicotomia? Interesse Público, Belo Horizonte, Ano 21, n. 117, p. 59. set./out. 2019.
[10]O livro teve duas edições e várias tiragens, sendo a primeira de 1973. O foco da obra é discorrer sobre as formas de prestar serviços públicos por meio da administração indireta e de particulares. O autor já empregava a classificação das empresas públicas e sociedades de economia mista que exploravam atividades econômicas e aquelas que prestavam serviços públicos, atribuindo diferenças práticas relacionadas ao seu regime jurídico. Confira-se exemplo dessa distinção em relação ao regime dos bens das sociedades de economia mista: “Os bens das sociedades de economia mista não se qualificam como bens públicos, caso contrário haveria profundo desvirtuamento do caráter privado e correspondente regime imputável a estas pessoas. Segue-se disto que se sujeita às mesas vicissitudes de quaisquer outros bens particulares, podendo recair sobe eles gravames, ônus reais e execução para garantia ou satisfação de débitos resultantes de condenação judicial. Ressalve-se, tão-só, em sincronia com o que já ficou dito com respeito às concessionárias de serviço público, que, em se tratando de sociedade de economia mista prestadora de serviço público, os bens afetos à execução dele não se acham à mercê de terceiros, pois o saciar-se neles implicaria a paralisação do serviço, possibilidade excluída em face do notório princípio da continuidade dos serviços públicos.” (Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta, 2. ed., 3ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1987. p. 123-4).
[11]Nesta obra, originada como Elementos de Direito Administrativo, em 1980, e convertida em Curso em 1993, Celso Antônio Bandeira de Mello confere contornos mais gerais e dogmáticos ao que sustenta ser a diferença no regime jurídico das empresas estatais em função da atividade que desempenham. Confira-se a síntese do argumento: “Há, portanto, dois tipos fundamentais de empresas públicas e sociedades de economia mista: exploradoras de atividade econômica e prestadoras de serviços públicos ou coordenadoras de obras públicas. Seus regimes jurídicos não são, nem podem ser, idênticos, como procuramos demonstrar em outra oportunidade. No primeiro caso, é compreensível que o regime jurídico de tais pessoas seja o mais próximo possível daquele aplicável à generalidade das pessoas de Direito Privado. Seja pela natureza do objeto de sua ação, seja para prevenir que desfrutem de situação vantajosa em relação às empresas privadas — às quais cabe a senhoria no campo econômico —, compreende-se que estejam, em suas atuações, submetidas a uma disciplina bastante avizinhada da que regula as entidades particulares de fins empresariais. (...) No segundo caso, quando concebidas para prestar serviços públicos ou desenvolver quaisquer atividades de índole pública propriamente (como promover a realização de obras públicas), é natural que sofram o influxo mais acentuado de princípios e regras de Direito Público, ajustados, portanto, ao resguardo de interesses desta índole.” (Curso de Direito Administrativo, 34. ed. São Paulo: Malheiros. 2019. p. 205-206)
[12]Entre os tributaristas, vale destacar o engajamento de Geraldo Ataliba na difusão da tese, seja por meio de artigos, seja pela organização de eventos e obras coletivas. Confira-se: Empresas Estatais e regime administrativo (Serviço Público – Inexistência de Concessão – Delegação – Proteção ao interesse Público). Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, v.4, p. 55-70. 1993; Regime jurídico das empresas estatais. Revista de Direito Público, São Paulo, ano XX, v. 83, p. 139-195, jul./set. 1987; Patrimônio Administrativo – Empresas Estatais delegadas de serviço público – Regime de seus bens – Execução de suas dívidas. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, v.7, p. 21-40. 1994.
[13]GRAU, Eros R., A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e crítica). 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 140 e ss.
[14]Veja-se alguns outros exemplos, além dos já citados: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 549-551. NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 677. ROCHA, Sílvio Luís Ferreira. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 139. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Resende. Curso de Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Forense, 2019. p .142.
[15]CYRINO, André; MENDONÇA, José Vicente. Estatais prestadoras de serviços públicos e as estatais concorrenciais: rever ou romper com a dicotomia? Interesse Público. Belo Horizonte: Ano 21, n. 117, p. 55-80, set./out. 2019.
[16]PAIVA, Alfredo de Almeida. As sociedades de economia mista e as empresas públicas como instrumentos jurídicos a serviço do Estado. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, vol. 60, p. 11. 1960.
[18] Para uma análise minuciosa e crítica da jurisprudência do STF sobre a matéria, ver MOTTA PINTO, Henrique. Empresa estatal: modelo jurídico em crise?. São Paulo, 2010. 200f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[19]MS 21.322-1/DF. Relator Ministro Paulo Brossard, Plenário, julgado em 03/02/1992. Este julgado foi comentado por Carlos Ari Sundfeld em: A submissão das empresas estatais ao direito privado: uma definição histórica do STF. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo: Ano XI, n 5, maio. 1995. p. 287-285.
[20]MOTTA PINTO, Henrique. Empresa estatal: modelo jurídico em crise?. São Paulo, 2010. 200f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. p. 114-118.
[21]RE 220.906/DF, Relator Ministro Maurício Corrêa, Plenário, julgado em 16/11/2000; RE 230.072/RS, Relator Ministro Ilmar Galvão, Redator para o Acórdão Ministro Maurício Corrêa, Plenário, julgado em 16/11/2000; RE 230.051/SP, relator Ministro Ilmar Galvão, Redator para o Acórdão Min. Maurício Corrêa, Plenário, julgado em 16/11/2000; RE 225.011/MG, Relator Ministro Marco Aurélio, Redator para o Acórdão Ministro Maurício Corrêa, Plenário, julgado em 16/11/2000; RE 229.696/PE, Relator Ministro Ilmar Galvão, Redator para o Acórdão Ministro Maurício Corrêa, Plenário, julgado em 16/11/2000.
[23]MOTTA PINTO, Henrique. Empresa estatal: modelo jurídico em crise?. São Paulo, 2010. 200f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. p. 119-137.
[25]MOTTA PINTO, Henrique. Empresa estatal: modelo jurídico em crise?. São Paulo, 2010. 200f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. p. 149-156.
[26]RE 599.628/DF, Relator Ministro Ayres Brito, Redator para o acórdão ministro Joaquim Barbosa, julgado em 25.05.2011.
[27] RE 660.987/SP, Relator ministro Joaquim Barbosa, Redator para o acórdão ministro Luiz Fuz, julgado em 29.06.2020. Após julgar o recurso, o Tribunal, por unanimidade, fixou a seguinte tese de repercussão geral (tema 508): “Sociedade de economia mista, cuja participação acionária é negociada em Bolsas de Valores, e que, inequivocamente, está voltada à remuneração do capital de seus controladores ou acionistas, não está abrangida pela regra de imunidade tributária prevista no art. 150, VI, ‘a’, da Constituição, unicamente em razão das atividades desempenhadas”, nos termos do voto do Ministro Luiz Fux, Redator para o acórdão.
[29]Conferir, como exemplo, SCHIATO, Vitor Rhein. As empresas estatais no direito administrativo econômico atual. São Paulo: Saraiva, 2016; MOTTA PINTO, Henrique. Empresa estatal: modelo jurídico em crise?. São Paulo, 2010. 200f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. p. 175-186. JUSTEN FILHO, Marçal. O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre serviços públicos e atividades econômicas. Revista de Direito do Estado, Salvador, Ano 1, n. 1, jan./mar., 2006. p. 119-135. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 530.
[30]CYRINO, André; MENDONÇA, José Vicente. Estatais prestadoras de serviços públicos e as estatais concorrenciais: rever ou romper com a dicotomia? Interesse Público. Belo Horizonte: Ano 21, n. 117, p. 57, set./out. 2019.
[31]Essa parece ser a descrição abstrata do processo de criação do mito: “Distinções doutrinárias são usualmente utilizadas no Direito Público brasileiro para adaptar institutos jurídicos às particularidades do mundo real. No entanto, por vezes, construções desse tipo podem servir para afirmar impressões que pouco se amoldam ao funcionamento das instituições, tanto do ponto de vista prescritivo quanto em confronto com a realidade. Cristaliza-se determinada imagem, como uma espécie de dogma na intepretação do Direito, a despeito da inexistência de fontes que a legitime”. (CYRINO, André; MENDONÇA, José Vicente. Estatais prestadoras de serviços públicos e as estatais concorrenciais: rever ou romper com a dicotomia? Interesse Público. Belo Horizonte: Ano 21, n. 117, p. 56, set./out. 2019).
[32]CYRINO, André; MENDONÇA, José Vicente. Estatais prestadoras de serviços públicos e as estatais concorrenciais: rever ou romper com a dicotomia? Interesse Público. Belo Horizonte: Ano 21, n. 117, p. 65-69. set./out. 2019.
[33]CYRINO, André; MENDONÇA, José Vicente. Estatais prestadoras de serviços públicos e as estatais concorrenciais: rever ou romper com a dicotomia? Interesse Público. Belo Horizonte: Ano 21, n. 117, p. 69-70, set./out. 2019.
[34]CYRINO, André; MENDONÇA, José Vicente. Estatais prestadoras de serviços públicos e as estatais concorrenciais: rever ou romper com a dicotomia? Interesse Público. Belo Horizonte: Ano 21, n. 117, p. 70-76, set./out. 2019.
[35]Eis o que sustenta Celso Antônio Bandeira de Mello: “Advirta-se que este regime jurídico foi substancialmente inovado com o advento da Lei 13.303, de 30.6.2016, denominada Estatuto Jurídico das Empresas Estatais, cuja primeira questão a ser enfrentada diz respeito ao seu alcance. Isto porque o art. 1° dessa lei prevê sua aplicação a ‘toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços públicos. Quer a lei, portanto, que todas as empresas estatais sejam abrangidas pelo novo regime, o que, já dissemos no passado, incorre em grosseira inconstitucionalidade.” (Curso de Direito Administrativo, 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 211). Parece ser esta também a opinião de Maria Sylvia Zanella Di Pietro diz: "Hoje, a jurisprudência vem evoluindo no sentido de fazer distinção entre as empresas que prestam serviço público e as que atuam no domínio econômico. Essa distinção tem sido feita especificamente quanto à aplicação do processo dos precatórios, à natureza dos bens dessas entidades, à imunidade recíproca (v. item 10.8). (...) Lamentavelmente, a Lei nº 13.303/16, ao dispor sobre o estatuto jurídico das empresas estatais, não fez a distinção entre as que prestam serviço público e as que exercem atividade econômica a título de intervenção no domínio econômico. No entanto, muitas de suas normas são aplicáveis apenas às empresas que exercem atividade econômica (em sentido estrito), com fundamento no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, razão pela qual cabe ao intérprete, em cada situação, separar o que é e o que não é aplicável às empresas estatais prestadoras de serviços públicos." (Direito Administrativo, 32. ed., São Paulo: Atlas, 2019, p. 551).
[36]COUTINHO, Diogo R.; MESQUITA, Clarissa Ferreira de Melo; NASSER, Maria Virginia Nabuco do Amaral Mesquita. Empresas estatais entre serviços públicos e atividades econômicas. Revista Direito GV, São Paulo, v. 15, n. 1. p. 12, jan./abr. 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201902.
[37] Nessa linha é a disciplina estabelecida no Código de Processo Civil, que admite expressamente a penhora de bens de empresas que funcionem como concessionárias do poder público. Veja-se:
“Art. 863. A penhora de empresa que funcione mediante concessão ou autorização far-se-á, conforme o valor do crédito, sobre a renda, sobre determinados bens ou sobre todo o patrimônio, e o juiz nomeará como depositário, de preferência, um de seus diretores.
§ 1º Quando a penhora recair sobre a renda ou sobre determinados bens, o administrador-depositário apresentará a forma de administração e o esquema de pagamento, observando-se, quanto ao mais, o disposto em relação ao regime de penhora de frutos e rendimentos de coisa móvel e imóvel.
§ 2º Recaindo a penhora sobre todo o patrimônio, prosseguirá a execução em seus ulteriores termos, ouvindo-se, antes da arrematação ou da adjudicação, o ente público que houver outorgado a concessão.”
[38] Celso Antônio Bandeira de Mello, autor sempre citado em defesa da diferença de regime jurídico entre estatais prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividade econômica, reconhece que a imunidade recíproca não deve atingir as prestadoras de serviço público: “As empresas estatais, conquanto prestadoras de serviços públicos, quando haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário do serviço não se beneficiam da imunidade prevista no art. 150, VI, ‘a’, da Constituição Federal — onde se proíbe que União, Estados, Distrito Federal e Municípios instituam impostos sobre patrimônio, renda ou serviços uns dos outros. É que o § 3º do mesmo artigo é explícito em excluir, em tais casos, a incidência da referida imunidade. Ora, como ditas empresas operam mediante as referidas contraprestações, salvo em hipóteses incomuns nas quais inexistam, ficarão ao largo do aludido dispositivo protetor.” (Curso de Direito Administrativo, 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 222).
[39]O argumento aparece, por exemplo, no voto do Ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento da Ação Cível Originária 765: “reconhecer, em favor da empresa, a imunidade recíproca do imposto é contribuir para a modicidade da contribuição financeira dos usuários, ... ou seja, desonerado desse tributo, preexcluída de qualquer imposto, inclusive de imposto de renda que pode ser objeto de questionamento, a empresa tem custos menores e pode, evidentemente, prestar um serviço postal de custo módico a quem mais necessita da empresa. Por isso a Ministra Cármen Lúcia, certa feita, disse o seguinte: A EBCT presta serviços e cobra para que a Dona Joana, lá do morro, possa receber cartas como o milionário da Paulista. Então, a imunidade passa a se traduzir na possibilidade de um custo menor, de modicidade das tarifas, atendendo, portanto, às comunicações de pessoas mais pobres dos estratos sociais brasileiros”. (ACO 765/RJ. Relator Ministro Marco Aurélio, Relator para o acórdão, Ministro Menezes Direito, Plenário, julgada em 13.05.2009).
[40]A Constituição Federal, art. 150, II e § 3º, atribuiu aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituir impostos sobre os serviços de transporte interestadual e intermunicipal de passageiros, de comunicação, de energia elétrica e de telecomunicações.
Mestranda em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; Pós-Graduada em Licitações, Contratos Administrativos e Responsabilidade Fiscal pela Escola Superior da Magistratura de Pernambuco – ESMAPE; Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Formas contemporâneas de contratação pública e seu impacto e efetividade nas atividades administrativas” da PUC/SP; Pesquisadora do Observatório do TCU da FGV Direito SP + Sociedade Brasileira de Direito Público.
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