RESUMO: A humanidade se aproxima de uma ruptura das suas estruturas sociais até então baseadas na família como base da geração e gestação de um novo ser. Em pouco tempo será possível o nascimento de uma pessoa por encomenda, gerada com características especificas e inteiramente desenvolvida não em um corpo humano, mas em um equipamento médico. Contrato de consumo. Dois grandes riscos podem surgir, caso não haja uma limitação ou controle do uso dessa tecnologia: o risco da pessoa se tornar socialmente uma coisa e os riscos ambientais decorrentes do rompimento da linha de evolução natural da espécie humana. O princípio da precaução deve ser aplicado.
ABSTRACT: Humanity is approaching to a rupture of its social structures, which until then had been based on the family as the basis for the generation and gestation of a new human being. In a short time it will be possible to birth a person by order, generated with specific characteristics and fully developed not in a human body, but in medical equipment. Consumer contract. Two big risks can arise, if there is no limitation or control of the use of this technology: the risk of the person becoming socially a thing and the environmental risks arising from the disruption of the natural evolution line of the human species. The precautionary principle must be applied.
Palavras-chave: Dignidade Humana. Engenharia Genética. Meio Ambiente. Princípio da Precaução. Reprodução Humana. Útero Artificial.
Sumario: 1. Introdução. 2. Hipótese. 3. Análise. 4. Conclusão. 5. Referência.
[1]. INTRODUÇÃO
A evolução tecnológica na área da saúde tem trazido inúmeras novas questões. Os reflexos dessa evolução vão do papel do médico e da relação médico paciente à própria natureza do ser humano, na estrutura social, com impacto na forma de vida e no Direito.
Fala-se com frequência, por exemplo, na impressora 3D e seus potenciais usos, no CRISPR-CAs9,[1] no RLR,[2] na terapia genética, na inteligência artificial, nos sensores medindo os sinais, ou simplesmente, permitindo seguir pessoas no mundo, e nos robôs orgânicos (“xenobots’),[3] um passo inicial para a integração do orgânico com o inorgânico. Cada uma dessas tecnologias traz inimagináveis possibilidades para a sociedade,[4] mas, ao mesmo tempo, traz inúmeras preocupações.
Não se pretende cuidar aqui de todas essas evoluções, até porque cada uma delas abre caminho para uma miríade de questionamentos, não somente de ordem médica, mas de ordem ética e legal.
Assim, cabe eleger-se uma delas.
Dentre as várias evoluções que ocorrem, uma chama especial atenção: o útero artificial.
Em uma reportagem publicada nos fins de 2019, é dito que foi concedido 2,9 milhões de euros para a Eindhoven University of Technology desenvolver um protótipo de um útero artificial para tratar de crianças prematuras, com o diferencial de reproduzir as condições do ventre materno, “com o bebê cercado por líquidos e recebendo oxigênio e nutrientes através de uma placenta artificial que se conectará ao cordão umbilical.” [5]
Embora ainda muito inicial, e com um propósito específico de atender melhor e mais naturalmente as crianças prematuras, se esse protótipo, ou algum outro ainda não noticiado, se tornar viável, rapidamente ele irá evoluir para o atendimento de crianças cada vez mais prematuras, até se chegar ao próprio óvulo fecundado, como é previsível em qualquer linha de evolução tecnológica.
Esse será um grande passo.
Na área da reprodução humana hoje é possível impedir a fertilização, estimulá-la ou provocá-la (internamente ou fora do corpo da mulher, com ou sem a necessidade da cópula), porém, a gestação permanece sendo um processo de íntimo contato entre o feto e uma mulher (útero de quem produziu o óvulo ou útero de um terceiro). Com a evolução do útero artificial poderá ser possível, em um futuro mais ou menos próximo, que esse desenvolvimento também possa ocorrer fora do útero de uma mulher.
Essa evolução (nascer fora do útero de uma mulher), aliada a alguns outros desenvolvimentos, que hoje já são, ou serão proximamente possíveis e corriqueiros (alguns exemplos: escolhas de características genéticas, geração de óvulo fecundado a partir de uma mesma pessoa,[6] acompanhamento médico à distância mediante sensores,[7] entre outros), pode ser o início de um grande processo de reorganização social, com redefinição de papéis sociais, com forte impacto potencial no meio ambiente e na dignidade da pessoa humana.
Cabe esclarecer, desde logo, que não se posiciona aqui contra as inovações tecnológicas, na área médica ou qualquer outra área, mas se entende que elas devam ser discutidas considerando-se os seus efeitos, não somente econômicos, mas também sociais e ambientais, e respeitando-se a diversidade cultural dos diversos povos do mundo.
[2]. HIPÓTESE
Imagine-se aqui a seguinte hipótese: num futuro próximo, uma pessoa poderá contratar um serviço multiprofissional para obter um embrião com algumas e especificas características. Mais do que isso, esse embrião será desenvolvido através de um útero artificial e o recém-nascido será entregue em uma certa data e em certo lugar. Provavelmente, esse serviço não dará garantia do resultado buscado pela pessoa, mas, para permitir acompanhar a evolução da recém-nascido, o serviço médico implantará sensores que irão permitir rastrear não somente onde o recém-nascido está, mas também os seus sinais vitais de saúde e evolução, permitindo o acompanhamento médico mais efetivo e rápido, presencialmente ou à distância.
Esse método artificial de reprodução, mediante a utilização de um útero artificial e a contratação de uma série outras de serviços, traz consequências não somente para o recém-nascido, mas, também, para os genitores (ou genitor) e a sociedade.
Para fins da presente análise, esse serviço multiprofissional será considerado como sendo um serviço de natureza médica.
[3]. ANÁLISE
O que se poderia dizer, em poucas linhas, com relação a essa hipótese no Direito brasileiro?
Com fundamento, de um lado e dentre outras, na [1] a Constituição Federal do Brasil - “CF”;[8] [2] no Código Civil Brasileiro (Lei Federal 10.406/2002) - “CCB”;[9] [3] no Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal 8.078/1990) - “CDC”;[10] [4] nas Leis Federais: (i) nº 3.268/1957 (Lei do Conselho de Medicina) - “LF3268”;[11] (ii) nº 6.360/1976 (Dispõe sobre a Vigilância Sanitária) – “LF6360”;[12] nº 8.080/1997 (Lei do Sistema Único de Saúde – SUS) - “LF8080”;[13] (iii) nº 9.263/1996 (Lei do Planejamento Familiar) – “LF9263”;[14] (iv) nº 9.656/1998 (Lei das Operadoras de Planos de Saúde) - “LF9656”;[15] (v) nº 9.782/1999 (Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e cria a ANVISA) - “LF9782”,[16] (vi) nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) - “LF11105”;[17] nº 12.842/2013 (Lei do Médico) - “LF12842”;[18] e (vii) nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados) - “LF13709”;[19] [5] nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina de números 2294/2021 (trata das Técnicas de Reprodução Assistida) - “CFM2294”,[20] e 2217/2018 (Código de Ética Médica) - “CFM2217”;[21] [6] nas seguintes Declarações da UNESCO:[22] (i) Declaração Universal em Bioética e Direitos Humanos; [23] (ii) Declaração Universal sobre Genoma Humano e Direitos Humanos;[24] (iii) Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos;[25] e (iv) Declaração Sobre as Responsabilidades das Gerações Presentes com Relação as Futuras;[26] e [7] na Convenção de Oviedo.[27]
E, de outro, na doutrina e na jurisprudência, aqui, em especial, duas decisões do Supremo Tribunal Federal, a primeira na ADI 3510 (onde se discutiu a constitucionalidade do Art. 5º da LF11105, julgada em 29/05/2008)[28] e, a segunda, a ADPF 54 (onde se discutiu a questão relativa à interrupção da gestação de feto anencéfalo, julgada em 12/04/2012).[29]
É possível sustentar os seguintes pontos com relação ao útero artificial:
[1]. Em vindo esse procedimento deixar de ser experimental, e sendo ele considerado um procedimento médico, ou de saúde, ele poderia ser incluído no rol de cobertura, tanto do SUS quanto das OPS.
[2]. Em sendo ele um procedimento médico, as normas éticas previstas no Código de Ética Médica (CFM2217) e demais resoluções do CFM, se aplicariam, aqui incluídos, dentre outros, os deveres de informar (esclarecer) e de atuar sempre no melhor interesse do paciente.[30]
[3]. O direito de procriar é um direito humano fundamental e a decisão de quando, e como, ter filhos, é uma decisão livre e pressupõe respeito à dignidade humana, respeito ao direito a vida e uma escolha responsável (paternidade responsável).[31]
[4]. Antes do nascimento não há vida, mas há proteção ao nascituro.[32] O nascituro, no entender de LUIS ROBERTO BARROSO, “é o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato certo. ”[33] Porém, a possibilidade de alteração e seleção de caraterísticas do novo ser, e a possibilidade de vir a ser gestado fora de um útero humano, transferiria a proteção para um momento anterior à nidação, ou seja, para o momento anterior à fixação na parede uterina, trazendo discussões não somente com relação à reprodução ou ao direito de reproduzir, mas também com relação à quando, e a que extensão, um ser potencial teria proteção. Assim, por exemplo, no caso do útero artificial, o objeto de cuidado do médico seria o futuro ser (o nascituro) e, não, quem contratou o serviço. Aqui, o equilíbrio do binômio materno fetal penderia em favor do nascituro
[5]. Mesmo ao nascer, com características especiais e mediante o uso de útero artificial, não caberia qualquer distinção com relação aos demais filhos, naturais ou adotivos, sendo a CF clara neste sentido: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”[34]
[6]. O uso do útero artificial, após devidamente aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária –ANVISA-, e pelo Conselho Federal de Medicina -CFM-, não encontraria, até por analogia à cessão de útero,[35] prevista na CFM 2294 (que entre outros assuntos trata da gestação de substituição – cessão temporária de útero), razões éticas e/ou médicas que impedissem, a priori, o seu uso.
[7]. Em sendo esse um procedimento eletivo, não estaria o médico obrigado a realizá-lo e, isso, sem prejuízo de poder ele apresentar objeção de consciência.[36] A situação mudaria no caso de uma emergência, onde o uso do útero artificial fosse necessário para salvar a vida do nascituro; neste caso, teria o profissional o dever de atuar.
[8]. Ademais, o médico não pode, na sua prática, garantir um resultado; ele se compromete apenas a usar a melhor técnica visando alcançar este resultado. A sua obrigação é de meio. Mesmo na hipótese presente, ela permaneceria sendo de meio. No que diz respeito à responsabilização, entretanto, e em sendo essa atividade multiprofissional, com a utilização de diversos serviços, materiais e equipamentos, a atividade de cada pessoa envolvida, seja uma pessoa física ou jurídica, deverá ser apreciada caso a caso.
[9]. Por outro lado, e considerando que a saúde não é somente a ausência de doença, mas a sensação de completo bem-estar físico, mental e social, conforme definido pela World Health Organization -WHO-,[37] tem o médico o dever de informar para além das questões diretamente relacionadas ao uso do equipamento e à prestação de serviço contratado, devendo explicar, também, as consequências do procedimento com relação à própria criança e com relação aos eventuais efeitos psicológicos, sociais e ambientais desse procedimento, tanto para a criança, quanto para a pessoa contratante. Após a devida informação, deve o médico obter o consentimento informado, livre, entendido e esclarecido do paciente.
[10]. Embora, em tese, seja possível a estipulação de um local para a entrega da criança ao nascer, a estipulação de uma data certa não seria possível. A formação e desenvolvimento do feto deve seguir o seu ritmo natural, e a data e momento certos para o parto (desligamento do útero artificial) deve se dar no melhor benefício do nascituro e, não, da pessoa contratante. No momento em que começa a gestação externa, o paciente principal passa a ser o nascituro.
[11]. As regras éticas, previstas no CFM2217 e nas demais resoluções do CFM, devem ser observadas pelos médicos, não somente com relação ao contratante, mas principalmente com relação ao nascituro, onde presente deve ser o binômio da segurança materno fetal.[38] Dentre essas regras merecem destaque: (i) não causar dano; (ii) não deixar que interesses outros (econômicos e comerciais, por exemplo) interfiram no tratamento; (iii) atuação no melhor interesse do paciente; e, (iv) não deixar de tratar o nascituro com dignidade.[39]
[12]. Nessa mesma linha de raciocínio, de ser agora o nascituro o objeto da atenção principal do médico, o monitoramento dele, mesmo após o seu nascimento, por finalidade médica e no interesse dele, e com o consentimento dos pais, mediante a implantação de sensores, poderia ser admitido.[40]
[13]. Com foco ainda na proteção do nascituro, no procedimento de fertilização, é proibido ao médico criar seres humanos geneticamente modificados, ou criar embriões para escolha de sexo, eugenia, híbridos ou quimeras.[41] Ou seja, não pode o médico modificar o genoma humano, embora se admita a terapia gênica.
[14]. Da mesma forma, proibida seria a seleção de características especificas do novo filho, salvo se houvesse específica e comprovada necessidade médica para a proteção do novo ser. Mas as tecnologias de edição genética vêm provocando a necessidade de revisão dos entendimentos. Nesse sentido, por exemplo, o Comitê de Bioética na sua 16ª Reunião (19-21/11/2019), adotou, no seu plano de ação para STRATEGIC ACTION PLAN ON HUMAN RIGHTS AND TECHNOLOGIES IN BIOMEDICINE (2020-2025), a necessidade de se rever o artigo 13 da Convenção de Oviedo em razão do desenvolvimento “in gene editing technologies.”[42]
[15]. Por outro lado, não é admitida a reprodução através da clonagem; entretanto, como se está diante da necessidade de respeito à dignidade e de um direito fundamental, -o direito de procriar-, se a clonagem vier a ser o único meio possível de reprodução, de geração de filhos, de formação de família, esse impedimento poderá vir a ser mitigado.[43]
[16]. Esse novo ser gerado, no que diz respeito às características, não pode ser instrumento para a satisfação de interesses pessoais ou sociais, devendo ele ser protegido, como dito anteriormente, não somente a partir da nidação, como normalmente hoje se entende, mas, considerando as escolhas de características que poderão ser feitas pelos genitores (ou genitor), desde o momento que precede a escolha das suas características. Seria a proteção desde o momento do ainda “não ser”.
[17]. A pessoa humana não pode ser instrumento de satisfação de quem quer que seja em qualquer momento ou tipo de relação de que venha a participar.
[18]. O uso do útero artificial, o mapeamento genético, e a eventual “adequação genética” do novo ser, seria objeto de um contrato, contrato este tipicamente de consumo sujeito, portanto, às regras do CDC.[44]
[19]. Sendo contrato de consumo, o contratante e o novo ser em gestação e desenvolvimento, estariam protegidos enquanto consumidores, inclusive contra danos causados por defeito ou vicio do serviço ou falha no dever de informação,[45] sendo relevante aqui, a discussão acerca da incidência ou não do risco de desenvolvimento como uma excludente da obrigação de indenizar. Nesse sentido, é possível se entender a aplicação dessa excludente, pelo menos enquanto a técnica ainda não estiver madura, sendo seus efeitos imprevisíveis e desconhecidos.[46] Mais do que isso, como hoje se entende, aqueles que viessem a ser alcançados pelos efeitos desse contrato e do serviço nele contido seriam tidos como consumidores por equiparação.[47]
[20]. Igualmente, pelo CDC, o uso do útero artificial (enquanto não aprovado pelas autoridades médico-sanitárias), o desenvolvimento de embrião com certas e especificas características (não decorrentes de mandamento ou necessidade médica), e a promessa da entrega da criança em certa data, também não seriam admitidos. Por outro lado, o monitoramento, tendo indicações médicas, e obedecida a LF 13709, seria, em princípio possível.[48]
[21]. A escolha de características especificas, através da engenharia genética, e o uso do útero artificial, se permitidos em legislação local, trariam riscos sociais e ambientais em violação ao previsto hoje em Declarações da UNESCO.[49] Dentre os riscos que se vislumbra, estariam: aumento do abismo social; [50] despersonalização da gestação; possibilidade da tecnologia ser usada pelo Estado ou por grupos para escolha de padrões;[51] alteração do modo de reprodução da espécie humana;[52] perda da variação genética com a consequente redução da biodiversidade;[53] todos esses sem prejuízo da fragilização da dignidade da pessoa humana e a possibilidade de serem criados padrões discriminatórios na sociedade,[54] inclusive alterando a possibilidade de mobilidade social (criando situações de distinção entre pessoas: pessoa natural x artificial; pessoa mais preparada prévia e geneticamente x pessoa nascida de modo natural, por exemplo).[55]
[22]. Não se deve ter medo das novas tecnologias, mas se deve ter cautela,[56] na medida em que não é possível conhecer os efeitos do seu uso desde o seu início; as vezes, somente o tempo dará as respostas.[57]
[23]. Por isso, a sociedade e o Estado devem ser cautelosos e estar atentos às novas necessidades de proteção e cuidado à saúde e ao meio ambiente que surgem com a evolução tecnológica.[58]
[24]. A essa cautela, com relação à aplicação dessa evolução tecnológica, denomina-se Princípio da Precaução.[59] Princípio este fundado na prudência[60] e no cuidado, [61] objetivando fazer frente à incerteza de como “uma tecnologia irá interagir com outras tecnologias de modo a produzir efeitos não previstos, e de como isso poderia ocorrer.” [62] Esse princípio está positivado na LF 11105 (Art. 1º).[63] Há necessidade de um cuidado excepcional aqui. Antes, o desenvolvimento tecnológico se dava para melhorar alguns aspectos da atividade humana em sociedade; hoje, ele começa a alterar, ou interferir, ou substituir funções no corpo e na mente humana: o ato de pensar, substitui-se pela inteligência artificial; o ato de gerar um novo ser, pela inseminação artificial; o ato de gestar o ser gerado, pelo útero artificial.
[25]. A responsabilidade pela proteção do meio ambiente para futuras gerações é da geração presente[64] e, nem sempre, os danos ao meio ambiente serão passiveis recuperação (só a natureza, com o tempo, se “repara” e se equilibra) ou indenização por apenas uma pessoa ou empresa, razão pela qual, para além da indenização, outros mecanismos protetivos se fazem necessários, aqui incluídos a seguridade social ou privada – coletivização dos riscos.[65]
[26]. Importante proteção, ainda, é no Brasil, serem os danos ao meio ambiente imprescritíveis.[66]
[27]. Daí a necessidade de se ter uma precaução maior com relação ao uso de tecnologias que podem levar a uma alteração da própria espécie humana, a um enfraquecimento das relações sociais e a uma coisificação da pessoa.
[28]. Importante ressaltar que a matéria, tanto a nível tecnológico, quanto a nível legislativo, está em constante evolução,[67] razão pela qual os pontos acima levantados apenas indicam, no momento atual, as possibilidades, cuidados e preocupações com relação à dignidade da pessoa humana e proteção da herança futura do meio ambiente.
[4]. CONCLUSÃO
A humanidade está realmente próxima de dar um grande salto no “escuro” com relação a sua evolução, e esse salto passa pela reprodução e pela capacidade de “otimização” da espécie, com benefícios para uns,[68] e enormes riscos para todos.
Esse novo ser nascido “encomendado”, com características definidas previamente por quem o encomendou, gestado fora do ventre de uma mulher, em clínicas ou serviços especializados, no País ou no exterior, acompanhado por sensores, para se ter a garantia de saúde, ou de um bom resultado ou de um bom “produto”, seria, ainda assim, uma pessoa humana, dotada de dignidade e passível de proteção, como todo e qualquer outro ser humano.
Entretanto, caso haja a massificação do procedimento, para além daquelas situações nas quais o procedimento seria um meio para curar ou evitar as consequências de uma determinada doença, ou para possibilitar a reprodução de quem, por algum motivo, não possa constituir a sua família, caminhar-se-ia para a coisificação da pessoa e para consequências ambientais imprevisíveis, rompendo a linha de evolução natural da espécie humana.
Repita-se, não se deve ter medo das novas tecnologias, mas se deve ter cautela, na medida em que não se é possível conhecer seus efeitos desde o seu início; como dito antes: as vezes somente o tempo dará as respostas.
Daí a necessidade de se ter um cuidado maior, adotando-se o princípio da precaução com relação ao uso de tais tecnologias.
Finalmente, esperando ter alcançado nessas breves linhas o objetivo dessa sucinta análise., é importante ressaltar que a inteligência do Homem se mostrará na sua plenitude quando usada para preservar o Homem e a natureza que o embala e protege.
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[1] Emmanuelle Charpentier e Jennifer A. Doudna receberam o Prêmio Nobel em Chemistry 2020, por terem descoberto essa forma de “genetic scissors”. Disponível em <https://nobelprize.org/prizes/chemistry/>, visitado; 03/02/2021.
[2] FAN, Shelly. A New Gene Editing Tool Could Rival CRISPR, and Makes Millions of Edits at Once. In SingularityHub de 11/05/2021. Disponível em <https://singularityhub.com/2021/05/11/a-new-gene-editing-tool-rivals-crispr-and-can-make-millions-of-edits-at-once/>, visitado: 26/09/2021. Hoje em dia já se fala no “Retron Library Recombineering (RLR)” que, embora ainda testado apenas em bactérias, vem se mostrando uma ferramenta ainda mais poderosa que o CRISPR.
[3] LEINS, Koby e COQHLAN, Simon. Not Bot, Not Beast; Scientists Create First Ever Living, programmable Organism, em 22/01/2020. Disponível em < https://singularityhub.com/2020/01/22/not-bot-not-beast-scientists-create-first-ever-living-programmable-organism/ >, visitado: 11/02/2021. Em tradução livre, destaca-se do texto a seguinte explicação acerca dos xenobots: “uma combinação notável de inteligência artificial (IA) e biologia produziu os primeiros “robôs vivos” do mundo. Esta semana [semana de janeiro de 2020] uma equipe de pesquisadores, de roboticistas e cientistas publicou uma receita para fazer uma nova forma de vida chamada xenobots a partir de células-tronco. O termo “xeno” vem das células de rã (Xenopus laevis) usadas para produzi-los.” Um dos pesquisadores descreveu a criação como “nem um robô tradicional nem uma espécie conhecida de animal”, mas uma “nova classe de artefato: um organismo vivo e programável”. “Os xenobots têm menos de 1 milímetro de comprimento e são feitos de 500-1.000 células vivas. Eles têm várias formas simples, incluindo algumas com “pernas” agachadas. Eles podem se propelir em direções lineares ou circulares, unir-se para agir coletivamente e mover pequenos objetos. Usando sua própria energia celular, eles podem viver até 10 dias.” Importante mencionar que o estudo de referência sobre o tema foi escrito por Sam Kriegman, Douglas Blackston, Michael Levin e Josh Bongard, com o título “ A scalable pipeline for designing reconfigurable organisms”, disponível em < https:// www.pnas.org/content/pnas/early/2020/01/07/1910837117.full.pdf >, visitado: 11/02/2021.
[4] Esclarecedoras aqui as palavras de PETER DIAMANDIS e STEVEN KOTLER, com relação às mudanças estruturais que tais avanços estão trazendo à medicina. A medicina está sendo reinventada e tornando-se cada vez mais proativa e personalizada (in, DIAMANDIS, Peter H e KOTLER, Steven Kotler. The Future is Faster than You Think. New York: Simon & Schuster, 2020, pág. 154): “When it comes to healthcare, the system itself is often sicker than patients. Even the terminology is misleading. Today, going to the doctor is about sick care more than healthcare. It´s reactive, not proactive (…) On the technological front, every step in the medical treatment train is being reinvented. On the front end, the convergence of sensors, networks, and AI is upending medical diagnostics. In the middle, robotics and 3-D printing are changing the nature of medical process. On the back end, AI, genomics, and quantum computing are transforming medicines themselves. Concurrently, as a result of these convergences, two major paradigms are under way. The first is the shift from sick care to healthcare, from a system that is retrospective, reactive, and generic, to one that is prospective, proactive, and personalized. The rest is management.”
[5] Artificial womb: Dutch researchers given € 2.9m to develop prototype. Publicado em 08/10/2019. Disponível em < https://www.theguardian.com/society/2019/oct/08/artificial-womb-dutch-researchers-given-29m-to-develop-prototype>, visitado: 20/02/2020. Tradução livre de parte do seguinte texto: “Attempts to create an artificial womb for premature babies have been given a boost by the award of a €2.9m (£2.6m) grant to develop a working prototype for use in clinics. The model, which is being developed by researchers at the Eindhoven University of Technology, would provide babies with artificial respiration. However, unlike current incubators the artificial womb would be similar to biological conditions, with the baby surrounded by fluids and receiving oxygen and nutrients through an artificial placenta that will connect to their umbilical cord. Guid Oei, a professor at the Dutch university and gynaecologist at the nearby Maxima medical centre, said current approaches are problematic as premature babies do not yet have fully developed lungs or intestines – meaning that attempts to deliver oxygen or nutrients directly to such organs can result in damage.”
[6] FAN, Shelly. Scientists Created an Artificial Early Embryo From Human Skin Cells, em 23/03/2021. Disponível em <https://singularityhub.com/2021/03/23/scientists-created-an-artificial-early-embryo-from-human-skin-cells/ >, visitado: 21/09/2021: “can we one day clone a human baby using someone´s skin cells, then grow it in na artificial womb without any resemblance to natural reproduction? Should we?” Destacou-se esse trecho, em específico, tanto pela semelhança da hipótese ora em estudo, iniciado em janeiro de 2020, quanto por demonstrar um senso comum com relação a um caminho de evolução que se mostra irreversível.
[7] LENT, Roberto. Avanços a Flor da Pele. Jornal O GLOBO, Rio de Janeiro, 01/04/2020, pág. 12.: “o que já é possível antever no horizonte próximo é a possibilidade de realizar o diagnóstico de sinais e sintomas precoces das doenças, à distância e sem fios.”
[8] Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>, visitado: 28/09/2021.
[9] Brasil. Lei Federal 10406, de 2002. Disponível em <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>, visitado: 28/09/2021.
[10] Brasil. Lei Federal 8078 de 1990. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm >, visitado: 28/09/2021.
[11] Brasil. Lei Federal 3268, de 1957. Disponível em < http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L3268.htm>, visitado: 28/09/2021.
[12] Brasil. Lei Federal 6360, de 1976. Disponível em < http://www.planalto .gov.br/ccivil_03/leis/L6360.htm>, visitado: 28/09/2021.
[13] Brasil. Lei Federal 8080, de 1997. Disponível em < http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm >, visitado: 28/09/2021.
[14] Brasil. Lei Federal 9263, de 1996. Disponível em <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/L9263.htm>, visitado: 28/09/2021.
[15] Brasil. Lei Federal 9656, de 1998. Disponível em <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L9656.htm>, visitado: 28/09/2021.
[16] Brasil. Lei Federal 9782, de 1999. Disponível em <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/L9782.htm>, visitado: 28/09/2021.
[17] Brasil. Lei Federal 11105, de 2005. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm>, visitado: 28/09/2021.
[18] Brasil. Lei Federal 12842, de 2013. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12842.htm >, visitado: 28/09/2021.
[19] Brasil. Lei Federal 13709, de 2018. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/ L13709.htm>, visitado: 28/09/2021.
[20] Brasil. CFM Resolução 2294/2021. Disponível em < https://sistemas.cfm. org.br/normas/visualizar/resolucoes /BR/2021/2294>, visitado: 26/09/2021.
[21] Brasil. CFM Resolução 2217/2018. Disponível em <https://sistemas.cfm. org.br/normas/visualizar/resolucoes/ BR/2018/2217 >, visitado: 28/09/2021.
[22] UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), é uma agência das Nações Unidas atuando nas áreas da Educação, Ciências Naturais, Ciências Humanas e Sociais, Cultura e Comunicação e Informação.
[23] Unesco. Universal Declaration on Bioethics and Human Rights. Disponível <portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=31058&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_SECTION=201.html>, visitado: 03/04/2020.
[24] Unesco. Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights. Disponível < portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=13177&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_SECTION=201.html >, visitado: 03/04/2020.
[25] Unesco. Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos. Disponível em < portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=17720&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_SECTION=201.html >, visitado: 03/04/2020.
[26] Unesco. Declaração Sobre as Responsabilidades das Gerações Presentes com Relação as Futuras. Disponível: < portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=13178&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_ SECTION=201.html>, visitado: 03/04/2020.
[27] EC. Convention for the Protection of Human Rights and Dignity of the Human Being with regard to the Application of Biology and Medicine: Convention on Human Rights ad Biomedicine Oviedo, 4.IV.1997, ETS 164. Disponível em <https://rm.coe.int/168007cf98>, visitado: 27/09/2021.
[28] Brasil. STF. ADI3510. Relator Min. Ayres Britto (Tribunal Pleno). Data da Decisão: 23/05/2008. DJe: 28/05/2010: “Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei de biossegurança. Impugnação em bloco do art. 5º da lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 (lei de biossegurança). Pesquisas com células-tronco embrionárias. Inexistência de violação do direito à vida. Constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos. Descaracterização do aborto. Normas constitucionais conformadoras do direito fundamental a uma vida digna, que passa pelo direito à saúde e ao planejamento familiar. Descabimento de utilização da técnica de interpretação conforme para aditar à lei de biossegurança controles desnecessários que implicam restrições às pesquisas e terapias por ela visadas. Improcedência total da ação. (...)”
[29] Brasil. STF. ADPF 54. Disponível em <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2226954>, visitado: 13/03/2020: “Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentavam condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo Ministro Celso de Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (Presidente), que a julgavam improcedente. Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli. Plenário, 12.04.2012.”
[30] Brasil. CFM Resolução 2217/2018. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes /BR/2018/2217 >, visitado: 23/02/2020 “ XVII – As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente (...) É vedado ao médico (...) Art. 22 Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte (...) Art. 34 Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”
[31] Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 227. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>, visitado: 28/09/2021. A CF, na área da família e procriação, dispõe que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável”.
[32] No Direito brasileiro, o essencial para o reconhecimento da personalidade é o nascer com vida; é o deixar o ventre materno, com vida. Antes de deixar o ventre materno, existiria apenas um nascituro. O nascituro não seria sujeito de direito, mas possuiria, simplesmente, uma “personalidade condicional” tendo uma proteção jurídica.
Como fundamento e referência veja: TEPEDINO. Gustavo, BARBOZA, Heloisa Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado Conforma Constituição da República, volume I. Rio de Janeiro: Renovar, 2014: [1]. Os autores, ao comentarem o Art. 2º do CCB, assim definem nascituro: “nascituro (..) definido na doutrina como o ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno’ (Silvio Rodrigues, Direito Civil, p. 36) (...) [ele] não é sujeito de direito. Embora apresente uma personalidade condicional (Arnoldo Wald, Curso, p. 120).” Pág. 6; e, [2]. “Permanece fortemente majoritária, em nosso ordenamento, a opção segundo a qual ‘antes do nascimento a posição do nascituro não é, de modo algum, a de um titular de direitos subjetivos; é uma situação de mera proteção jurídica. (...)” Pág. 7.
No mesmo sentido é o RESP 1467888-GO, em que foi relatora a Min. Nancy Andrighi: “embora o Direito resguarde o nascituro, o faz na expectativa de que aquela vida intrauterina, ainda sem personalidade jurídica, possa se tornar pessoa, sujeita a todas as garantias constitucionais.” Brasil. STJ Informativo 0592, Período 19/10 a 08/11 de 2016, disponível no site do STJ (< https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/informativos/anuais/ informativo_anual_2016.pdf> - RESP 1467888-GO.
[33] Em defesa da vida digna: constitucionalidade e legitimidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. Luiz Roberto Barroso. Págs. 241-263 (in, Nos limites da vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Coordenadores Daniel Sarmento e Flavia Piovesan. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007), pág.252.
[34] Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 227. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>, visitado: 28/09/2021. Um dos Princípios Fundamentais da Constituição é a “dignidade da pessoa humana”, que fundamenta a igualdade entre os filhos prevista no Art. 227 § 6º.
[35] A cessão de útero para gestação está incluída e é aceita dentre as técnicas de reprodução assistida, ainda que com certas limitações. Nesse sentido, ZEGERS-HOCHSCHILD et alii. International Committee for Monitoring Assisted Reproductive Technology (ICMART) and the World Health Organization (WHO) revised glossary of ART terminology, 2009. Fertility and Sterility. Vol. 92. No 5, November 2009. Doi: 10.1016/j.fertnstert. 2009.09.009: “The in vitro handling of both human oocytes and sperm or of embryos, for the purpose of establishing a pregnancy. This includes, but is not limited to, in vitro fertilization and embryo transfer, gamete intrafallopian transfer, zygote intrafallopian transfer, tubal embryo transfer, gamete and embryo cryopreservation, oocyte and embryo donation, and gestational surrogacy. ART does not include assisted insemination (artificial insemination) using sperm from either a woman´s partner or a sperm donor.” (Grifo nosso)
[36] No Código de Ética Médica, CFM2217, merecem destaque, dentre outros Princípios Fundamentais, os seguintes: (i) o sigilo médico; (ii) a autonomia do médico e o direito de objeção de consciência; (iii) a necessidade de atuação nas situações de urgência e emergência, onde inexista outro médico; (iv) a necessidade de utilizar procedimentos diagnósticos e terapêuticos, desde que adequados ao caso e cientificamente reconhecidos; e (v) a necessidade do uso da melhor técnica disponível que vise aos melhores resultados. Disponível em <https://sistemas.cfm. org.br/normas/visualizar/resolucoes/ BR/2018/2217 >, visitado: 23/02/2020: Princípios Fundamentais: VII, IX, XIII, XXI, XXIV, XXV e XXVI.
Especificamente quanto à objeção de consciência, TOM BEAUCHAMP e JAMES CHILDRESS afirmam que “se um médico deseja se afastar de um tratamento porque os pedidos do paciente lhe parecem moralmente repulsivos, as convicções conscienciosas do médico devem ser respeitadas, e ele deve ser livre para se retirar – assumindo que as ações solicitadas não estão entre as responsabilidades usualmente aceitas por alguém que concorda em ser o médico de uma pessoa.” (in, BEAUCHAMP, Tom L e CHILDRESS, James F. Princípios de Ética Biomédica. Tradução: Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2002, pag. 514).
[37] COSTA, Manuel Freitas. Dicionário de Termos Médicos. Porto: Porto Editora, 2012. Verbete: “Saúde,” pág. 1094.
[38] A segurança do feto é componente essencial do processo de gestação ao parto. É o que resta claro da Resolução CFM 2284/2020 do Conselho Federal de Medicina. Disponível em <https:// sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2020/2284>, visitado: 20210926. Ademais, merece destaque aqui o Princípio Fundamental XXV do CEM: “Na aplicação dos conhecimentos criados pelas novas tecnologias, considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes quanto nas futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada a herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade.” (Brasil. CFM Resolução 2217/2018. Disponível em <https://sistemas.cfm. org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217 >, visitado: 23/02/2020.
[39] Essas ideias podem ser encontradas, dentre outros, nos seguintes artigos do CEM: [1] Quanto ao dano: arts. 1, 34 e 74; [2] Quanto ao interesse comercial: arts. 46, 68, 69, 72, 104 e 115; e [3] Quanto ao melhor interesse do paciente: Princípio Fundamental XVII e arts. 20, 28, 104 e 109. CEM (Brasil. Conselho Federal de Medicina - CFM Resolução 2217/2018. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/ visualizar/resolucoes/BR/2018/2217>, visitado: 23/02/2020).
[40] LENT, Roberto ensina que “o que é possível antever no horizonte próximo é a possibilidade de realizar o diagnóstico de sinais e sintomas precoces das doenças, à distância e sem fios.” Artigo publicado sob o título “Avanços à Flor da Pele”, no jornal O GLOBO de 01/04/2020, pag. 12.
[41] O CEM, no seu artigo 15 § 2º, dispõe que “o médico não deve realizar a procriação medicamente assistida com nenhum dos seguintes objetivos: I – criar seres humanos geneticamente modificados; II – criar embriões para investigação; III – criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras.” Brasil. Conselho Federal de Medicina - CFM Resolução 2217/2018. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217>, visitado: 23/02/2020).
[42] EC. Convention for the Protection of Human Rights and Dignity of the Human Being with regard to the Application of Biology and Medicine: Convention on Human Rights ad Biomedicine Oviedo, 4.IV.1997, ETS 164. Disponível em <https://rm.coe.int/168007cf98>, visitado: 27.09.2021. O artigo 13 tem a seguinte redação (tradução livre): “Uma intervenção que visa modificar o genoma humano só pode ser realizada para fins preventivos, fins diagnósticos ou terapêuticos e somente se o seu objetivo não for o de introduzir qualquer modificação no genoma de qualquer descendente.” Esse artigo vem sendo questionado diante dos rápidos avanços da tecnologia; assim, nos termos do relatório do Comitê de Bioética do Conselho da Europa (STRATEGIC ACTION PLAN ON HUMAN RIGHTS AND TECHNOLOGIES IN BIOMEDICINE (2020-2025), visitado: 27/09/2021, disponível <https://rm.coe.int/strategic-action-plan-final-e/1680a2c5d2> há necessidade de “an examination of the practical and legal implications of Article 13 of the Oviedo Convention as it relates to the use of gene editing technologies in the context of research, and of clinical applications of gene editing in somatic cells and the germline. The examination may indicate a need to clarify or amend Article 13.” Pag. 9
[43] Quanto à clonagem, existe uma discussão com relação a clonagem reprodutiva e a clonagem terapêutica. Como a própria denominação indica, a primeira para fins geração de um filho e, a segunda, para permitir o tratamento de uma outra pessoa.
A LF 11105, no seu artigo 6º, vedou, expressamente, dentre outras atividades: “II – engenharia genética em organismo vivo ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas nesta Lei; III – engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano; IV – clonagem humana”. Assim, aqui estariam proibidas as duas formas de clonagem.
Do ponto de vista doutrinário, porém, há uma corrente que advoga que a clonagem terapêutica seria possível, entendendo serem situações esporádicas e tendentes a melhoria da saúde de um outro ser humano. De uma forma geral, diversas seriam as críticas e os riscos apontados com relação à clonagem e nem mesmo a clonagem terapêutica estaria imune a eles; um dos riscos seria o fato dela instrumentalizar, ou coisificar, o embrião; outro seria o fato de que seria possível, por outros meios, até mais efetivos, se obter aquilo que se busca obter com a clonagem terapêutica. Ao lado desses, de uma maneira geral se entende que a clonagem poderia afetar o patrimônio genético coletivo; causar o “empobrecimento do genoma humano”, levando à perda da diversidade genética; ameaçar à dignidade da pessoa humana; e, levar a perda da individualidade.
Como fundamento e referência veja: [1]. DE SÁ, Maria de Fatima Freire e NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Clonagem Humana. Págs.265-275 (in, Nos limites da vida: Aborto, Clonagem Humana e eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Coordenadores Daniel Sarmento e Flavia Piovesan. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007): (a). Pág.274: “As objeções que opomos à clonagem terapêutica referem-se à instrumentalização do embrião humano, cuja finalidade difere da procriação (...) As pesquisas com células-tronco devem ocorrer com células adultas e com embriões sobrantes da reprodução assistida.” (b). Pág. 274: “A clonagem não é, pois, um procedimento necessário. Há outros meios, embora no momento pareçam menos eficientes, de se atingir o resultado da reposição de órgãos e tecidos doentes ou deteriorados.” (c). Pág. 275: “Não podemos olvidar que o patrimônio genético-humano é de interesse coletivo.” (d) Pág.269: “A argumentação mais forte contraria à técnica neste aspecto, ressalta o padrão diferenciado que as pessoas devem ter, para preservar a diversidade da espécie. Ora, a repetição de seres implicaria um empobrecimento do genoma humano.” E [2]. BARBOZA, Heloisa Helena. Clonagem Humana: Uma Questão em Aberto. Págs. 185 a 207 (in, Nos limites da vida: Aborto, Clonagem Humana e eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Coordenadores Daniel Sarmento e Flavia Piovesan. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007): (a). Pág. 193: Alguns argumentos contrários à clonagem: “a) perda da unicidade de cada ser humano; b) surgimento de projetos megalomaníacos por parte de indivíduos egocêntricos; c) substituição de uma criança morta; d) postulados morais da Igreja Católica; e e) possibilidade de reprodução sem macho. Porém, ressalta a Autora que “a justificação mais profunda para a proibição da técnica de clonar pessoas reside na ameaça que isso representa para a dignidade da pessoa humana.” (b). Págs. 197-198: “efetivamente, a produção de um embrião humano apenas para a obtenção de células-tronco afronta a moral kantiana, segundo a qual o ser humano deve ser sempre tratado como um fim e jamais apenas como um meio (...) instrumentalizar o homem, coisificar o embrião.” E, (c). Pág. 206. Autora ao analisar o Art. 9º da Lei 9.263/96, indica que “no futuro poder [a (deverá) incluir-se a clonagem dentre essas técnicas, a partir do momento em que seja cientificamente aceita.” - Grifo do próprio Autor. “Nessa última hipótese, forte seria ao argumento de ofensa à dignidade humana, em razão da perda da individualidade, já que não se admite que o ser humano possa ser copiado (...)”
[44] O Código de Defesa do Consumidor, Lei Federal 8.078/1990 (“CDC”) veio regulamentar as relações de consumo. Ele decorre do expresso mandamento da CF que determina, sob o título dos direitos e garantias fundamentais, que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (in, Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 5º, Inciso XXXII, disponível em <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>, visitado: 28/09/2021).
O CDC define consumidor como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, mediante remuneração”. Por sua vez, ele define fornecedor como “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços” (Brasil. Lei Federal 8.078/1990. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm >, visitado: 23/02/2020. Arts. 2º e 3º).
A atividade de reprodução assistida, com uso de útero artificial e o acompanhamento/monitoramento da criança, mesmo após o seu nascimento, pode ser caracterizado como um serviço, sendo os seus prestadores fornecedores, quer como pessoas naturais ou jurídicas.
[45] No caso em estudo, em sendo um contrato de consumo, o contratante e o novo ser em gestação ou desenvolvimento estariam protegidos enquanto consumidores. Neste contrato se impõem o dever de informação à mãe e os deveres normais de cautela e correção na prestação do serviço e, em caso de dano causado a mãe ou ao ser em desenvolvimento, caberia indenização. O CDC indica a responsabilidade objetiva pelos danos causados ao consumidor pelos fornecedores/prestadores de serviço, em regra de forma solidária, ressaltando, entretanto, que os profissionais liberais, aqui incluídos os médicos, somente responderiam caso tivessem agido com culpa (Arts. 12 a 14 e 18 a 20 do CDC). Por outro lado, a prescrição para fins de reparação seria de 5 anos “a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço (...), iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria. ” (Art.27 do CDC)
[46] Graziella Trindade Clemente, quanto à técnica do CRISPR/Cas9, ensina que “ os riscos desconhecidos decorrentes do CRISPR/Cas9, por não serem preexistentes, não poderiam ser considerados da essência da sua atividade”. Essa atividade não apresenta risco inerente, sendo “considerada como evento lesivo imprevisível ou desconhecido”, razão pela qual a “exclusão de responsabilidade com base no risco do desenvolvimento (...) pode ser então aventada nessas circunstancias.” (CLEMENTE, Graziella Trindade. Edição Gênica e o CRISPR. Págs. 381 a 317 (In, Responsabilidade Civil Novos Riscos. Adalberto Pasqualotto et al. Organizado por Nelson Rosenvald, Rafael de Freitas Valle Dresch, Tula Wesendonck. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019), págs. 312 e 315.
[47] Assim, estariam protegidos pelas regras do CDC não somente os contratantes do serviço, mas também todos aqueles que fossem alcançadas pelos efeitos da prestação do referido serviço ou a coletividade de pessoas que tenha participado das relações de consumo (Brasil. Lei Federal 8.078/1990. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm >, visitado: 23/02/2020. Art. 17). Em razão disso, por exemplo, se um pedestre atropelado por um ônibus, pode ser considerado consumidor por equiparação (Brasil. STJ. RESP1787318. Relator Min Paulo de Tarso Sanseverino. Data do Julgamento: 16/06/2020. DJe: 18/06/2020), da mesma forma uma a criança que foi gerada por inseminação artificial, também o seria, no entendimento de Oscar Ivan Prux: “aquele que nasce com auxílio de técnicas de reprodução assistida possui direitos de personalidade e igualmente merece a proteção na condição de consumidor.” Mais do que isso, complementa o referido Autor: “o nascido com auxílio de técnicas de reprodução assistida, além de ser consumidor standard (...) também possui a condição de consumidor equiparado,” merecendo este uma proteção mais elevada, em razão da sua vulnerabilidade (in, PRUX, Oscar Ivan. Os Direitos da Personalidade e os Direitos do Consumidor: as Interações e o Diálogo das Fontes para Proteção dos Direitos da Pessoa (consumidora) Nascida com Utilização de Serviços de Reprodução Assistida (In Revista de Direito do Consumidor Ano 28 – 126 – Novembro-Dezembro-2019 – Coord. Claudia Lima Marques. São Paulo: Thompson Reuters – Revista dos Tribunais, 2019 – pp 221 a 251), págs. 221, 238 e 230).
[48] Protegida a dignidade e as liberdades individuais, aqui incluído o consentimento expresso da pessoa ou das pessoas envolvidas, poderá vir a ser admitido, nos termos do que a lei local vier a permitir, o cruzamento de dados genéticos, proteicos ou derivados de material biológico (tais como células, órgãos internos, fluidos corporais entre outros -“biological samples”-), para fins de diagnóstico e tratamento de saúde, ou para fins de pesquisa médica ou outra pesquisa científica. Nesse sentido: Unesco. Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos. Disponível em < portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=17720&URL_DO=DO_PRINTPAGE& URL_SECTION=201. html>, visitado: 03/04/2020. Art. 22.
No Brasil a LF13709, que dispõe sobre a proteção de dados pessoais (Brasil. Lei Federal 13709/2019, disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>, visitado: 13/03/2020), determina que todos os dados relacionados à saúde do paciente são considerados dados pessoais sensíveis (Art. 5º, II) merecedores, portanto, de uma proteção maior com relação ao seu arquivamento e uso, bem como trazendo princípios básicos a serem observados em todas as fases do tratamento de tais dados (da sua coleta ao seu descarte final) (Art. 6º). Dentre outros, estão a manutenção do sigilo, a impossibilidade de dar uso diverso aos dados coletados e a possibilidade de acesso e destruição dos dados pelo paciente. Dentre as bases legais para o uso de dados, aqui, se destacam o consentimento do paciente e a tutela da saúde do paciente (Art. 7º.).
[49] Duas declarações da UNESCO são relevantes aqui. A Declaração Universal em Bioética e Direitos Humanos reconhece o homem como parte da biosfera tendo o papel de proteger não somente aos demais homens, mas as demais formas de vida existentes (Considerandos da Declaração). Já a Declaração Universal sobre Genoma Humano e Direitos Humanos, é expressa ao reconhecer, de um lado, que o genoma humano é “heritage of humanity,” (Art. 1º. ) e, de outro, que o genoma humano evolui e tem mutações, contendo potencialidades que se expressam de maneira diferente em cada indivíduo dependendo das condições de vida, saúde, alimentação e educação (Art. 3º.). Referida Declaração, ainda, deixa claro que o genoma humano no seu estado natural não pode ser fonte de ganho (Art. 4º.), além do que expressamente indica que a clonagem reprodutiva viola a dignidade humana (Art. 11). Respectivamente: Unesco. Universal Declaration on Bioethics and Human Rights. Disponível <portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=31058&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_SECTION=201. html>, visitado: 03/04/2020, e Unesco. Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights. Disponível < portal.unesco. org/en/ev.php-URL_ID=13177&URL_DO=DO_PRINTPAGE& URL_SECTION=201.html >, visitado: 03/04/2020.
[50] Quanto à engenharia genética, Yuval Noah Harari ensina que: “maravilhas ainda mais incríveis podem ser realizadas pela engenharia genética, que justamente por isso levanta uma série de questões éticas, políticas e ideológicas (...) Os ativistas dos direitos humanos temem que a engenharia genética possa ser usada para criar super-homens que subjugarão o resto de nós (...) A sensação predominante é a de que oportunidades demais estão surgindo depressa demais e de que nossa capacidade de modificar genes está superando nossa capacidade de fazer uso inteligente e sagaz desse conhecimento.” (in, HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da humanidade – Sapiens. Tradução: Janaina Marcoantonio. 8ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2015, pág.412). Sobre esse ponto Ray Porter ressalta que “agora, temores estão se formando sobre os estranhos poderes que a Medicina pode assumir à medida que a engenharia genética e a biotecnologia se expandam. Ao mesmo tempo em que os custos da Medicina saem do controle, assomam-se perspectivas de real redução nas grandes sociedades ocidentais. O desenvolvimento da medicina cientifica irá torná-la inacessível para muitas pessoas? Sucumbirá a Medicina a uma regra ao quadrado invertida – custos e complexidades crescentes acarretando utilidade decrescente?” (in, PORTER, Ray. Cambridge. História Ilustrada da Medicina. Tradução: Geraldo Magela Gomes da Cruz e Simara Monica Leite Miranda. Rio de Janeiro: editora Revinter, 2001, pág. 11).
De se notar que no Brasil a LF11105, proibiu, expressamente no seu Art. 6º., dentre outras atividades a “II – engenharia genética em organismo vivo ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas nesta Lei; III – engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano.”
[51] Se não houver a proibição dessas escolhas, excetuadas as escolhas decorrentes de motivo médico comprovado, brevemente se poderia caminhar para escolhas de padrões mais “aceitáveis” socialmente (altura, peso, beleza, inteligência, força, cor) acentuando-se ainda mais os processos de discriminação social; ademais, o próprio Estado poderia passar a indicar os padrões mais aceitos em seu território por meio de políticas públicas, lembrando a trágica experiência Nazista. Deve-se tomar cuidado maior pois essas práticas podem vir disfarçadas de várias maneiras, podendo esses padrões socialmente impostos pelo Estado terem uma “justificativa” social: escolha de padrões para evitar a violência social ou os ataques sexuais violentos, por exemplo.
Quanto à violência, enquanto alguns (Richard E Leakey, por exemplo) veem como semente da agressão a proteção da terra, de bens e da comida; outros veem a violência emergindo como estratégia de reprodução ou mesmo como um conjunto de características genéticas, ambientais e das nossas próprias escolhas (Michael P Ghigliere, por exemplo). Será que não seria uma justificativa para redução da violência humana a introdução artificial de caraterísticas especificas de não violência? Ou de características de redução de desejo sexual? Ou de características de cooperação e não rebeldia?
Como fundamento e referência veja: (a). LEAKEY, Richard E. As Origens do Homem. Tradução de Wanda Ramos. 2 ed Lisboa 1989. Editorial Presença, pág.79: “As sementes da agressão (...) A terra, os bens e a comida armazenada são essenciais para o sustento das populações agrícolas e têm de ser protegidos e defendidos de quaisquer intrusos. Penso que assim foram lançadas as primeiras sementes da agressão.” E (b) GHIGLIERI, Michael P. The Dark side of man –tracing the origins of male violence. Massachusetts: 1999, Helix Books, pág.29: “Men’s violence emerges as a reproductive strategy shaped by each facet of this process: nature, sex, nurture and gender,” e pág. 52.
O fato é que essas escolhas artificiais de comportamento levam à perda da seleção e evolução natural, a perpetuação de iniquidades sociais e ao maior controle sobre o ser humano.
[52] A alteração do modo de reprodução humano poderia levar à perda da necessidade do relacionamento sexual, à separação entre a procriação e o ato sexual, e a fragilização dos relacionamentos familiares. No caso do uso do útero artificial, haveria ainda a possibilidade de despersonalização da gestação e o distanciamento das relações mãe e filho, com a perda afetividade e senso de proteção que decorre naturalmente do contato físico entre mãe e feto. No momento em que isso se tornar um padrão, não se estaria retirando a proteção natural dos filhos? Não se estaria facilitando a perda desse senso de família protetora? Não se estaria perdendo essa ligação entre pais e filhos, que se inicia desde a concepção? Não se estariam perdendo os elos sociais?
Como fundamento e referência veja: [a]. Margaret Gruter (GRUTER, Margaret. Law and the Mind – Biological Origins of Human Behavior. California: Sage Publications, 1991): (i) pág. 111: “The must fundamental principle of the human family is that it is kindship group,” e (ii) pág. 99: “To more fully understand the father-child relationship, a distinction should be made between the bonding process – which takes place between mother and fetus, and other and infant – and the bonding a potential father may have for his child;” [b]. Erasmo de Rotterdam (ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio à Loucura. Tradução Paulo Neves. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2013. Obra escrita em 1501): pág. 20: “em primeiro lugar, não é verdade que a infância, a primeira idade do home, é a mais alegre e a mais encantadora de todas as idades? As pessoas amam as crianças, beijam-nas, abraçam-nas, acariam-nas, cuidam delas: mesmo um inimigo não pode impedir-se de socorrê-las. Como se explica isso? É que, desde o instante do nascimento delas, a natureza, essa mãe previdente, espalhou a seu redor uma atmosfera de loucura que encanta os que as educam, alivia-os de suas penas e atrai para essas pequenas criaturas a benevolência e a proteção que eles próprios necessitam”; e [c]. Richard Leakey (LEAKEY, Richard E. As Origens do Homem. Tradução de Wanda Ramos. 2a. ed. Lisboa 1989. Editorial Presença), pág.14: “ao contrário da maioria dos outros animais, os humanos vivem em grupos familiares e levam muito tempo a crescer até poderem olhar por si próprios. Os bebês humanos com poucas semanas ou mesmo meses estão desamparados (...) por isso, os seres humanos vivem em família, para cuidarem dos filhos.”
Ou seja: os bebês passariam a estar desamparados biologicamente falando, não dependeriam mais de pai, mãe ou grupo social. Essa ideia de família como núcleo precursor da reprodução e continuadora do desenvolvimento da criança, seria, mais uma vez questionada.
[53] Com relação à biodiversidade, primeiro Peter H. Diamandis e Steven Kotler reconhecem que o ser humano está cada vez mais protagonista da evolução e, depois, eles colocam a biodiversidade como essencial para a saúde do nosso ecossistema, em seguida Milford Walpoff e Rachel Caspari ressaltam que o fluxo e a troca de genes é um importante elemento no processo evolucionário e, por fim, Yuval Noah Harari alerta que as leis da seleção natural estão sendo constante e impunimente violadas.
Como fundamento e referência veja: (a). DIAMANDIS, Peter H e Kotler, Steven Kotler. The Future is Faster than You Think. New York: Simon & Schuster, 2020, pág. 258: “more and more (...) the once slow and passive process of natural selection is being transformed into one rapid and proactive: evolution by human direction,” e pág. 224: “biodiversity is foundational to the health of our ecosystems and to the health of ecosystem services, which are all of the things that the planet does for us that we cannot do for ourselves.” (b). WALPOFF, Milford and CASPARI, Rachel. Race and Human Evolution – A Fatal Attraction. USA: Westview press, 1998, pág. 162: “Gene flow is an important element in the evolutionary process. It is a potential cause of evolutionary change, one part of a more general force of evolution, called genic exchange. (…) Genic exchange includes two mechanisms of change. Migration involves the movement of genes when it is caused by individuals moving, and includes individuals entering or leaving a population, introducing or removing genetic material. The second, gene flow, the movement of genes as entities, might occurs when populations come in contact and mates are exchanged, when a member or members of one social unit join another, or when mate exchange are formalized as in exogamy rules that forbid choosing a mate from one´s own group.” E (c). HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da humanidade – Sapiens. Tradução: Janaina Marcoantonio. 8ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2015, pág.408: “Durante quase 4 bilhões de anos, cada organismo do planeta evoluiu submetido à seleção natural (...) Hoje, o regime da seleção natural de 4 bilhões de anos está enfrentando um desafio completamente diferente. Em laboratórios no mundo inteiro, cientistas estão criando seres vivos. Eles violam as leis da seleção natural impunimente, sem se deixar frear, nem mesmo, pelas características originais de um organismo.”
[54] A discriminação aqui poderia ser de duas ordens: uma decorrente do seu processo de fertilização e/ou de gestação (seria um “não natural” versus um “natural”) e, outra, decorrente daquilo que se saberia sobre este novo ser, Timoth Murphy (in, MURPHY, Timothy F. Case Studies in Biomedical Research Ethics. Cambridge: The MIT Press, 2003, pág. 223), alerta que “some tests will identify not only the root cause of existing disorders but also identify predictors of disorders that may occur later in life.” Os negativos efeitos poderiam ser vários, como por exemplo: nos processos de seleção de uma pessoa para um novo cargo, emprego ou função ou para ingresso em cursos e estabelecimentos de ensino, ou na contratação de um seguro de vida ou de saúde, dentre tantos outros.
Não por outra razão que [a]. a Declaração Universal em Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (Art. 11), deixa claro que nenhum indivíduo ou grupo deve sofrer discriminação, ou ser estigmatizado de qualquer modo, em violação à dignidade, direitos humanos e liberdades individuais; [b]. No mesmo sentido, e agora com relação as alterações genéticas, é a Declaração Universal sobre Genoma Humano e Direitos Humanos (Art. 6º.); [c]. Por sua vez a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos (Art. 3º.) reconhece que cada indivíduo tem a sua característica e que a identidade da pessoa não pode ser reduzida as suas características genéticas, uma vez que na formação da pessoa estão envolvidos diversos outros fatores, como por exemplo: os educacionais, os relacionados ao modo e local de vida, os emocionais, e os espirituais e sociais, entre outros, e, por fim, [d]. a Declaração Sobre as Responsabilidades das Gerações Presentes com Relação as Futuras (Art. 11), indica que as gerações presentes devem evitar tomar qualquer ação ou medida que possa levar ou perpetuar qualquer forma de discriminação para gerações futura.
Como fundamento e referência veja: (a) Unesco.Universal Declaration on Bioethics and Human Rights. Disponível <portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=31058&URL_DO=DO_ PRINTPAGE&URL_ SECTION=201.html>, visitado: 03/04/2020. Art. 11; (b) Unesco. Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights. Disponível em <portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=13177&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_SECTION=201.html>, visitado: 03/04/2020. Art. 6: “No one shall be subject to discrimination based on genetic characteristics that is intended to infringe or has the effect of infringing human rights, fundamental freedoms and human dignity.” (c) Unesco. Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos. Disponível em < portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=17720&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_SECTION=201.html >, visitado: 03/04/2020. Art. 3: “Each individual has a characteristic genetic make-up. Nevertheless, a person´s identity should not be reduced to genetic characteristics since it involves complex educational, environmental and personal factors and emotional, social, spiritual and cultural bonds with others and implies a dimension of freedom.” No mesmo sentido, é o Art. 7º, que trata da non-discrimination and non stigmatization, seja da pessoa, ou da família ou de um grupo social. (d) Unesco. Declaração Sobre as Responsabilidades das Gerações Presentes com Relação as Futuras. Disponível:< portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=13178&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_SECTION=201. html >, visitado: 03/04/2020. Art. 11 – “Non-discrimination. The present generations should refrain from taking any action or measure which would have the effect of leading to or perpetuating any form of discrimination for future generations.”
Importante ter em mente que a pessoa humana, embora sociável, o é mais apenas com os seus, com os que lhe são semelhantes ou com os que integram o seu mesmo grupo. Por exemplo, a odiosa escravidão, como esclarece Laurentino Gomes nem sempre foi ligada a uma raça ou a uma cor de pele (in, GOMES, Laurentino. Escravidão Volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a more de Zumbi dos Palmares. 1 ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019), pág. 64: “O uso de mão de obra cativa foi o alicerce de todas as antigas civilizações, incluindo a egípcia, a grega e a romana. Era um dos principais negócios dos vikings. Na Idade Média, deu sustentação ao desenvolvimento da Inglaterra, da França, da Espanha, da Rússia, da China e do Japão. Floresceu entre os povos pré-colombianos da América, como os incas, do Peru, e os astecas, do México. Assegurou a prosperidade de Veneza, Gênova e Florença no auge do renascimento Italiano. A expansão do islã foi possível mediante a escravização de milhares e milhares de pessoas. O filosofo grego Aristóteles era senhor de escravos (...) Thomas Jefferson (...) também (...) o Tiradentes (...) foi dono de pelo menos seis cativos (...) no século XIX, até os índios cherokees, nos Estados Unidos, tinham plantações de algodão cultivadas por africanos.”
Por fim, não é demais relembrar que dentre os Princípios Fundamentais do Código de Ética Médica (Brasil. Conselho Federal de Medicina - CFM Resolução 2217/2018. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217 >, visitado: 23/02/2020), consta o da não discriminação em função da herança genética (XXV): “(...) XXV – Na aplicação dos conhecimentos criados pelas novas tecnologias, considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes quanto nas futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada a herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade.”
[55] Filme: Gattaca - A Experiência Genética, filme americano de 1997. Diretor Andrew Niccol Filme de ficção cientifica que narra a luta de um homem, nascido geneticamente inferior, contra o seu destino já previamente traçado pela sociedade.
[56] A Declaração Universal em Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (Art. 16) é clara ao dispor que o impacto da ciência nas gerações futuras, inclusive as alterações genéticas, devem ser vistas com extremo cuidado. In, Unesco. Universal Declaration on Bioethics and Human Rights. Disponível <portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=31058&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_ SECTION=201.html>, visitado: 03/04/2020, Art. 16) “The impact of life sciences on future generations, including on their genetic constitution, should be given due regard.”
[57] Dois exemplos paradigmáticos aqui: o uso da Penicilina e a fertilização in vitro. [1]. O primeiro é o uso da penicilina: de grande salvador de vidas, o seu uso indiscriminado fez com que a natureza a ela se adaptasse, surgindo seres resistentes a ela; segundo a WHO essa resistência é hoje uma das grandes ameaças a saúde global, a segurança alimentar e ao desenvolvimento. Além do que, e do ponto de vista econômico, “$100 trillion USD of economic output is at risk due to the rise of drug resistant infections (…) [and] In some countries, more than 40% of infections are due to bacteria that are resistant to antibiotic.”
Como fundamento e referência veja: (a) Great Discoveries in Medicine. Editado por Willian & Hellen Bynum. London: Thales & Hudson, 2011, págs 195 e 196: a penicilina, descoberta por Alexander Fleming em 1928, era uma promessa de combate às infecções, tornando-se uma obsessão cientifica com a 2ª. Guerra Mundial e a necessidade de tratar os feridos em combate: “an adequate supply of penicillin was taken into consideration in timing of the D-Day landings, such was the power of this drug to save lives and limbs of the injured servicemen in the ensuing conflict (…) by the end of the war, penicillin was being produced in sufficient quantities to meet American, then British and soon European needs. Doctors (…) and patients (…) used large quantities (…) It was soon clear that the attitude towards penicillin as wonder drugs, and the abuse that had accompanied it, had fostered the growth of theses feared organism [MRSA – methicillin resistant Staphylococcus aureus]. It also showed that infections could be managed by antibiotics such as penicillin, but never eradicated.” (b) WHO. Antibiotic Resistance. Disponível: < https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/antibiotic-resistance>, visitado: 11/03/2020: “Antibiotic resistance is one of the biggest threats to global health, food security, and development today. Antibiotic resistance can affect anyone, of any age, in any country. Antibiotic resistance occurs naturally, but misuse of antibiotics in humans and animals is accelerating the process. A growing number of infections – such as pneumonia, tuberculosis, gonorrhea, and salmonellosis – are becoming harder to treat as the antibiotics used to treat them become less effective. Antibiotic resistance leads to longer hospital stays, higher medical costs and increased mortality.” E (c) 18-24 NOVEMBER 2019 - World Antibiotic Awareness Week 2019. Disponível: <https://www.who.int/news-room/campaigns/world-antibiotic-awareness-week/world-antibiotic-awareness-week-2019/landing >, visitado: 11/03/2020.
[2]. Outro exemplo, é o uso das técnicas de reprodução assistida. Dois estudos publicados na JAMA (Journal of American Medical Association), um nos Estados Unidos e outro na Dinamarca, apontam para um aumento de risco de câncer em crianças nascidas através de fertilização in vitro, em comparação com aquelas nascidas naturalmente, mostrando, tal como no caso da penicilina que, muitas vezes, somente o tempo irá trazer as notícias reais, boas ou más.
Como fundamento e referência veja: (a) JAMA Pediatr: 2019; 173(6): e 190392. Doi: 10.1001/jamapediatrics.2019.0392. Association of In Vitro Fertilization With Childhood Cancer in the United States. Logan G Spector et al: este artigo, baseado em estudo sobre a incidencia de cancer em crianças nos Estados Unidos, e publicado em 01 de abril de 2019, encontrou que “in this population-based cohort study assembled by data linkage, the rate of hepatic tumors was significantly higher among children conceived via IVF than among children conceived naturally (hepatic tumor rate, 18.1 vs 5,7); the rates of other caners did not differ between the two groups.” E (b) JAMA. 2019; 322(22): 2203-2210. Doi: 10.1001/jama. 2019. 18037. Association Between Fertility Treatment and Cancer Risk in Children. Marie Hargreave et al: Neste artigo, publicado em 10 de dezembro de 2019, por outro lado, em um estudo realizado na Dinamarca com “children born after the use of specific fertility drug and assisted reproductive technology” encontrou-se que “the risk of childhood cancer for those born after the use of frozen embryo transfer compared with children born to fertile women was significantly increased (44.4 vs 17.5 per 100 000 person-years, respectively; hazard ratio, 2.43). There was no significant increase in risk associated with the use of other assisted reproductive technology, including in vitro fertilization, intracytoplasmic sperm injection or hormonal treatment.”
[58] PORTO, Isabel Cristina Borjes, GOMES, Tais Ferraz e ENGELMANN, Wilson. Responsabilidade Civil e Nanotecnologias. São Paulo: Atlas, 2014, pág.133 citando Perlingieri: “A incessante evolução do progresso tecnológico impõe ao moderno Estado social a grave tarefa de fazer frente às novas exigências de proteção ao meio ambiente e da saúde, particularmente sentidas quando se trata de condições de incerteza científica sobre as consequências potencialmente danosas de determinadas aplicações tecnológicas.”
[59] DE SÁ, Maria de Fátima e NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Clonagem Humana. Págs.265-275 (in, Nos limites da vida: Aborto, Clonagem Humana E eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Coordenadores Daniel Sarmento e Flavia Piovesan. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007), pág.267: “(...) precaução (...), sinteticamente, este (...) surgiu como meio de se proteger as gerações presentes e futuras das atividades que, devido à sua incerteza cientifica, apresentam risco potencial.” Bruno Ricardo Bioni e Maria Luciana, apontam a existência de pelo menos 11 significados diferente para a expressão “Princípio da Precaução”, tendo eles, entretanto, fundamento nas ideias da falta de certeza científica e da ameaça de dano a pessoa ou meio ambiente. (BIONI, Bruno Ricardo e LUCIANA, Maria. O Princípio da Precaução na Regulação de Inteligência Artificial: seriam as leis de proteção de dados o seu portal de entrada? (In, Alessandra Silveira et al. Inteligência Artificial e Direito. Ética, Regulação e Responsabilidade. Coord., Ana Frazão e Caitlin Mulholland. São Paulo: Thompson Reuters, Brasil, 2019, págs. 210 a 211).
[60] ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Tradução Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2014 (Série Clássicos Edipro) pág. 276: “resta dizer, portanto, que a prudência é uma capacidade racional genuína que diz respeito à ação relativamente às coisas que são boas ou más para os seres humanos.”
[61] CURRY, Patrick. Ecological ethics – An Introduction. Cambridge: Polity Press, 2013, pág. 62: “(…) precautionary principle – that is, acting cautiously, on the assumption that our knowledge of the effects of our action is always exceeded by our ignorance.”
[62] BEAUCHAMP, Tom L e CHILDRESS, James F. Princípios de Ética Biomédica. Tradução: Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2002, pag.327.
[63] Brasil. Lei Federal 11105/2005, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm>, visitado: 13/03/2020: “Art. 1º Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente.” Essa lei, além de positivar o princípio da precaução para proteção do meio ambiente no seu Art. 1º, regulamentou, no seu Art. 5º, os incisos II e V da CF passando a permitir a utilização de certas células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia.
Importante notar que houve uma grande controvérsia acerca constitucionalidade e do alcance desse Art. 5º da LF11105. O Supremo Tribunal Federal, através da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 3510, entendeu, por maioria, que esse artigo é constitucional, restando claro que não há vida antes da nidação. BRASIL. STF. ADI3510. Relator Min Ayres Britto (Tribunal Pleno). Data da Decisão: 23/05/2008. DJe: 28/05/2010: “Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei de biossegurança. Impugnação em bloco do art. 5a da lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 (lei de biossegurança). Pesquisas com células-tronco embrionárias. Inexistência de violação do direito à vida. Constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos. Descaracterização do aborto. Normas constitucionais conformadoras do direito fundamental a uma vida digna, que passa pelo direito à saúde e ao planejamento familiar. Descabimento de utilização da técnica de interpretação conforme para aditar à lei de biossegurança controles desnecessários que implicam restrições às pesquisas e terapias por ela visadas. Improcedência total da ação. (...)” – Grifos nossos -
Inegável que essas proibições visam proteger o ser humano, a sua diversidade e seu patrimônio genético.
[64] A Declaração Sobre as Responsabilidades das Gerações Presentes com Relação as Futuras, da UNESCO, deixa claro que a geração presente é responsável por garantir as necessidades e interesses da geração futura; mais do que isso, deve lutar para garantir a manutenção e perpetuação da humanidade respeitando a dignidade humana: a natureza e a forma humana não podem alteradas ou danificadas de qualquer modo. Por exemplo, nos termos do Art. 1º., 3º., e 6º., o genoma humano, em total respeito à dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentas, deve ser protegido e a biodiversidade salvaguardada: “scientific and technological progress should not in any way impair or compromise the preservation of the human and other species.”
Como fundamento e referência veja: Unesco. Declaração Sobre as Responsabilidades das Gerações Presentes com Relação as Futuras. Disponível: <portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=13178&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_SECTION=201. html >, visitado: 03/04/2020. Art.1º: “The present generations have the responsibility of ensuring that the needs and interests of present and future generations are fully safeguarded.” Art. 3º: “The present generations should strive to ensure the maintenance and perpetuation of humankind with due respect for the dignity of the human person. Consequently, the nature and form of human life must not be undermined in any way whatsoever.” Art. 6º: “The human genome, in full respect of the dignity of the human person and human rights, must be protected and biodiversity safeguarded. Scientific and technological progress should not in any way impair or compromise the preservation of the human and other species.”
Essas disposições estão igualmente no Art. 225 da CF: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações,“ e, para isso, dentre outros pontos, incumbe ao Estado “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético” e “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. Esse artigo da CF é que foi regulamentado através da LF11105. – Grifos nossos -
Como fundamento e referência veja: Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 225-caput, 225, §1º, I, e 225, §1º V, disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm>, visitado: 28/09/2021.
[65] O Art. 20 da LF11105 dispõe acerca da necessidade de indenização ou reparação integral dos danos causado: “os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa”. Aqui, “o princípio da responsabilidade, em ampla significação, revela o dever jurídico em que se coloca a pessoa, a fim de satisfazer a obrigação convencionada ou suportar as sanções legais a ela impostas.” (in, DE SÁ, Maria de Fátima e NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Clonagem Humana. Págs.265-275 (in, Nos limites da vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Coordenadores Daniel Sarmento e Flavia Piovesan. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007), pág.267).
Porém, para danos dessa natureza com potencial social e de massa, a maior proteção e precaução viria através da seguridade social ou privada, da coletivização dos riscos (in, PORTO, Isabel Cristina Borjes, GOMES, Tais Ferraz e ENGELMANN, Wilson. Responsabilidade Civil e Nanotecnologias. São Paulo: Atlas, 2014, pág.133: Os autores, ao tratarem dos riscos da nanotecnologia e da precaução à vida, entendem que “na realidade, gestão de risco, através da utilização de uma seguridade social ou privada, será uma medida de precaução às vítimas e àqueles que colocam a nanotecnologia a disposição da sociedade.”). Nesse sentido Ancona Lopes apud PORTO, Isabel Cristina Borjes, GOMES, Tais Ferraz e ENGELMANN esclarece que “a doutrina da socialização dos riscos tem fundamento ético na solidariedade social como necessidade de reparação integral de todos os danos. Há de se proteger as vítimas. Os riscos criados não se consideram mais simples riscos individuais. São riscos sociais e não é justo que os homens respondam por eles individualmente (...) A socialização dos riscos tem com pilares o seguro social e o seguro privado de responsabilidade (...) Mas a verdadeira ‘socialização dos riscos’ é aquela na qual há a difusão do seguro obrigatório e a criação de fundos estaduais ou também de fundos que, além das reservas provindas do Poder Público, se mantem com a contribuição financeiras das empresas que mais expõem a riscos a sociedade. Sem a adoção geral o seguro obrigatório é impossível falar-se em “socialização dos riscos,” (...) [O] desenvolvimento da ciência e da tecnologia é imprevisível. Não sabemos a que tipos de riscos estamos e estaremos expostos. A incerteza é a única certeza.”” (in, PORTO, Isabel Cristina Borjes, GOMES, Tais Ferraz e ENGELMANN, Wilson. Responsabilidade Civil e Nanotecnologias. São Paulo: Atlas, 2014, pág.135).
Por fim, Graziella Trindade Clemente e Nelson Rosenvald ao tratarem dos riscos da edição gênica, ensinam que ela “por caracterizar atividade complexa e com elevado potencial de riscos desconhecidos envolvidos, adequa-se ao contexto de “sociedade de risco””; com isso, os deveres de cuidado e proteção deveriam ser maiores e uma forma de dar mais segurança às atividades de risco, e proteção e garantia de reparação à vítima, seria o “seguro, social amplo e universal – gerido pelo poder público – ou privado obrigatório”, não podendo se desprezar ainda, complementam, o “seguro facultativo” (CLEMENTE, Graziella Trindade e ROSENVALD, Nelson. Edição Gênica e os Limites da Responsabilidade Civil, págs.235 a 261 (in, GODINHO, Adriano Marteleto et al. Responsabilidade Civil e novas tecnologias. Coordenado por Guilherme Magalhães Martins e Nelson Rosenvald. Indaiatuba SP: Editora Foco, 2020).
[66] BRASIL. STF. RE 654833. Relator Min Alexandre de Moraes (Tribunal Pleno). Data da Decisão: 20/04/2020. DJe: 24/06/2020. “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL.TEMA 999. CONSTITUCIONAL. DANO AMBIENTAL. REPARAÇÃO. IMPRESCRITIBILIDADE. (...). Afirmação de tese segundo a qual é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental.” – Grifos nossos -
[67] A matéria está em constante evolução. Na doutrina, na jurisprudência e na legislação. Quanto à legislação, por exemplo, inúmeros Projetos de Lei já foram apresentados com relação ao tema de Reprodução Assistida no Brasil. Por exemplo, em pesquisa realizada no PORTAL DA CAMARA DOS DEPUTADOS, visitado: 22/03/2020, <https://www.camara.leg.br/busca-portal/proposicoes/pesquisa-simplificada>, pesquisando o tema “Reprodução Assistida”, foram encontrados 31 Projetos de Lei naquela data em TRAMITAÇÃO. Merecem destaque aqui os seguintes: (a). Projeto de Lei 5768/2019, estabelecendo que no uso da gestação por substituição presume-se mãe aquela que forneceu o material genético ou que se valeu dessa técnica de reprodução assistida; (b). Projeto de Lei 9403/2017, estabelecendo que tem direito à herança os filhos nascidos, concebidos ou gerados após a morte do autor da herança por meio de inseminação artificial, na qual tenha havido a concordância previa dos cônjuges ou companheiros; (c). Projeto de Lei 7880/2017, permitindo “a implantação de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro com intuito de doação de células ou tecidos para utilização terapêutica em irmão”; (d). Projeto de Lei 121/2015, incluindo a cobertura da inseminação artificial nos contratos de Planos de Saúde; (e). Projeto de Lei 4726/2012, prevendo a cobertura pelos Planos de Saúde da reprodução assistida; (f). Projeto de Lei 115/2015, apensado ao PL 4892/2012, “instituindo o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais”; (g). Projeto de Lei 4725/2012, incluindo expressamente na Lei 9263/1996 que a reprodução assistida é de cobertura pelo SUS; (h). Projeto de Lei 7701/2010, dispondo sobre as condições para uso post mortem de sêmen do marido ou companheiro; (i). Projeto de Lei 4686/2004, garantindo ao gerado por reprodução assistida o direito ao conhecimento da origem genética, bem como disciplinando a sucessão e o vínculo parental; e, (j). Projeto de Lei 6296/2002, proibindo “a fertilização de óvulos humanos com material genético proveniente de células de doador do gênero feminino.” Na Jurisprudência, uma decisão a ser apontada é aquela no RESP 1437773 (disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/ docs_ internet/informativos/anuais/informativo_anual_2016.pdf, em que foi Relator Min Og Fernandes e na qual se discutia se a mãe biológica, no caso de inseminação artificial em barriga de aluguel, teria, ou não, direito à licença maternidade, “a autora é, efetivamente, mãe biológica, não importa se a fertilização foi “in vitro” ou com “barriga de aluguel”. Os filhos são sanguíneos e não adotivos. A autora faz jus à licença maternidade pelo período de 180 (cento e oitenta) dias, o que se justifica, sobretudo, por serem 3 (três) os filhos”.
Recentemente o CFM publicou a Resolução 2294 que “adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida – sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudam a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos, tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros (...)” Brasil. CFM Resolução 2294/2021. Disponível em < https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/ resolucoes /BR/2021/2294>, visitado: 26/09/2021.
[68] GODINHO, Adriano Marteleto, DA SILVA, Raquel Katllyn Santos e CABRAL, Gabriel Oliveira, após esclarecerem que o transumanismo busca promover o aperfeiçoamento do homem “a partir do uso da ciência e da tecnologia, seja pela via da biotecnologia, da nanotecnologia e/ou da neurotecnologia”, ensinam que tais técnicas, “se empregadas (...) podem contribuir positivamente com a sociedade”, e citam dois casos: um homem tetraplégico que voltou a andar, mediante o uso de um exoesqueleto; e o caso de um homem que não via cores e que passou a vê-las, mediante a inserção “ de um sensor em seu próprio cérebro, através do qual, mediante o auxílio de uma câmera, passou a conseguir interpretar variados tons de cor.” Ou seja “se bem empregadas as tecnologias disponíveis, as propostas do movimento transhumanista (...) podem contribuir positivamente com a sociedade.” (GODINHO, Adriano Marteleto DA SILVA, Raquel Katllyn Santos e CABRAL, Gabriel Oliveira, Transhumanismo e as novas fronteiras da responsabilidade civil, págs. 1 a 18 (in, Responsabilidade civil e novas tecnologias. Coordenado por Guilherme Magalhães Martins e Nelson Rosenvald. Indaiatuba SP: Editora Foco, 2020).
Artigo publicado em 05/10/2021 e republicado em 05/06/2024
Advogado com MA in International Commercial Law (UCDAVIS School of Law) e LLM in International Legal Studies (Golden Gate University). Na data deste artigo, 28/09/2021, é membro das Comissões de Direito Médico da OAB do Rio de Janeiro e da OAB Barra Tijuca, integrando ainda a IABA (Inter American Bar Association), a WAML (World Association for Medical Law), a PEOPIL (Pan European Organization of Personal Injury Lawyers), o BRASILCON, o IBDCIVIL e o IBERC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, HENRIQUE FREIRE DE OLIVEIRA. O caso do útero artificial. Protegendo a dignidade da pessoa humana e o meio ambiente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2024, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57251/o-caso-do-tero-artificial-protegendo-a-dignidade-da-pessoa-humana-e-o-meio-ambiente. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
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