Resumo: Na área do direito tributário, a Inteligência Artificial (IA) tem interagido fortemente, a ponto de alguns já adotarem a expressão “Robotax”. Tanto do lado do contribuinte como do lado do fisco, há um esforço muito grande em automatizar os procedimentos, tanto na busca de agilizar o cumprimento das obrigações acessórias e do eficiente planejamento tributário, como na detecção de focos de evasão e sonegação tributárias. Há quem diga até que em pouco tempo a IA irá substituir completamente o lançamento tributário. O propósito deste trabalho é mostrar um pouco da atuação do “Robotax” na atividade de auditoria de tributos e suas eventuais repercussões no lançamento, na identificação de recolhimentos em excesso, viabilizando o direito à restituição e as limitações que estas máquinas “pensantes” possuem frente à atividade criativa do lançador tributário.
Palavras chave: Robotax. Lançamento Tributário. Restituição. Economia Digital. Inteligência Artificial.
Abstract: In the area of tax law, Artificial Intelligence (AI) has interacted strongly, to the point that some have already adopted the expression “Robotax”. Both on the taxpayer side and on the tax side, there is a great effort to automate procedures, both in the quest to speed up the fulfillment of accessory obligations and efficient tax planning, as well as in detecting pockets of tax evasion and evasion. Some say that in a short time the AI will completely replace the tax assessment. The purpose of this work is to show a little of the “Robotax” performance in the tax auditing activity and its possible repercussions in the launch, in the identification of excess collections, enabling the right to refund and the limitations that these “thinking” machines have in front to the taxpayer’s creative activity.
Keywords: Robotax. Tax Formalization. Restitution. Digital Economy. Artificial Intelligence.
SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Importância do Lançador tributário. 3. Inteligência Artificial. 4. Exemplos concretos de IA aplicável na cobrança de tributos. 5. Algoritmo. 6. Análise do instituto do lançamento à luz do tema abordado. 7. Lançamento autômato. 8. Prospecções pré-lançamento: análise do minus e do nimis tributário. 8.1.Auditoria do minus tributário. 8.2. Auditoria do nimis tributário. 9. Teses criativas do lançador tributário. 9.1. Esfera estadual. 9.1.1. Transferências Interestaduais. 9.1.2. “Marketing Direto”. 9.2. Esfera federal. 9.3. Esfera municipal. 10. CONCLUSÃO.
1 INTRODUÇÃO
Dentre os institutos do direito tributário, talvez seja o lançamento aquele que mais importância prática assuma para a eficiente cobrança do tributo. É através dele que a obrigação incerta, ilíquida e inexigível se torna certa, líquida e exigível. Vale lembrar a máxima que lançar declara a obrigação pré-existente e constitui o crédito tributário, a despeito de respeitáveis entendimentos em contrário.
Não há como cobrar o tributo se o lançamento inexistir. Até mesmo o do tipo por homologação, modalidade na qual o sujeito passivo cuida sozinho de quantificar e antecipar o seu recolhimento, o credor passa a saber em quanto monta a obrigação contraída pelo devedor e, nestas circunstâncias, passa a reunir as condições de fazer a sua exigência no campo extrajudicial e judicial.
A Tecnologia da Informação desenvolveu-se rapidamente nos últimos anos e expressões como deep learning, quarta revolução industrial e algoritmo passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas, inclusive entre os operadores do direito, na busca de melhor explicar o fenômeno da IA.
Hoje a tecnologia é capaz de produzir algoritmos em grandeza tal que é a própria atividade intelectual que está sendo substituída. Numa simples sequência de cliques, a máquina é capaz de produzir petições iniciais, relatórios periciais e decisões judiciais de certa complexidade, que antes demandavam horas de estudo e pesquisa.
Não obstante todo o avanço percebido no campo da IA, contando ainda com muito espaço para assimilar tarefas cada vez mais elaboradas, tem o presente trabalho o objetivo de sustentar que a atividade do lançamento tributário jamais prescindirá do pensamento humano. Isto porque o robot – pelo menos durante um bom tempo – não terá o poder de substituir completamente a atividade intelectiva, ainda mais dentro da dinamicidade das normas tributárias que vão se adaptando de acordo com o cenário econômico de momento. O fisco continuará construindo as suas teses, a serem testadas e confrontadas perante o crivo da Administração Pública e do Poder Judiciário.
Não se quer dizer com isto que a IA não seja benfazeja. Pelo contrário: deseja-se que o humano deixe cada vez mais de fazer operações repetitivas, tarefa confiada aos programas de computadores, e passe a pensar complexamente a vida, em particular o fenômeno tributário e seu correto enquadramento no direito posto.
Nestes moldes, pretende-se discorrer brevemente sobre a importância da autoridade fiscal lançadora, trazendo alguns conceitos sobre a Inteligencia Artificial e exemplos reais destas máquinas “pensantes” na seara tributária e sobre algoritmos para depois disto, fazer uma análise sobre o lançamento dentro deste contexto, o que se entende por lançamento autômato, as atividades que o antecedem, dentro do minus e do nimis tributário, culminando com teses criativas desenvolvidas pelo fisco.
2 IMPORTÂNCIA DO LANÇADOR TRIBUTÁRIO
As entidades federativas criam por intermédio da lei em sentido estrito carreiras fazendárias que possuem incumbências de efetuar o lançamento, dando-lhe a conformação necessária para deixar o contribuinte ciente de quanto deve de tributo, se concorda ou não com as suas bases.
Portanto, o lançamento está para a autoridade tributária assim como a sentença está para o juiz e a denúncia-crime está para o integrante do Ministério Público. Em todos estes atos típicos – e intransferíveis - de estado são analisados fatos, provas e feita a subsunção legal correspondente, seja para ofertar a prestação jurisdicional, seja para acusar alguém do cometimento de ilícito penal, seja para deixar a dívida tributária em condições de ser exigida.
Assim como a sentença transitada em julgado “faz lei entre as partes”, para se valer de uma expressão muito conhecida na praxe jurídica, o lançamento traduz norma concreta, individual, vinculando os sujeitos ativo e passivo ao redor da obrigação de pagar o tributo. Como o lançamento constitui o crédito tributário e este, quando inscrito em dívida ativa, pode ser oposto contra o devedor nas vias judiciais, não resta dúvidas de que se mostra como instrumento formal para ser reclamado o tributo contra determinada pessoa.
Daí tais pessoas investirem-se de funções de estado, absolutamente proibidas de serem delegadas para quem quer que seja, porque decorrentes da essência da atividade estatal reclamada pela sociedade. O estado comprometeria a sua identidade se qualquer uma destas atividades fosse entregue a particulares ou a grupos privados detentores de interesses inconfessos.
Sem o lançamento a Fazenda Pública não teria como arrecadar as receitas constitucionalmente asseguradas para fazer realizar as políticas públicas tão clamadas pela população brasileira. O tributo cairia no vazio, desprovido de uma ferramenta que transformasse a obrigação do devedor em divisas para o erário. No mister de lançar tributos, será preciso que a autoridade competente possua os dotes técnicos para fazê-lo.
Não é o lançamento uma simples operação aritmética, como pensam alguns. Significa muito mais do que isso. O lançamento não raro exige um profundo conhecimento de hermenêutica, de contextualização do fenômeno tributário às possíveis normas aplicáveis ao caso concreto. Exige de quem o faz conhecimento multifacetado, não só no campo da ciência jurídica como também das ciências contábeis, economia e disciplinas afins.
Por outro lado, é verdade que a tecnologia da informação pela via da inteligência artificial vem ocupando cada vez mais espaço em profissões tradicionais, nas quais o esforço intelectual do ser cuidava de produzir todo o resultado pretendido. Limitava-se a tecnologia a disponibilizar algumas ferramentas no intuito de otimizar o tempo e os acertos advindos do trabalho do homem, como se vê num software de planilha de dados ou num aplicativo editor de textos.
Hoje a IA evolui geometricamente. Espraia-se por todos os campos do conhecimento humano. Revela uma via sem retorno e que, se bem utilizada, trará benefícios incomensuráveis para a humanidade. Nesta toada, cabe refletir de que maneira a IA está interagindo com a atividade do lançamento e, a partir daí procurar antever quais serão os próximos passos nesta evolução.
3 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Vivenciamos uma era nunca vista antes na história da humanidade. O que há pouco tempo não passava de ficção científica mirabolante hoje é uma realidade. Os robots “pensantes” fazem parte do portfólio da IA. Como em todo setor da vida, as máquinas inteligentes também ocuparam expressivo espaço na área do direito tributário. Tanto do lado do contribuinte como do lado do fisco. A literatura internacional fala em “Robotax”[1], uma espécie de autômato que, com suporte em algoritmos, consegue interpretar normas jurídicas tributárias e, à luz da doutrina e da jurisprudência, entrega as soluções mais adequadas para o caso concreto.
Neste tópico será feita uma análise de como a IA interfere no direito tributário do lado da Fazenda Pública, tendo em mira a afirmativa corrente de que o “Robotax” substituirá totalmente a autoridade lançadora. Não que seja igualmente importante a atuação da IA no intuito de auxiliar o contribuinte, pois tal tecnologia deve atuar para que este possa fazer frente às obrigações tributárias e buscar – e não há nenhuma iniquidade nisso – pagar menos tributo sem ferir a lei, o chamado planejamento tributário.
Não iremos abordar também a reivindicação arrazoada dos contribuintes no sentido do fisco ter que disponibilizar os algoritmos aplicados na IA para que aqueles saibam quais foram os critérios usados para se chegar à tributação pretendida, dentro de um processo de transparência que deve nortear a atuação da administração tributária moderna.
Sem sombra de dúvidas, tais temas merecem estudo profundo e apartado.
Voltando ao prisma da gestão fazendária, a IA deve ser projetada para que os lançamentos sejam efetuados na velocidade que a vida moderna reclama; exatamente para não deixar que o contribuinte sonegue, depois desapareça, ou pratique ilícitos tributários por muito tempo e avolume a sua dívida a ponto de se tornar insolvente.
É também papel do fisco orientar os contribuintes em casos de excesso de tributação. A administração fazendária moderna deve se preocupar com a justiça fiscal, para que sujeitos passivos em igual condição suportem a mesma carga tributária[2]. Tanto é infenso para a sociedade a pessoa pagar menos tributo como também o é pagar mais do que determina a lei.
Sabemos que na prática este movimento proativo e anti-erário é raro de acontecer. As autoridades fazendárias estão treinadas para cobrar apenas o que foi recolhido a menor e relegar a segundo plano aquilo que tenha sido pago em demasia. Defendemos uma mudança de postura nesta política fiscal, inclusive porque através da IA o fisco não “perderia” tempo investigando focos de recolhimentos a maior; separados por poucos “cliques”, os lançadores facilmente chegariam a cifras pagas indevidamente. Tais valores não pertencem ao ente tributante e, portanto, devem ser devolvidos a quem de direito. Uma espécie de denúncia espontânea às avessas.
Por outro lado, a IA tem servido como uma importante ferramenta usada pelo fisco no sentido de estimular a autorregulação. Descobertas inconsistências no cumprimento da obrigação – falta de pagamento ou recolhimento a menor do tributo, é o contribuinte imediatamente notificado para corrigir a anormalidade, formalizando-se ou não o lançamento de ofício, a depender da legislação de cada ente federativo. No caso de lançamento de ofício efetivado, é factível dispensar-se a multa se o tributo for pago dentro de determinado prazo. Isto porque o que se deseja é que o recurso ingresse logo nos cofres públicos, sem imposições punitivas adicionais ou discussões que retardem a recuperação do crédito.
Assim, vale trazer à tona alguns conceitos e características derredor da IA, com vistas a melhor contextualizar a temática principal do presente estudo.
Em primeiro lugar, inteligência não se confunde com consciência. Pode uma máquina executar tarefas inteligentes sem ter a consciência de estar fazendo isso. A inteligência pode ser definida como a habilidade de solucionar problemas, de encontrar alternativas diante de dificuldades, mirando atingir objetivos previamente traçados.
Noutras palavras: como a inteligência traduz a capacidade de resolver problemas, de adaptar-se às dificuldades, tem-se que a inteligência artificial consiste na habilidade de sistemas não vivos cumprirem este papel. Não é preciso, como dito, que a máquina tenha consciência de sua própria existência e da realidade ao seu redor, mas apenas que consiga desempenhar tarefas até então tidas como exclusivamente humanas, tal qual dirigir um carro, jogar xadrez ou localizar indícios de sonegação fiscal em certo setor econômico. Tais sistemas fazem uso de algoritmos, que nada mais são que instruções sobre como proceder diante de determinado problema.
Define-se IA como um ramo da ciência da computação cujo objetivo é elaborar dispositivos que simulam a capacidade humana de raciocinar, perceber, tomar decisões e resolver problemas. Ou seja, são softwares que possuem uma inteligência própria – ampliando as suas funcionalidades em relação a um software limitado às rotinas programadas[3].
A Inteligência Artificial traz no seu seio o que se conhece por Machine Learning, cujo funcionamento decorre do entendimento de padrões que geram sistemas, processos e ações sem precisar necessariamente, neste momento, da intervenção do homem. Neste conduto, a máquina acaba “aprendendo” a partir da experiência, ajustes, inputs de dados, informações, análise de tarefas e procedimentos que antes eram executados pelos homens.
A IA já é realidade na rotina das pessoas, percebida por exemplo quando alguém compra um livro pela Internet e logo depois começa a receber recomendações personalizadas de leitura ou quando o smartphone reconhece a sua voz e passa a obedecer aos seus comandos orais.
Os especialistas em ciências da computação Stuart Russell e Peter Norvig[4] diferenciam vários tipos de inteligência artificial, a saber: (i) Sistemas que pensam como humanos, na medida em que automatizam atividades como tomada de decisões, resolução de problemas e aprendizagem. Um exemplo é o das redes neurais artificiais. (ii) Sistemas que atuam como humanos. Tratam-se de computadores que executam tarefas de um jeito semelhante ao das pessoas. É o caso dos robôs. (iii) Sistemas que pensam racionalmente. Aqui a máquina tenta simular o pensamento lógico racional dos humanos, na medida em que busca entender, raciocinar e agir como se fosse um de nós. Os sistemas inteligentes estão englobados neste grupo. (iv) Sistemas que atuam racionalmente. Idealmente, são aqueles que tentam imitar de forma racional o comportamento humano, como os agentes inteligentes.
São muitos os benefícios produzidos pelas máquinas inteligentes no campo tributário. Em primeiro lugar, tornam os processos de investigação mais eficientes e eficazes, a exemplo das rotinas automatizadas que visam armazenar e cruzar rapidamente informações inseridas num determinado banco de dados fazendário, alimentados por declarações transmitidas pelo sujeito passivo, tendo como objetivos maiores verificar inconsistências de recolhimentos (para mais ou para menos) e/ou localizar tendências de evasão fiscal presenciadas em certos segmentos. Em segundo lugar, procuram evitar falhas comumente ocorridas pelo homem. Basta pensar numa simples planilha eletrônica (que já possui um certo grau de inteligência) para ver que as operações matemáticas para quantificação do tributo tenderiam a ter zero de erro, se comparada com o ser humano usando uma calculadora (caso os inputs estejam corretos). Em terceiro lugar, buscam reduzir custos, como acontece nas empresas preocupadas com o compliance, dada a quantidade de profissionais e tempo dispendido para cumprimento das obrigações acessórias. Em quarto lugar, facilitam a interação entre as diversas áreas de governo, de forma que os órgãos do mesmo ente federativo possam conversar entre si, compartilhando dados econômicos-fiscais que sirvam na detecção de focos de sonegação; dados dos departamentos de trânsito podem identificar veículos de propriedade de devedores tributários, cartórios podem fornecer dados de imóveis pertencentes a contribuintes inadimplentes, juntas comerciais podem apontar perfis societários com vistas a identificar responsabilidades tributárias; até mesmo entes tributantes diferentes poderão trocar informações que detiverem, no esforço de fornecer “pistas” para a formalização de lançamentos, desde que usem IA em linguagem compatível para o tratamento dos dados baseado em critérios uniformes[5].
Sob um outro prisma, ainda é possível imaginar modalidades de aplicação da IA no campo do direito tributário.
Na análise preditiva, um algoritmo estabelece uma linha de tendência e a partir daí o sistema é capaz de definir uma previsão para casos futuros; opera para encontrar respostas na modelagem estatística, baseada na mineração de dados já existentes, a fim de antecipar padrões de comportamento; um bom exemplo desta ferramenta se aplica quando se faz uma análise macroeconômica de determinado setor para identificar tendências de crescimento ou de decrescimento, à luz do cenário econômico global, projetando para o futuro expectativas de arrecadação e, dentro disto, projetar também os limites dos gastos públicos.
Através da clusterização, dá-se o armazenamento e agrupamento de dados em grupos específicos, no intuito de reconhecer um comportamento comercial específico, comparando empresas do mesmo segmento econômico e com características tributárias semelhantes, no sentido de detectar pontos fora da curva de comportamento que justifiquem investigação aprofundada; veja-se este exemplo: dado o setor varejista de eletrodomésticos e cruzando a relação percentual entre ICMS recolhido e faturamento obtido apresentado pelas empresas ali pertencentes, encontra-se uma relação percentual média de recolhimentos, vis a vis com faturamento, de tal modo que os percentuais abaixo da média encontrada indiciam evasão fiscal e requerem análise verticalizada.
Pelo Processamento de Linguagem Natural (PLN), consegue-se interpretar a linguagem humana, buscando o significado deduzido do texto; é usado em interfaces de conversação e ferramentas de linguagem. Antes que um sistema possa raciocinar, aprender, planejar, minerar argumentos ou explicar, o mesmo deve ser capaz de formular as ideias envolvidas por meio de uma linguagem de representação do conhecimento. Assim, primeiro será preciso que o sistema PLN assuma a capacidade de interpretar um documento escrito em linguagem natural, de entender os conceitos presentes no seu texto; cria-se uma rede de definições de um vocabulário sobre um determinado domínio de conhecimento de forma a uniformizar, referenciar e compartilhar conhecimentos sobre conceitos gerais e especializados, no sentido da máquina poder pensar coerentemente as soluções. Uma arquitetura de um sistema de PLN deve incluir a edição de regras sintáticas e semânticas que comporão uma determinada base de conhecimento. Portanto, pelo PLN será possível antever se um determinado posicionamento do fisco poderá obter sucesso no Judiciário, diante das decisões judiciais que abordaram questão idêntica, por exemplo. Existe no Brasil um sistema denominado de “Protegé”, o qual organiza hierarquicamente 98 conceitos de direito tributário, no intuito de dotar a IA de condições para solucionar uma questão.
Não se pode deixar de mencionar o SPED – Sistema Público de Escrituração Digital, como ferramenta importante consistente em padronizar as atividades de recepção, validação, armazenamento e autenticação de livros e documentos que integram a escrituração contábil e fiscal dos sujeitos passivos tributários. Sobre tal sistema aplicações de IA podem ser desenvolvidas, fazendo o tratamento adequado dos dados coletados, proporcionando ao fisco elementos indicativos tendentes a detectar prováveis focos de evasão tributária.
4 EXEMPLOS CONCRETOS DE IA APLICÁVEL NA COBRANÇA DE TRIBUTOS
O fisco federal desenvolveu algumas plataformas de IA que acabam repercutindo na atividade do lançamento. Vamos a elas.
A primeira é chamada de Sistema de Seleção Aduaneira por Aprendizado de Máquina (SISAM) – aprende com o histórico de Declarações de Importação (DIs) e tem o fito de diminuir a quantidade de mercadorias verificadas no despacho aduaneiro de importação, reduzindo os custos da máquina fiscal; com base no histórico de importações, seja do mesmo importador, seja de outras empresas do mesmo setor, o sistema verifica quais DIs têm maior probabilidade de conter erros e em quanto tais erros podem representar de perda para o Fisco, de modo que, para estes casos, a mercadoria importada é escolhida para verificação pormenorizada; neste passo, o sistema evita fiscalizar contribuintes de forma puramente aleatória, visto que analisa cada item de cada adição de cada DI e calcula a probabilidade da presença de vários tipos de erro. Também indica possíveis valores corretos para os campos que tiverem erro e calcula a probabilidade e as consequências tributárias de cada um destes valores.
A segunda é denominada de Sistema “PGFN Analytics”, destinada a municiar a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional de elementos para se saber quais as probabilidades de êxito de uma determinada execução fiscal, considerando os bens que estejam em nome do contribuinte devedor; quer dizer, faz o monitoramento patrimonial dos sujeitos passivos, se valendo das mais avançadas técnicas de BI (business intelligence). Permite identificar indícios de redução da atividade econômica, de dilapidação patrimonial, de saída fraudulenta do quadro societário, de fraude à execução e de sucessão empresarial. Além disso, contém ampla base para localização de bens e direitos do devedor. Enfim, o sistema apresenta informações relevantes para a tomada de decisão em relação à recuperação do crédito inscrito na dívida ativa da União.
Noutras palavras: os órgãos de cobrança judicial federal se valem da IA para selecionarem aquelas execuções fiscais com viabilidade positiva, de tal modo que a demanda só será instaurada se o devedor potencialmente executável tiver bens para satisfazer a dívida. Embora num primeiro arroubo tal medida vise priorizar as cobranças com grande possibilidade de sucesso, o que se vê em última análise é um estímulo ao mau contribuinte que, sabedor da existência deste tipo de seleção, termina por adotar práticas para fraudar à execução ou cometer fraudes contra credores. Aqueles contribuintes que contassem com ajuda tributária especializada poderiam adotar estratégias escapistas que os livrariam das investidas do fisco.
A terceira está dentro do contexto do “T-Rex” e da “Harpia”: entenda-se o “T-Rex” como um supercomputador que, através das movimentações eletrônicas, cruza online as informações das atividades que envolvam CPF ou CNPJ dos contribuintes quanto a operações com cartórios (checando os bens imóveis, terrenos, casas, apartamentos, sítios, construções etc), Detrans (verificando o registro de propriedade dos veículos, tais como motos, barcos, Jet-skis etc), bancos (operações com cartões de crédito, débito, aplicações, movimentações, financiamentos), empresas (folhas de pagamentos, FGTS, INSS, IRRF etc), serviços básicos (luz, água, telefone, saúde), o próprio Poder Judiciário em relação ao pagamento de honorários a advogados e/ou indenizações às partes reclamantes. A varredura é realizada em todas as esferas (municipal, estadual e federal), podendo, ainda, fiscalizar até cinco anos retroativos. Já o software “Harpia”, que trabalha juntamente com o “T-Rex”, propicia que o sistema seja capaz de aprender com o comportamento do contribuinte e, assim, rastrear ações suspeitas.
A quarta é denominada de Sistema “Watson”[6]. Trabalha a linguagem humana juntamente com a inteligência artificial, com o objetivo de analisar grandes quantidades de dados. Assim, possui um sistema cognitivo capaz de compreender milhões de dados expressos na linguagem humana, raciocinando e oferecendo as respostas corretas. Encontra largo uso na área jurídica, a ponto de ser criado uma espécie de um “robô-advogado”, de nome “Ross”, cuja função é auxiliar na gestão de escritórios de advocacia; a partir de um problema, referido robô interpreta, busca informações, elabora hipóteses e traz uma resposta lógica para a pergunta realizada; o advogado autômato vai se aperfeiçoando de acordo como é utilizado e monitora processos online, de sorte que quando identifica alguma nova decisão que afete o caso, este imediatamente notifica o advogado. Possui uma variante tributária no Brasil chamada de “Busca Legal”, que otimiza a busca de informações de tributação de produtos. Essa ferramenta criou um chatbot em parceria com a empresa Systax, que já organizou um total de dados que conta com quase 4 milhões de regras tributárias, dentro dos quais são fornecidas informações de acordo com o tipo de tributo pesquisado.
5 ALGORITMO
Nas palavras de Alan Turing e Alonzo Church, considerados os pais da ciência da computação, algoritmo “é um conjunto não ambíguo e ordenado de passos executáveis que definem um processo finito”. Ou, numa linguagem mais simplista, algoritmo é uma sequência de passos lógicos necessários para uma tarefa ser executada; é como se fosse um passo a passo para resolver um problema, com instruções simples e exatas.
Algoritmo, para a matemática, significa uma sequência finita de regras, raciocínios ou operações que, aplicada a um número finito de dados, permite solucionar classes semelhantes de problemas. Para a informática, traduz um conjunto de regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um número finito de etapas.
Os algoritmos podem ser usados nas situações que envolvam raciocínio lógico e organização ou otimização de processos. Uma forma primitiva de algoritmo está na receita gastronômica, cuja função é orientar o cozinheiro a usar os ingredientes, nas medidas exatas e na sequência correta, até se chegar ao prato pretendido.
Eles integram a construção de qualquer programa de computador, desde uma rede social até um software de automação. Podem ser de três tipos: (i) Descrição narrativa - consistente num relato, numa história, que mostra o passo a passo para resolver um problema; escrito em linguagem comum, dá margem para diversas interpretações, trazendo dúvidas e carecendo de objetividade; o trabalho do programador é converter esta descrição narrativa em linguagem apropriada para o computador ler, compreender e executar as tarefas. (ii) Fluxograma - ferramenta que traduz a representação gráfica de um algoritmo, na medida em que possibilita simplificar e compreender qualquer processo, permitindo a visualização de todas as suas etapas, do início ao fim. Através dele são detectados pontos de estrangulamento e opções de melhoria; baseado na organização de informações com a utilização de símbolos. Existem diversos tipos de formas gráficas para representá-las: inputs, etapas, decisões, outputs etc. Essas formas podem variar de acordo com o modelo adotado. (iii) Pseudocódigo - conjunto de comandos criados para executarem uma tarefa, embora não escrito em linguagem de programação, apesar de usar a mesma lógica; serve como rascunho para convertê-lo em linguagem de programação.
Só pelas definições atrás exibidas é factível depreender que o algoritmo pode acusar falhas em qualquer campo do conhecimento humano, inclusive no tributário, na medida em que o homem pode deixar de prever e imputar todo o universo possível de regras, raciocínios ou operações que apontem a melhor solução para a hipótese sob estudo. O imputador do algoritmo pode não ter a compreensão de um argumento ou regra que também possa ser aplicado ao caso concreto, descoberto pela mente investigativa e interpretativa do lançador tributário, num feixe de raciocínio desenvolvido em ambiente de maior densidade jurídica e que requeira um esforço intelectivo maior do que aquele que se costuma fazer em simples tarefas de rotina. Disto depende o exercício criativo do cérebro humano, a construir teses sólidas quando desafiado pelas novas experiências, vistas antes por outros operadores do direito e que não tiveram o insight de enxergar o fenômeno tributário sob um outro – e revolucionário – viés.
Em verdade, algoritmos partem de modelos, ou de representações simplificadas da realidade com a qual o sistema há de interagir para realizar os objetivos para os quais foi programado[7]. Tais modelos podem ter pontos cegos que refletem os julgamentos de quem os criou. Os sistemas inteligentes, por mais desenvolvidos que sejam, dependem de uma representação da realidade para atuar, e os dados com os quais são alimentados são coletados e neles introduzidos por humanos. Assim, é inevitável que, no mínimo, os sistemas partam de visão precária e limitada da realidade, questão epistemológica que assalta a qualquer sujeito cognoscente.
Por sua vez, como o algoritmo é aplicado a um número finito de dados, talvez nem o dado esteja disponível para análise, seja porque inédito ao seu imputador, seja porque propositalmente disfarçado pelo sujeito passivo para escapar da tributação. A economia digital está cheia de transações e operações econômicas e financeiras com implicações tributárias que acometem em número assombroso as relações travadas na rede mundial de computadores. Estas podem envolver municípios diferentes, estados diferentes, países diferentes, de tal sorte que a transação acabe se perdendo e não encontrando a tributação adequada, a ponto de ser muito difícil identificar-se até quem seja o sujeito ativo da relação obrigacional.
6 ANÁLISE DO INSTITUTO DO LANÇAMENTO À LUZ DO TEMA ABORDADO
Vale advertir inicialmente que não se pretende neste trabalho abordar por inteiro as questões relacionadas ao instituto do lançamento. Há monografias profundas enfrentado a temática, dentre as quais se destaca a obra clássica de José Souto Maior Borges, muito conhecida entre os tributaristas[8].
Neste tópico, o propósito é apenas abarcar alguns aspectos do lançamento, máxime aqueles que se conectem aos procedimentos ligados à IA ou que, de alguma forma, comportem ser relembrados para recompreensão da sua configuração formal. De seu turno, não se terá aqui a preocupação de enfrentar polêmicas importantes ao redor do instituto, a exemplo da existência ou não de atecnia na expressão “autolançamento”, da adoção de novos critérios de apuração ou processos de fiscalização, da mudança dos critérios jurídicos implicar em erro de direito ou erro de fato, da aplicação de prazos decadenciais com termos iniciais distintos, dentre outras. O foco será contextualizar o lançamento e analisar se, para todas as situações, ficará ele “escravo” da automatização implantada pela IA.
A teor da definição contida no art. 142 do CTN, caput e parágrafo único, combinada com a parte final do art. 3º do mesmo Codex, o lançamento nasce de “atividade administrativa” plenamente vinculada, disposta para verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação respectiva, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, em certas hipóteses, propor a aplicação da penalidade cabível, tarefas que concentram o esforço de constituir o crédito tributário.
A “atividade” do lançamento decorre de procedimento administrativo, segundo certa corrente doutrinária isto é, traduz o cometimento de vários atos sequenciados por parte da autoridade investida de poderes específicos, os quais, após meticulosa auditoria, pode identificar ou não fatos imponíveis insatisfeitos. Caso existam, formaliza-se o lançamento tributário para o crédito tributário ser constituído. Mas há quem entenda ser o lançamento decorrente de um único ato administrativo, decorrente de outros atos preparatórios (intimações, comunicados, relatórios preliminares, lavratura de termos etc.), externado quando da individualização do crédito.
Há desdobramentos para aqueles que pensam ser ato formal e não procedimento. Numa posição intermediária, Ruy Barbosa Nogueira o entende como um procedimento administrativo sob a forma de atos regrados tendentes à realização de um fim. Por sua vez, Aliomar Baleeiro, Rafael Bielsa e Paulo de Barros Carvalho encaram o lançamento como um ato administrativo final, resultado de todo um procedimento administrativo anterior.
Já para Gilberto de Ulhôa Canto constitui ato administrativo complexo, definido como o que expressa uma só vontade pela manifestação de dois ou mais órgãos. Visto por este ângulo, se uma autoridade formaliza o lançamento e uma outra, pertencente a outro órgão, o aprecia, ainda na esfera administrativa, soa coerente o ponto de vista defendido pelo citado jurista.
Sacha Calmon afirma taxativamente ser o lançamento ato administrativo singular, “de aplicação da lei aos casos concretos” (2011, p. 666), dentro de um processo de concreção normativa, de modo que é precedido por um procedimento preparatório (desenvolvido na auditoria, provido de intimações, relatórios, termos etc.) e sucedido por um procedimento revisional (apreciação interna), dentro do controle do ato administrativo pela própria administração pública.
De uma forma ou de outra, a IA age intensamente nesta tarefa de congregar os atos administrativos preparatórios ou o ato administrativo do lançamento propriamente dito, fazendo emitir automaticamente intimações, relatórios de inconsistências e até mesmo o próprio instrumento formal de lançamento, que costuma ter na legislação denominações diversas, a exemplo de auto de infração, notificação fiscal, intimação para pagamento de débito, nota de lançamento, dentre outras.
Decorre de atividade administrativa plenamente vinculada, equivalente a dizer que nas fases pré-lançamento, lançamento em si considerado e pós-lançamento a autoridade competente agirá rigorosamente de acordo com os comandos de lei, sob pena de responsabilidade funcional. No entanto, para além do lançamento propriamente dito, percebe-se na prática uma certa discricionariedade na atividade de cobrança do tributo, como no caso da repartição fazendária ter liberdade de fixar o número de parcelas de acordo com a conveniência e a oportunidade da Administração Pública, observados os limites máximos definidos em lei, ou quando o órgão julgador administrativo, a depender do caso concreto, resolve dispensar o pagamento da multa ao apelo da equidade, havendo previsão legal para tanto.
Seguir rigorosamente os comandos de lei não significa que o lançador do tributo fique adstrito a um raciocínio cartesiano, apenas limitado ao texto linear da norma. Ao contrário: o tributador experimentado vai muito além deste trabalho intelectivo primário, aliás alcançado com muita facilidade pela IA. Como operador do direito que é, assim como o advogado e o juiz o são, a autoridade fiscal deve se permitir aprofundar muito mais na análise do fenômeno tributário com o qual se depara. Aliás, é preciso ficar bem claro que tudo começa a partir do trabalho investigativo e interpretativo desenvolvido pelo expert, a perscrutar os fatos praticados pelo sujeito passivo. As teses jurídicas na área tributária nascem a partir do lançamento. Sem ele a obrigação tributária reside no limbo, escondida, sem se revelar para o sujeito ativo. Ao perceber os fatos praticados pelo contribuinte, caberá ao lançador analisá-los para saber das suas implicações tributárias. Um evento aparentemente declarado desonerado de tributação pode revelar ser imponível, a partir de certos raciocínios jurídicos que sejam exercitados pelo tributador. Ou um evento tributável satisfeito numa certa dimensão quantitativa pode comportar uma complementação de pagamento, seja porque a base imponível não foi delimitada corretamente, seja porque a alíquota praticada não é a prevista na legislação. No momento do ajuizamento da execução fiscal, os fundamentos da cobrança estão perfeitamente delineados, e o fenômeno tributável em suas diversas dimensões (material, pessoal, espacial, temporal e quantitativa) já se mostra por inteiro, resultado do trabalho intelectual desenvolvido pelo lançador do tributo. Num outro dizer: é a autoridade lançadora quem injeta no mundo jurídico o fato imponível, em forma e essência, em qualidade e quantidade, em certeza e liquidez, em espaço e tempo, após estar devidamente encaixado na norma jurídica, a subsunção fazendo irradiar os efeitos de cobrança e exequibilidade. Sem lançamento não há como se exigir o tributo, no modo e forma como foi exteriorizado pela autoridade competente. Até mesmo nos pagamentos antecipados pelo contribuinte, será preciso que a autoridade pública os chancele, advindo daí o lançamento por homologação.
Verificar a ocorrência de fatos geradores significa uma atividade extremamente sensível e que requer proficiência da autoridade encarregada do lançamento. Muitas vezes o fato tributável estava até então desconhecido pelo erário, como dito antes. Tem o lançador a expertise de trazer para o mundo jurídico eventos que se disfarçavam na sombra, sem tratamento jurídico. Apesar de se caracterizarem como geradores de obrigações tributárias, tais fatos não se exteriorizavam para a Fazenda Pública, à espera do advento da decadência. O fato tributável, antes oculto, acaba por desnudar-se, após cuidadoso procedimento investigativo e interpretativo, estando agora submissível à cobrança formal. Em última análise, interessa à sociedade que tais fatos sejam descobertos pelo titular do lançamento, pois só assim a exigência formalizada poderá ser convertida em arrecadação voltada para a atendimento dos anseios da sociedade.
Determinar a matéria tributável constitui o aspecto material do fenômeno tributário. Nas palavras de Sabbag (2016, p. 851), é aqui que o lançador atém-se ao “elemento nuclear do tributo exigível”. Identificados determinados fatos, é de apreciar se podem ser considerados geradores de obrigações tributárias. Neste momento são analisados os seus aspectos extrínsecos e intrínsecos, desvelados seus traços peculiares que os façam ser considerados como sujeitos à tributação, mediante o trabalho intelectivo de subsumi-los à hipótese de incidência tributária. O fato do dono de uma empresa preferir usar camisas de manga curta para trabalhar nenhum interesse isto desperta para o lançador tributário que o presencia. Porém, se este mesmo dono presta serviços previstos na Lista da LC 116/2003, tal evento suscitará a atenção do lançador do ISS.
Calcular o montante do tributo devido exprime o aspecto quantitativo do fenômeno sob estudo. Nesta etapa o lançador vai liquidar a obrigação tributária. Com a norma em punho, irá quantificar a base de cálculo, aplicar eventuais reduções, escolher a alíquota cabível no caso e, efetuadas algumas operações aritméticas, encontrar a quantia devida a título de tributo[9]. Óbvio que a IA nesta etapa trabalha com maior desenvoltura: a partir dos dados colhidos em documento fiscal eletrônico ou a partir da imputação de dados pelo próprio lançador, encontra-se o valor exatamente devido de tributo, à luz da regra aplicável ao caso concreto.
Por seu turno, identificar o sujeito passivo expressa o aspecto pessoal do fenômeno tributário. Neste viés a responsabilidade tributária é definida, isto é, contra quem deverá ser exigido o tributo. Nem sempre a sujeição passiva não se exibe tão clara assim, ensejando estudos jurídicos no sentido de saber exatamente quem deve responder pela obrigação tributária sob mira.
Propor a aplicação de penalidade já pertence ao campo do que se convencionou chamar de direito tributário penal. Em verdade, filiamo-nos à corrente que entende a circunstância do lançador apenas propor a aplicação da multa, visto que em muitas legislações processuais administrativas é possível o próprio Executivo, pelos seus órgãos de julgamento, dispensar ao apelo de equidade (entre outras causas) o pagamento da pena pecuniária, ainda que se coadune à previsão legal.
Já é realidade a IA desenvolver um script no qual muitas investigações são desenvolvidas. Isto não constitui novidade na área de tributos, pois as empresas de auditoria externa desenvolvem há muito tempo um conjunto de rotinas que visam reconhecer possíveis práticas evasivas. Sem dúvida alguma, a IA vem aperfeiçoando tais rotinas, inclusive melhorando as possibilidades de acerto na identificação de obrigações tributárias inadimplidas.
Registre-se também que lançar é atribuição privativa de autoridade administrativa, escolhida pelo legislador dentre as carreiras existentes no Poder Público, com prerrogativas para formalizá-lo conforme disposto na lei em sentido estrito. Daí as entidades tributantes costumarem possuir em sua estrutura cargos organizados em carreiras, pertencentes ao fisco, criados por lei, investidos na competência para lançar. A IA, a serviço da autoridade lançadora, pode se encarregar de formalizar in totum aqueles lançamentos menos complexos, à vista mesmo das declarações fornecidas pelo próprio sujeito passivo. Mas mesmo nestes casos o produto final oferecido pela IA passará forçosamente pelo crivo da autoridade lançadora que, mediante a aposição de chancela eletrônica, fará sua exteriorização para o mundo jurídico.
Segundo Sacha Calmon, o lançamento produz como resultados, depois do trabalho de subsunção legal, apontar a existência concreta de certa obrigação tributária em todo o seu conteúdo, ato administrativo de efeitos declaratórios que é, além de conferir presunção de liquidez, certeza e exigibilidade para que o crédito tributário esteja em condições de ser efetivamente cobrado.
Não se pode esquecer que o exercício da tributação decorre da técnica da subsunção, vale dizer, a norma, antes da prática do fato (gerador), está em repouso, em estágio de espera da ocorrência do fato tributável. Quando este advém, a hipótese de incidência se realiza, acarretando direitos, deveres e sanções para as partes envolvidas na relação jurídico-tributária. Algumas vezes a incidência é ignorada pelo sujeito passivo, cabendo ao lançador qualificar o fato como jurígeno. Noutras o sujeito passivo considera o fato como jurígeno, mas satisfaz defeituosamente a obrigação, temporal ou quantitativamente falando.
7 LANÇAMENTO AUTÔMATO
Simples tarefas aritméticas e afeitas a formulários já são hoje realizadas pela máquina, buscando constituir créditos tributários. Daí chamá-las de lançamento autômato, vale dizer, aquele em que a autoridade competente se encarrega de imputar comandos num determinado sistema computacional, após o que é formalizado o crédito tributário correspondente. O próprio sistema, a partir de uma base de dados e constatação de inconsistências que acusem evasão fiscal, reúne num único instrumento formal informações como tipo de tributo, características do sujeito passivo, descritivo da irregularidade, data do fato gerador, base de cálculo, alíquota e valor do tributo devido, de tal modo que, após a chancela eletrônica da autoridade competente, o lançamento se encontra perfeito e acabado, pronto para ser exigido do devedor tributário.
Imagine-se um contribuinte de IPI. Ele quantifica o imposto que deve em determinado período, comunica ao fisco sua dívida e antecipa o recolhimento conforme declarado, mas se valendo de uma alíquota equivocada. Com base no seu comunicado já existente no banco de dados do órgão fazendário, adota-se a rotina de cruzar tais informações com a norma jurídica a ser aplicada e já parametrizada, de tal sorte que o algoritmo identifica o erro e emite uma proposta de lançamento de ofício complementar. Após a aprovação eletrônica do lançador, fica o contribuinte ciente da cobrança adicional. Tem-se aí um lançamento autômato em plenas condições de exigibilidade.
Tarefas mais complexas podem – e devem - ser executadas pela IA. Já há condições para a máquina aprender sozinha, de acordo com as iniciativas-imputações feitas pelo ser humano. Quanto mais associações forem feitas pelas mãos do homem, mais o robot aprenderá. Todavia, ainda que a máquina inteligente possa aprender “sozinha”, em algumas situações inéditas o resultado oferecido pode não ser o adequado. Um algoritmo construído defeituosamente também poderá fazer com que o “Robotax” oferte alternativas equivocadas.
Em acréscimo, arrisca-se dizer que pelo menos durante considerável período de tempo a máquina não irá tornar dispensável o esforço humano de elaborar lançamentos tributários mais complexos. Não se trata de mera confrontação de normas, ao tempo de regência, para daí surgir um rascunho do lançamento. Este poderá surgir a partir da vasta experiência do profissional do fisco, acostumado com a lida das normas tributárias, a entender o fenômeno tributário num contexto geral, desde as suas raízes, para além de raciocínios lógicos e comandos imputados anteriormente.
O que se quer dizer é que sempre restará para o lançador algum espaço intelectivo – e muito relevante – para se fazer a interpretação da norma jurídica à luz dos métodos conhecidos. Cabe ao operador do direito, diante de um caso concreto, testar todos os modos interpretativos previstos, e dentro de cada um deles as suas versões possíveis, para daí retirar a melhor solução para resolver a demanda.
Pensemos uma norma tributária recém implantada no sistema legal brasileiro e a necessidade de adequá-la corretamente ao contexto jurídico. Exercitar uma interpretação literal pode conduzir a uma conclusão. Adotar o método lógico pode trazer conclusão diversa. Optar pela interpretação sistemática pode ensejar não só uma, mas várias conclusões diferentes das duas primeiras. E assim sucessivamente, até que todos os métodos sejam devidamente experimentados, nas suas mais variadas versões, proporcionando inúmeras conclusões distintas.
É factível que, diante de uma nova situação, sem tratamento dado pela doutrina e pela jurisprudência, uma IA muito experimentada (em tempo inestimado) ofereça tais alternativas para o lançador tributário, mas será este que, a partir delas, poderá pensar na melhor solução, de acordo com a sua vivência científica.
8 PROSPECÇÕES PRÉ-LANÇAMENTO. ANÁLISE DO MINUS E DO NIMIS TRIBUTÁRIO
Claro que descoberta a evasão fiscal, sua dimensão pode e deve ser parametrizada no aplicativo de IA para que situações semelhantes – envolvendo ou não o mesmo contribuinte – sejam identificadas e disponibilizadas para a autoridade checar, confirmar e formalizar novas exigências tributárias. Preferimos chamar tal tarefa de análise do minus tributário, vale dizer, o conjunto de verificações tendentes a detectar obrigações tributárias não adimplidas satisfatoriamente.
Com o mesmo ímpeto profissional, deve o profissional lançador, ao cabo de suas investigações, identificar pagamentos excedentes de tributo, vale dizer, obrigações tributárias adimplidas em excesso, a suscitarem pedidos de restituição.
A partir de informações fornecidas e não fornecidas pelo sujeito passivo, desenvolve a auditoria um trabalho de verificação dos dados que rodeiam o fato considerado ou a ser considerado como tributável, cruzando informações colhidas de pessoas físicas ou jurídicas, direta ou indiretamente envolvidas com o evento investigado.
Todo um trabalho de subsunção e de interpretação é executado pelo agente lançador, testando hipóteses, criando argumentos e elaborando conclusões, no sentido de saber se o fato está sujeito a tributo ou não.
Neste espeque, a autoridade lançadora atua na investigação dos diversos aspectos relacionados a fatos tributáveis, auditando quais as suas características materiais para justificar a tributação, a titularidade do sujeito ativo, a titularidade do sujeito passivo, em que instante sucedeu o fato subsumível, em qual território ocorreu o fato imponível, quais as bases numéricas da tributação. Em suma, esquematicamente o lançador responde as clássicas perguntas para formalizar o crédito tributário: qual, quem, quando, onde e quanto.
8.1. Auditoria do minus tributário.
Dentro da investigação levada a termo pelo servidor público competente, pode-se compartimentar as tarefas em etapas bem distintas:
Auditoria material dos fatos praticados: sob a ótica de determinado tributo, a autoridade de determinado ente federativo analisa fatos oferecidos e não oferecidos à tributação. O contribuinte, com base em tese jurídica bem concatenada, entende que determinado fato praticado (ou situação vivenciada) não se hospeda em determinado esquadro tipológico de tributo. Em tempos de proliferação da economia digital, onde na web várias transações são realizadas, alguns tipos de serviços surgem como necessários sem o contribuinte oferece-los à tributação. Isto passa a ser comum no campo das comunicações, onde o prestador ora oferece o serviço à tributação do ISS, ora o oferece à tributação do ICMS, ora não o oferece para tributo algum. Compete à autoridade lançadora construir um fio lógico de raciocínio multidisciplinar (valendo-se por vezes de máximas jurídicas, contábeis e econômicas) no intuito de conferir os fundamentos da tributação. Define-se o âmbito material de incidência e dentro dele as bases para a cobrança do tributo correspondente. Bem verdade que, concluindo-se pela tributação e optando-se por lançamento de determinada modalidade tributária, isto pode suscitar conflitos de competência, pelo fato de uma outra autoridade lançadora, integrante dos quadros de outro ente tributante, entender que o tributo exigível é outro. Mas isto constitui uma questão a ser enfrentada no tópico seguinte. Por enquanto, nesta técnica de auditoria, a pergunta a ser respondida é se o fato é tributável ou não.
Auditoria do sujeito ativo: faceta de auditoria que procura examinar quem de direito deve se postar no polo ativo da relação jurídico-tributária. E esta questão não envolve somente entes federativos de esferas distintas (União com Estado, Município com Estado, União com Município); envolve também pessoas federativas de mesma órbita (Estado A contra Estado B, Município W contra Município Z). Aqui a questão toca de perto a conhecida “guerra fiscal”, dentro da qual os entes tributantes contendem entre si para capturar mais arrecadação, não só criando benefícios fiscais que atraiam empresas a produzirem mais riqueza em seu território, como também construindo interpretações normativas que coloquem a seu favor a titularidade ativa do crédito tributário. Um caso interessante que bem ilustra este embate são as importações de mercadorias e a fixação de quem é o verdadeiro destinatário para efeito de identificação do sujeito ativo do ICMS[10].
Auditoria do sujeito passivo: no outro lado da relação obrigacional reside o sujeito passivo. Definido que o fato gerador existe e que determinado tributo pertence a certa pessoa federativa, será preciso agora identificar quem deve pagá-lo. Nem sempre a titularidade passiva está diretamente definida. Nas hipóteses de sucessão empresarial, não se sabe ao certo contra quem se deve cobrar o tributo. Independente dos mandamentos contidos nos arts. 129 e segs. do CTN, necessário todo um esforço de análise de contratos e de movimentações financeiras de recursos para saber se houve, por exemplo, a prática de ato simulatórios, deixando a responsabilidade por pagar o tributo para pessoa desprovida de qualquer patrimônio, em flagrante prejuízo ao erário. Aqui há espaço para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a partir da qual a autoridade fiscal precisará demonstrar com robustez os desvios de conduta para ter êxito no seu lançamento. Note-se que, a rigor, a operação de lançar neste caso se mostra relativamente simples, de modo que um sistema computacional singelo poderá cuidar disto sem maiores problemas. O que requer burilado esforço intelectual é toda a construção argumentativa que o antecede.
Auditoria temporal do fato gerador: neste ponto interessa saber em que momento ocorreu a hipótese de incidência. Isto se mostra importante para saber se, em caso de tributo não pago ou recolhido a menor, a partir de quando ele se mostrou devido, instante em que devem ser contados e calculados os acréscimos tributários – multas, juros e demais consectários previstos. Definido o momento da ocorrência do fato imponível, será preciso atentar também para os prazos de pagamento contidos na legislação tributária, cuja fixação independe de lei em sentido estrito, em certas ocasiões modificados constantemente. Apesar de neste ponto o “Robotax” ter atuação bem abrangente, bastando para tanto “alimentá-lo” das alterações legislativas e prazos respectivos, aqui ainda há espaço para a interação humana, sobretudo para saber se o momento de incidência está corretamente registrado nos documentos e escrita fiscal.
Imagine-se que a legislação aceda a prazos mais elásticos de recolhimento da antecipação parcial do ICMS por parte de contribuinte que compre de empresa optante do “Simples Nacional”. Na fase investigatória, a autoridade administrativa concluiu que o fornecedor, à época da ocorrência dos fatos geradores, não poderia ser mais integrante do sistema simplificado. Assim, o recolhimento do imposto estadual era para ter sido efetuado em data anterior, de modo que caberiam aí os acréscimos tributários.
Auditoria espacial do fato gerador: compete ao lançador saber em qual âmbito territorial se deu o fato imponível para saber inclusive qual modalidade tributária deve ser reclamada. A prestação do serviço de transporte serve de boa configuração para mostrar o nível de debate que isto pode trazer. No intuito de definir qual imposto deva incidir no serviço de transporte, se ICMS ou ISS, será necessário saber onde a prestação se iniciou e onde terminou. Se teve origem e fim no mesmo Município, há que se cobrar a exação municipal. Se teve origem e fim em Municípios distintos, é de se cobrar a exação estadual. É preciso saber ainda quantos prestadores estavam envolvidos no transporte da mercadoria, até que fosse entregue ao destinatário último, se houve subcontratação ou redespacho. Tudo isto passa por uma análise dos contratos feitos entre os prestadores e tomadores e como, espacialmente, os serviços sucederam.
Análise semelhante pode acontecer na esfera da União, em nível das transações internacionais, no intuito de saber quem será o sujeito ativo beneficiário de tributo incidente sobre a renda percebida.
Auditoria quantitativa do fato gerador: Definida a existência de determinado fato como tributável, quem é o ente beneficiário, quem são os responsáveis, onde se deu a sua constatação e a partir de quando passou o tributo a ser devido, resta saber quanto o devedor deve pagar de tributo. Tal exercício passa pela análise da base de cálculo e da alíquota, na maioria das vezes, bastando saber reconhecer o tipo de operação (ou situação jurídica) e ter domínio da legislação aplicável. Também aqui o “Robotax” se sente bastante confortável. A partir das informações legislativas e dos dados apostos nos documentos fiscais, o sistema inteligente calculará o tributo devido. Ainda assim haverá espaço para uma interpretação totalmente dependente do cérebro humano, pois nem sempre o fato tributável se mostra quantitativamente da mesma forma em que se encontra nos registros fiscais. As rendas “maquiadas” servem como boa referência. Para se valer de tributação minorada, aplicável a empresas de pequeno porte, muitas vezes a pessoa jurídica se esconde em organizações interpostas, exatamente para não revelar o lucro real efetivamente percebido.
8.2. Auditoria do nimis tributário.
Nos pedidos de restituição é preciso fazer uma verificação para saber se o valor que o sujeito passivo pretende receber de volta corresponde efetivamente à quantia que deve sair do erário. Não se pode esquecer que quando um recurso ingressa nos cofres públicos a título de tributo mas na verdade não o é, pode e deve ser devolvido para o contribuinte, pois do contrário haverá a configuração do enriquecimento ilícito da parte do sujeito ativo.
Afora tais averiguações típicas em repetição de indébito, se o ente tributante verifica, no curso da ação fiscal, haver anormalidades de recolhimento em prejuízo para o contribuinte, é de seu dever comunicá-lo do pagamento em excesso e orientá-lo a formular o pedido de devolução ou proceder à compensação automática com valores futuros devidos, conforme critérios estabelecidos em lei.
Assim, os tipos de auditoria desenvolvidos para identificar o minus tributário servirão para detectar o nimis tributário. No desenrolar da ação fiscal pode-se constatar que fatos não tributáveis foram considerados como tributáveis, se o ente tributante fiscalizador não é o beneficiário do tributo que ingressou em seu patrimônio, se determinada pessoa recolheu o tributo sem ser o sujeito passivo, se a quantia paga excedeu o montante devido, seja por erro na composição da base de cálculo, seja por erro na fixação da alíquota. Em todas estas hipóteses surge o direito à restituição, traduzível na devolução em dinheiro ou na forma de crédito para encontros futuros de contas. Neste particular, é o “Robotax” cooperando em favor do sujeito passivo.
A IA que for projetada para identificar ausência ou recolhimentos a menor de tributo provavelmente não terá dificuldades para apontar valores a serem devolvidos para o contribuinte. Por questões de justiça fiscal, deve o sujeito passivo pagar rigorosamente o montante que deve de tributo. Nem um centavo a menos, nem um centavo a mais.
9 TESES CRIATIVAS DO LANÇADOR TRIBUTÁRIO
Sem a pretensão de dar contornos de estudo de caso, aqui neste tópico a ideia é trazer algumas situações jurídicas identificadas pelos lançadores federais, estaduais e municipais e que não estavam claramente previstas em algoritmos que pudessem detectar sozinhos um flanco de evasão tributária, à luz de raciocínios multidisciplinares (jurídicos, contábeis, econômicos etc.) desenvolvidos em torno do fenômeno tributário.
São teses relativamente novas que, independente de contarem ou não com o aval dos tributaristas ou do Poder Judiciário, mostram quão ainda é importante a construção intelectiva direta do ser humano na formação do lançamento.
Escolhemos uma tese para cada órbita tributante. Vamos a elas.
9.1. Esfera estadual.
9.1.1. Transferências Interestaduais.
Uma questão assaz interessante que não poderia ser alcançada na época por qualquer algoritmo, dado o seu ineditismo, dizia respeito à estipulação da base de cálculo nas transferências entre estabelecimentos comerciais da mesma empresa situados em Estados distintos.
Segundo determina o art. 13, §4º, I, da LC 87/96, diploma institutivo das normas gerais de ICMS, a base imponível nas transferências interestaduais envolvendo na origem estabelecimento que não fabricasse a mercadoria, é o valor correspondente à entrada mais recente.
Neste diapasão, a filial situada no Estado de origem costumava tributar esta transferência levando em consideração o valor consignado na nota fiscal de aquisição mais recente, do modo como vinha estampado no documento fiscal como valor da operação. Com o destaque do ICMS nestas bases, o estabelecimento baiano recebedor da mercadoria fazia a apropriação do crédito fiscal no mesmo montante, à vista do mecanismo da não cumulatividade. Por anos a tributação – débitos fiscais destacados e créditos fiscais utilizados – figurava-se deste jeito.
Por força de trabalho intelectivo desenvolvido por lançadores tributários estaduais, a apropriação dos créditos admitida alcançou o valor da entrada mais recente, mas agora passou a excluir do seu cômputo os tributos recuperáveis, a exemplo da PIS/COFINS não cumulativas, de sorte que a auditoria passou a fazer o estorno dos créditos desta parte excedente.
Teve o estudo apoio em conceitos jurídicos societários e contábeis, a partir dos permissivos contidos nos arts. 109 e 110 do CTN, notadamente pelo fato de que o valor que corresponde à entrada mais recente é o valor equivalente ao custo de aquisição da mercadoria a ser incorporada ao estoque da empresa, apropriável na conta “mercadorias”, com exclusão dos tributos recuperáveis, por não fazerem parte do patrimônio da empresa.
Cumpre assinalar que, por ser uma questão relativamente recente, até o presente momento encontrou posicionamentos judiciais favoráveis e desfavoráveis no segundo grau judicial, restando ainda encontrar o crivo consolidado dos Tribunais Superiores. Não obstante, assinale-se que com base nesta tese fiscal muitos recolhimentos foram efetuados em favor do Estado de destino.
Veja-se a pretexto de ilustração a seguinte ementa administrativa:
“PROCESSO - A. I. Nº 206891.0035/15-6
PUBLICAÇÃO - INTERNET: 08/11/2018
2ª CÂMARA DE JULGAMENTO FISCAL
ACORDÃO CJF Nº 0293-12/18
EMENTA: ICMS. CRÉDITO FISCAL. UTILIZAÇÃO INDEVIDA. OPERAÇÕES INTERESTADUAIS EFETUADAS COM BASE DE CÁLCULO SUPERIOR À LEGALMENTE PREVISTA. Para fins de utilização de créditos fiscais, nas transferências interestaduais entre estabelecimentos da mesma empresa, deverá ser adotada a base de cálculo apurada de acordo com o valor da entrada mais recente no estabelecimento remetente, com a exclusão do PIS/COFINS e dos impostos recuperáveis. Mantida a Decisão recorrida. Recurso NÃO PROVIDO. Decisão por maioria. Bem verdade que na atualidade o STF, em sede de repercussão geral (ARE 1.255.885-MS), acabou por entender que não se deve fazer tributação alguma nas transferências interestaduais, nos moldes da Súmula 166 do STJ, de modo que o estorno dos créditos fiscais não seria parcial e sim total”.
Em contrapartida, os recolhimentos feitos a este propósito ensejam em princípio pedido de restituição. Mas isto não retira o raciocínio de que, a partir de um conceito que comportava interpretação jurídica diversa, vale dizer, o que verdadeiramente significava “valor correspondente à entrada mais recente”, encontrou o lançador tributário espaço para uma nova interpretação, com solução diversa daquela encontrada até então na doutrina e na jurisprudência. Pouco provavelmente tal alternativa de estorno parcial estaria prevista pela IA. Não podemos esquecer que o algoritmo precisa ser arquitetado pelo seu imputador, a partir de “receitas” qualitativas (textos de lei, decisões judiciais etc.) e quantitativas (dados das notas fiscais, informações econômico-fiscais etc.), de posse das quais não tinha o elaborador do algoritmo a cogitação de retirar da base de cálculo das entradas mais recentes os tributos recuperáveis.
9.1.2. “Marketing Direto”.
Um outro exemplo muito marcante no âmbito estadual diz respeito ao denominado “marketing direto”, no qual, por força de convênio, cabe ao remetente situado no Estado de origem fazer a retenção do ICMS, por força de substituição tributária, quando as mercadorias eram vendidas para pequenos revendedores pessoas físicas.
Para desonerarem-se de fazer a tributação antecipada, as empresas de “marketing direto” simulavam vendas para pessoas jurídicas que apenas funcionavam como simples intermediários, pessoas que apenas prestavam o serviço de entregar a mercadoria encomendada pelas pessoas físicas, estas sim as verdadeiras compradoras. A empresa de marketing direto não fazia a retenção e a empresa “distribuidora” simulava uma venda para consumidor final, apenas destacando o ICMS da operação própria, embora mesmo assim poucas providenciassem o seu recolhimento. Quando se intentava a execução fiscal, nenhuma delas possuía lastro patrimonial suficiente para responder pela dívida.
Aparentemente, a cadeia parecia normal, dentro da qual a empresa atacadista vendia o produto para o varejista que por sua vez o revendia para o “consumidor final”, embora este último fosse um pequeno revendedor. Não obstante a operação figurar como de “marketing direto”, sujeita à ST por força da legislação tributária, os documentos fiscais eram emitidos como se assim não funcionasse. Algoritmo nenhum teria sido construído para alcançar estas simulações. Não fosse o trabalho investigativo desenvolvido pela auditoria, lastreado em fatos ocultos e em normas jurídicas, fatalmente o Estado não veria a recuperação do crédito tributário.
Em prol da tese construída pelo fisco, cite-se a ementa do seguinte julgado administrativo, proferido no Conselho Administrativo do Estado da Bahia:
“PROCESSO - A. I. Nº 206912.0029/10-1
PUBLICAÇÃO INTERNET - 14/09/2012
2ª CÂMARA DE JULGAMENTO FISCAL
ACÓRDÃO CJF Nº 0244-12/12
EMENTA: ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. MARKETING DIRETO. VENDA PORTA A PORTA. FALTA DE RETENÇÃO E DE RECOLHIMENTO DO ICMS ST. Nos termos do Convênio ICMS 45/99 c/c o art. 379, §1º, do RICMS/BA, cabe ao remetente, na qualidade de sujeito passivo por substituição, efetuar a retenção e o consequente recolhimento do imposto. Constatada a falta de retenção e de recolhimento do ICMS/ST na saída, em operação interestadual, de mercadorias encaminhadas a destinatários do Estado da Bahia que distribuem os produtos a revendedores para venda porta a porta neste Estado, resultando nas exigências de ICMS/ST. Infração comprovada em face da apresentação de significativo conjunto de provas, não elidido pelo sujeito passivo. Rejeitado pedido de Diligência ou Perícia Fiscal. Infração caracterizada. Afastadas as preliminares de nulidades. Decisão unânime. Não acolhida a preliminar de decadência. Decisão por maioria. Mantida a Decisão recorrida. Recurso NÃO PROVIDO. Decisão unânime”.
9.2. Esfera federal.
Um caso muito comum na órbita federal e que exige trabalho investigativo e esforço de interpretação é o relacionado à classificação fiscal: um fabricante nacional de certo produto resolve enquadrá-lo em determinada posição na NCM e assim ele é tratado em toda a cadeia de produção e consumo. A intenção é qualificá-lo numa posição fiscal que o deixe numa alíquota menor de IPI do que aquela onde verdadeiramente deveria estar.
De acordo com os dados das notas fiscais transmitidos pelo industrial, os algoritmos estavam preparados para calcularem o citado imposto federal da forma apresentada pelo contribuinte. É possível até que num primeiro momento fosse realizada uma vistoria de prepostos fiscais federais ao processo produtivo e nada de anormal fosse detectado.
Posteriormente, já passados alguns anos, o fisco federal constata que o produto comercializado pela indústria possui características físico-químicas que o enquadra em outra posição da TIPI, submetida a uma carga tributária maior de IPI. O lançamento de ofício exigindo a complementação do imposto federal teria que ser formalizado.
Por seu turno, pode ocorrer o reverso, ou seja, esta vistoria federal conclua que em verdade a mercadoria fabricada deve ser posicionada em outra classificação fiscal, sujeita a uma alíquota de IPI menor do que aquela adotada pela indústria. Neste caso, impõe-se que o contribuinte seja orientado a formular consulta, garantir a tributação menor para o futuro e postular a restituição do excesso pago no passado.
Traga-se apenas como ilustração a decisão administrativa abaixo:
“Acórdão: 3201-007.797
Número do Processo: 10611.000998/2009-54
Data de Publicação: 19/03/2021
Ementa:
ASSUNTO: CLASSIFICAÇÃO DE MERCADORIAS. Data do fato gerador: 21/02/2008, 26/02/2008 PROCEDIMENTO FISCAL. CONSTATAÇÃO DE ERRO DE CLASSIFICAÇÃO FISCAL. ALTERAÇÃO DE CRITÉRIO JURÍDICO. INOCORRÊNCIA. Não configura contradição ou ofensa da proteção à confiança sobre fato gerador não averiguado em importações anteriores. O lançamento fiscal após regular procedimento que resulte em constatação de erro de classificação fiscal não configura alteração de critério jurídico, não havendo que se falar em violação ao artigo 146 do Código Tributário Nacional. CLASSIFICAÇÃO FISCAL. ÍNDIGO BLUE SOLUÇÃO 40%, REDUZIDO, COLOUR INDEX 73001. NCM 3204.15.90. O produto descrito como corante Dystar Índigo Vat 40% solução (índigo blue reduzido, colour index 73001) classifica-se no código 3204.15.90 da Nomenclatura Comum do Mercosul, pela aplicação das Regras Gerais de Interpretação 1, 6 e Regra Geral Complementar 1 do Sistema Harmonizado. MULTA POR CLASSIFICAÇÃO FISCAL INCORRETA. CABIMENTO. APLICAÇÃO DA SÚMULA CARF Nº 161. A multa de 1% sobre o valor aduaneiro prevista no artigo 84 da Medida Provisória n° 2.158-35/2001, deve ser aplicada sempre que for apurada a classificação incorreta da mercadoria importada, observados os limites impostos pela legislação de regência. Aplica-se a multa por classificação fiscal incorreta, prevista no art. 84, I, da Medida Provisória nº 2.158-35/01, por força da Súmula CARF nº 161. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA AO CONTROLE DAS IMPORTAÇÕES. IMPORTAÇÃO DESAMPARADA DE GUIA DE IMPORTAÇÃO, LICENÇA DE IMPORTAÇÃO OU DOCUMENTO EQUIVALENTE. ATO DECLARATÓRIO NORMATIVO COSIT N.º 12/1997. Para a aplicação da excludente de ilicitude veiculada pelo Ato Declaratório Normativo Cosit nº 12/97, a descrição da mercadoria na Declaração de Importação deve ser correta e completa, com todos os elementos necessários a sua identificação e ao enquadramento tarifário pleiteado, e desde que não se constate intuito doloso ou má-fé por parte do declarante”.
9.3. Esfera municipal.
Terreno fértil para admitir novas maneiras de se interpretar a norma jurídica reside no ISS. Veja-se o caso dos serviços bancários: conforme Súmula 424 do STJ, é possível o lançador de tributos identificar serviços que, por sua natureza jurídica e não por sua simples denominação, permitam a incidência do imposto municipal.
Tal entendimento foi corroborado pelo Plenário do STF, ao fixar a seguinte tese, em sede de repercussão geral, Tema 296: É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva. (RE 784439, Rel. Rosa Weber, julgado em 29/06/2020).
Apesar da premissa estar sumulada, o que já daria à IA indicativos para encontrar possíveis focos de evasão num estabelecimento bancário sob fiscalização, a questão é que a decisão de lançar ou não demanda exame dos fatos, os tipos de serviços prestados pela instituição financeira, à lume inclusive da normatização das tarifas por parte do Banco Central.
O caso ora trazido serve para demonstrar que a tarefa do lançador humano jamais poderá ser abandonada, pois mesmo que a fiscalização seja repetida no mesmo estabelecimento bancário, onde o serviço prestado disfarçado na contabilidade já está parametrizado pelo “Robotax”, nada impede que o contribuinte considere a receita como não tributável, dando-lhe uma outra conformação formal contábil, de tal forma que a máquina “inteligente” não terá condições de alcançá-los.
No precedente que se traz o valor contabilizado foi classificado como “Recuperação de encargos e Despesas” e como “Outras Rendas Operacionais”, não oferecida à tributação do imposto municipal, por significar meros ingressos de caixa, para a primeira conta, ou atividade complementar não traduzível em serviços, para o segundo. No entanto, assim decidiu o Tribunal Administrativo do Rio de Janeiro:
“RECURSO VOLUNTÁRIO Nº 13.224
Recorrente: BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A.
Recorrido: COORDENADOR DA COORDENADORIA DE REVISÃO E JULGAMENTO TRIBUTÁRIOS
Relator: Conselheiro NEWTON SILVEIRA PALHANO DE JESUS
Representante da Fazenda: IVAN DALTON ASCHER ASCHEROFF
Ementa:
ISS - PRELIMINAR - NULIDADE DE AUTO DE INFRAÇÃO Não constitui nulidade, por cerceamento de defesa, o Auto de Infração que contém todos os elementos exigidos pela legislação. Inteligência do artigo 40, combinado com o artigo 68, do Regulamento do Processo Administrativo-Tributário, aprovado pelo Decreto nº 14.602/96. Preliminar rejeitada. Decisão unânime. ISS - INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS - SERVIÇOS BANCÁRIOS Estão sujeitos à tributação pelo ISS, os serviços prestados pelas instituições financeiras cujas características e natureza os identifiquem, independentemente de sua designação contábil, com aqueles serviços elencados nos incisos constantes do art. 8º da Lei nº 691/84 e listados pela Lei nº 3.691/03. Recurso voluntário improvido. Decisão unânime”.
Naquela oportunidade, fundamentou o Relator:
“... Se é uma prestação de serviço bancário, não estando tais serviços protegidos por isenção ou imunidade expressa, nem tão pouco excepcionados ou explicitados como reservados à União ou ao Estado, e alguma tarifa há que os remunere, em princípio trata-se de SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA e assim da competência municipal, ainda mais quanto identificados na sua prática, com a tipicidade das atividades explicitadas na legislação do Município. Entender diferentemente seria abrir-se espaço para evasões de toda ordem e pretexto. Sabem os que militam no mundo dos tributos que não há atividade com efeito econômico – salvo as exceções legais expressas – que não se submeta a algum tipo de tributação federal, estadual ou municipal. E no caso sob exame, que tributação seria esta senão aquela própria de serviços de qualquer natureza? Ora se há uma lista de categorias e espécies que os define e enquadra, ainda que taxativa, não significa que seus itens são de natureza pétrea e absolutamente literais em sua expressão vocabular, e não meramente exemplificativos e conceituais daquela categoria, e que, portanto, tenham que ser entendidos literalmente, ou seja, no restrito campo de cada palavra em si e não no seu sentido de abrangência descritiva”.
Na mesma linha de pensamento, veja-se também esta decisão administrativa de Minas Gerais:
“Data da publicação: 17/02/2018
Processo nº: 01-105.317/15-06
Contribuinte: Tratemi Transporte Terraplenagem e Empreendimentos Ltda.
Relator: Henrique Machado Rodrigues de Azevedo
Redator: Andréia de Oliveira Goseling
EMENTA
ISSQN - TVF/AITI - PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO - ACÓRDÃO Nº 10.298/3ª NQUADRAMENTO NA LISTA DE SERVIÇOS TRIBUTÁVEIS EM RAZÃO DA NATUREZA DOS SERVIÇOS EFETIVAMENTE PRESTADOS - SUBITEM 7.21 - LOCAL DE INCIDÊNCIA - ESTABELECIMENTO PRESTADOR - MANUTENÇÃO DO LANÇAMENTO - INDEFERIMENTO DO PEDIDO - CONFIRMAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA. O enquadramento dos serviços prestados deve obedecer ao critério da especialidade e, pelas provas analisadas, não restaram dúvidas quanto à identidade existente entre os serviços cuidados no presente caso e o subitem 7.21, que se destina às atividades de apoio à extração mineral. - Ainda que se diga que a natureza das atividades possa ser identificada como atividade de transporte ou de engenharia, se prestadas no contexto da atividade de extração mineral, deverá o enquadramento procedido ser realizado no subitem 7.21. - Diversos serviços como sondagem, perfuração, concretagem, cimentação, escavação e terraplanagem estão previstos tanto no subitem 7.02 como no subitem 7.21. Se no contexto da construção civil, hidráulica ou elétrica, são equiparados à execução de obras e recebem o mesmo tratamento tributário, entretanto, se no contexto da exploração mineral, afastam-se desse tratamento tributário, integrando o rol das atividades cujo ISSQN é devido no local do estabelecimento prestador, regra geral na qual entram os serviços do subitem 7.21.
- No caso concreto, os serviços tributados foram todos realizados para a mineradora, dentro de suas minas, e sem os quais a finalidade da atividade de mineração não seria alcançada. O fato de em algum momento haver “construção” de algum elemento para ajudar na prospecção e extração de recursos minerais, não faz com que tal atividade-meio possa ser enquadrada como obra de construção civil, pois não é um fim em si mesma, não tendo o condão de permanente incorporação da obra ao solo. Justifica-se, assim, o enquadramento dos serviços no subitem 7.21 da Lista deServiços anexa à Lei Municipal n° 8.725/2003. - O subitem 7.21 não é destinado apenas às atividades de extração mineral propriamente ditas, mas também a outros serviços relacionados à exploração de recursos minerais. - Por tudo que restou provado, mister o indeferimento do presente Pedido de Reconsideração, com a consequente confirmação da decisão proferida no Acórdão 10.298/3ª”.
Eis uma pequena amostra de que o Robotax, diante destas situações, pode ter deixado escapar das “garras” dos algoritmos um diagnóstico exato, por mais “sabedoria” e “aprendizagem” que tenha acumulado. Quanto mais agora, época repleta de novidades na área da economia digital, onde se destacam complexas transações econômicas envolvendo inúmeros agentes econômicos, às vésperas de uma possível reforma tributária no país, na qual se cogita criar um imposto sobre bens e serviços – IBS[11].
10. CONCLUSÃO.
Ao longo dos anos o funcionário do fisco foi evoluindo profissional e intelectualmente. Nos primórdios do direito tributário no Brasil, tal servidor não passava de mero arrecadador de impostos, um simples agente público que se encarregava de coletar os valores devidos pelos contribuintes. Não era oportunizado a ele o preparo necessário para questionar os recolhimentos e pensar cientificamente o fenômeno tributário.
Hoje os cargos públicos dos lançadores tributários são ocupados por pessoas dotadas de enorme capacitação em áreas que enxergam o tributo sob diversos prismas. O bacharel em direito está acostumado a lidar com a norma e seus métodos de interpretação e meios de integração; o economista entende melhor o fato imponível dentro das teorias econômicas e projeta melhor o comportamento da arrecadação; o contabilista tem um olhar familiarizado com a escrita da empresa; o analista de sistemas consegue supervisionar a construção dos softwares de acordo com os desejos da Fazenda Pública; o administrador pensa o serviço público fazendário com um olhar estratégico, planejando as ações que devam se antecipar a movimentos evasivos tributários; o engenheiro pensa o algoritmo que deva “rodar” no programa de IA. Enfim, a lista de especialistas labutando com tributo é infindável. Isto só do lado do fisco. Do lado do contribuinte, há advogados super-especializados, consultores tributários de nomeada, empregados de setor fiscal cada vez mais competentes.
Por sua vez, as transações e situações jurídicas multiplicaram-se na vida moderna, a web servindo de veio para fluírem as mais intrincadas negociações. Novas formas de incidência estão por surgir, necessitando da visão aguçada de profissionais ligados ao tributo, tanto do lado do fisco como do lado do sujeito passivo[12].
Porém, não há dúvidas de que o uso disseminado da IA para identificar evasões fiscais e promover lançamentos tributários fará diminuir a necessidade dos entes tributantes recrutarem via concurso público um grande contingente de profissionais[13].
Mesmo assim, será difícil no campo tributário prescindir-se do trabalho intelectual interpretativo do lançador tributário, mesmo que a IA avance consideravelmente - o que é desejo de todos -, mesmo que a legislação ganhe contornos simplificados, tanto no cumprimento das obrigações principais como das acessórias, como também é aspiração da sociedade brasileira.
Segundo Zilveti, os algoritmos de IA têm encontrado alguma dificuldade para replicar parte das habilidades intelectuais humanas, distantes dos processos cognitivos avançados, como o raciocínio analógico, base da prática jurídica. Logo, os trabalhos de alta complexidade jurídica ainda são pouco afetados[14].
A IA cada vez mais dará suporte à administração tributária para efetivação de lançamentos diretos e de baixa e média complexidades jurídicas. Mas sempre haverá espaço para o surgimento de novos pontos de vista construídos em alicerces intelectivos mais sofisticados. Aí entra o esforço criativo do ser humano que, abandonando a execução de tarefas com soluções já pensadas pela IA, dedicará mais tempo para construções mais complexas e de grande repercussão econômica. Não pode o trabalho criativo do lançador tributário ser suprimido, mas, ao contrário, merece ser incentivado, deixando que a máquina cuide dos diagnósticos rotineiros e já conhecidos.
Noutras palavras: a IA está sendo extremamente útil para a gestão tributária, tanto do lado do sujeito ativo como do lado do sujeito passivo. Contudo, por mais elaborada que seja –e a tendência é ficar mais aprimorada com o aumento da interface com diversas fontes de alimentação -, sempre o ser humano estará um passo adiante para, com sua mente criativa, novas construções irem sendo descobertas, tanto ensejando novos lançamentos, da parte do ente tributante, como ensejando planejamentos tributários mais eficientes, da parte do contribuinte.
Do lado do fisco, ponto central deste estudo, o lançador tributário precisará estar cada vez mais capacitado e dispor de mais tempo para pensar o fenômeno tributário sob uma ótica multifacetada, dedicado a investigar e a se antecipar às novas práticas de evasão e a construir teses jurídicas bem concatenadas para fazer prevalecer o fim maior da sua missão republicana, qual seja, ajudar a proporcionar em favor do erário os recursos necessários para prover as vicissitudes da população[15].
Embora existam afirmações como a de Nick Bostrom, filósofo sueco dos quadros da Universidade de Oxford, ao profetizar que "há 90% de possibilidades de que, entre 2075 e 2090, existam máquinas tão inteligentes como os humanos" (IBERDROLA, p. 4) ou, como a de Stephen Hawking (IDEM), que afirma que as máquinas ultrapassarão totalmente os humanos em menos de 100 anos, arrisca-se dizer que a IA está longe de nos converter em seres obsoletos.
E, ainda dentro deste exercício de futurologia ao qual permitimo-nos fazer por mera especulação, se a IA antes era mera peça de ficção científica e atualmente traduz inegável realidade, nada impedirá também que o ser-humano, hoje usuário de apenas uma pequena parte da sua capacidade cerebral, acabe descobrindo fórmulas que possam aproveitá-la em 100%, levando a humanidade para patamares cognoscitivos inimagináveis.
No presente momento, a IA e seus algoritmos acusam algumas deficiências gravíssimas, produzindo resultados incorretos e manipuladamente arquitetados, além de serem usados como ferramenta de rígido controle e vigilância dos cidadãos por parte das autoridades constituídas. Já há iniciativas oficiais com o fito de criar agências reguladoras para uso disciplinado da IA na Internet[16].
IA e atividade criativa humana deverão ter convivência pacífica. O “Robotax” estará a serviço do lançador tributário, do contribuinte e não competirá com estes. Pelo contrário: estes últimos passarão a ter mais disponibilidade para construir os seus pensamentos, pensar profundamente os fatos tributáveis, agir inteligente e conscienciosamente à vista da norma jurídica e sua consequente subsunção ao caso concreto, sem perder de vista o cenário sócio-econômico de cada momento. Os desafios continuarão bem instigantes para os polos da relação tributária. Todavia, se o “Robotax” tem o seu processo criativo muito limitado, por lhe faltar a consciência, lançador e contribuinte continuarão aprimorando a sua criatividade, desvendando fronteiras cognoscitivas até então desconhecidas.
REFERÊNCIAS
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Forense, 1996.
BIELSA, Rafael. Compendio de Derecho Publico Constitucional, Administrativo Y Fiscal. Buenos Aires: Buenos Aires, 1952.
CANTO, Gilberto de Ulhoa. Temas de direito tributário, pareceres e estudos. Rio de Janeiro: Financeiras, 1955.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1998.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Forense, 2011.
DELOITTE. Artificial Intelligence – Entering the world of tax. Orlando: Deloitte, 2019. Disponível em: https://www2.deloitte.com/global/en/pages/tax/articles/artificial-intelligence-in-tax.html. Acesso em 22 abr. 2021.
IBERDROLA. Estamos cientes dos desafios e das principais aplicações da Inteligência Artificial? Disponível em: https://www.iberdrola.com/inovacao/o-que-e-inteligencia-artificial. Acesso em 14 mar. 2021.
IBPT. Mais de 700 normas são editadas diariamente no Brasil, desde a Constituição de 88. Curitiba: IBPT, 2015. Disponível em: https://ibpt.com.br/mais-de-700-normas-sao-editadas-diariamente-no-brasil-desde-a-constituicao-de-88/. Acesso em 14 jan. 2021.Mais de 700 normas são editadas diariamente no Brasil, desde a constituição de 88
KLUWER WOLTERS. Qual o impacto da inteligência artificial na contabilidade? São Paulo: Kluwer Wolters, 2019. Disponível em: https://www.wolterskluwer.com.br/blog/qual-o-impacto-da-inteligencia-artificial-na-contabilidade/. Acesso em 21 mar. 2021.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2003.
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 2012.
O’NEIL, Cathy. Weapons of math destruction. How big data increases inequality and threatens democracy. New York: Crown, 2016.
SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2016.
SEGUNDO, Hugo de Brito Machado. Inteligencia artificial e tributação: a que(m) os algoritmos devem servir? São Paulo: Conjur, fev. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-fev-13/consultor-tributario-inteligencia-artificial-tributacao-quem-algoritmos-servir. Acesso em: 24 abr. 2021.
ZILVETI, Fernando Aurelio. As repercussões da inteligência artificial na teoria da tributação. São Paulo: IBDT, dez. 2019. Disponível em: https://ibdt.org.br/RDTA/43-2019/as-repercussoes-da-inteligencia-artificial-na-teoria-da-tributacao/#:~:text=A%20intelig%C3%AAncia%20proporcionada%20pela%20IA,tribut%C3%A1ria%20entre%20os%20contribuintes%2031. Acesso em: 23 abr. 2021.
[1] Expressão colhida de trabalho elaborado por Fernando Aurelio Zilveti, intitulado de “AS REPERCUSSÕES DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA TEORIA DA TRIBUTAÇÃO”.
[2] José Casalta Nabais, em sua obra O Dever Fundamental de Pagar Impostos, já ensinava: “Ao contrário do que uma concepção, alicerçada na longa e persistente tradição positivista do direito fiscal, vem afirmando, os impostos não podem ter por limite apenas um conjunto de exigências de natureza formal polarizadas (quando não monopolizadas) no princípio da legalidade fiscal. Sobretudo num momento em que o estado fiscal atinge a dimensão que se conhece e a lei é cada vez mais alheia a todo o lastro de racionalidade que a assegurava como a expressão dum direito justo, é imprescindível o apelo a toda uma trama de princípios materiais. Daí que a análise dos limites constitucionais do dever de pagar impostos não se fique apenas nos clássicos limites formais ligados à ideia de segurança jurídica, antes abarque também um significativo leque de limites materiais garantes da justiça fiscal” (p. 683).
[3] Veja-se também esta definição trazida pela Deloitte: “AI is a very broad term comprising a variety of components. These include cognitive and machine learning (such as intelligent personal assistants like Siri and Cortana and at a much more simplistic level grammar and spell-checkers) and robotic learning where a person shows the machine how to perform a task and it then mirrors the steps taken (for example automatic invoice scanning and processing)”.
[4] Conforme se colhe da afirmação de Fernando Aurelio Zilveti.
[5] Interessa à Receita Federal saber quanto de receita bruta declarou uma pessoa jurídica para determinado Estado e vice-versa.
[6] O sistema Watson foi desenvolvido pela empresa americana IBM, para responder perguntas em um programa de TV americana, no ano de 2011. Esse sistema acabou por vencer o desafio proposto pelo programa, analisando 200 milhões de páginas de livros e respondendo em segundos as perguntas que lhes foram feitas.
[7] No entendimento de Cathy O’Neil.
[8] Lançamento Tributário.
[9] Hugo de Brito Machado (2013 – p. 177) lembra que, em se tratando de tributos fixos, o lançamento não precisa percorrer esta etapa de quantificação, nos casos dos tributos fixos.
[10] Questão recentemente decidida pelo STF, na esteira do Tema 520, que, em sede de repercussão geral, fixou a seguinte tese: “O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio.” (ARE 665.134 RG/MG).
[11] Já está tramitando no Congresso Nacional proposta do governo instituindo contribuição tendo o mesmo campo de incidência.
[12] Informações pesquisadas apontam que, a título de exemplo, em outubro de 2015 centenas de novas normas tributárias eram editadas diariamente, segundo o IBPT.
[13] Aliás, com o emprego da IA, a diminuição dos postos de trabalho está sendo uma realidade em muitos campos produtivos, a ponto de estudiosos defenderem que os robots se tornem “sujeitos” de direito, com responsabilidade para pagamento de contribuições para a seguridade social, por exemplo, como uma espécie de compensação para os cofres da previdência proverem as necessidades dos desempregados e desassistidos.
[14] Hugo de Brito Machado Segundo pontua que as máquinas podem executar algumas tarefas com eficiência maior que a dos humanos, mas ainda está distante, se é que chegará, o dia em que pensarão melhor do que nós, por que e para que desempenhar essas tarefas.
[15] Walter Kluwer concorda com este posicionamento, do ponto de vista de outra importante profissão: “No entanto, em vez de substituir os contadores, a IA assumirá determinadas tarefas para que os humanos possam se concentrar em atividades mais complexas, que exigem melhores insights criativos que as máquinas não tem a capacidade de realizar. (...)Já os humanos estarão livres para assumir as tarefas para as quais são mais adequados, como aconselhamento sobre planejamento tributário, discussão de operações e de caminhos para a eficiência da empresa e a otimização de seus resultados, entre outras”.
[16] Vale registrar referências ao documentário denominado Coded Bias, dada a sua importância para o tema aqui explorado, dirigido por Shalini Kantayya, disponível nas plataformas de streaming, produzido em 2020 (portanto, bem recente), no qual são denunciadas situações em que os algoritmos se mostram bem falhos, notadamente no campo do reconhecimento facial de pessoas de cor negra e discriminação de seleção curricular privilegiando o gênero masculino.
Doutor em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa - UAL (diploma validado pela UFPE). Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia – Uneb. Auditor Fiscal do Estado da Bahia. Conselheiro Julgador do Consef. Autor do livro “Contribuinte e Fisco no Processo Administrativo” (Ed. Juruá – 4 Tomos).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORGADO, Vladimir Miranda. Robotax, Lançamento Tributário e Restituição: Rumo à Simbiose Jurídica. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jun 2021, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56839/robotax-lanamento-tributrio-e-restituio-rumo-simbiose-jurdica. Acesso em: 22 nov 2024.
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