Resumo: A pandemia COVID-19 vem gerando prejuízos econômicos incalculáveis. A vacinação é a única esperança de melhoria, porém, em janeiro de 2021, o Brasil se viu em um impasse entre Governo Federal e a farmacêutica Pfizer, que impossibilitou a contratação imediata dos imunizantes. Como reação legislativa, a Lei 14.125/21 fora aprovada em março. De quatro artigos, dois possuem expressiva carga de incentivos e de potenciais consequências econômicas, como a assunção dos riscos de efeitos adversos das vacinas pelos entes políticos e a possibilidade regrada de o setor privado adquirir os imunizantes. Adotando-se o método científico hipotético-dedutivo, busca-se responder ao seguinte problema: Houve correta avaliação do impacto legislativo na elaboração da Lei 14.125/21? A hipótese é de que a Lei foi elaborada às pressas e sem maiores cuidados com esta crucial análise. Como objetivo, pretende-se verificar se referida legislação está amparada por estudos de impacto legislativo sólidos, bem como analisar a eficiência e incentivos gerados pela norma. Justifica-se o trabalho, pois a avaliação de impacto legislativo é medida de extrema importância para a escolha fundamentada de políticas legislativas, proporcionando ao legislador opções economicamente eficientes.
Palavras-Chave: Covid-19. Vacinação. Eficiência e incentivos econômicos gerados pela Lei 14.125/21. Avaliação de impacto legislativo.
Sumário: 1. Introdução – 2. Análise econômica da Lei 14.125/21: 2.1 Da legística e da análise de impacto legislativo; 2.1 Da eficiência e dos incentivos gerados pela Lei 14.125/21. 3. Considerações finais. 4. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
É muito comum que as legislações aprovadas em território nacional sejam apreciadas apenas sob aspectos tradicionais como a constitucionalidade, a juridicidade, a legalidade e a boa técnica legislativa.
A negligência que paira sobre outras análises igualmente importantes, não raras vezes, acaba por gerar normas altamente ineficientes e com um custo social que supera seus benefícios.
É justamente neste campo de atuação que a Análise Econômica do Direito vem ganhando espaço, pois possui uma proposta de ir além das costumeiras análises, buscando avaliar o impacto das legislações na sociedade sob o viés da teoria econômica.
Segundo Gico Júnior, “A Análise Econômica do Direito nada mais é que a aplicação do instrumental analítico e empírico da economia, em especial da microeconomia e da economia do bem-estar social, para se tentar compreender, explicar e prever as implicações fáticas do ordenamento jurídico, bem como da lógica (racionalidade) do próprio ordenamento jurídico.”[1]
Desta feita, o presente trabalho possui como objetivo realizar a análise econômica da Lei 14.125/2021, identificando se houve um correto estudo de impacto legislativo quando de sua elaboração e explorando quais os incentivos aptos a gerar aumento do bem-estar social e da eficiência.
2. ANÁLISE ECONÔMICA DA LEI 14.125/21
2.1 DA LEGÍSTICA E DA ANÁLISE DE IMPACTO LEGISLATIVO.
Conforme noticiado diariamente pela mídia nacional, o problema da pandemia COVID-19 vem perdurando para além das expectativas iniciais, gerando prejuízos incalculáveis à economia.
Para se ter uma noção do estrago, o PIB brasileiro em 2020 teve uma queda de 4,1% em relação ao ano anterior, mesmo diante da forte recuperação ocorrida no segundo semestre do ano, em virtude da ilusória superação do problema sanitário que envolveu positivamente o cenário econômico a partir de agosto de 2020[2].
O último Relatório Focus, publicado em 19/07/2021 no sítio do Banco Central, estima de forma otimista a expectativa de crescimento do PIB para este exercício de 2021 em 5,27%.[3]
Ou seja, mesmo levando em consideração a esperança da vacinação, somente agora há uma previsão de retorno do PIB ao patamar pré-pandemia, tamanha a devastação sofrida pela economia. São dois anos de economia praticamente estagnada, isto se restar confirmada referida previsão otimista de recuperação para 2021.
Diante deste panorama, o Brasil, assim como o restante do mundo, notou que a vacinação é a única esperança de melhoria do quadro a médio e longo prazo, porém se viu diante de um impasse entre o Governo Federal e a farmacêutica Pfizer surgido no fim de janeiro de 2021: O Presidente da República se negou a firmar avença com o mencionado laboratório, classificando como leonina e abusiva a cláusula contratual, imposta por este, de isenção de responsabilidade por efeitos colaterais da vacina.
O óbice imediatamente gerou reações do Poder Legislativo. Então, no dia 23/02/2021, o Senador Rodrigo Pacheco encaminhou o Projeto de Lei nº 534/2021, que “Dispõe sobre a responsabilidade civil relativa a eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19 e sobre a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado”, à apreciação do Senado Federal.
Após tramitação acelerada, o PL foi aprovado em ambas as casas legislativas, com pequenas alterações do texto original, sendo enviado à sanção presidencial no dia 03/03/21 e sancionado em 10/03/21, transformando-se na Lei 14.125/21.
A legislação é pouco extensa e formada por apenas quatro artigos, sendo que dois deles (e respectivos parágrafos) chamam a atenção por possuírem expressiva carga de incentivos e de potenciais consequências à economia. O primeiro autoriza os Entes políticos (União, Estados e Municípios) a adquirirem vacinas e a assumirem os riscos de eventual responsabilização civil por efeitos colaterais e adversos da vacinação, permitindo-se a constituição de garantias e a contratação de seguros privados para cobertura destes eventos. O segundo permite que o setor privado adquira vacinas em dois regimes diferentes: enquanto perdura a fase de vacinação dos grupos prioritários, toda compra deve ser doada ao SUS para fins de utilização no Programa Nacional de Imunização. Superada esta fase, é autorizado que metade das vacinas compradas sejam utilizadas de forma gratuita, desde que a metade remanescente continue sendo doada. Confira-se[4]:
“Art. 1º Enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), declarada em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), ficam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios autorizados a adquirir vacinas e a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado, em relação a eventos adversos pós-vacinação, desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha concedido o respectivo registro ou autorização temporária de uso emergencial.
§ 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão constituir garantias ou contratar seguro privado, nacional ou internacional, em uma ou mais apólices, para a cobertura dos riscos de que trata o caput deste artigo.
(...)
Art. 2º Pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir diretamente vacinas contra a Covid-19 que tenham autorização temporária para uso emergencial, autorização excepcional e temporária para importação e distribuição ou registro sanitário concedidos pela Anvisa, desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI).
§ 1º Após o término da imunização dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, as pessoas jurídicas de direito privado poderão, atendidos os requisitos legais e sanitários, adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% (cinquenta por cento) das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita.
(...)”
A justificação do projeto foi a seguinte:
“A vacinação é a principal ferramenta para debelar a crise que estamos vivenciando. Nesse sentido, cabe ao Congresso Nacional aprimorar a legislação a fim de conferir flexibilidade e segurança jurídica para a aquisição dos imunobiológicos necessários para proteger o povo brasileiro. A escassez da oferta de vacinas, somada à necessidade de acelerar o processo de imunização não nos autoriza a dispensar nenhuma oportunidade de aquisição.
Nesse sentido, propomos que a legislação autorize que, nos termos dos contratos eventualmente celebrados, possa o ente público assumir riscos e responsabilidades decorrentes de eventos adversos pós-vacinação, viabilizando, assim, o atendimento às condições atualmente impostas pelos fornecedores.
Também identificamos a necessidade de permitir a participação complementar da sociedade civil nesse processo tão desafiador. Assim, com o intuito de ampliar a capacidade de compra e os canais de distribuição, autorizamos a aquisição direta de vacinas por entes privados para doação ao SUS ou para comercialização, desde que concluída a vacinação dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid19.
Desse modo, estaremos colaborando com o Poder Executivo da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para o enfrentamento dessa crise tão aguda e grave, que tanto mal tem causado ao povo brasileiro.”[5]
Do ponto de vista da legística a da análise de impacto legislativo, é possível identificar de antemão algumas falhas cruciais na justificação da norma, que deixou de explorar aspectos importantes como: a) verificação do arcabouço jurídico que envolve o tema; b) soluções possíveis e comparação entre elas (análise custo-benefício); c) vantagens e inconveniências de cada uma das soluções possíveis; d) identificação dos impactos econômicos e sociais caso a legislação seja aprovada; e) análise qualitativa, quantitativa e de risco; f) impactos distributivos; g) custos administrativos; h) relações intergovernamentais; i) consulta entre ministérios envolvidos; j) consulta aos interessados na nova norma.[6]
Como se observa, a justificação do projeto se limitou a tecer alguns rasos comentários sobre a exposição da situação, salientando a necessidade de se conferir flexibilização e segurança jurídica ao processo de aquisição de imunobiológicos.
Quanto à participação da iniciativa privada, se ateve a sustentar a necessidade de participação da sociedade civil, no intuito de ampliar a capacidade de compra e distribuição dos imunizantes.
Neste ponto já se verifica uma grave contradição entre a justificação e o Projeto de Lei: Aquela traz a ideia de que seria autorizada a aquisição de vacinas pela iniciativa privada para comercialização, mesmo que após a imunização dos grupos prioritários. O Projeto de Lei, contudo, em nenhum momento permite a comercialização dos imunizantes, desde sua redação original até a versão final sancionada pelo Presidente.
Veja-se, ademais, que não houve análise de possível aplicação das leis já existentes, indicação de outras soluções possíveis com suas vantagens e inconveniências, tampouco das implicações sociais e financeiras que o projeto poderia gerar. Quanto a estas, pode-se assegurar que não são poucas, mormente em se considerando o alto valor de eventuais indenizações, de contratação de seguros e constituição de garantias, além das consequências da proibição de venda pela iniciativa privada e necessidade de doação ao SUS (integral ou parcial, a depender do estágio da vacinação), impactando diretamente no total de imunizantes a serem adquiridos pelo país. Registre-se, ainda, a ausência de qualquer estudo sobre os custos administrativos e análises de risco, ou consulta aos ministérios envolvidos e aos interessados na nova norma, como a iniciativa privada, por exemplo.
Consigne-se, outrossim, que não houve pesquisa de adequação sobre a realidade brasileira, mormente diante do fato de que este regime jurídico de exclusão da responsabilidade das farmacêuticas existe a cerca de 40 (quarenta) anos, porém em países ricos, conforme ressalta o doutor em economia Thomas Conti, CEO da AED Consulting e professor no Insper[7].
Por mais que o objetivo da norma seja nobre, não há base empírica para confirmar que o problema da escassez de vacina seria resolvido ou ao menos minimizado, mormente porque o impasse não surgiu com todos os fornecedores de vacina e aparentemente apenas o referido laboratório impôs esta dificuldade maior ao Brasil. Ademais, além de o produto da Pfizer possuir uma logística de transporte mais cara e complexa, já que precisa ser conservado a -70ºC (informação esta que vem sendo reprocessada apenas após os contratos firmados), quase 90% do imunizante comprado desta farmacêutica somente pode ser entregue a partir do segundo semestre deste ano.[8]
Veja-se, ainda, que a livre iniciativa é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e essência da Ordem Econômica, que, por sua vez, se funda em princípios como propriedade privada e livre concorrência (art. 1º, IV, e 170, caput, II e IV, da Constituição Federal). Assim, não obstante a necessidade de um sopesamento com outros direitos e fundamentos como a saúde (arts. 6º de 196 da CF) e dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), fato é que não houve uma melhor análise acerca desta relevante e complexa temática jurídica, o que não contribui para a efetividade, eficácia e eficiência do sistema jurídico. Ao contrário do sinalizado na justificação, percebe-se que a norma traz consigo verdadeira insegurança jurídica, o que fica mais evidente quando já se observa decisão proveniente da Justiça Federal declarando a sua inconstitucionalidade no que tange à obrigatoriedade de doação integral ao SUS das vacinas compradas pela iniciativa privada[9].
Outro aspecto que chama a atenção é que a nova legislação não impõe qualquer espécie de multa ou sanção àquelas entidades privadas que burlarem as regras e adquirirem vacinas para comercialização e sem entregar ao SUS.
A norma também não previu a criação ou destinação de nenhum sistema organizado para fiscalizar e prevenir eventuais desvios do que foi determinado, tampouco houve previsão dos respectivos custos regulatórios.
Aqui cabe referência aos ensinamentos de Douglass North: se incentivos contidos na matriz institucional recompensam a pirataria, novas organizações piratas surgirão[10]. E é o que se verifica no caso concreto, pois já há notícias de doses falsificadas e de compra por parte de empresários para uso em seus funcionários antes da vacinação dos grupos prioritários[11].
Ressalte-se que o objetivo inicial do presente trabalho não é de proclamar o desacerto da Lei 14.125/21. Pelo contrário, a legislação trouxe importantes avanços econômicos, conforme se verá adiante. Busca-se apenas tecer críticas construtivas ao modo como foi elaborada.
Em suma, infelizmente a norma parece ter sido criada com base na intuição e no senso comum, afastando-se da teoria comportamental defendida por Cooter e Ulen.[12]
2.2 DA EFICIÊNCIA E DOS INCENTIVOS GERADOS PELA LEI 14.125/21.
Feitas estas importantes considerações acerca da legística e da ausência da análise adequada do impacto legislativo da norma, passa-se a tecer comentários sobre a eficiência e os incentivos gerados para o aumento ou diminuição do bem-estar social da novel legislação.
A despeito das diversas escolas buscando demonstrar a interação entre direito e economia, o objetivo da Análise Econômica do Direito mantém-se o mesmo, qual seja, o de aplicar à ciência jurídica ferramentas econômicas visando maior eficiência.
O conceito de eficiência econômica está intimamente ligado à maximização da riqueza e do bem-estar social, e, para sua melhor compreensão, faz-se necessário alguns breves apontamentos sobre as teorias desenvolvidas por dois importantes economistas clássicos da era pós-industrial.
Vilfredo Pareto (1848-1923) foi pioneiro na criação de um critério de avaliação do bem-estar-social, propiciando significativas transformações no estudo da economia. Segundo o economista francês, uma sociedade atinge seu bem-estar máximo quando não for mais possível aumentar o bem-estar de um indivíduo sem diminuir de outro.[13] Em outras palavras, trata-se de um ponto de equilíbrio, chamado de Ótimo de Pareto, em que melhorar a situação de um agente necessariamente implica piorar a de outro.
Como se percebe, trata-se de um critério de difícil aplicação prática em termos de política econômica, pois impossível desenvolver qualquer ação social nesta esfera sem piorar a situação de ao menos uma pessoa.
Já o critério de Kaldor-Hicks difere de Pareto por admitir a possibilidade de mudança social eficiente na hipótese de um indivíduo ter sua posição melhorada às custas de outrem (realocação econômica), contudo, desde que o perdedor seja ao menos teoricamente compensado, de modo a manter seu nível inicial de utilidade.[14]
Este critério é vastamente aplicado na economia do bem-estar, mormente diante de sua vertente da análise custo-benefício, de sorte que novos projetos se justificam socialmente se houver um ganho maior para todos, mesmo que alguns indivíduos fiquem pior.
Daí podemos tirar a conclusão de que toda melhoria de Pareto é também uma melhoria Kaldor-Hicks, porém, o contrário não é verdadeiro.
Contudo, esta teoria também sofre críticas em razão da preocupação apenas com as melhorias, sem se importar com o problema da distribuição, o que inviabiliza em grande parte sua aplicação prática como meta de eficiência em si, mas não o impede de ser muito utilizado em testes de potenciais melhorias.
Tomando as retromencionadas teorias clássicas como parâmetro, veja-se que, a despeito de não ter sido realizada a necessária análise de impacto legislativo no caso concreto, não são poucos os estudos que apontam no sentido de que a vacinação é muito eficiente economicamente e capaz de gerar aumento considerável do bem-estar social. Sem dúvida, trata-se de uma externalidade positiva que surge em boa hora.
Segundo noticiado pela BBC News Brasil[15], há dados obtidos com a OMS e estudos de outras instituições e pesquisadores indicando que a vacinação evita, no mínimo, quatro mortes por minuto no mundo e gera uma economia de US$ 350 bilhões, o que equivale a R$ 250 milhões diários.
Para realização destes cálculos considera-se todos os custos envolvidos entre o período de 2001 e 2020, como internação, medicamentos, transporte, perda de produtividade, renda das pessoas que morrem prematuramente.
Ainda segundo o noticiário, a Universidade de Oxford pondera que a estimativa é bastante comedida, pois levou em conta que a imunização evitaria apenas cerca de 2 a 3 milhões de mortes por ano, eis que a pesquisa se refere somente a algumas doenças como difteria, sarampo, coqueluche, poliomielite, rotavírus, pneumonia, diarreia, rubéola e tétano.
Em contrapartida, considerando estimativas razoáveis sobre a varíola, por exemplo, a Universidade destacou que seria possível imaginar aproximadamente 5 milhões de mortes por ano caso não tivesse sido desenvolvida a vacina, o que elevaria consideravelmente o retromencionado cálculo econômico. No caso do COVID, o mundo teve cerca de 2,8 milhões de mortes em 2020, com uma previsão assustadoramente maior para o fim de 2021 caso as vacinas não sejam totalmente implementadas, mormente diante da possibilidade de surgimento de novas variantes mais letais. Segundo publicação do Wall Street Journal datada de 10 de junho de 2021, o número de mortes por COVID-19 neste ano já supera o do ano passado[16].
Ou seja, a despeito de a OMS ainda não ter publicado estimativa da economia diária mundial gerada pela imunização específica do COVID, pode-se afirmar, com segurança, que os cálculos superam em muito os R$ 250 milhões diários poupados com as retromencionadas doenças. É que, apesar de o COVID, exclusivamente, gerar uma estimativa de mortes semelhante àquelas outras enfermidades em conjunto (entre 2 e 3 milhões anuais), há um prejuízo extra muito severo decorrente do fechamento do comércio e fronteiras. Para se ter uma noção, levantamento feito pela Federação das Câmaras de Dirigentes Lojistas de Minas Gerais estima um prejuízo diário de 462 milhões de reais somente naquele estado da federação, com previsão de fechamento de 203 mil empresas (cerca de 58% do total)[17]. Uma verdadeira catástrofe econômica com perdas irreparáveis para os próximos anos.
Assim, no que pertine à Lei 14.125/21, mesmo diante da análise de todos os custos envolvidos (preço de eventuais indenizações por efeitos colaterais, gastos com seguro e com garantias, custos com aquisição das vacinas, etc), pode-se dizer que é uma legislação direcionada a trazer eficiência econômica e aumento do bem-estar social, mormente no que pertine ao seu artigo 1º, pois visa desburocratizar o processo de aquisição dos imunizantes. Conforme visto, os prejuízos causados diariamente pela pandemia são incalculáveis e certamente os retromencionados custos não se aproximam dos benefícios econômicos que a imunização em massa trará, como vidas preservadas, reabertura do comércio e de fronteiras, valores poupados pelo SUS, etc. Não por outro motivo a vacinação é reconhecida como uma externalidade positiva clássica: o ganho social é maior do que os ganhos privados.
Outrossim, mais importante do que a resolução imediata do impasse entre Governo Federal e Pfizer é a prevenção de futuros entraves com outros laboratórios que também venham a oferecer vacinas no mercado. A lei deve incentivar a negociação reduzindo os custos de transação e removendo os impedimentos aos acordos privados, e é exatamente o que essa nova legislação faz.
Já no que diz respeito ao artigo 2º e parágrafos, chama a atenção o fato de que este debate, sobre oferecimento de vacinas pela rede privada, é peculiar ao Brasil. Segundo a médica brasileira Mariângela Simão, diretora do setor de Acesso à Medicamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS),“Em todos os países em que a OMS vem trabalhando, a gente está verificando que as compras estão sendo feitas pelo governo, e não pela iniciativa privada”[18]
De todo modo, apesar de a legislação ter permitido a compra de vacinas pelo setor privado, a proibição de sua comercialização parece estar em consonância com o que vem sendo praticado em todo o mundo, o que se mostra adequado, pois a preocupação com o critério da distributividade se faz imperiosa diante da escassez dos imunizantes.
Sem dúvida há uma perda de eficiência inerente à própria natureza do mercado privado, que trabalha com a ideia de competitividade e de livre concorrência. Porém, não há como se negar que doenças infectocontagiosas como a COVID são externalidades que impedem que ocorra uma situação ótima, e este é o motivo da intervenção estatal vedando a comercialização.
Perceba-se que a norma, neste ponto, além de possuir o nobre objetivo de obstar o comércio de vidas (pois os que possuem melhores condições financeiras certamente seriam beneficiados), emprega uma conhecida estratégia econômica de internalizar as externalidades, incentivando a iniciativa privada a tratar os custos e benefícios sociais como privados. Como exemplo, uma empresa que adquire vacinas para imunizar seus empregados, mesmo sem poder comercializá-las e tendo que doar metade ao SUS, terá grandes benefícios como o ganho da capacidade produtiva daqueles que não mais ficarão doentes.
A maior controvérsia paira realmente na obrigação de doação integral ao SUS durante a vacinação dos grupos prioritários. A questão é extremamente complexa e sensível, já que muitos grupos de trabalhadores entendem que também deveriam ter prioridade, como rodoviários, motoristas de aplicativos, policiais e estudantes de medicina que estão na linha de frente, dentre outros.
Veja-se que o efeito prático da norma é, nesta ocasião inicial, de efetivamente impedir sindicatos ou representantes destes trabalhadores de adquirirem os imunizantes em prol da classe, pois tudo que for comprado deve ser doado ao SUS.
É um desestímulo que favorece perda de eficiência, pois não se mostra crível que categorias que já enfrentam dificuldades econômicas incríveis comprem vacinas por mera filantropia. Como consequência, a iniciativa privada simplesmente se absterá de realizar qualquer compra de imunizante, já que não é economicamente viável. Ademais, a insegurança jurídica causada é tremenda, pois a constitucionalidade da norma, neste ponto, é bastante controversa.
Em resumo, analisando-se economicamente este dispositivo em específico, percebe-se que o legislador perdeu a oportunidade de melhor aprofundar o tema e suas consequências, pois certamente haverá mais problemas atrelados à norma do que soluções. De outra sorte, os demais dispositivos são bem vindos e certamente trarão ganhos em eficiência e bem-estar social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei 14.125/21 foi elaborada em um contexto sanitário que exigia celeridade do Poder Legislativo, que acabou por criar a norma sem se atentar à imprescindível análise de impacto legislativo em suas várias vertentes.
Porém, apesar de ter sido evidente a ausência de maiores estudos, pode-se dizer que havia um ponto positivo a favor do legislador que facilitou a tomada de decisão, que é o fato de a vacinação ser reconhecida como uma clássica externalidade positiva, que gera ganhos sociais maiores do que ganhos privados.
Diante deste cenário, a nova lei veio com o objetivo claro de incentivar a negociação, reduzindo os custos de transação e removendo os impedimentos aos acordos privados, o que é extremamente positivo do ponto de vista econômico.
Andou bem o legislador até mesmo no que diz respeito à necessidade de doação ao SUS de 50% dos imunizantes comprados pela iniciativa privada, pois buscou, de forma estratégica, internalizar as externalidades, incentivando esta a tratar os custos e benefícios sociais como privados.
Porém, pecou principalmente no entrave lançado durante o período de imunização dos grupos prioritários, pois a obrigação de doação integral acaba por inviabilizar por completo a participação deste importante setor neste momento inicial, em sentido absolutamente contrário ao preconizado na justificação da norma. Ademais, a insegurança jurídica surgida é notável.
De todo modo, pode-se dizer que, em geral e a despeito das falhas, é uma legislação positiva que poderá auxiliar o Brasil no enfrentamento da pandemia, gerando aumento de eficiência e bem-estar social.
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[1] GICO JR., Ivo. Metodologia e Epistemologia da Análise Econômica do Direito. Economic Analysis Of Law Review, 2010, página 13.
[2] BRASIL. Nota Informativa Conjunta da Secretaria de Política Econômica, Secretaria Especial de Fazenda e Ministério da Economia. “Atividade Econômica, Resultado do PIB 2020 e Perspectivas” Quarta-Feira, 03 de março de 2021 - https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/notas-informativas/2021/ni-atividade-economica-pib-2020-e-perspectivas.pdf, consultado em 30/03/2021.
[3] BRASIL. Banco Central do Brasil. “Relatório de Mercado Focus” - https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20210716.pdf, consultado em 20/07/2021.
[4] BRASIL. Lei 14.125/2021 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14125.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2014.125%2C%20DE%2010%20DE%20MAR%C3%87O%20DE%202021&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20responsabilidade%20civil,pessoas%20jur%C3%ADdicas%20de%20direito%20privado, consultado em 31/03/2021.
[5] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 534, de 2021 - https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8928760&ts=1616203458123&disposition=inline, consultado em 30/03/2021.
[6] EUROPEAN COMMISSION, “Impact Assesment Guideline” - http://regulatoryreform.bg/en/wp-content/uploads/sites/2/2016/12/EC-Impact-Assesment-Guidelines-2009.pdf, consultado em 01/04/2021.
[7] HARTMANN, Marcel. “Entenda o que é o termo de isenção de responsabilidade da Pfizer, citado pelo governo brasileiro como entrave para compra da vacina.” Zero Hora, publicado em 28/01/2021 - https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2021/01/entenda-o-que-e-o-termo-de-isencao-de-responsabilidade-da-pfizer-citado-pelo-governo-brasileiro-como-entrave-para-compra-da-vacina-ckkhc46fd006w017w7ikqrxlx.html, consultado em 01/04/2021.
[8] VALENTE, Jonas. “Covid-19: Pfizer deve entregar 13,5 milhões de vacinas até julho” Agência Brasil, publicado em 29/03/2021 - https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-03/covid-19-pfizer-deve-entregar-135-milhoes-de-vacinas-ate-junho, consultado em 01/04/2021.
[9] MIGALHAS, Redação do. “Juiz autoriza sindicatos a comprar vacinas sem ter que doar ao SUS. Magistrado declarou inconstitucional artigo da lei que prevê a importação de vacinas, desde que sejam integralmente doadas ao SUS.” Publicado em 25/03/2021 - https://www.migalhas.com.br/quentes/342455/juiz-autoriza-sindicatos-a-comprar-vacina-sem-ter-que-doar-ao-sus, consultado em 02/04/2021.
[10] NORTH, D. C. “Institutions, institutional change and economic performance.” Cambridge: University Press, 1990.
[11] CANOFRE, Fernanda. “Origem chilena da vacina usada em BH é uma das hipóteses investigadas pela PF” Folha de São Paulo, Publicado em 26/03/2021 - https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/03/origem-chilena-da-vacina-usada-em-bh-e-uma-das-hipoteses-investigadas-pela-pf.shtml, consultado em 03/03/2021.
[12] COOTER, Robert; ULEN, Thomas. “Law and Economics.” 5ª Edição. Boston: Pearson/Addison Wesley, 2008.
[13] GARCIA, Fernando. “Texto introdutório do livro: PARETO, Vilfredo. Manual de economia política.” Trad. de João Guilherme Vargas Netto. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 13.
[14] LEMOS, Alan. “Falhas de mercado, intervenção governamental e a teoria econômica do Direito.” - https://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/28656-28674-1-PB.pdf, consultado em 26/03/2021.
[15] BBC, Redação do. “Vacinas evitam 4 mortes por minuto e poupam R$ 250 milhões por dia.” Publicado em 7/9/2020 - https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54029641, consultado em 03/04/2021.
[16] KAMP, Jon; DOUGLAS, Jason; FORERO, Juan. “Covid-19 Deaths This Year Have Already Eclipsed 2020’s Toll” – publicado em 10/06/2021 - https://www.wsj.com/articles/covid-19-deaths-this-year-have-already-eclipsed-2020s-toll-11623350773?mod=hp_lead_pos1 – acessado em 20/07/2021
[17] VALVERDE, Michele. “Comércio e serviços perdem 8,8 bi com onda roxa em MG.” Diário do Comércio, publicado em 31/3/2021 - https://diariodocomercio.com.br/economia/comercio-e-servicos-perdem-r-88-bi-com-onda-roxa-em-mg, consultado em 01/04/2021.
[18] RIVEIRA, Carolina. “OMS: debate sobre vacina na rede privada é só no Brasil.” Revista Exame, publicado em 06/01/2021 - https://exame.com/brasil/oms-debate-sobre-vacina-na-rede-privada-e-so-no-brasil/, consultado em 04/04/2021.
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Amazonas. Mestrando pela Ambra University. Pós graduado em direito público. Ex Delegado de Polícia de Santa Catarina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: WALKER, Eduardo Alves. Análise econômica da Lei nº 14.125/2021 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2021, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57033/anlise-econmica-da-lei-n-14-125-2021. Acesso em: 22 nov 2024.
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