ANDRESSA PEREIRA DE SOUZA
LETÍCIA NASCIMENTO SOARES DA SILVA
(coautoras)
RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de analisar os impactos negativos que a flexibilização da jornada de trabalho desencadeou para o sistema jurídico brasileiro à luz do princípio do não retrocesso social. Dessa forma, demonstrou a evolução histórica dos direitos trabalhistas; definiu, sob a visão de doutrinadores, os princípios do não retrocesso social e da dignidade da pessoa humana, assim como suas correções para a proteção dos direitos dos trabalhadores. Posteriormente, exemplificou os aspectos danosos que essa modificação trouxe para os obreiros, ao tornar maleáveis as regras anteriormente positivadas que enunciavam a duração da jornada de trabalho, os intervalos intrajornadas, horas extras e bancos de horas. Para tanto, a pesquisa tem natureza aplicada de abordagem qualitativa, e foram utilizadas como metodologia específica as bases teóricas de revisão bibliográfica, tais como doutrinas, jurisprudências, Constituição Federal e a Consolidação das Leis Trabalhistas. Ao final, perceberam-se as incongruências dos dispositivos alterados pela reforma trabalhista em face do princípio do não retrocesso social.
PALAVRAS-CHAVE: Flexibilização. Retrocesso. Jornada de Trabalho.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve histórico das relações de trabalho. 3. A Lei 13.467/2017 da reforma trabalhista e o surgimento dentro do contexto brasileiro. 4. O princípio da dignidade da pessoa humana e sua importância nas relações de trabalho. 5. O princípio do não retrocesso social e sua importância nas relações de trabalho. 6. A flexibilização da jornada de trabalho – Lei 13.467/2017; 6.1. Jornada de trabalho 12x36; 6.2. A inserção do artigo 611-B e o desrespeito ao princípio do não retrocesso social; 6.3. O instituto da compensação de horários e a afronta ao princípio do não retrocesso social. 7. Conclusão. 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A temática a ser desenvolvida tem o intento de analisar os impactos negativos da flexibilização da jornada de trabalho advinda da Reforma Trabalhista em contraponto ao princípio do não retrocesso social, demonstrando brevemente a evolução dos direitos trabalhistas através de um cotejo histórico, das relações de trabalho estruturadas no princípio em questão e da dignidade da pessoa humana. Além disso, buscou-se verificar como a jornada 12X36, a inserção do art. 611-B da CLT, e as novas modalidades de compensação de horas suprimiram direitos adquiridos no decorrer da historicidade pelos trabalhadores. O que ensejou o descumprimento das normativas sobre o assunto previstas na Constituição, Consolidação das Leis Trabalhistas e jurisprudência pacificada.
Pela inserção da Lei 13.467/2017, Lei da Reforma Trabalhista ser recente, a temática vem sendo bastante tratada pelos estudiosos do Direito do Trabalho, tudo porque se aborda sobre a disponibilidade de direitos trabalhistas sob a justificativa de uma necessidade de adequação daqueles à atual situação econômica do país. Desta forma, exigindo que a ciência do direito busque reorganizar as relações de trabalho.
Nada obstante, em uma primeira etapa, este artigo buscará abordar um breve histórico evidenciando a vagarosa evolução do Direito do Trabalho. Em seguida, procura-se demonstrar a gênese da Reforma Trabalhista e o contexto social a qual ela se justificou. Em ato contínuo, procura-se definir os princípios da Dignidade da Pessoa Humana e do Não Retrocesso Social sob a ótica do que nos alude a Constituição, jurisprudências e doutrinadores.
Após essas definições na primeira parte do artigo, buscar-se-á evidenciar os pontos nocivos da legitimação do regime 12X36, a exclusão dos institutos da duração de trabalho e intervalos do rol de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, através da inserção do Art. 611-B na CLT e as novas modalidades de compensação de horas.
Em face desses institutos que foram prejudicados pela Reforma Trabalhista, pela simples e desenfreada flexibilização da jornada de trabalho, o que se nota é uma colisão contra o princípio do não retrocesso social. E, além disso, verifica-se também que a Reforma Trabalhista não cumpriu com seus objetivos. Pelo contrário, sua homologação representou um retrocesso nas relações de trabalho, já que elide alguns direitos, deixando outros à deriva de supressão por livre negociação. Em busca dos objetivos pretendidos, a pesquisa tem natureza aplicada e utiliza da abordagem qualitativa e da metodologia de revisão bibliográfica.
2 BREVE HISTÓRICO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO
A palavra “trabalho” tem sua origem em um verbete latino “Tripallium” – designação de um instrumento que tinha como objetivo a tortura. Este objeto era constituído por três (tri) paus (pallium). Diante disso, originalmente, “trabalhar” significava ser torturado no tripallium.
Durante muito tempo o trabalho foi visto como uma atividade indigna. Nas sociedades antigas, o trabalho manual era desempenhado por escravos ou prisioneiros de guerra., enquanto a produção intelectual era atividade privativa da elite. Dessa forma, não existia a ideia de remuneração propriamente dita como se conhece atualmente.
Na Idade Média, a sociedade era hierarquizada: os servos e os trabalhadores encontravam-se na base da pirâmide social. As ferramentas e recursos, que Marx chamou de Meios de Produção, estavam sob o domínio de poucos e estes passavam tais conhecimentos por meio de herança familiar.
Em meados do século XVIII, na Inglaterra, por conta do desenvolvimento do Iluminismo, do acúmulo de capital e do desenvolvimento científico, abriu-se espaço para o surgimento de uma indústria. As atividades que antes eram unificadas nas mãos de um indivíduo, agora passam a ser divididas com vários outros, com intuito de otimizar a produção de bens. Nessa perspectiva, o capitalismo industrial buscava baratear a sua produção e lucrar cada vez mais. Mas para isso, precisava aproveitar-se progressivamente do trabalhador com intuito de que se produzisse de maneira crescente e com o menor gasto possível. Neste contexto é que surgem todas as mazelas dos operários.
Com a modernização dos meios de produção, os artesãos passaram a perder espaço, uma vez que eles, para construir um objeto, por exemplo, levavam meses, enquanto uma fábrica para construir o mesmo utensílio não levava um terço do tempo devido a sua linha de produção. Nesta conjuntura, os artesãos se viram obrigados a ingressar como operários em fábricas para garantir sua sobrevivência. É neste momento, que há o crescimento populacional nas grandes cidades em busca de empregos. Aproveitando-se do cenário, há uma grande queda nas condições de trabalho, com a consequente degradação da vida dos trabalhadores, que foram submetidos a situações precárias de trabalho e salários baixos. Durante este período, o trabalho masculino ficou em segundo plano, dando espaço para trabalho infantil e feminino, tudo porque, com a mecanização das tecelagens, as máquinas necessitam de obreiros habilidosos e não de força física, o que os dedos ágeis das crianças e mulheres executavam de forma eficiente e eficaz.
As condições críticas, por muito tempo, foram determinantes para as relações de trabalho. Os assalariados perceberam que era necessário demonstrar suas insatisfações com as condições impostas pelos patrões. Assim, os obreiros se organizaram para lutar por justiça, o que deu início às greves e aos movimentos sindicais, todos com o intuito de melhorar as circunstâncias em que se encontravam.
Em consonância do que fora dito, Eric Hobsbawm (2010, p.340), historiador britânico nos alude:
O movimento trabalhista foi uma organização de autodefesa, de protesto e de revolução, onde a classe dos trabalhadores pobres ganhava coerência e propósito para organizarem suas reivindicações.
Em consequência às ações dos assalariados, os direitos começaram a surgir com o fito de saciar a sede de melhorias anteriormente questionadas no que tange ao desempenho das atividades laborais. Assim, as relações de trabalho começaram a se estabelecer mediante regulamentos entre empregados e empregadores.
Diante de tantos embates, no dia 10 de dezembro de 1945, a Organização das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos do Homem. A partir deste fato, iniciou-se uma série de elaboração de leis a fim de resguardar a Dignidade da Pessoa Humana, para isso, foram geridas normas para coordenar as relações de trabalho.
Após a Segunda Guerra Mundial, grandes modificações nas relações de trabalho tornaram a surgir. É importante ressaltar a barbárie advinda deste grande conflito, o que desencadeou uma forte ideologia de recuperação das economias destruídas, e impulsionou as nações em busca de relações de trabalho voltadas para uma convicção de melhoria e salvação do mundo, ou seja, defesa de direitos protetivos dos trabalhadores.
Neste passo, as relações de trabalho ficaram sob a ótica de ajudar na recuperação das nações. Em decorrência disso, o Estado se absteve de sua inércia em relação ao trabalhador e passou a tomar posicionamento diante das relações de trabalho. Com isso, surgiu um ideal de justiça social e, com a ajuda de uma grande Instituição Social, a Igreja, diversas mudanças significativas começaram a acontecer. Documentos como a Encíclica Laborem Exercens, de 1981, de João Paulo II e a Encíclica Populorum Progessio, de Paulo VI corroboraram para que nos anos seguintes, a ideia de defesa aos interesses sociais se solidificasse, assim, impulsionando as primeiras concepções de direitos trabalhistas.
Em meados de 1919, a Organização Internacional do Trabalho é prevista no Tratado de Versalhes. A Declaração Universal de Direitos Humanos, criada em 1948, traz, dentro de sua temática, diversos direitos trabalhistas. No Brasil, após vários anos de escravatura, a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, aboliu a escravidão. Este acontecimento impulsionou uma grande massa a buscar outras formas de obtenção de seus mantimentos para subsistência.
Em 1934, iniciada a política de Getúlio Vargas, surge a primeira Constituição a ter normas próprias que versem sobre o Direito do Trabalho. A Consolidação das Leis Trabalhistas, de 1° de maio de 1943, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452 reuniu e organizou múltiplas normas acerca do Direito do Trabalho. Esta última, considerada um marco na legislação trabalhista, já que foi o estabelecimento de uma lei clara e de proteção no Brasil, responsável por normatizar o direito material e processual do trabalho, de forma que as regras ficassem mais acessíveis. Vale ressaltar que o contexto dessa época foi de uma grande evolução no país, marcada por um aumento exponencial de empregados e de forma proporcional aumentava a necessidade de medidas protetivas para o bem-estar dos trabalhadores.
O Presidente Getúlio Vargas também tinha o objetivo de se legitimar como um líder que se importava com as minorias, aquelas acometidas pelas mazelas sociais. E dentro deste grupo, estavam os assalariados. Neste ensejo, viu-se que era necessária a unificação das leis que versavam sobre os direitos dos laboriosos. E assim foi feito, com a promulgação da CLT que garantiu a demanda dos trabalhadores na época.
Posteriormente, adveio a Constituição Federal de 1988, denominada por Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã. Após um período de ditadura militar, onde vários direitos foram suprimidos, uma grande parte da população ansiava por liberdade, pelo usufruto de seus direitos sociais. Nesse sentido estabeleceu o art. 6° da Constituição Federal:
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Esses direitos são nas palavras de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2014, p.247):
Aqueles que constituem as liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por objetivo a melhoria das condições de vida dos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social.
Ainda nesta conjectura dos direitos sociais, José Afonso da Silva (2005, p. 286), versa:
Os direitos sociais são prestações positivas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais.
Coadunando-se a este enredo, o que se nota é que o direito ao trabalho está neste rol dos direitos sociais, assim se tornando uma cotização de direitos tutelados pelo Estado. Desta forma, cabe ao Estado proteger e assegurar que estas aquiescências não sejam diminuídas, ou até mesmo, retiradas por completos de seus detentores. Ainda em paralelo com a legislação constitucional, têm-se os princípios que regem esta legislatura, como por exemplo, o do não retrocesso social e da dignidade da pessoa humana, estes dois com objetivo de resguardar o mínimo existencial.
Deste modo, a Constituição Brasileira de 1988, em seus artigos de 6° ao 11, discorre sobre os direitos sociais, e nos artigos 193 ao 211, denota-se que a finalidade é que tais direitos sociais não retrocedam, mas que cresçam, a nível de que sejam assegurados perante a sociedade os direitos já conquistados. Em contrapartida, a flexibilização da jornada de trabalho traz em sua essência uma fragilidade que impacta de maneira tão negativa a vida do assalariado, de forma que, por exemplo, quando se legitima a jornada 12X36, o que se observa, nas palavras da doutrinadora Claudia José Abud (2008, p. 144):
Não é difícil calcular o prejuízo individual e coletivo que esse regime causa. Além de colocar em risco a saúde e a segurança do trabalhador, a população beneficiária direta desse trabalho fica a mercê de profissionais fadigados pelo excesso de labor.
Diante de todo esse cenário evolutivo exposto, o que se tem é uma angustiante e gradativa conquista histórica por direitos que protejam os trabalhadores. No entanto, a Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, que alterou a Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT adveio como uma mitigação e retrocesso de inúmeros direitos dos empregados conquistados sob uma flagelação disfarçada de possível solução ao alto nível de desemprego que assola o Brasil nos últimos anos.
3 A LEI 13.467/2017 DA REFORMA TRABALHISTA E SURGIMENTO DENTRO DO CONTEXTO BRASILEIRO
O objetivo das leis trabalhistas é escassear a falta de emprego e tornar as condições de trabalho mais benéficas possíveis. Quando a população tem emprego, adquire um poder de compra e colabora com a economia do país. Em contrapartida, quando o país passa por uma grande recessão, uma das formas que as empresas têm de se manter é cortando postos de trabalho. Com isso, muitos funcionários são demitidos e não há novas contratações.
Em meados de 2016 e 2017, este era o cenário do Brasil. Sob a justificativa de um grande índice de desemprego foi proposta uma reforma na legislação trabalhista. Neste contexto, surge o Projeto de Lei n. 6.787, apresentado em dezembro de 2016, na Câmara dos Deputados pelo poder executivo, encabeçado pelo então Presidente Michel Temer. O assunto da PL apresentava uma grande heterogeneidade, porém, seu processamento no Congresso foi bem rápido. E em julho de 2017, esta PL se torna a Lei n. 13.467, intitulada de Reforma Trabalhista.
Ressalta-se que a Lei em questão desde sua concepção, já era criticada fortemente por representantes da sociedade, doutrinadores da seara trabalhista e até mesmo órgãos governamentais. Tomando como exemplo, em uma de suas Notas Técnicas, o Ministério Público do Trabalho, apontou diversos dispositivos que afrontam a Constituição Federal Brasileira de 1988, sendo alguns deles os que se seguem: a) flexibilização da jornada de trabalho, b) redução da responsabilidade do empregador, c) negociação individual para quem ganha acima de onze mil reais, d) prevalência do negociado sobre o legislado, e) supressão do papel dos sindicatos com representantes dos trabalhadores em empresas com mais de duzentos empregados, f) redução das horas de descanso do trabalhador, g) medidas de restrição ao acesso à Justiça do Trabalho.
Em suma, a Lei da Reforma Trabalhista modifica as relações de trabalho. Esta mudança na legislação influência nas qualidades de empregos ofertados, isto é, no nível assecuratório que o assalariado tem a partir de seu elo empregatício. Afinal, com a influência do contexto socioeconômico do país, as normas que regem as relações de emprego estão diretamente conectadas com as condições que os empregadores têm para admitir mais laboriosos.
4 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA IMPORTÂNCIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
Depois das duas grandes Guerras do século XX, as atrocidades vividas pela população fizeram com que os líderes mundiais percebessem a necessidade da criação de normas internas que mantivessem a paz e a convivência harmônica entre os povos. A dignidade da pessoa humana surge então como princípio norteador das relações fundamentais entre os povos. Dessa forma, o respeito pelas diferenças e interesses começa a ser observado. E a partir deste contexto, em 1948 foi promulgada pela Organização das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual versa sobre diversos direitos e garantias fundamentais.
A autora René Ariel Dotti (2006, p.7), define este contexto como:
A inesquecível herança do genocídio, com milhões de vítimas e a destruição de valores morais e espirituais da humanidade foram, entre outras, as consequências trágicas da 2ª Guerra Mundial, provocada pelo delírio da conquista de povos, pelo programa de destruição racial e pelas doutrinas totalitárias do nazi-facismo. Para substituir a chamada Liga das Nações dezenas de países criaram a Organização das Nações Unidas (ONU), tendo como objetivos fundamentais: a)manter a paz e a segurança internacionais; b)promover relações amistosas entre os Estados; c) funcionar como centro polarizador de diálogo e de aproximação entre as nações e os povos para a solução de problemas internacionais de natureza econômica, social, cultural e política; d)efetivar o respeito aos direitos humanos.
Esta Declaração serviu como base para elaboração a posteriori de outras normas no âmbito internacional e nacional. Pode-se citar como exemplo, o Pacto de São José da Costa Rica, o qual em seu art. 1° exige o respeito aos direitos e liberdades individuais, garantindo, assim, o livre exercício a toda pessoa que esteja sujeita à jurisdição do país que aderiu a este dispositivo legal. Na seara nacional, o jurista Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 60) define o princípio da dignidade humana da seguinte forma:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.
Coadunando-se a este princípio, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 1°, inciso III, coloca como um de seus fundamentos a Dignidade da Pessoa Humana. Além disso, o texto Constitucional elenca seus objetivos fundamentais no art. 3° e verifica-se que estes estão embasados na Dignidade da Pessoa Humana, quando todos convergem ao intento da promoção do bem-estar do indivíduo.
No campo trabalhista, este princípio deve estar presente como alicerce basilar nas relações de trabalho. Afinal, são condições dignas de trabalho que as normas do trabalho precisam buscar. Nas palavras de Gabriela Delgado (2006, p. 206), entende-se que:
No desempenho das relações sociais, em que se destacam as trabalhistas, deve ser vedada a violação da dignidade, o que significa que o ser humano jamais poderá ser utilizado como objeto ou meio para a realização do querer alheio. Completa a autora que o sistema de valores a ser utilizado como diretriz do Estado Democrático deve concentrar-se no ser humano enquanto pessoa.
Mediante o exposto, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um dos alicerces mais importantes para a concretização do bem-estar social. Quando esta dignidade é respeitada, ela impede que o homem seja submetido a quaisquer situações que os coloquem em posições deploráveis. Nesta seara, observa-se que o supramencionado princípio é imperativo, desta forma, não sendo passível de “coisificação” para fins de retrocesso. Sendo assim, é indispensável que para a fiel execução deste princípio, não se pode abrir brechas para a formulação de normas, como a Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017), que tenham o interesse de subjugar este norte constitucional em detrimento de interesses deturpados. Pelo contrário, é necessária a valoração do trabalho, através da fortificação do labor digno e o respeito a este dispositivo como direito fundamental e social inerente a qualquer ser humano.
5 O PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO SOCIAL E SUA IMPORTÂNCIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
O princípio do não retrocesso social, instituído por volta de 1970 na Alemanha, trata-se de um conceito presente na Constituição Brasileira de 1988 e tem por objetivo servir como um obstáculo para que o legislador não se utilize de condutas exorbitantes com intuito de retirar direitos adquiridos. No entanto, a Lei n.13.467/2017, intitulada de Reforma Trabalhista, traz em suas disposições um enaltecimento exacerbado da livre iniciativa, esta que só contribui de forma negativa para precarização das relações de trabalho e, consequentemente, para o desrespeito a direitos essenciais dos trabalhadores.
A ruína das condições de trabalho é indiscutível a partir da promulgação desta Lei. O que se consta é uma supervalorização das negociações diretas entre empregador e empregado, flexibilizando os direitos de forma retrógrada. Tomando como um simples exemplo, têm-se a alteração normativa que afastou a duração de trabalho e intervalo intrajornada do rol de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, deixando-os, assim, passíveis de negociação por meio de convenção coletiva ou acordo coletivo, conforme artigo 611-B, da CLT. Quando o legislador deixa de fora esses dois institutos, tornando-os lícitos de negociação, afronta o princípio do não retrocesso social, uma vez que, vai contra o que o artigo 7°, inciso XXII da Constituição Federal, nos orienta. Senão, vejamos in verbis:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Nesse mesmo sentido, outros doutrinadores explicam o significado e a aplicação do princípio tratado neste artigo. Senão, vejamos os ditames de alguns doutrinadores. Para Maurício Godinho Delgado (2017, p. 65), este princípio determina que:
Regras internacionais de direitos humanos – inclusive trabalhistas – hão de traduzir somente confirmações ou avanços civilizatórios no plano interno a que se dirigem, não podendo prevalecer caso signifiquem diminuição de padrão protetivo em contratempo com as regras internas.
Já o Ministro Celso de Mello, em certa ocasião, em uma de suas deliberações proferidas no Agravo em Recurso Extraordinário nº 639.337, discorre:
O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.
O constitucionalista português J. J. Canotilho (1998, p. 320) redige uma inteligente ressalva sobre o princípio em questão. Vejamos o que ele nos diz:
A ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição da (contrarrevolução social) ou da (evolução reacionária). Com isto, quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional, e um direito subjetivo.
Em suma, nota-se que o preceito em questão é ponderoso na análise da flexibilização da jornada de trabalho, proposta pela Lei n. 13.467/2017, uma vez que esta se opõe à finalidade daquele, onde, junto a outros princípios, têm o objetivo de proteger o mínimo existencial. Desta forma, corroborando para a manutenção de todos direitos já adquiridos. Sendo assim, todas as medidas legislativas que vão contra este princípio, infringem o patamar social, ora conquistado pelos trabalhadores ao longo do tempo. Ao fazer a análise histórica, percebe-se que os direitos conquistados pelos labutadores demandaram muito esforço, já eles eram submetidos às jornadas de trabalhos exageradas e em situações desumanas. E quando se abre espaço para negociações no que se refere ao tempo à disposição do empregador, percebe-se uma clara tentativa de reduzir estas conquistas. É de conhecimento geral que a jornada de trabalho acima de 8 (oito) horas diárias eleva significativamente a exaustão, desse modo, atingindo diretamente a integridade física e mental dos obreiros.
6 A FLEXIBILIZAÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO – LEI 13.467/2017
A chamada Reforma Trabalhista, sob um arranjo falacioso de adequação do cenário trabalhista com a criação de postos de trabalho, para diminuir o alto índice de desemprego, que rodeia atual situação econômica do país, foi aprovada, em 13 de julho de 2017, como a Lei n.13.467, que instituiu novos parâmetros nas relações de trabalho.
O intuito dessa “modernização” na Consolidação das Leis Trabalhista era de adequar o cenário trabalhista à crise econômica passada pelo Brasil, por isso, estas novas regras se faziam necessárias para minimizar os impactos nos postos de trabalho. No entanto, o que se tem é uma legislação “renovada” que precariza os direitos adquiridos da classe trabalhadora, desta forma, desprestigiando princípios constitucionais que regem o mínimo existencial do trabalhador, como o do não retrocesso social e o da dignidade da pessoa humana.
O princípio da dignidade da pessoa humana, conforme Alexandre de Moraes (2008, p. 123), enuncia que:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz a pretensão por meio das demais pessoas constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo o estatuto jurídico deve assegurar, de modo que excepcionalmente possam ser feitas limitações aos exercícios dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto ser humano.
Consoante a este preceito, tem-se o do não retrocesso social, já enunciado em tópicos anteriores. Juntos, esses princípios regem tanto as limitações ao legislador na produção da norma, para proteger os direitos dos indivíduos, como a interpretação dos juristas conforme os fins que a Constituição Federal promove. Nesse sentido, ao verificar vários dispositivos da nova Lei, o que se vê é um retrocesso ao antigo regime, este que se evade completamente dos ideais de justiça social, de dignidade e de proteção a direitos fundamentais, para priorizar interesses no âmbito do poderio econômico. O resultado disso é uma inobservância dos direitos basilares dos trabalhadores, e talvez a anunciação da volta à barbárie.
A “reforma” da referida Lei modifica algumas matérias que já eram tratadas na antiga Consolidação e inova em outros conteúdos. Neste seguimento, observa-se modificações e inovações nos pontos que tratam sobre a jornada de trabalho do empregado, tais como compensações de horários, horas extraordinárias, escalas de trabalho 12X36, intervalos intrajornadas e duração da jornada de trabalho, os quais foram reformulados para uma clara flexibilização das normas de proteção da adequada jornada de trabalho.
6.1 Jornada de Trabalho 12X36
Uma inovação que incontestavelmente atinge a classe trabalhadora é a legitimação da jornada de trabalho 12X36 horas, que consta no Art.59-A, da CLT, nos seguintes termos:
Em exceção ao disposto no Art. 59 desta Consolidação, é facultado às partes, mediante acordo coletivo escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para o repouso e alimentação.
É inquestionável, como já dito antes, que jornadas de trabalhos acima de 8 (oito) horas diárias são prejudiciais à saúde física e mental do trabalhador. Em concordância desta ideia, Jorge Luiz Souto Maior (2008) se posiciona da seguinte forma:
O revezamento 12 X 36 fere, frontalmente, a Constituição e a Lei. A lei não permite trabalho em horas extras de forma ordinária. E, se houver trabalho em hora extra, a jornada não pode ultrapassar a 10 horas. No regime de 12 X 36 há trabalho frequente além de oito horas diárias, portanto, horas extras (o fato de ser remunerado como tal, ou não, não afeta a realidade, pois horas extras é a hora que ultrapassa o limite máximo da jornada normal) e há trabalho com jornada superior a 10 horas. O descanso a mais que se dá, com a folga no dia seguinte, primeiro não retira a ilegalidade e segundo, sob o aspecto fisiológico, não repõe a perda sofrida pelo organismo, ainda mais sabendo-se, como se sabe, que no dia seguinte o trabalhador não descansa, ocupando-se de outras atividades e mesmo vinculando-se a outro emprego. Uma jornada. Uma jornada de 12 horas vai contra todos os preceitos internacionais de direitos humanos.
Ainda ensejando no pensamento contrário a este tipo de jornada de trabalho, tem-se o Ministro do TST, Maurício Godinho Delgado, que nos esclarece em uma de suas manifestações a respeito deste tipo de jornada de trabalho:
Registre-se, contudo, que há forte corrente jurisprudencial que tem ampliado tais limites diários, ao conferir validade às jornadas de plantão, do tipo 12 horas diárias por 36 horas de descanso ou até mesmo 24 horas trabalhadas por 72 horas de descanso. Apesar do reconhecimento jurisprudencial, entende o sobredito doutrinador, que tal regime "cria riscos adicionais inevitáveis à saúde e segurança daquele que presta serviços, deteriorando as condições de medicina, higiene e segurança no trabalho (em contraponto, aliás, àquilo que estabelece o art. 7º, XXII, da Carta Magna).
Em acordo com os doutrinadores citados, defende-se a ilegalidade da jornada de trabalho 12X36, dita como excepcional. Sabe-se que as horas a mais dadas como “folga” ao trabalhador, não serão de fato usufruídas para este fim. No dia posterior, o trabalhador não repousa, uma vez que, o assalariado em busca de melhorias e de até mesmo suplementar sua renda, por conta da precariedade salarial e de submissão as novas regras que norteiam as relações de trabalho, poderá vincular-se a outros laços de trabalho, para então assim, garantir seu sustento. Outra consequência deste tipo de regime é a fadiga adquirida por estes profissionais, por extrapolarem as horas normais de trabalho estipuladas no artigo 7°, inciso XIII da CRFB/ 1988 e art. 58 da CLT. É notável que trabalhar além das horas máximas determinadas pelas normas atinge a saúde do empregado. O cansaço físico e psicológico torna-se cada vez maior, e não é reposto pela “folga maior” dada a estes operários.
A Consolidação das Leis Trabalhista em seu art. 59, caput e § 2°, assegura o liame máximo de 10 horas nos regimes de horas extras e compensação de horários. Nesta seara, a doutrinadora Cláudia Abud (2008, p.135) dá a seguinte ressalva:
O § 2° do art. 59 da CLT estabelece regras para a compensação de horários e fixa o limite de 10 horas diárias. Sendo norma de ordem pública e caráter imperativo, não podendo ter sua aplicação afastada mesmo que realizada por acordos ou convenções coletivas.
Pelo exposto, o regime 12x36 é um insulto a todos os princípios e normas legais que regem as relações de trabalho. Sendo inconstitucional ao se chocar com matérias expostas no art. 7°, inciso XIII da Constituição Federal e art. 59, § 2°, da CLT. Assim, além de causar estabilidade jurídica, promove nos trabalhadores inúmeros prejuízos, sejam eles de ordem física, cognitiva ou até mesmo social, quando os priva de um convívio social, por conta de uma jornada de trabalho que excede o normatizado em lei.
6.2 A inserção do artigo 611-B e o desrespeito ao princípio do Não Retrocesso Social
Outro tópico da Lei n. 13.467/2017 que vale um enfoque é a incorporação do art. 611-B, parágrafo único, conforme a seguir, in verbis:
Constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos seguintes direitos:
Parágrafo único. Regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo.
O presente artigo transcrito acima, em seu caput, procura inibir quaisquer tentativas de supressão ou redução de alguns direitos, nele elencados em um rol taxativo. No entanto, em seu parágrafo único, enuncia que, a duração de trabalho e os intervalos não fazem parte deste rol, o que claramente, deixa estes dois institutos à deriva de negociação por meio de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho. Acrescenta-se, então, que este dispositivo confronta o princípio tema deste artigo, já que não se sustenta de forma alguma em outros dispositivos legais. Pelo contrário, esta possível flexibilização, através de acordo ou convenções coletivas, transgride o dispositivo constitucional do art. 7°, inciso XIII da Constituição Federal e art. 58, da própria Consolidação das Leis Trabalhistas, que estabelecem a duração normal do trabalho não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais.
Ainda, esta transigência sobre duração normal de trabalho e intervalos, quando deixa estes institutos passíveis de negociação, vai contra a súmula 437, item II, do TST, que aponta:
Jornada de trabalho. Horas extras. Intervalo intrajornada (para repouso e alimentação). Lei 8.923/1994. CLT, art. 71, caput e § 4º. CF/88, ART. 7°, XXII.
II – É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (CLT, ART 71 e CF/88, 7º, XXII), infenso à negociação coletiva.
Neste contexto, percebe-se a incompatibilidade de normas, já que esta súmula desvalida as cláusulas que diminuem o intervalo intrajornada. Sob a égide do princípio do não retrocesso social que coíbe quaisquer feituras que tenham o intento de suprimir ou retirar direitos já adquiridos com a positivação dos direitos sociais, com isso, atina-se que o dispositivo do art. 611-B, parágrafo único é incontestavelmente inconstitucional. Esta bárbara tentativa do legislador de desamarrar os institutos da duração normal do trabalho e intervalos do rol de medidas assecuratórias de higiene, saúde e segurança do trabalho mostra-se ausente de fundamento quando se põe em tela o que nos guia o inciso XXII, do art. 7° da Carta Magna. Vejamos, então, na íntegra, este artigo:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
As consequências de abrir precedência para a negociação de pontos que já são regrados por leis Constitucionais e pacificadas na legislação internacional podem ser avassaladoras. Nestes ditames, Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado (2017, p. 269) dissertam:
Entretanto, na direção antitética ao padrão constitucional prevalecente e ao princípio da adequação setorial negociada, apresenta-se o parágrafo único do art. 611-B. A interpretação gramatical e literalista do novo preceito legal pode abrir seara de negligência com a saúde, o bem-estar e a segurança dos indivíduos inseridos no mundo do trabalho, além de comprometer as igualmente imprescindíveis dimensões familiar, comunitária e cívica que são inerentes a qualquer ser humano. Se não bastasse, essa censurável interpretação também comprometeria o combate ao desemprego, desestimulando a criação de novos postos laborativos pelas entidades empresariais.
Portanto, observando os dispositivos legais e o que os doutrinadores difundem, percebe-se que a possibilidade de aumento de jornada de trabalho e a supressão de intervalos por meio de acordos ou convenções coletivas de trabalho são nocivas à vida do trabalhador, pois capazes de lesar direitos já conquistados pelos obreiros. Além de atingir a seara jurídica, afetam sua saúde corpórea, cognitiva e social. Neste ensejo, sua produtividade laboral também é alcançada por conta do cansaço, assim, deixando-o mais vulnerável a acidentes de trabalho. Logo, é indubitável o retrocesso que este dispositivo traz em seu bojo, na proporcionalidade que subtrai do trabalhador a prerrogativa de ter seu direito de duração de trabalho atrelada às normas de higiene, saúde e segurança do trabalho.
6.3 O instituto da compensação de horários e a afronta ao princípio do Não Retrocesso Social
Outra mudança que atinge profundamente o que a Carta Magna e a jurisprudência nos guia é a modificação no instituto de compensação de horários. Este instrumento, antes mesmo da promulgação da Lei 13.467/2017, já era regido pelo artigo 7°, inciso XIII da CF/88, que nos versa da seguinte forma:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Ensejando neste contexto, a súmula 85 do TST confirma o que a Constituição Federativa determinava, pacificando, assim, o entendimento que esta compensação somente era legal se fosse instituída por norma coletiva do trabalho.
No entanto, a Lei da Reforma Trabalhista, em seu art. 59, conflita grosseiramente com o da doutrina constitucional e da jurisprudência pacificada, senão vejamos o extrato deste dispositivo:
Art. 59. A duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017) (Vigência).
§ 2° Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.164-41, de 2001)
§ 5° O banco de horas de que trata o § 2o deste artigo poderá ser pactuado por acordo individual escrito, desde que a compensação ocorra no período máximo de seis meses. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017) (Vigência)
§ 6° É lícito o regime de compensação de jornada estabelecido por acordo individual, tácito ou escrito, para a compensação no mesmo mês. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017) (Vigência).
Obstante ao elucidado pelo artigo, o que se observa é uma legislação que submete o funcionário a uma frágil posição, uma vez que, ele é o “galho fraco” da relação de trabalho. Nesse sentindo, seu patrão pode obrigar o empregado a fazer horas extras, sob a égide da compensação de horas, onde esse empregador se imiscuirá de pagar pelas horas a mais trabalhadas pelo laborioso, assim tendo vantagem de uma mão de obra disponível por mais tempo, e o funcionário, apenas tendo sua jornada de trabalho suplantada em um período máximo de seis meses, para o caso de acordo individual escrito.
Em pior situação, estão aqueles abatidos pela insegurança jurídica, que o § 6° do mencionado art. 59 traz em seu escopo. Por validar os acordos de forma tácita, o empregado além de ser prejudicado trabalhando mais e tendo apenas uma recompensa não equivalente ao seu esforço, fica a mercê da fragilidade jurídica, pois, o instrumento do acordo tácito é bem mais penoso de se provar satisfatoriamente.
Nesta lógica, Maurício Godinho Delgado (2017, p. 1001), informa que:
A posição acolhedora da validade do simples acordo tácito é francamente minoritária na cultura justrabalhista brasileira. Afinal, já mesmo antes da Constituição de 1988 a jurisprudência dominante insistia na necessidade de pactuação pelo menos por escrito do regime de compensação, não acatando sua inserção meramente tácita no contrato (antigos Enunciados 108 e 85, TST).
Evidencia-se algumas circunstâncias que podem acometer o empregado. Uma das situações é a compensação anual. O trabalhador que acumular horas em seu banco de horas fica a mercê da autorização do empregador para a diminuição ou até usufruto de folga de um dia de trabalho. É sabido que o patrão pode orientar que essa compensação só seja feita próximo de completar o tempo máximo para compensação, que é de um ano, quando for realizado acordo ou convenção coletiva de trabalho. Caso este prazo seja ultrapassado, a empresa teria que pagar como horas extras, quer dizer, com o acréscimo de 50%. Porém, há de se notar que este prazo temporal é longo, o que prejudica o trabalhador no âmbito pecuniário. Pois, este funcionário trabalharia, produziria para seu patrão, mas apenas seria recompensado muito tempo depois, o que fere as regras de proteção ao trabalhador.
Para aqueles que optarem pelo acordo individual tácito, conhecido vulgarmente como “de boca”, estão à deriva de uma grande instabilidade jurídica. Tudo porque este tipo de pacto é mais oneroso de ser provado. Muitas vezes necessita, inclusive, de testemunhas para corroborar com a alegação do empregado. E estas testemunhas, na grande parte, são outros empregados, que já se sentem moralmente coagidos a não participar de litígios em favor de seus colegas de trabalho, com o receio de perder seus empregos na empresa, ora reclamada.
Confirmada a tese de que este novo tipo de compensação é um desrespeito sem precedentes ao princípio constitucional do não retrocesso social, Maurício Godinho Delgado (2017, p. 865-866) também nos aponta:
A pactuação de horas complementares à jornada padrão que extenua o trabalhador ao longo de diversas semanas e meses cria risco inevitável a saúde e segurança daquele que presta serviço, deteriorando as condições de saúde, higiene e segurança do trabalho. O regime de compensação anual, desse modo, escapa a dubiedade instigante que respondia pelo prestígio do mecanismo compensatório no estuário normativo da CF, já que deixa de ser manejadas em extensão ponderada, perdendo, neste aspecto, o caráter de vantagem trabalhista em beneficio recíproco de ambas as partes contratuais. A agressão que propicia à saúde, higiene e segurança laborais já obscurecem o sentido favorável ao trabalhador de que era ele classicamente dotado.
Portanto, observando-se a exigência feita pela Constituição Federal e confirmada pela jurisprudência, ambas concordando com os valores canônicos trabalhistas que têm o intento de tutelar o empregado e acautelar-lhe conjecturas de labor saudáveis, absorve-se que a positivação desta Reforma Trabalhista retira do lado penoso da relação de trabalho mais um instrumento de proteção de seus direitos, o posicionando em um vínculo que não há igualdade de força. Neste sentindo, esta lei fere mais uma vez o princípio do não retrocesso social, quando permite que acordos definam condições desvantajosas aos trabalhadores.
7 CONCLUSÃO
A evolução do direito trabalhista até a chegada do patamar atual passou por várias transformações em decorrência de sua necessidade de adequação com o contexto social da época. A ideia de justiça social veio crescendo ao longo dos séculos e em paralelo, para efetivação desta, o trabalho se tornou um pilar indispensável para sua concretização. E para que os patamares alcançados pelos indivíduos jamais fossem suprimidos por quaisquer agentes, princípios como o do não retrocesso social vieram a fazer parte do alicerce que se apoia tal Justiça.
Coadunando-se a esse princípio tem-se o da dignidade da pessoa humana que busca resguardar o mínimo para gozo pleno do indivíduo, tanto de forma social, usufruindo de políticas sociais elaboradas pelo Estado, quanto privativamente em detrimento das normas que regem o bom comportamento. No entanto, em uma quebra de evolução e conquistas dos direitos trabalhistas surge sob a égide de uma nova adequação ao contexto socioeconômico, a Lei 13.467 de 2017, denominada de Reforma Trabalhista, que traz em seu escopo inúmeras mudanças na legislação que rege as relações de trabalho. Em contrapartida ao seu objetivo, o que se nota é uma derrogação de direitos galgados a duras penas pelos trabalhadores com acréscimo de dispositivos que ferem os princípios basilares constitucionais e o que a doutrina já entendia como pacífico no ordenamento jurídico.
Ainda, é notório que a flexibilização da jornada de trabalho além de se contrapor à legislação constitucional e seus princípios, deteriora e reforça a posição de frágil do trabalhador mediante ao empregador. O fato de o empregado deixar de receber por seu trabalho, quando se homologam as novas formas de compensação de horas, ou aumentam sua jornada de trabalho usando-se de uma justificativa pautada em um descanso intrajornada maior, ou pior, afirmando que normas de higiene, saúde e segurança do trabalho não englobam os institutos da hora normal de trabalho e intervalos, só confirmam o enfraquecimento da classe trabalhadora junto as suas lutas.
Logo, é incontestável o retrocesso da legislação trabalhista pela sanção da Lei da Reforma Trabalhista quando autoriza a flexibilização da jornada de trabalho com dispositivos tão nocivos aos trabalhadores. A não observância aos preceitos Constitucionais e doutrinários retira dos trabalhadores proteções indispensáveis para o bom desenvolvimento de seus ofícios. Em um país, onde a Dignidade da Pessoa Humana é um de seus fundamentos basilares, e o princípio do Não Retrocesso Social se irradia na Constituição, norma fundamental, de forma a garantir os direitos sociais de sua população, não tem como se admitir que uma Lei como a da Reforma Trabalhista, que flexibiliza de forma negativa e se posiciona contra todos esses ditames norteadores do Estado Democrático de Direito, se perdure, por efeito de se retroceder e pôr em cheque toda uma legislação Constitucional e Trabalhista.
8 REFERÊNCIAS
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Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus - ULBRA/Manaus. Pós-graduado em Direito Administrativo e Licitações, Direito Constitucional e Direito Processual Civil.
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