Resumo: O debate entre correntes jurídicas naturalistas e positivistas é recorrente na Filosofia do Direito. Todavia, é preciso reconhecer que esse embate foi profundamente marcado pelo pensamento do jusfilósofo Gustav Radbruch que, por sua vez, foi impactado pelos horrores da experiência nazista na Alemanha das décadas de 30 e 40 do século XX. O artigo pretende traçar as diferenças entre jusnaturalismo e juspositivismo, pontuar a controvérsia sobre o Direito no III Reich (1922-1945) e rememorar tanto a crítica de Radbruch à obediência cega a preceitos legais manifestamente injustos como a contribuição do autor alemão para um novo entendimento, no processo de reconstrução democrática germânica, que conciliasse os valores da justiça – mais próximos de concepções naturalistas – e da segurança – circunvizinhos das posturas positivistas.
Palavras-chave: Jusnaturalismo. Juspositivismo. Gustav Radbruch.
Abstract: The debate between naturalistic and positivist legal currents is recurrent in the Philosophy of Law. However, it is necessary to recognize that this clash was deeply marked by the thought of the jusfilósóf Gustav Radbruch, who, in turn, was impacted by the horrors of the Nazi experience in Germany of the 30s and 40s of the 20th century. The article aims to trace the differences between jusnaturalism and juspositivism, punctuate the controversy over Law in the III Reich (1922-1945) and recall both Radbruch's criticism of blind obedience to manifestly unjust legal precepts and the German author's contribution to a new understanding, in the process of Germanic democratic reconstruction, which reconciled the values of justice - closer to naturalist conceptions - and of security - surrounding positivist attitudes.
Keywords: Natural Law. Legal Positivism. Gustav Radbruch.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Básicas noções sobre o Jusnaturalismo e o Juspositivismo. 2. A ascensão do nazismo e suas consequências na área do Direito. 3. A crítica de Radbruch. 4. Considerações finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo versa sobre a contribuição dada pelo jurista e filósofo alemão Gustav Radbruch (1878-1949) ao debate sobre a (in)validade jurídica de normas injustas. Na realidade, a temática sempre esteve envolvida em polêmicas, com duas grandes escolas de opinião: o jusnaturalismo e o juspositivismo. Em breve síntese, enquanto os primeiros acreditam que existem princípios – derivados da natureza, da divindade ou da razão – acima das leis que governam a vida em sociedade, os últimos entendem que o Direito é um conjunto de leis, emanado do poder estatal, que rege a comunidade, não existindo nada fora de suas margens para lhe conferir validade.
O advento do nazismo, com seu terrível legado de guerra, destruição e desprezo ao ser humano, chocou a civilização e provocou reflexões sobre a extensão da barbárie e por qual razão ela não conseguiu ser detida sem funestos resultados. Nesse contexto, Radbruch escreveu textos em crítica ao legalismo cego que acredita que qualquer norma, só por ter sido introduzida no sistema jurídico pela autoridade pública e obedecido a determinados parâmetros formais, é juridicamente válida e deve ser acatada. O autor, tido até então como positivista, acaba por criar uma baliza (fórmula Radbruch) que, sem menoscabar a legislação estatal e seus predicados de ordem e segurança, afasta-a diante de injustiça extrema que, sistematicamente, desrespeita a dignidade humana.
A estrutura do artigo tem a seguinte organização: a) no item 1, são trazidas as linhas gerais do positivismo e do naturalismo no campo do Direito; b) no item 2, contextualiza-se o nazismo e suas consequências político-jurídicas; e c) no item 3, discute-se o pensamento de Radbruch, no período imediatamente posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial, e sua importância na área da filosofia jurídica contemporânea. Por fim, é feita uma breve conclusão.
1. BÁSICAS NOÇÕES SOBRE O JUSNATURALISMO E O JUSPOSITIVISMO
Na Atenas do século V a. C., Sófocles escreveu uma tragédia, desde então encenada em múltiplos lugares e em numerosos idiomas, que tem a desobediência às leis da pólis, em nome de princípios a elas superiores, como um dos seus temas principais: “Antígona”. A peça traz à baila um decreto do rei Creonte que proíbe, por traição à pátria, o enterro do corpo de Polinices, que deve ser deixado para o consumo das feras e das aves de rapina. Antígona, sobrinha do rei e irmã de Polinices, com base no que acredita ser uma norma de divina inspiração que garantiria o rito fúnebre aos mortos, contesta a determinação real e dá sepultura ao irmão, acabando por ser vítima da sanção estatal ao descumprir regra estatuída pela autoridade legítima. Pela beleza e força das palavras de Sófocles, vejamos alguns sucintos excertos da mencionada obra[1]:
CREONTE
[...] Sabias que eu tinha proibido essa cerimônia?
ANTÍGONA
Sabia. Como poderia ignorá-lo? Falaste abertamente.
CREONTE
Mesmo assim ousaste transgredir minhas leis?
ANTÍGONA
Não foi certamente Zeus que as proclamou,
nem a Justiça [...] as estabeleceu para os homens.
Nem eu supunha que tuas ordens
tivessem o poder de superar
as leis não escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal.
Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas
são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram.
Por isso, não pretendo, por temor às decisões
de algum homem, expor-me à sentença divina.
Sei que vou morrer. Como poderia ignorá-lo?
[...] Tuas ameaças não me atormentam.
Se agora te pareço louca,
pode ser que seja louca aos olhos de um louco.
(SÓFOCLES, 2015, p. 33-34)
Dessa forma, parece ser Antígona uma espécie de emblema[2] cultural do jusnaturalismo. A mulher corajosa que recusa validade ao regramento estatal quando entende que ele não está em conformidade com a justiça, ou seja, quando tal regramento afasta-se de parâmetros superiores ao próprio poder público instituinte. Com o exemplo vívido de Antígona, podemos definir o jusnaturalismo, socorrendo-nos do verbete da Enciclopédia Britannica, como “[...] um sistema de direito ou justiça considerado comum a todos os humanos e derivado da natureza e não das regras da sociedade ou lei positiva”[3]. A herança jusnaturalista é antiga: remonta aos gregos, está presente na escolástica medieval e nos racionalistas da Idade Moderna, chegando aos contemporâneos (NUNES, 2018, p. 76-77). Todavia, embora as muitas correntes de direito natural possuam características semelhantes, guardam, igualmente, diversidade entre si. Nesse ponto, curial citar a prudente observação de Guido Fassó, in verbis:
Jusnaturalismo é uma expressão perigosamente equívoca, porque o seu significado, tanto filosófico como político, se revela assaz diverso consoante as várias concepções do direito natural. Na história da filosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três versões fundamentais, também com suas variantes: a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens; a de uma lei "natural" em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de instinto; finalmente, a de uma lei ditada pela razão, específica portanto do homem que a encontra autonomamente dentro de si. São concepções heterogêneas [...]. Todas partilham, porém, da ideia comum de um sistema de normas logicamente anteriores e eticamente superiores às do Estado, a cujo poder fixam um limite intransponível: as normas jurídicas e a atividade política dos Estados, das sociedades e dos indivíduos que se oponham ao direito natural, qualquer que seja o modo como for concebido, são consideradas pelas doutrinas jusnaturalistas como ilegítimas, podendo ser desobedecidas pelos cidadãos (FASSÓ, in BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO (Orgs.), 1998, p. 656).
O jusnaturalismo, como corrente dominante no período do Iluminismo, serviu como padrão às codificações do início do século XIX[4], já que a lei escrita, com sistematização coerente, deveria emular os grandes princípios de justiça e retidão advindos do direito natural e descortinados pela razão. Todavia, é paradoxalmente nesse quadrante histórico que o jusnaturalismo começa a perder relevância. Assim, quando os Estados europeus começaram a publicar códigos legais abrangentes, com notável organização lógica, surgem vozes, cada vez mais numerosas, contrárias às pretensões excessivamente abstratas do naturalismo, clamando pela objetividade e segurança das legislações nacionais. Estas passaram a ser vistas como modelo jurídico de razoável completude, daí ser criticável recorrer a normas não escritas e externas ao ordenamento legal. Então, o jusnaturalismo vai diminuindo sua influência e aflora, ao longo do século XIX, como doutrina dominante entre os juristas, o positivismo (FASSÓ, in BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO (Orgs.), 1998, p. 659).
BOBBIO (1995, p. 22-23), em clássica lição, estabelece alguns padrões de diferenciação entre direito positivo e direito natural, dentre os quais destacam-se: a) critério que opõe o universal ao particular, já que o direito natural pretende-se aplicável a todos, enquanto o direito positivo contenta-se em prescrever normas apenas para uma dada sociedade, geograficamente determinada; b) critério que rivaliza permanência e impermanência, sendo o direito natural o que resiste ao tempo e o direito positivo o que muda de acordo com as contingências históricas; c) critério que sublinha a fonte de onde derivam o direito natural e o direito positivo, sendo este da autoridade política e aquele da natureza; e d) critério que assinala a forma como são conhecidos por seus destinatários o direito natural e o direito positivo, sendo este tributário da publicação por um terceiro (autoridade) e aquele é apreensível pelo uso da razão. Ademais, o direito natural, que se preocupa com o que é bom, pontua que as ações humanas têm caráter benéfico ou maléfico por si mesmas, ao passo que o direito positivo, mais fincado na utilidade das leis, define os comportamentos como benignos ou malignos consoante sua permissão ou proibição pela norma jurídica estabelecida pelo Estado.
Complementando o raciocínio, o mestre italiano fixa alguns pontos cardeais do positivismo jurídico. Pelas lentes positivistas, o direito é enxergado como fato, não tendo carga valorativa, disso resultando um dado concreto: a validade jurídica deve ser avaliada de maneira absolutamente formal, sem considerações morais. Outros elementos significativos do direito positivo seriam: a) a coatividade de suas normas, ou seja, se elas não forem cumpridas, o Estado poderá aplicar sanção aos desviantes; b) imperatividade, ou seja, exprime uma noção de ordem; c) coerência e pretensão de completude, ou seja, em tese, o ordenamento jurídico não pode ser contraditório e deve ter respostas para a regulamentação de amplos setores da vida social; d) sua fonte primordial é a legislação; e) seu método de trabalho é, preferencialmente, o interpretativo-declarativo, ou seja, o juiz sobretudo declara o que está na legislação, não tendo um campo muito vasto para a criação ou produção de normas. Isso tudo indica que, quanto à obediência, o positivismo jurídico não é, costumeiramente, adepto de teses que exonerem os seus destinatários de cumpri-las integralmente, tendo como lema “lei é lei”[5] (BOBBIO, 1995, p. 131-133).
Enfim, para concluirmos essa primeira parte, fiquemos com a percuciente observação de Dimitri Dimoulis, no verbete sobre positivismo jurídico da Enciclopédia Jurídica da PUC-SP, em que ele aponta a marcante diferença entre as escolas jusnaturalista e juspositivista, afirmando que:
O positivismo jurídico no sentido estrito considera, primeiro, que o estudo e a compreensão do direito não incluem sua avaliação moral e, segundo, que o reconhecimento da validade de um sistema jurídico (ou de uma norma) não depende da sua conformidade a critérios sobre o justo e o correto. Não interessa o valor e sim a validade do direito. Não interessa a substância; interessa a forma[6].
2. A ASCENSÃO DO NAZISMO E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA ÁREA DO DIREITO
Sabe-se que nazismo decorreu de múltiplos aspectos que afligiram a sociedade alemã no período posterior à Primeira Guerra Mundial. É certo que o inventário de todos esses aspectos fugiria ao escopo deste artigo, todavia é possível nomear os mais citados pela historiografia. O conflito mundial deixou um legado de problemas sociais e econômicos, agravados pela humilhação da derrota, com perdas territoriais importantes e vultosas indenizações de guerra, que comprimiam ainda mais a economia da Alemanha, envolta em perturbador processo inflacionário[7] que, por sua vez, reduzia o poder de compra das classes trabalhadoras e agravava as dificuldades da população mais vulnerável. A década de 20 do século XX foi dura com os alemães e o Crash da Bolsa de Nova York, em 1929, com efeitos em todo o mundo, piorou a situação já frágil. Em momentos de agudização de crises, surgem apelos por lideranças carismáticas e com propostas dissonantes daquelas pautadas pelas ditas democracias liberais. Assim, podem nascer governos com tendências autoritárias e que, a depender das circunstâncias, ameacem a própria existência das liberdades públicas. Todavia, o Partido Nazista[8], com uma ideologia marcadamente racista e belicista, foi mais que autoritário, construindo o que, posteriormente, ficou conhecido por totalitarismo[9]. Cornelsen, citando Eckhard Jesse, distingue entre governos totalitários e autoritários, pontuando que:
(a) Um sistema totalitário se diferencia por uma centralização rígida de poder, enquanto um sistema autoritário ainda assegura certo pluralismo, mesmo que limitado; (b) um sistema totalitário tem por base uma ideologia exclusiva, enquanto um sistema autoritário se fundamenta numa postura tradicional não-conformada rigidamente; (c) enquanto um sistema totalitário força a mobilização das massas através de mecanismos de integração e de persuasão, um sistema autoritário renuncia a uma participação dirigida das massas, satisfazendo-se com a apatia política geral (CORNELSEN, 2009, p. 130).
Dessa forma, ainda que os nazistas tenham chegado ao poder por mecanismos clássicos da democracia[10], como eleições e parlamento[11], o fato é que rapidamente o regime foi se fechando e ganhando aspectos totalitários. Com o incêndio (Reichstagsbrand) no prédio que abrigava o legislativo alemão, em 28 de fevereiro de 1933, os nazistas foram hábeis em acusar os comunistas pelo ato criminoso e, incontinenti, pediram prerrogativas extraordinários para lidar com a situação. O primeiro tijolo na centralização do poder veio com um Decreto (Decreto do Fogo), assinado pelo então Presidente da Alemanha (Paul von Hindenburg), que suspendia muitos direitos básicos, dentre os quais os de liberdade de expressão, imprensa, associação e reunião. O estado de exceção ganhou corpo e os nazistas acresceram mais um tijolo em sua escalada ditatorial com a “Lei para Sanar a Necessidade do Povo e da Nação”, de março de 1933, pela qual Hitler recebeu amplos e incontrastáveis poderes para administrar o Estado, o que perdurou até a sua morte em 1945 (SALGADO, 2017, p. 83-84).
Com a autoridade enfeixada em suas mãos e, sendo o ordenamento jurídico fonte de formalização do poder, os nazistas publicaram leis e regulamentos consentâneos com seus ideais infames. Isso significa, por óbvio, uma transformação completa da anterior ordem jurídica de Weimar, considerada republicana e, dentro dos marcos conservadores, democrática[12]. Um claro exemplo dessa sinistra metamorfose jurídica pode ser traçado pela publicação dos editos contra os judeus. Sem a pretensão de detalhar o cipoal de normas antissemitas publicadas na Alemanha nazista, citaremos como exemplos[13]: a) Lei para o Restabelecimento do Serviço Público Profissional, de abril de 1933, que proibia aos judeus o acesso a cargos públicos, demitindo aqueles que já eram servidores; b) Lei de Admissão na Profissão Legal, de abril de 1933, que estabelecia vedação de judeus como advogados perante os tribunais alemães; c) Lei contra Superlotação de Escolas e Universidades, também de abril de 1933, que limitava o número de estudantes judeus em escolas públicas; d) Lei Militar, de maio de 1935, que expulsava os oficiais judeus do exército alemão; e) a Lei de Cidadania do Reich[14], de setembro de 1935, que definia quem eram os judeus e estabelecia que a nacionalidade alemã só poderia ser ostentada por pessoas de raiz germânica; f) a Lei de Proteção do Sangue Alemão e da Honra Alemã, também de setembro de 1935, que impedia o casamento entre germânicos e judeus; g) Decreto de Confisco de Propriedades Judaicas, de outubro de 1938, que determinava a transferência de bens de judeus para alemães; e h) Decreto de Exclusão dos Judeus da Vida Econômica Alemã, de novembro de 1938, que ordenava o fechamento de todos as empresas cujos sócios fossem judeus. O fato é que o direito alemão, sob o governo nazista, converteu-se, oficialmente, em instrumento de perseguição[15] e opressão. As inúmeras restrições impostas a minorias étnicas, culturais ou políticas, em fases posteriores, terminaram em prisões e assassinatos em massa.
Um símbolo da ordem jurídica maculada pelo totalitarismo nazista foi o Tribunal do Povo (Volksgerichtshof), criado durante o III Reich, em 1934, com o objetivo de examinar questões atinentes à traição, assassinato ou tentativa de assassinato de autoridades do país, ataques ao chefe do Reich e crimes contra propriedades militares. Embora imitasse os ritos de cortes jurídicas tradicionais, funcionava, de fato, como um instrumento de controle ideológico da população, um longa manus do partido alojado no poder (GODOY; SARLET, 2021, p. 230-232). As garantias dos réus eram menoscabadas e a defesa técnico-processual era inviabilizada:
[...] assim como pontua Rätsch (1992, p. 17), os direitos dos réus não existiam nesses tribunais. Eles não eram notificados com a denúncia e tomavam conhecimento das acusações só na noite anterior à audiência, o que demonstra a estratégia para inviabilizar a preparação de uma defesa minimamente adequada. Ademais, paradoxalmente, os advogados de defesa só poderiam acessar o processo após uma petição da acusação, escrita somente no tribunal, o que na prática não tornava possível a leitura do processo. Depois de um processo de aprovação, os advogados recebiam autorização para exercerem seus mandatos no “Tribunal do Povo”, mas se mostrassem qualquer atitude a favor dos réus não poderiam mais atuar lá (ibid, p. 13). [...] Müller denuncia tratar-se, na verdade, de tribunais de fachada [...] (SALGADO, 2017, p. 93).
Pois, então, temos um cenário jurídico dantesco, com leis e decretos fundamentando restrições de direitos, perseguindo minorias étnico-religiosas, aniquilando a oposição política e concentrando demasiadamente poderes estatais. Ademais, os tribunais, sobretudo os de natureza penal, não mais serviam como locais de equilíbrio, em que argumentos são livremente apresentados pela defesa e pela acusação, com juízes imparciais, cujo principal objetivo é apenas punir os criminosos na medida de sua culpabilidade, segundo as provas legalmente colhidas e trazidas aos autos. A magistratura, ou parte significativa dela, durante o período nazista, comportou-se como sustentáculo do regime. Dessa forma, o direito alemão era duplamente atingido: de um lado, pela produção de normas jurídicas que se afastavam da liberdade, da igualdade e da democracia; e de outro, por intermédio de tribunais parciais, em nada semelhantes à virtude da moderação com que os órgãos da Justiça devem agir, tendo notório ânimo de condenação de dissidentes ideológicos e funcionando como meros bonifrates dos donos do poder político[16]. Por tudo isso, constata-se que:
“[...] no Direito nazista a irracionalidade passa a ser lei, a ideologia, carregada de preconceito, é legisladora. [...] Todo o sistema foi construído friamente como uma máquina de eliminação de indesejados [...], que retira o direito e a dignidade humana das pessoas, instaurando o medo [...]” (ANDRIGHETTO; ADAMATTI, 2016, p. 74).
Uma triste história narra, com muita ênfase, o descalabro jurídico-político ao qual a Alemanha foi levada pelo nazismo. Os campos de concentração, por si, já eram a representação da brutalidade e da injustiça. Todavia, dentro da estupidez suprema, ainda cabia mais crueldade. Em 1941, em Auschwitz, quando um prisioneiro fugiu, a administração do campo “escolheu” outros 10 (dez) encarcerados que seriam punidos[17] pela suposta ofensa praticada pelo fugitivo contra a ordem jurídica alemã. Os sorteados seriam destinados ao “bunker da fome”, local onde ficariam sem luz, água e alimentos, definhando até chegar a morte. “Selecionados” aqueles que seriam submetidos à privação atroz, um deles se desespera, alegando que tinha esposas e filhos. O número do prisioneiro atordoado era 5.659[18] e o seu nome Franciszek Gajowniczek, um sargento do Exército polaco, de origem judaica. Nesse ponto, um outro cativo, que não estava na infausta lista de escolhidos pelo comandante e para a surpresa do comando nazista local, pediu para substituir o mencionado detento de número 5.659. O insólito requerimento oral foi deferido e a troca foi realizada. Assim, o prisioneiro de número 16.670 seguiu, juntamente com outros 9 (nove) companheiros, para a angústia da morte vagarosa, sem pão ou qualquer líquido. O nome dele era Maximilian Kolbe[19], um padre polonês (LORIT, 1975, p. 9-22). Hilda Hilst, dramaturga e poeta brasileira, escreveu uma peça[20] que tenta dar voz aos detentos que foram, desditosamente, barbarizados pela fome e pela sede naquela cela subterrânea de Auschwitz, sacrificados pela tirania sem medidas e sem resquício de pudor. Eis um comovente trecho da obra:
Poeta (debilmente): Nosso Deus dorme há tanto tempo.
Maximilian: Vigia.
Poeta (tom crescente): Dorme! Dorme! Dorme um sono tão profundo que as pálpebras enrijeceram. E nunca mais se abrirão.
[...]
Maximilian (lento): Luz infinitamente poderosa.
Poeta (interrompendo): Noite infinitamente escura. [...]
Maximilian (interrompendo com voz firme): Luz infinitamente poderosa, dai-nos a Tua força, a Tua Misericórdia, o Teu amor[21] (HILST, 2018, p. 46-47).
Enfim, no final da Segunda Guerra Mundial, quando os aliados invadiram a Alemanha, para além da destruição física e econômica, era esse o quadro desolador que foi encontrado: um ordenamento jurídico em frangalhos, desacreditado, que embasou o poder e lhe deu livre curso para efetuar uma série incalculável de atrocidades. Portanto, nessas circunstâncias, nada mais natural do que a análise crítica sobre o direito e sua aplicação durante os anos em que os nazistas tiveram no controle do governo alemão. Nesse esforço crítico, o pensamento do jurista Gustav Radbruch, que será objeto do próximo item, tem bastante destaque.
Antes da ascensão do nazismo, Radbruch era professor universitário, jurista com sólida obra intelectual e havia tido participação política na República de Weimar: foi deputado pelo Partido Social-Democrata, de centro-esquerda, ocupando também o cargo de Ministro da Justiça, onde aplicou esforços na reforma penal. Todavia, por sua tendência política contrária a Hitler, foi afastado do cargo de professor e só retornou à cátedra com o fim da Segunda Guerra Mundial e a deposição dos nazis (RAMOS, 2020, p. 64). Entre o final do conflito bélico, em 1945, e o ano de sua própria morte, em 1949, escreveu textos e participou de conferências sobre a miséria jurídica e moral deixada de herança pela administração de Hitler. Nesse período, destacam-se dois pequenos textos, que serão aqui explorados. O primeiro deles, de setembro de 1945, ficou conhecido pelo nome de “Cinco Minutos de Filosofia do Direito”, destinado originalmente aos alunos de Direito da Universidade de Heidelberg. O segundo, é “Injustiça Legal e Direito Supralegal”, de 1946[22].
Muitos dos nazistas, no Tribunal de Nuremberg[23] ou perante a Justiça alemã, alegavam que apenas cumpriram o direito posto pelas autoridades da época, não podendo ser punidos por obedecerem ao ordenamento jurídico do país. Os mencionados textos de Radbruch, de forma direta, tentam dar resposta à alegação dos então réus. Em “Cinco Minutos de Filosofia do Direito”, são feitas pequenas reflexões acerca do fenômeno legal. A primeira delas diz que a máxima “lei é lei” dos positivistas jurídicos, ou seja, a legislação deve ser cumprida independentemente de seu conteúdo, associa perigosamente direito e força, deixando os juristas e o povo desarmados diante de normas degradantes advindas das autoridades constituídas. A segunda [reflexão] diz que é arriscada a afirmação de que é direito apenas o que for útil ao povo, pois isso poderá conduzir a arbitrariedades, principalmente quando a utilidade é filtrada pela ótica de um governante autoritário. Os nazistas, por exemplo, justificavam o expurgo de seus adversários e o confisco das propriedades dos judeus como úteis ao conjunto dos alemães, por supostamente trazer mais paz social e prosperidade material. A terceira [reflexão] une direito com a procura pela justiça, além de definir justiça como equilíbrio. Se a lei subtrair a condição humana a alguns de seus destinatários e servir como instrumento de arbítrio, deve ser reputada como inválida e não deve ser obedecida (RADBRUCH, p. 57). Nas palavras do autor:
Quando se festeja o assassinato de adversário político, quando se condena à morte alguém porque pertence a outra raça, quando um fato é punido com penas agravadas, mais cruéis e infamantes, somente por ter sido praticado contra correligionário, não temos nem Justiça nem Direito. Quando as leis denegam explicitamente a busca da Justiça, por exemplo, quando os direitos humanos são garantidos ou negados arbitrariamente, elas carecem de validade; ninguém lhes deve obediência e os juristas devem ter a coragem de acusá-las como carentes de natureza jurídica (RADBRUCH, p. 57-58).
A quarta reflexão proclama que o direito tenta conciliar três valores diversos: bem comum, segurança jurídica e justiça. Todavia, dadas as falhas humanas, em algumas leis esses valores não se harmonizam. Conquanto a segurança jurídica deva ser, no mais das vezes, preservada, pode acontecer que existam legislações em que o grau de injustiça seja tal que a elas os juristas podem negar validade. A quinta reflexão, por sua vez, estabelece a existência de princípios que estão acima das regras postas pelo Estado, chamados de Direito Natural ou Racional; e esse fato implica que a lei estatal que contrariar tais postulados carecerá de fundamento de validade. Ainda que o autor entenda que esses princípios estejam cobertos por certas brumas, as Declarações de Direitos[24] os resumiriam de maneira satisfatória e, assim, poderiam nos servir de bússola (RADBRUCH, p. 58).
Já em “Injustiça Legal e Direito Supralegal”, Radbruch começa por reiterar que a cultura jurídica positivista, majoritária na Alemanha, perante a qual “a lei é a lei”, vê como miserável incompatibilidade tanto a expressão “injustiça legal” quanto a dicção “direito supralegal”, uma vez que o que está na legislação precisa ser acatado, independentemente do juízo de valor que se tenha sobre aquilo que dispõe, além de só ser considerado direito o que está posto como tal, pelo Estado, no ordenamento jurídico. Todavia, relata que essas supostas contradições começavam a se avolumar no pós-guerra, citando alguns casos rumorosos de então. Um deles se referia ao Procurador-Geral do Estado da Saxônia que pretendia promover a responsabilidade criminal de juízes que, sob as leis do III Reich, prolataram sentenças desumanas ou, mais precisamente, que condenaram pessoas à morte por atividades de nenhuma gravidade ou de baixa periculosidade[25]; outro, dizia respeito ao Tribunal de Wiesbaden, que entendeu que as leis nazistas que confiscaram propriedades dos judeus eram contrárias ao Direito Natural e, pois, inválidas desde o berço[26]. Enfim, ficava patente que os órgãos do Judiciário alemão começavam a decidir sobre injustiça da lei e direito supralegal, daí a importância da discussão madura sobre tais temáticas (RADBRUCH, p. 61-62).
Radbruch entende que os operadores do direito não podem ficar inermes quando percebem a existência de legislação como as do regime nazista e que a validade de norma jurídica não pode ser pensada apenas do ponto de vista lógico-formal, mas também de acordo com aspectos essenciais da justiça. Assim, não é somente o fato de a norma ter nascido da autoridade competente e consoante os ritos burocráticos próprios que a faz juridicamente válida. A recusa sistemática do positivismo em perquirir sobre a relação entre validade jurídica e moralidade foi fator fundamental para o nazismo não ter encontrado maiores resistências no meio jurídico e o autor quer evitar repetições de eventos tão sinistros na história alemã ou mundial. É evidente que, como jurista experiente que era, Radbruch sabia que a lei traz importantes padrões de conduta e, de maneira geral, tem que ser obedecida, ou seja, a segurança jurídica trazida pela legislação não poderia ser diminuída, sob pena de ser criada confusão social. Todavia, a segurança não poderia ser valhacouto para perpetração de absurdos disfarçados com a roupagem do direito. Como, então, fazer a conexão entre os valores da segurança jurídica e da justiça?
A proposta do autor é que, rotineiramente, a lei deve ser respeitada, ainda que pareça não conduzir à justiça. Todavia, se a injustiça da lei posta for de tal forma afrontosa, sua validade deverá ser negada, no que ficou conhecida como fórmula Radbruch. Bem, aqui o problema parece continuar e a pergunta a fazer é: quando a lei será suficientemente contrária ao valor justiça para merecer a invalidade? Radbruch, então, sustenta que uma fronteira definitiva e insuscetível de crítica – entre a injustiça tolerável em nome da segurança jurídica e aquela inadmissível – dificilmente será erigida. Todavia, pontua que uma marca segura desenhar-se-ia quando a legislação de referência busca, deliberadamente, atacar a igualdade fundamental, que é a base da justiça. Portanto, lei que rebaixa o ser humano e nega a fruição dos direitos universais[27], não goza de validade jurídica, ainda que ostente os requisitos expressos para tal, como autoridade competente e a forma constitucionalmente prevista. Dessa forma, o núcleo que não admite assalto é o que sustenta a dignidade humana. Relevante perceber que o expediente naturalista ao qual Radbruch recorre – para funcionar como princípios externos ao direito posto e, eventualmente, invalidá-lo – não tem, todavia, características etéreas, mas marcos históricos definidos, baseando-se nas declarações de direitos, notavelmente a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão[28]. As leis promulgadas pelo nazismo que previam a negativa de direitos básicos à população de origem judaica e que estabeleciam penas desproporcionais e degradantes não eram válidas e a recusa a seus mandamentos seria a expressão do direito e não ato antijurídico. Por fim, para a reconstrução do Estado de Direito na Alemanha, seria necessária a observação da segurança jurídica, ligada aos postulados do juspositivismo, sem descurar dos aspectos da justiça, que serviria para proteger a dignidade humana, cuja ênfase é mais sentida nas escolas jusnaturalistas. Sintetizando o debate, podemos registrar que:
[Radbruch] modificou o alcance do jusnaturalismo, anunciado com mais precisão, demonstrando o seu conteúdo, os direitos humanos e o efeito da sua ausência no direito positivo; como consequência dessa mudança tem-se a regra para dirimir os conflitos entre justiça e segurança jurídica; no caso do direito positivo, violar gravemente os direitos humanos, devendo a justiça prevalecer sobre a segurança jurídica, a fim de evitar a extrema injustiça; nos demais casos, deve prevalecer a segurança jurídica, portanto apresenta um critério mais preciso para resolver este conflito do que antes [...] (FRANÇA, 2018, p. 1031).
Existem duas controvérsias não resolvidas e que, neste artigo, serão meramente citadas. A primeira delas é se, com os textos de “Cinco Minutos de Filosofia do Direito” e “Injustiça Legal e Direito Supralegal”, Radbruch teria abandonado suas posturas anteriormente positivistas para abraçar o jusnaturalismo, o que configuraria uma ruptura de pensamento, ou, ao contrário, se os artigos publicados no final de sua vida apenas são uma evolução de seu pensamento pretérito, vez que o autor já havia manifestado, nos escritos de décadas anteriores, preocupação com a justiça. Enquanto Erik Wolf e Arthur Kaufmann se filiam ao segundo entendimento, a doutrina majoritária, liderada por Herbert Hart e Robert Alexy, esposam o primeiro entendimento (ROCHA JR, 2010, p. 54-56).
A segunda controvérsia, um tanto mais delicada, é se a aplicação do direito durante o III Reich realmente pode ser classificada como positivista ou, em outros termos, se essa corrente jurídico-filosófica teve, de fato, participação destacada no desastre nazista. Godoy e Sarlet, críticos em relação à identificação automática do nazismo com o juspositivismo, resumem a questão:
O positivismo jurídico estaria centrado na garantia da ordem, da segurança e da estabilidade. É nesse sentido que essa linha fora identificada com a experiência política alemã entre 1933 e 1945. [...] Quando havia antinomia entre a autoridade da lei antecedente e poder carismático do Führer, este último absorvia a primeira. O poder do Estado era a vontade do Führer [...]. A ordem normativa nacional-socialista não se informava, objetivamente, por uma recorrente adesão ao cumprimento fiel e exato da lei. O ponto referencial não era, assim, a norma posta ou efetivamente válida. [...] Como observado, não se pode confundir a estratégia de defesa nos tribunais de Nuremberg e Frankfurt, quando se pretendeu justificar a barbárie como resultado do estrito cumprimento do dever legal, com todo um modelo, o qual, objeto da repulsa de Hans Kelsen, foi marcado pela plasticidade interpretativa, que optou por soluções que reverberassem positivamente na agenda então dominante (GODOY; SARLET, 2021, p. 224-225).
Para os referidos autores, portanto, o respeito à lei não era exatamente um dogma nazista. O fundamento de validade do direito nazista era a vontade real ou suposta de Hitler, o chefe político do Estado e guia espiritual da nação. Assim, seria falsa a ideia de se atribuir uma obediência cega ao direito escrito como característica intrínseca do período 1933-1945 e como causa, ainda que indireta, das atrocidades cometidas. O positivismo e o cumprimento da lei foram mais produto da estratégia de defesa jurídica dos líderes alemães perante os tribunais no período pós-guerra do que uma preocupação real no período hitlerista.
Contudo, as controvérsias expostas nas linhas acima não importam para o deslinde do presente artigo. Se Radbruch, sob o impacto da tragédia humana arquitetada e executada pelo III Reich, fez ou não uma mudança radical no próprio pensamento jurídico, não é aqui relevante. Significativo é a noção de que a segurança jurídica e, consequentemente, o respeito à lei não podem ser os únicos objetivos perseguidos pelo direito, já que a justiça deve estar nas considerações de qualquer ordenamento legal. De igual modo, o fato de os nazistas darem mais atenção à ideologia supremacista de seu partido e aos desejos tresloucados do Führer que a detalhes da legislação efetivamente vigente na Alemanha, não apaga a realidade crua: várias leis aprovadas pelas autoridades alemãs foram escandalosamente arbitrárias e o establishment jurídico do país não reagiu à altura da descomunal injustiça ou da notável desumanidade dessas normas.
Caminhando para o final, pode-se afirmar que a fórmula Radbruch teve importância capital tanto nos julgamentos de líderes nazistas perante tribunais internacionais (Tribunal de Nuremberg), como de colaboradores hitleristas perante tribunais internos alemães no pós-guerra, configurando-se um importante passo na restauração do Estado de Direito da Alemanha. Ademais, recuperada pelo insigne filósofo do direito Robert Alexy (1945-), a fórmula Radbruch foi usada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht - BVerfG), na década de 90, para confirmar a condenação de agentes de segurança da extinta Alemanha Oriental que atiraram em cidadãos desarmados que pretendiam atravessar o Muro de Berlim. Conforme Gubert “[...] Alexy utiliza-se de até quatro versões da fórmula, dependendo da extensão adotada. A forma mais breve e simplificada é a injustiça extrema não é direito” (2007, p. 59). Por ocasião do polêmico julgamento, Alexy serviu-se dos ensinamentos do mestre de Heidelberg para defender a condenação dos militares, concluindo que “seria necessário mostrar que o caráter jurídico é subtraído quando normas ou sistemas normativos passam de um limite de injustiça (Unrecht)” (ALEXY apud RAMOS, 2020, p. 67). Dessa forma, Gustav Radbruch continua atual em seu magistério de conciliação entre os valores da segurança jurídica e da justiça, tendo a dignidade humana como parâmetro de validade das normas, na tentativa de evitar situações concretas de aguda iniquidade.
A velha disputa entre as escolas jusnaturalista e juspositivista no campo da Filosofia do Direito encontra-se calcada na questão da existência ou não de princípios que estão além do direito estatal e que, de alguma maneira, o condiciona a ponto de dizê-lo inválido em casos de discordâncias extremadas entre a norma posta e os princípios balizadores externos. Os positivistas jurídicos, embora reconheçam que as questões morais são muitas vezes importantes para o nascimento das leis, acreditam que o direito é, na prática, um conjunto organizado e hierarquizado de normas estatuídas pelas autoridades competentes, de acordo com determinadas regras formais de elaboração. Assim, uma vez dentro do sistema consoante os padrões instituídos, a norma goza de validade jurídica independentemente de considerações axiológicas. Portanto, o direito posto pelo Estado não tem outros referenciais de validade além daqueles formalmente instituídos por ele mesmo, ou seja, é autorreferente. Já os jusnaturalistas, embora reconheçam a existência do direito positivado pelo Estado, creem que há um conjunto de princípios, de natureza moral e que são externos ao ordenamento jurídico, que não só orientam a produção do direito estatal como lhe servem de fundamento de validade.
O período nazista (1933-1945), baseado em ideologia racista e belaz, provocou um terremoto no direito alemão, pois erigiu várias leis de perseguição sistemática a minorias étnicas, culturais ou políticas, além de usar violência inaudita na busca de objetivos atrozes, não consentâneos com a civilização. Além de legislação teratológica, o nazismo usou os tribunais como instrumento de controle ideológico e método de incutir medo na população. Quando findou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o mundo, perplexo, pôde observar a extensão dos horrores provocado pelos nazistas tanto na Alemanha quanto nos territórios antes ocupados por tropas alemães. Assim, ao rastro de destruição econômica e humana legado pelo hitlerismo foi acrescido um esfacelamento da ordem jurídica estatal que demandava reflexão e ação, pois também o Estado de Direito precisaria ser erguido de escombros.
Gustav Radbruch (1878-1949), jurista de escol, filósofo do direito e professor, perseguido pelo regime nazista que o havia destituído da cátedra universitária, foi um daqueles a se lançar na tarefa de refletir sobre os horrores dos 12 anos de hitlerismo no poder e suas nefastas consequências jurídicas. Em pequenos artigos e conferências entre 1945, ano em que o pesadelo da guerra findou, e 1949, ano em que faleceu, apontou que o apego cego à lei impediu a necessária crítica ao direito nazista por parte da comunidade jurídica. Para o autor, o direito positivo não deve ser absolutamente autorreferente e, pois, não convém que a validade jurídica seja aferida apenas por critérios lógico-formais. Logo, existem princípios, de cariz moral, que servem, também, de padrão para a validade de uma dada legislação ou mesmo do ordenamento jurídico. Evidentemente que Radbruch não menosprezava a segurança jurídica, atributo sempre colocado em relevo pelos juspositivistas, mas ponderava que o valor justiça não pode ser relegado ao oblívio. Surge, então, o que se convencionou chamar, posteriormente, de fórmula Radbruch: no conflito entre a segurança jurídica e a justiça, prevalecerá a segurança, a menos que a injustiça seja de tal monta que não possa ser tolerada. Muito embora a fórmula pareça, em um primeiro exame, algo vaga, ela tem servido – desde então – como guia em situações jurídicas difíceis. Isso porque o autor alemão sustenta que um critério diferenciador razoável – entre a lei injusta suportável em nome da segurança jurídica e a lei injusta inaceitável – é o da igualdade fundamental justificadora da dignidade humana. Assim, nenhuma legislação que rebaixa o ser humano e lhe denega a fruição de direitos básicos universalmente reconhecidos, goza de validade jurídica, ainda que ostente os requisitos expressos para tal, como autoridade competente e a forma constitucionalmente prevista. Interessante notar que Radbruch, ainda que recorra ao expediente da validação do direito estatal por princípios universais a ele externos, afasta o naturalismo de posturas etéreas e o refunda com apelo a marcos históricos, como a Declaração Universal do Homem e do Cidadão.
A fórmula Radbruch serviu como espeque para a condenação de muitos líderes nazistas no Tribunal de Nuremberg, órgão criado no âmbito do Direito Internacional, e em tribunais internos da Alemanha, além de ajudar na reconstrução do Estado de Direito alemão do pós-guerra. É de se notar, igualmente, a utilidade da vetusta fórmula Radbruch em notável caso bem mais recente: o do julgamento dos soldados do Muro de Berlim da extinta República Democrática Alemã (Alemanha Oriental). Enfim, Gustav Radbruch segue atual em sua mensagem de conciliação entre os valores da segurança jurídica e da justiça.
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[1] “Antígona” foi constantemente citada ao longo da história da filosofia, inclusive por Aristóteles, na “Retórica”.
[2] “Impossível não falar em Antígona, não fazer surgir aqui o ícone cultural da revolta [...]” (GROSS, 2018, p. 78).
[3] No original, em inglês: “Natural law, in philosophy, a system of right or justice held to be common to all humans and derived from nature rather than from the rules of society, or positive law”, em https://www.britannica.com/topic/natural-law, consultado no dia 30 de maio de 2021.
[4] O Código Napoleônico (1804) é visto como exemplo máximo das sistematizações legislativas dessa época.
[5] Ainda que Bobbio faça uma advertência a esse respeito, evidenciada na seguinte passagem “[...] diz respeito à teoria da obediência. Sobre esse ponto não se podem fazer generalizações fáceis. Contudo, há um conjunto de posições no âmbito do positivismo jurídico que encabeça a teoria da obediência absoluta da lei enquanto tal, teoria sintetizada no aforismo Gesetz ist Gesetz (lei é lei) (BOBBIO, 1995, p. 133).
[6] https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/84/edicao-1/positivismo-juridico:-significado-e-correntes, consultado em 30 de maio de 2021.
[7] “Os meses mais críticos da hiperinflação alemã foram durante o ano de 1923, mais precisamente no segundo semestre, no qual o índice de inflação chegou a apresentar, no mês de outubro, a incrível marca de 29.607,11% ao mês!” (SBROCCO, 2011, p.27)
[8] Oficialmente, Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei).
[9] Hannah Arendt escreveu obra clássica sobre o tema: “Origens do Totalitarismo”.
[10] “A ascensão de Hitler ao poder foi legal dentro do sistema majoritário, e ele não poderia ter mantido a liderança de tão grande população [...] se não tivesse contado com a confiança das massas” (ARENDT, 1989, p. 356).
[11] Hitler foi nomeado Chanceler pelo Presidente alemão, Hindenburg, em janeiro de 1933.
[12] Apesar disso, os nazistas “nunca se deram ao trabalho de revogar oficialmente a Constituição de Weimar” (ARENDT, 1989, p. 444).
[13] A fonte de consulta para as legislações antissemitas da Alemanha foi o sítio eletrônico da Enciclopédia do Holocausto, https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/examples-of-antisemitic-legislation-19331939?parent=pt-br%2F11475, acessado em 1º de junho de 2021.
[14] A Lei de Cidadania do Reich e a Lei de Proteção do Sangue Alemão e da Honra Alemã ficaram popularmente conhecidas como “Leis de Nuremberg”.
[15] Outras minorias, como os ciganos, também sofreram no governo Hitler. Alemães, com posições políticas diferentes do nazismo, igualmente foram tratados como inimigos do Estado.
[16] Roland Freisler, que foi presidente do “Tribunal do Povo”, é um dos símbolos do desvirtuamento do direito alemão da época nazista e “[...] representa um Judiciário absolutamente dependente do poder, durante um estado de exceção, no qual o julgador também é acusador. O processo penal tornou-se uma farsa. Todo o procedimento não passava de uma encenação. Todos os protagonistas desta pantomima sabiam onde tudo terminaria” (GODOY; SARLET, 2021, p. 242).
[17] A punição abjeta causava grande temos nos detentos, o que desestimularia novas fugas.
[18] Para que a desumanização dos aprisionados fosse completa, eles eram conhecidos apenas por um número.
[19] O padre Kolbe foi, posteriormente, canonizado pelo Papa João Paulo II, em 1982, com o nome de São Maximiliano Maria Kolbe.
[20] O nome da peça é “As Aves da Noite”.
[21] O trecho se encaixa perfeitamente na citação que Hilst faz, antes do início da peça, de frase de Maria Vinowska, biógrafa do Padre Kolbe: “A tortura da fome faz descer o homem ao nível do animalesco, pois a resistência humana tem os seus limites – além dos quais só restam o desespero ou a santidade”.
[22] As versões aqui usadas são as presentes na obra “O Homem no Direito – Seleção de Conferências e Artigos sobre Questões Fundamentais do Direito, de Gustav Radbruch, traduzidas para a língua portuguesa pelo professor Jacy de Souza Mendonça, disponível em http://www.valorjustica.com.br/ohomemnodireito.pdf, consultado entre maio e junho de 2021.
[23] Tribunal instituído pelos países aliados para julgar lideranças do III Reich.
[24] Como máximo exemplo, naqueles idos de 1945, pode ser citada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
[25] Há relatos de condenação à morte ou à prisão perpétua por críticas a Hitler no âmbito das relações estritamente privadas ou por escutar rádios estrangeiras.
[26] Radbruch cita outros casos. Os mencionados acima são apenas dois exemplos dos inúmeros referidos pelos autor.
[27] O artigo 2º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, por exemplo, estabelece que “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do Homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.
[28] Os textos de Radbruch são anteriores à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Doutorando em Filosofia pela UNISINOS/RS. Professor de Direito da UniProjeção/DF. Mestre em Direito (PUC/SP). Especialista em Relações Internacionais (PUC/MG). Procurador da Fazenda Nacional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BUDIB, Alexandre Carlos. A injustiça legal extrema é direito? A filosofia de Gustav Radbruch e a valorização da dignidade humana. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jul 2021, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57028/a-injustia-legal-extrema-direito-a-filosofia-de-gustav-radbruch-e-a-valorizao-da-dignidade-humana. Acesso em: 22 nov 2024.
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