RESUMO: O presente trabalho visa analisar o instituto do Estado de Coisas Inconstitucional e o seu possível reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal no contexto brasileiro através do julgamento parcial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº347, em sede cautelar, como potencial solução para a crise enfrentada pelo Sistema Carcerário Brasileiro. Dessa forma, a princípio busca-se esclarecer o conceito e a origem do Estado de Coisas Inconstitucional, bem como a sua finalidade e os resultados alcançados através da sua aplicação em outros países por uma Corte Constitucional, utilizando-se para tanto, o Direito Comparado. Após, procura-se apresentar uma análise crítica acerca da violação maciça de direitos fundamentais enfrentada pelos detentos no atual cenário de crise do Sistema Prisional Brasileiro, traçando um paralelo com o referido Instituto como uma possível solução para resgatar os direitos e a dignidade dos detentos. Desse modo, o objetivo geral desse trabalho é demonstrar como o reconhecimento do Estado de Coisa Inconstitucional afetou o sistema carcerário brasileiro, de forma positiva e/ou negativa. E, para tal, foi realizada tanto uma pesquisa bibliográfica a partir de doutrinas brasileiras, quanto uma pesquisa documental e um estudo jurisprudencial sobre o tema. Portanto, podemos concluir que, embora a atuação da Corte Constitucional no reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional levante objeções em razão, principalmente, do caráter abrangente das medidas que devem ser adotadas no âmbito de políticas públicas, pode ser uma importante ferramenta para a superação de violações de direitos fundamentais presentes no cenário atual dos presídios brasileiros.
PALAVRAS-CHAVE: ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL. DIREITOS FUNDAMENTAIS. VIOLAÇÃO MACIÇA DE DIREITOS. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO. ADPF 347.
ABSTRACT: This small paper aims to analyze the Institute of Unconstitutional State of Things and its feasible recognition by the Federal Supreme Court in the Brazilian context through the one-sided judgment of the argument of non-compliance with the fundamental precept Number 347 in the Precautionary Proceeding. Also as a conceivable solution to a crisis in the Brazilian Prison System. Thus, the research managers to elucidate the principle as well as the concept and origin of the Unconstitutional State of Things, whereas its use and the results achieved throughout its application in other countries by a Constitutional Court, utilizing the so-called Comparative Law. Afterward, it will seek to exemplify a critical analysis of the violation of this fundamental right faced by prisoners in the current crisis scenario of the Brazilian Prison System, drawing a parallel with the analyzed institute as a possible way to recover the rights and dignity of the prisoners. Furthermore, the general objective of this paper is to demonstrate how to recognize the Unconstitutional State of Things affected by the Brazilian prison system, positively and/or negatively. For example, a bibliographical research was conducted from Brazilian doctrines, as well as documentary exploration and a jurisprudential study on the subject. Therefore, it can be concluded that, although the Constitutional Court's Action does not acknowledge the status of unconstitutional matters, it raises objections to it, mainly due to the comprehensive nature of the measures that should be adopted within the scope of public policies; however it could also be an important tool for overcoming violations of fundamental rights.
KEYWORDS: UNCONSTITUTIONAL STATE OF THINGS. FUNDAMENTAL RIGHTS. MASSIVE VIOLATION OF RIGHTS. BRAZILIAN PRISON SYSTEM. ADPF 347.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 BREVE E CONTEXTUALIZADO HISTÓRICO DO INSTITUTO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL. 1.1 Conceito, Origem e Finalidade do Instituto. 1.2 Finalidade do Estado de Coisas Inconstitucional e pressupostos para o reconhecimento do Instituto. 1.3 O Estado de Coisas Inconstitucional e o Ativismo Judicial. 2 O ATUAL CENÁRIO DE VIOLAÇÃO DIÁRIA E GENERALIZADA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO SISTEMA PRISIONAL BASILEIRO. 2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 2.2 Atual cenário de violação maciça dos Direitos Fundamentais no Sistema Prisional Brasileiro. 3 A ADPF 347. 3.1 A proposta do PSOL. 3.2 A apreciação pelo STF e o deferimento parcial . 3.3 Adoção e implementação das medidas estruturais deferidas pelo STF. 3.2.1 Audiência de Custódia. 3.2.2 Descontingenciamento do Fundo Penitenciário Nacional – FUPEN. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O presente estudo aborda a tese do Estado de Coisas Inconstitucional, que é uma técnica decisória adotada pela Corte Constitucional Colombiana, quando reconhece a presença de uma violação maciça de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas, cujo equacionamento dependa de um conjunto complexo e coordenado de medidas a serem adotados por diversas entidades.
Dessa forma, considerando a gravíssima e generalizada ofensa aos direitos mais básicos dos presos dentro das penitenciárias brasileiras em razão das condições subumanas na qual se encontram, como a superlotação das celas, condições de insalubridade, falta de água potável e produtos de higiene básica, comida intragável, proliferação de doença infectocontagiosas, tortura, dentre outras violações graves e maciças de direitos fundamentais, estuda-se a possibilidade do reconhecimento da tese do “Estado de Coisas Inconstitucional” no âmbito jurisdicional constitucional brasileiro para enfrentar a situação carcerária no contexto atual, assim como, busca-se uma análise acerca da real efetividade das medidas implementadas a fim de superar tal cenário.
Embora, alguns doutrinadores discordem do exercício deste papel pelo Judiciário, uma vez que restaria caracterizado um ativismo judicial e a sua interferência na esfera dos outros poderes públicos, outros entendem em sentido oposto, de que é nestas hipóteses, de proteção à dignidade de grupos vulneráveis, que o exercício do papel contramajoritário do STF mais se legitima. Assim, defende-se que a intervenção jurisdicional constitucional brasileira não deve limitar-se somente ao controle de constitucionalidade dos atos normativos, devendo enfrentar também outras afrontas a nossa Constituição.
Assim sendo, o presente estudo tem por objetivo debater acerca da possibilidade de reconhecimento do “Estado de Coisas Inconstitucional” na jurisdição brasileira no contexto enfrentado pelo sistema prisional brasileiro, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°347/2015, bem como, refletir se essa técnica decisória e as medidas implementadas são realmente efetivas como instrumento de superação das violações graves e sistêmicas da nossa Constituição.
Cabe destacar ainda, que as reflexões e análises trazidas com o presente estudo são de extrema relevância tanto para o âmbito do Direito quanto para a sociedade como um todo, tendo em vista que a falência do sistema prisional brasileiro reflete no agravamento dos índices de criminalidade e violência social e urbana por todo o país. Portanto, é possível concluir que o debate acerca do tema é fundamental, uma vez que, extrapola os limites das ciências jurídicas, atingindo também todo o contexto social em que vivemos.
Dessa forma, a fim de efetivar o presente estudo foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental por meio de uma revisão literária e crítica da doutrina brasileira no tocante ao tema abordado, análise e interpretação da nossa Carta Magna e dos direitos e garantias fundamentais assegurados por ela, assim como, por meio de um estudo aprofundado da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347.
1.BREVE E CONTEXTUALIZADO HISTÓRICO DO INSTITUTO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL
1.1.Conceito e Origem na Corte Constitucional Colombiana
O presente trabalho aborda o estudo do Estado de Coisas Inconstitucional, que é uma técnica decisória de origem Corte Constitucional Colombiana, quando reconhece a presença de uma violação maciça de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas, cujo equacionamento dependa de um conjunto complexo e coordenado de medidas a serem adotados por diversas entidades.
Inicialmente, é importante destacar que o “estado de coisas inconstitucional” é um Instituto que foi aplicado pela Corte Constitucional Colombiana. No Brasil, vem sendo trabalhado pelo professor da UERJ Carlos Alexandre de Azevedo e, foi objeto de recente debate na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº347 enfrentada em sede cautelar pelo Supremo Tribunal Federal (FERNANDES, 2018,p.1695).
Conforme Fernandes (2018), a tese seria a de que o Poder Judiciário teria a possibilidade de declarar um “estado de coisas” como “inconstitucional”, ultrapassando a sua competência tradicional de invalidar lei ou ato normativo pela vida da inconstitucionalidade.
Tratando especificamente do contexto colombiano, Libardo Ariza defende que há a configuração desse Instituto nos casos de violações massivas e generalizadas de direitos fundamentais decorrentes de deficiências nos arranjos institucionais do Estado.
O estado de coisas inconstitucional pode ser encarado como a expressão da proteção dos direitos fundamentais em sua dimensão objetiva, uma vez que o seu reconhecimento acarreta mandados de ações e deveres de proteção dos direitos fundamentais pelo Estado (HERNÁNDEZ, 2003, p. 203-228)
Segundo, Dantas (2016), foram incorporadas pela jurisprudência da Corte Constitucional Colombiana demandas estruturais semelhantes às da Corte Americana no julgamento do caso Brown vs. Board of Education of Topeka em 1954, com algumas modificações, tendo recebido o trataento e a denominação de estado de coisas inconstitucional. No mencionado caso, foi decidido sobre a segregação racial no sistema de ensino do sul dos Estados Unidos, ocasião em que a Corte proibiu a discriminação racial em escolas públicas.
Nesse sentido, a expressão “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI) teve origem na Colômbia, quando da Sentencia de Unificación (SU-559) em 1997. No julgamento do caso, 45 professores dos Municípios de María La Baja e Zambrano tiveram direitos previdenciários suprimidos por autoridades locais. Destarte, ao analisar a situação a fundo, a Corte Colombiana verificou que a violação dos direito dos professores no que tange ao descumprimento da obrigação era massiva e generalizada, alcançando um expressivo número de professores, muito além dos autores da ação inicialmente posta a julgamento.
A época, os professores contribuíam com 5% de seus subsídios com um fundo previdenciário (FUNDO DE PRESTACIÓN SOCIAL), sendo que os agentes públicos negavam filiá-los ao fundo social e negavam seus benefícios, como cobertura de saúde e seguridade social. Frente ao caso, a Corte Constitucional reconheceu que os direitos sociais básicos não estavam sendo prestados aos 45 docentes, que entraram com o processo respectivo. Entretanto, em notória postura, a Corte, preocupada com a situação dos professores, constatou que o descumprimento da obrigação era generalizado e que a falha era estrutural, prejudicando aproximadamente 80% dos professores do município. A Corte, portanto, consignou que a violação de direitos, embora praticadas por estes municípios, tinha origem e defeito no próprio programa nacional de distribuição de recursos públicos para o financiamento do sistema educacional (CAMPOS, 2016).
Ainda, foi possível verificar que inércia no cumprimento da obrigação não deveria ser atribuída a um único órgão estatal, vez que apresentava natureza estrutural, na medida em que era relacionada a uma deficiência da própria política geral de educação. Assim, tendo sido reconhecida uma violação generalizada de direitos dos indivíduos e a existência de falhas estruturais nos órgãos estatais, a Corte Constitucional Colombiana decidiu em favor não apenas dos demandantes e nem contra somente os réus do referido processo, mas também em favor de todos aqueles em situação similares, dirigindo ordens em face de todas as autoridades e entidades públicas cujas ações seriam necessárias para corrigir as falhas sistêmicas detectadas.
Posteriormente, o instituto do Estado de Coisa Inconstitucional foi utilizado para afastar a mora no pagamento de pensões, assegurar melhorias do sistema carcerário do país, em favor de defensores dos direitos humanos, determinar a convocação de concurso de notários e na dramática situação das pessoas desalojadas em razão da violência no país (CAMPOS, 2016).
Ainda, ressalta-se que a Corte Constitucional Colombiana reconheceu a presença do ECI em outras oportunidades além da situação de absoluta ausência de cobertura previdenciária de professores públicos e as demais, destacando-se, segundo Dantas (2016):
“a violação maciça ao direito de petição dos segurados da Previdência Social pela não apreciação de requerimentos administrativos ou apresentação de respostas padrão sem análise dos pedidos lesões aos direitos à saúde, integridade física e psíquica, vida e dignidade dos detentos recolhidos em prisões superlotadas e negação dos direitos à moradia, ao trabalho, saúde, alimentação e educação da população vítima de deslocamento forçado em virtude dos conflitos armados.”
Conforme prediz Campos (2016, p.129):
“A Corte Constitucional identificou que o quadro de superlotação das penitenciárias colombianas implicava a violação massiva dos direitos à dignidade humana, à vida, à integridade física, à família, à saúde, enfim, a amplo conjunto de direitos fundamentais. A violação massiva, pode-se se dizer, estava dirigida à Constituição como um todo.”
No caso da declaração do ECI em relação ao Sistema Carcerário Colombiano, na Sentencia T – 153, de 1998, relativo ao quadro de superlotação das penitenciárias e da elevada incidência de violência, o que não contribuía para a ressocialização dos detentos, conforme Campos (2015):
“A execução dessas ordens não alcançou, todavia, grande sucesso. Os principais defeitos acusados foram a pouca flexibilidade das ordens, especialmente, em face dos “departamentos” locais, e a falta de monitoramento, pela própria corte, da fase de implementação da decisão. O erro da corte foi acreditar que sua autoridade contida nas decisões, por si só, seria suficiente para que os órgãos públicos cumprissem efetivamente com as medidas ordenadas. A corte pouco se preocupou com a real impossibilidade de as autoridades públicas cumprirem as ordens. Faltou diálogo em torno de como melhor realizar as decisões, não tendo sido retida jurisdição sobre a execução das medidas. A corte não voltaria a cometer esses erros no caso igualmente relevante do deslocamento forçado de pessoas em razão da violência urbana do país.”
No caso do deslocamento forçado de pessoas, segundo Campos (2015):
“O caso do deslocamento forçado de pessoas em decorrência do contexto de violência na Colômbia, decidido na Sentencia T-025, de 2004, é o mais importante do gênero. O deslocamento interno forçado de pessoas é um fenômeno típico de países mergulhados em violência, como é o caso da Colômbia. As pessoas são forçadas a migrar dentro do território colombiano, obrigadas a abandonar seus lares e suas atividades econômicas porque as ações violentas de grupos como as Farc ameaçam suas vidas, a integridade física das famílias, não havendo segurança ou liberdade nesses contextos. Todavia, a sociedade civil e as autoridades públicas colombianas, por muitos anos, simplesmente ignoraram as condições às quais se submetiam essas pessoas durante e após os deslocamentos. Na Sentencia T-025, de 2004, a corte examinou, de uma vez, 108 pedidos de tutelas formulados por 1.150 núcleos familiares deslocados. A maior parte dessa população era composta por mulheres cabeças de família, menores, minorias étnicas e idosos. Essas pessoas não gozavam dos direitos de moradia, saúde, educação e trabalho. A corte conclui estarem presentes os principais fatores que caracterizam o Estado de Coisas Inconstitucional e formulou remédios não só em favor dos que pleitearam as tutelas, mas também das outras pessoas que se encontravam na mesma situação. Acusando a precária capacidade institucional dos outros poderes para o desenvolvimento, implementação e coordenação das políticas públicas necessárias, e sem exercer diretamente as competências desses poderes, a Corte Constitucional: declarou o Estado de Coisas Inconstitucional; exigiu atenção orçamentária especial ao problema; determinou que fossem formuladas novas políticas públicas, leis e um marco regulatório eficiente para proteger, para além dos direitos individuais dos demandantes, a dimensão objetiva dos direitos envolvidos. As ordens foram flexíveis e dirigidas a um número elevado de autoridades públicas e, dessa vez, surtiram bons efeitos práticos porque a corte dialogou com os outros poderes e a sociedade sobre a adequação das medidas durante a fase de implementação. A manutenção da jurisdição sobre o caso fez toda a diferença, comparado ao caso do sistema carcerário.”
No caso do deslocamento forçado de pessoas em razão da violência generalizada nas ruas, assim entendeu a Corte, a propósito:
“Varios elementos confirman la existencia de un estado de cosas inconstitucional respecto de la situación de la población internamente desplazada. En primer lugar, la gravedad de la situación de vulneración de derechos que enfrenta la población desplazada fue expresamente reconocida por el mismo legislador al definir la condición de desplazado, y resaltar la violación masiva de múltiples derechos. En segundo lugar, otro elemento que confirma la existencia de un estado de cosas inconstitucional en materia de desplazamiento forzado, es el elevado volumen de acciones de tutela presentadas por los desplazados para obtener las distintas ayudas y el incremento de las mismas. En tercer lugar, los procesos acumulados en la presente acción de tutela, confirma ese estado de cosas inconstitucional y señalan que la vulneración de los derechos afecta a buena parte de la población desplazada, en múltiples lugares del territorio nacional y que las autoridades han omitido adoptar los correctivos requeridos. En cuarto lugar, la continuación de la vulneración de tales derechos no es imputable a una única entidad. En quinto lugar, la vulneración de los derechos de los desplazados reposa en factores estructurales enunciados en el apartado 6 de esta providencia dentro de los cuales se destaca la falta de correspondencia entre lo que dicen las normas y los medios para cumplirlas, aspecto que adquiere una especial dimensión cuando se mira la insuficiencia de recursos dada la evolución del problema de desplazamiento y se aprecia la magnitud del problema frente a la capacidad institucional para responder oportuna y eficazmente a él. En conclusión, la Corte declarará formalmente la existencia de un estado de cosas inconstitucional relativo a las condiciones de vida de la población internamente desplazada. Por ello, tanto las autoridades nacionales como las territoriales, dentro de la órbita de sus competencias, habrán de adoptar los correctivos que permitan superar tal estado de cosas.”
Conforme Fernandes (2018), no primeiro caso (do sistema carcerário), a corte adotou posição de “supremacia judicial” e fracassou. No segundo, (do deslocamento forçado de pessoas), porque partiu para o diálogo institucional, acabou promovendo vantagens democráticas e ganhos de efetividade pratica de suas decisões, contribuindo realmente para melhoria da situação.
Assim, conclui Fernandes (2018, p.1702):
“A conclusão é de que o Estado de Coisas Inconstitucional declarado pela Corte Constitucional Colombiana não surtiu o efeito desejado no caso do sistema carcerário, mas em caso posterior, a corte identificou o insucesso, diagnosticou os erros e avançou para uma nova postura, menos arrogante, mais dialógica e, portanto, mais factível ao sucesso.”
1.2.Finalidade do Estado de Coisas Inconstitucional e Pressupostos para o reconhecimento do Instituto
Pode-se dizer que propor a aplicação do ECI é defender a intercessão judicial no ciclo das políticas públicas. Portanto, esse é o principal aspecto do ECI: uma corte, quando declara a vigência do ECI, afirma a si mesma a legitimidade para interferir na agenda política e nos processos de concepção, implementação e abalançamento das políticas públicas, quando isso se mostrar indispensável para a superação de quadros de “violação massiva e sistemática de direitos fundamentais” (BRASIL. STF, 2015).
Conforme Campos (2016, p.58):
“Muitas vezes, e iniciativas administrativas para cumprimento dos comandos legais em favor da realização de direitos constitucionais, porém o resultado é pífio, revelando-se a insuficiência na proteção estatal. A omissão não seria tanto por conta da falta de lei, e sim da ausência de estrutura apta a tornar realidade os comandos legais, o que resulta, em última análise, na insuficiência da atuação da norma constitucional de direitos regulada e cuja concretização se impõe.”
Nesse sentido, o compromisso ético do juiz constitucional se traduz em não permanecer indiferente e imóvel frente a diversas situações de falhas estruturais, inércia dos poderes estatais, ou ainda insuficiência das ações promovidas, que se inter-relacionam lesando de maneira grave, permanente e contínua numerosos direitos inerentes os ser humano.
Conforme Dantas (2016), além dessa função, a superação da situação de inconstitucionalidade requer a expedição de ordens de execução complexas, mediante a qual o Juiz da causa instrui diversos órgãos a agirem coordenadamente para protegerem toda a população afetada.
Segundo Fernandes (2018, p.1695):
“Certo é que o estado de coisas inconstitucional pode ser observado quando se verifica a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar determinadas conjunturas, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público bem como a atuação e uma pluralidade de autoridades podem modificar a situação inconstitucional.”
Nesse sentido, Instituto do Estado de Coisa Inconstitucional tem como finalidade a construção de soluções estruturais voltadas a superação do(s) quadro(s) de violação massiva de direitos constitucionais (CAMPOS, 2016, p.98).
Conforme Carlos Alexandre de Azevedo Campos preconiza em sua obra “Estado de Coisas Inconstitucional” (2016, p.96):
“O reconhecimento da ECI busca conduzir o Estado a observar a dignidade da pessoa humana e as garantias dos direitos fundamentais uma vez que esteja em curso graves violações a esses direitos por omissão dos poderes públicos. O juiz depara-se com uma realidade social necessitada de transformação urgente.”
Desta forma, para o professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos a Corte Colombiana tem feito uso desse instrumento para a proteção da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, utilizando-o para declaração da própria deficiência ou imperfeição de leis e políticas públicas, suas formulações e implementações, que gerem a violação massiva de direitos fundamentais
Assim, pode-se dizer que a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional por uma Corte significa que esta deixa de limitar-se apenas ao papel de garantidora de direitos fundamentais em casos particulares e assume a função de formular ou contribuir com a definição de políticas públicas e de assegurar sua implementação e o controle de sua execução, buscando superar o quadro de massiva violação de direitos fundamentais.
Nessa medida, além de atuarem como direitos de defesa do cidadão contra o Estado exigem que este empreenda um conjunto de ações administrativas e legislativas para assegurar a efetiva proteção dos direitos fundamentais. Nesse contexto, a declaração de estado de coisas inconstitucional pela Corte Constitucional corresponde ao papel que o juiz constitucional está cada vez mais sendo chamado a cumprir, o de garante da dimensão objetiva dos direitos fundamentais em uma sociedade democrática e pluralista (HERNÁNDEZ, 2003, p. 207).
Para Fernandes (2018), as sentenças estruturais, próprias do Estado de Coisas Inconstitucional, no sentido de conterem ordens flexíveis e sujeitas a monitoramento, buscam promover a colaboração harmônica e deliberativa entre os poderes em torno de um objetivo comum: superar o quadro de inconstitucionalidades.
Ainda, conforme Campos (2015):
“quando uma Corte declara o Estado de Coisas Inconstitucional, a corte afirma existir quadro insuportável de violação massiva de direitos fundamentais, decorrente de atos comissivos e omissivos praticados por diferentes autoridades públicas, agravado pela inércia continuada dessas mesmas autoridades, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público podem modificar a situação inconstitucional. Ante a gravidade excepcional do quadro, a corte se afirma legitimada a interferir na formulação e implementação de políticas públicas e em alocações de recursos orçamentários e a coordenar as medidas concretas necessárias para superação do estado de inconstitucionalidades.”
Nesse sentido, a Corte Constitucional, se encontra diante do fenômeno do litígio estrutural, que é caracterizado pelo alcance a número amplo de pessoas, a várias entidades e por implicar ordens de execução consideradas complexas. Assim, para enfrentar litígio dessa magnitude, juízes constitucionais devem fixar “remédios estruturais”, voltados ao redimensionamento dos ciclos de formulação e execução das políticas públicas, o que não seria possível por meio das soluções mais ortodoxas (tradicionais), (FERNANDES, 2018, p.1696).
Ainda, segundo Fernandes (2018, p.1696), “ao adotar tais remédios as Cortes cumprem dois objetivos principais: superar bloqueios políticos e institucionais e aumentar a deliberação e o diálogo sobre causas e soluções do ECI”.
Dessa forma, conforme preconiza Campos (2015), para obter resultados positivos por meio da declaração do ECI por uma Corte Constitucional deve-se observar que:
“Depois de formuladas e implementadas as medidas pelos poderes políticos, a corte deverá monitorar e avaliar os resultados, mantendo um “colóquio contínuo” sobre as práticas adotadas, por meio, principalmente, de audiências públicas, com a participação dos órgãos estatais envolvidos e parcelas interessadas da sociedade civil. Não se trata, portanto, de “corrigir a incompetência dos outros poderes”, mas de promover diálogos democráticos entre os poderes e a sociedade em torno das melhores soluções. As sentenças estruturais, próprias do ECI, em conterem ordens flexíveis e sujeitas a monitoramento, buscam promover a colaboração harmônica e deliberativa entre os poderes em torno de um objetivo comum: superar o quadro de inconstitucionalidades. Portanto, não há supremacia, subjetivismo ou arbítrio judiciais, e sim diálogos e cooperação institucionais.”
Nesses termos, conforme preceitua Fernandes (2018, p.1697):
“As Cortes engajam em uma espécie de ativismo judicial estrutural justificado pela presença de bloqueios políticos e institucionais. O Estado de Coisas Inconstitucional, é sempre o resultado de situações concretas de paralisia parlamentar ou administrativa sobre determinadas matérias. Nesse cenário de falhar estruturais e omissões legislativas e administrativas, a atuação ativista das Cortes acaba sendo o único meio, ainda que longe do ideal em uma democracia, para superar os desacordos políticos e institucionais, a falta de coordenação entre órgãos públicos, temores de custos políticos, “legislative blindspots”, sub-representação de grupos sociais minoritários ou marginalizados.”
Ainda, conclui Campos (2015):
“O ECI tem potencial para contribuir à proteção de minorias vulneráveis e à solução de problemas estruturais que impliquem realidades inconstitucionais de violação a direitos fundamentais. Ainda que a expressão tenha sido elaborada pela CCC, as sentenças estruturais não são novidades, tendo alcançado sucesso em países como Estados Unidos, Canadá, Índia, África do Sul e Argentina.”
Cabe destacar que a Corte Constitucional Colombiana determinou três pressupostos essenciais para a configuração do ECI, conforme Azevedo (2015):
“no plano dos fatos, viger uma realidade manifesta de violação massiva e sistemática de diferentes direitos fundamentais; no plano dos fatores, a situação inconstitucional decorrer de ações e omissões estatais sistêmicas (falhas estruturais, máxime de políticas públicas), e se perpetuar ou mesmo agravar-se em razão de bloqueios políticos e institucionais persistentes e, aparentemente, insuperáveis; no plano dos remédios, ante as causas estruturais, a superação do quadro exigir medidas não apenas de um órgão, e sim de uma pluralidade desses (remédios ou sentenças estruturais).”
Neste sentido, Campos (2015), defende:
“A conjugação dos dois primeiros pressupostos revela, de forma inequívoca, a objetividade e excepcionalidade do ECI. O dever de observância dos dois pressupostos, como condição da declaração do ECI, exclui a vagueza e fluidez do instituto, e elimina o risco de ubiquidade apontado pelos autores. Não será qualquer violação de direitos que justificará o manejo da técnica pelo STF, mas apenas aquela que, de forma objetiva, se manifestar generalizada, sistemática, e for relacionada a um estado permanente de inércia estatal e flagrante incapacidade institucional. Deve pressupor ausência de políticas e programas públicos minimamente capazes de superar, gradativamente, o quadro de violação endêmica de direitos humanos.”
Ao julgar o caso do deslocamento forçado de pessoas, a Corte Constitucional Colombiana elencou os seguintes requisitos, necessários à configuração dessa situação: (i) a violação massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afetam um número significativo de pessoas; (ii) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações de garantia desses direitos;(ii) a adoção de práticas inconstitucionais, como a incorporação de ações judiciais como parte do procedimento exigido para a garantia dos direitos violados;(iii) a não expedição de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias.
Segundo Carlos Alexandre Campos Azevedo (apud Fernandes, 2018, p.1696), seguindo os parâmetros desenvolvidos pela Corte Constitucional Colombiana, os pressupostos para o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional são:
“(i) Plano dos fatos: a constatação de um quadro não simplesmente de proteção deficiente, e sim de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais, que afeta a um número amplo de pessoas; (ii) Plano dos Fatores: a falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e até judiciais, explicitando uma verdadeira “falha estatal estrutural”, que gera tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e agravamento da situação; (iii) Plano dos Remédios: a superação dessas violação de direitos exige a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão e sim a uma pluralidade destes, sendo necessárias mudanças estruturais, novas políticas públicas ou o ajuste das existentes, alocação de recursos e etc.”
Pois bem, a partir desses julgamentos paradigmas, Carlos Alexandre de Azevedo Campos, Professor-Adjunto da UERJ, explica quais são os pressupostos para a configuração do Estado de Coisas Inconstitucional:
“A descrição dessas sentenças revela haver três pressupostos principais do ECI. O primeiro pressuposto é o da constatação de um quadro não simplesmente de proteção deficiente, e sim de violação massiva e generalizada de direitos fundamentais que afeta a um número amplo de pessoas. Para além de verificar a transgressão ao direito individual do demandante ou dos demandantes em um determinado processo, a investigação da Corte identifica quadro de violação sistemática, grave e contínua de direitos fundamentais que alcança um número elevado e indeterminado de pessoas. Nesse estágio de coisas, a restrição em atuar em favor exclusivamente dos demandantes implicaria omissão da própria Corte, que deve se conectar com a dimensão objetiva dos direitos fundamentais. O segundo pressuposto é o da omissão reiterada e persistente das autoridades públicas no cumprimento de suas obrigações de defesa e promoção dos direitos fundamentais. A ausência de ou falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas e orçamentárias representaria uma “falha estrutural” que gera tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e agravamento da situação. Não seria a inércia de uma única autoridade pública, e sim o funcionamento deficiente do Estado como um todo que resulta na violação desses direitos. Além do mais, os poderes, órgãos e entidades em conjunto se manteriam omissos em buscar superar ou reduzir o quadro objetivo de inconstitucionalidade. O terceiro pressuposto tem a ver com as medidas necessárias para a superação do quadro de inconstitucionalidades. Haverá o ECI quando a superação de violações de direitos exigir a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão, e sim a uma pluralidade destes. O mesmo fator estrutural que se faz presente na origem e manutenção das violações, existe quanto à busca por soluções. Como disse Libardo José Arida, ao mal funcionamento estrutural e histórico do Estado conecta-se a adoção de remédios de “igual ou similar alcance”. Para a solução, são necessárias novas políticas públicas ou correção das políticas defeituosas, alocação de recursos, coordenação e ajustes nos arranjos institucionais, enfim, mudanças estruturais.”
1.3 O Estado de Coisas Inconstitucional e o ativismo judicial
Conforme Barroso (2015, p.476), em regra, a Corte Constitucional desempenha dois papéis distintos e contrapostos. O primeiro é um papel contramajoritário, exercido em defesa da Constituição, da proteção das regras que sustentam a democracia e dos direitos fundamentais. Isso significa que, agentes públicos que não foram eleitos pela população democraticamente, como é o caso dos juízes e Ministros do STF, podem sobrepor a sua razão à dos tradicionais representantes da política majoritária.
Além disso, existe um segundo papel, que pode ser denominado como “representativo”. Trata-se, do atendimento por parte do Tribunal de demandas sociais e anseios políticos que não foram satisfeitos a tempo e a hora pelo Congresso Nacional. Nesse sentido, segundo Barroso (2015, p.477). “todos esperam que o STF faça valer o direito constitucional, que não deve ficar à disposição dos detentores momentâneos do poder”.
Ainda, pode-se dizer que existe um terceiro papel a ser exercido pelas Cortes Constitucionais, denominado “papel iluminista”. Segundo Fernandes (2018, p.1717), diz respeito ao papel das Cortes de promover, em situações excepcionais, “certos avanços civilizatórios e empurrar a história”, em nome de valores racionais. Em que pesem não serem decisões que representem a maioria da população, elas são necessárias para a concretização de direitos fundamentais, sobretudo à luz de discriminações e preconceitos eventualmente vigentes.
Ressalta-se, que conforme salientado por Barroso (apud. Fernandes, 2018, p.1717), esse papel iluminista deve ser exercido com grande autocontenção e percimônia, tão somente em situações excepcionais, de modo que não há uma defesa de uma atuação iluminista irrestrita, mas sim emoldurada por limitações internas presentes no próprio ordenamento, pelos Direitos Humanos e, ainda, pelo próprio movimento dialético que possibilitou a atuação da Corte em primeiro lugar.
Através do estudo do tema, sabe-se que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional no ordenamento jurídico brasileiro no julgamento da ADPF 347 desencadeou uma série de discussões polêmicas acerca do tema, questionando-se a legitimidade da Suprema Corte no exercício desse papel contramajoritário, bem como o ativismo judicial.
De acordo com Giorgi e Faria (2015), a declaração do ECI ameaça a efetividade da Constituição e dos direitos fundamentais, ao passo que as cortes não possuem competência para corrigir a incompetência dos poderes políticos e decisões da espécie podem, simplesmente, não ser cumpridas.
Nesse sentido, ao invés de deixar os demais poderes estatais, como o Executivo e o Legislativo, decidir “se” e “quando” devem dirigir esforços normativos e orçamentários para superar o quadro de violação, as Cortes, reconhecendo a ausência de políticas públicas ou sua insuficiência ante as necessidades sociais, declaram o ECI atraindo para si o impulso e a supervisão das medidas necessárias a fim de superar o quadro de transgressões de direitos.
Para Streck (2015), devemos ter receio desse fenômeno denominado Estado de Coisas Inconstitucional, isto porque, seguindo essa ideia fluída, genérica e líquida, tudo pode virar inconstitucionalidade. Assim, diante do tamanho da crise que nosso país enfrenta, não só no âmbito do Sistema Carcerário, mas englobando todos os aspectos do país, como a economia, a política, os aspectos sociais e ambientais, deveríamos temer “uma ação para declarar a inconstitucionalidade... do Brasil.”
Para o referido autor, este Instituto configura-se como mais uma forma de justificar o “ativismo judicial” disfarçado, de modo que abre precedentes para que o Judiciário possa exercer uma atribuição que não possui legitimidade conforme nossa Constituição. Isto porque, a atuação do Judiciário visando obrigar os Poderes à implementação das medidas estruturais deferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de julgamento cautelar da ADPF 347, configura uma intervenção do Judiciário nos poderes atribuídos ao Poder Executivo e Legislativo conforme nossa Carta Magna.
Nesse sentido, Streck (2015), “a partir de um juízo político ou moral (ou econômico), o que não é inconstitucional em nosso país? O problema reside nos efeitos colaterais. O risco de uma decisão desse porte. Como em uma epidemia, a ADPF 347 é o “paciente zero”.
Em contrapartida com a visão do escritor, como visto anteriormente no estudo do tema, pode-se dizer que a declaração do ECI exige determinados pressupostos, como a violação massiva e sistemática de diversos direitos fundamentais decorrentes de ações e omissões estatais sistêmicas.
Para Dantas (2016), embora essas decisões sejam consideradas ativistas, é importante destacar que elas normalmente não envolvem grandes questionamentos acerca da existência ou conteúdo dos direitos fundamentais em disputa. Na maioria dos casos, a grande questão jurídica é saber como concretizar direitos em face da reiterada inércia e omissão estatal.
Ainda, conforme prediz Campos (2015):
“Além de excepcional, o ECI não favorece unilateralismos judiciais. O terceiro pressuposto deixa claro que nada pode ser resolvido pelo Judiciário isoladamente. Ao contrário, é próprio do ECI que a solução seja perseguida a partir de medidas a serem tomadas por uma pluralidade de órgãos. Por meio de ordens flexíveis, nas quais não consta a formulação direta das políticas públicas necessárias, o tribunal visa catalisar essas medidas, buscar a superação dos bloqueios políticos e institucionais que perpetuam e agravam as violações de direitos. O ECI funciona como a “senha de acesso” da corte à tutela estrutural: reconhecido o ECI, a corte não desenhará as políticas públicas, e sim afirmará a necessidade urgente que Congresso e Executivo estabeleçam essas políticas, inclusive de natureza orçamentária.”
Dessa forma, em consonância com o pensamento do professor Carlos Alexandre de Azevedo podemos dizer que existem limites para decisões estruturais como esta, de modo que somente são cabíveis em casos de reiterada inércia ou omissão pelo Poder Público, nos quais haja urgência de medidas mais incisivas para proteção dos direitos fundamentais inerentes aos indivíduos. Ainda, tendo em vista os pressupostos exigidos para a prolação das decisões estruturais, temos que elas não são cabíveis quando a situação for passível de ser resolvida mediante uma decisão simples, conforme Dantas (2016), “exigindo, ainda, certo grau de consenso sobre os direitos objetos das ações e a observância de critérios de subsidiariedade e proporcionalidade.”
Ainda, conforme Barroso (2015, p.477):
“O constitucionalismo democrático se funda institucionalização da razão e da correção moral. Isso significa que uma decisão da corte suprema, para ser inquestionavelmente legítima, deverá ser capaz de demonstrar: (i) a racionalidade e ajustiça do seu argumento, bem como (ii) que ela corresponde a uma demanda social objetivamente demonstrável.”
Por fim, em relação às críticas ao ECI em razão da violação a Separação dos Poderes conclui Campos (2015):
“Primeiramente, partem de uma concepção estática do princípio, de poderes não só separados, como distantes e incomunicáveis. As pretensões transformativa e inclusiva da Carta de 1988 requerem, ao contrário, um modelo dinâmico, cooperativo de poderes que, cada qual com as ferramentas próprias, devem compartilhar autoridade e responsabilidade em favor da efetividade da Constituição. Em segundo lugar, ainda que se reconhecesse como plenamente vigente esse modelo estático de poderes que se excluem funcionalmente, circunstâncias próprias do ECI — violação massiva de direitos fundamentais e bloqueios políticos e institucionais — configuram motivos suficientes à flexibilização, nos casos concretos e sob o ângulo de princípios de moralidade política, razões de separação ortodoxa de poderes. Pensar de modo diverso equivale a tolerar situações de somatório de inércias, de paralisia dos três poderes em desfavor da realização efetiva de direitos fundamentais.”
2. O ATUAL CENÁRIO DE VIOLAÇÃO DIÁRIA E GENERALIZADA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO SISTEMA PRISIONAL BASILEIRO
2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e Direitos dos Presos
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1º consagra o Estado Democrático de Direito, responsável pelo estabelecimento de princípios e garantias individuais, consagrando principalmente os direitos fundamentais dos homens. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um princípio absoluto que está previsto no inciso III do mencionado artigo,
como um valor fundamental inerente ao nosso Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, Barroso (2015, p.284), “O constitucionalismo democrático tem por fundamento e objetivo a dignidade da pessoa humana.”
Ressalta-se que a dignidade da pessoa humana não se restringe apenas a forma principiológica, uma vez que constitui um valor fundamental. Isto porque, a dignidade da pessoa humana funciona tanto como justificação moral quanto como fundamento normativo para os direitos fundamentais, constituindo, na verdade, parte do conteúdo dos direitos fundamentais. Nesse sentido, conforme Barroso (2015, p.285):
Os princípios operam como fonte direta de direitos e deveres quando do seu núcleo essencial de sentido se extraem regras que incidirão sobre situações concretas. Por exemplo: o conteúdo essencial da dignidade humana implica a proibição de tortura, mesmo em um ordenamento jurídico no qual não exista regra expressa impedindo tal conduta. Já no seu papel interpretativo, o principio da dignidade da pessoa humana vai informar o sentido e o alcance dos direitos constitucionais.
Para Barroso (2015, p.286), para chegarmos a um conceito jurídico acerca da dignidade da pessoa humana, devemos observar três elementos que integram o conteúdo minimalista acerca da dignidade, o primeiro o valor intrínseco de todos os seres humanos, assim como a autonomia de cada indivíduo limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais que representam o valor comunitário.
Nesse sentido, no plano jurídico o valor intrínseco da dignidade da pessoa humana está na origem de uma série de direitos fundamentais como, o direito à vida, direito à igualdade, direito à integridade física, direito à integridade moral e psíquica, sendo que em cada um desses domínios temos uma complexidade de repercussões e uma extensão de outros direitos ou situações jurídicas que se correlacionam ou decorrem deles. Como por exemplo, menciona Barroso (2015, p.287):
a) direito à vida: todos os ordenamentos jurídicos protegem o direito à vida. Como consequência, o homicídio é tratado em todos eles como crime. A dignidade preenche, em quase toda sua extensão, o conteúdo desse direito. Não obstante isso, em torno do direito à vida se travam debates de grande complexidade moral e jurídica, como a pena de morte, o aborto e a eutanásia; b) direito à igualdade: todas as pessoas têm o mesmo valor intrínseco e, portanto, merecem igual respeito e consideração, independentemente de raça, cor, sexo, religião, origem nacional ou social ou qualquer outra condição. Aqui se inclui a igualdade formal, o direito a não ser discriminado arbitrariamente na lei e perante a lei, assim como o respeito à diversidade e à identidade de grupos sociais minoritários. Nesse domínio temos temas controvertidos como ações afirmativas em favor de grupos sociais historicamente discriminados, reconhecimento das uniões homoafetivas, direitos dos deficientes e os índios; c) direito à integridade física: desse direito decorrem a proibição de tortura, do trabalho escravo ou forçado, as penas cruéis e o tráfico de pessoas. É aqui que se colocam debates complexos como os limites às técnicas de interrogatório, admissibilidade da prisão perpétua e regimes prisionais; d) direito à integridade psíquica e moral: nesse domínio estão incluídas a privacidade, a honra e a imagem. Muitas questões intrincadas derivam desses direitos da personalidade, nas suas relações com outros direitos e situações constitucionalmente protegidas. Têm sido recorrentes e polemicas as colisões entre a liberdade de expressão, de um lado, e os direito à honra, à privacidade e à imagem de outro.
Nesse sentido, dentro da vertente do Direito Penal, temos que o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como mentor e vetor de muitos outros princípios que regem a matéria penal, como por exemplo, o princípio da individualização da pena, da responsabilidade pessoal e da limitação das penas. Todavia, o que vemos hoje no âmbito criminal, principalmente no tocante a situação carcerária do país, é que esse valor fundamental muitas vezes é desrespeitado pelo próprio Estado, que, na realidade, possui o Poder-Dever de, além de garanti-lo, colocá-lo em vigor e exigir o seu cumprimento.
Importante destacar, que o que torna os seres humanos seres singulares e que os difere dos demais seres vivos e das coisas, é a dignidade, adquirida a partir da nossa capacidade intelectual, sensibilidade e capacidade de comunicação através da linguagem, gestos e expressões fisionômicas. Nas palavras de Kant, “as coisas têm preço, mas as pessoas têm dignidade, um valor que não têm preço”.
Em contrapartida, no que diz respeito à situação dos detentos no país, temos que esse valor fundamental, e todos os seus desdobramentos, não têm sido observados pelo próprio Estado. Pelo contrário, como mencionado anteriormente e reforçado agora, inexiste omissão constitucional no que tange aos direitos dos presos, uma vez que, a Constituição determina expressamente diversos direitos e deveres atribuídos a esse grupo, sendo que, na realidade, o que ocorre é uma omissão institucional por parte do Estado, incapaz de dar efetividade a esses direitos e garantias fundamentais preconizados por nossa Carta Magna.
Ressalta-se, ainda, que essa omissão estatal se traduz em uma série de violações diárias e generalizadas aos direitos fundamentais dos detentos dentro dos sistemas carcerários espalhados pelo país. Assim, enquanto caberia ao Estado um papel de garantidor desses direitos e garantias fundamentais consagrados pela nossa Carta Magna, o que se percebe, na prática, é que o descumprimento e o desrespeito à dignidade da pessoa humana, e demais valores fundamentais, é ainda mais intenso por parte do Estado.
Nas palavras de Greco (2014 p. 103):
O descumprimento, pelo delinquente, do “contrato social” parece despertar a fúria do Estado, que passa a tratá-lo com desprezo, esquecendo-se de que é portador de uma característica indissolúvel da sua pessoa, vale dizer, a sua dignidade.
Ainda, no tocante a legislação brasileira, mormente através da Lei de Execução Penal (Lei 7210 /84), temos diversos direitos assegurados aos presos, dentre os quais merecem destaque: a assistência material, tendo o preso direito à alimentação, vestuários e instalações; assistência à saúde, de caráter preventivo e curativo, compreendendo o atendimento médico, farmacêutico e odontológico, feito dentro do local de cumprimento da pena ou, na falta de estrutura, garantida a sua realização em local adequado; além das assistências jurídica, educacional e religiosa.
Em síntese, o Estado deve fornecer ao preso, ainda que privado de sua liberdade e direitos políticos, a assistência necessária e condições básicas para assegurar-lhe a dignidade e para que tenha garantido os direitos mínimos inerentes a todos os seres humanos. Dessa forma, constitui responsabilidade do Estado o dever de assistência ao egresso visando ressocializá-lo e reintegrá-lo à sociedade quando estiver em liberdade.
Além disso, temos os direitos sociais assegurados pelo art. 6º da Constituição Federal, que compõe o seguinte rol: direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à assistência aos desamparados. Portanto, trata-se de um dever social atribuído ao Estado, a fim de atingir aos objetivos da pena, devendo ser garantido aos egressos condições dignas de sobrevivência, bem como o acesso à justiça, à saúde, à educação, e ao trabalho, quando condenado em cumprimento de pena privativa de liberdade.
Ocorre que, não obstante o reconhecimento expresso destes direitos como o mínimo necessário a uma existência digna, essas garantias não alcançam as penitenciárias, carentes de cuidados médicos necessários, de acesso à educação e ao trabalho, e principalmente, de segurança, sendo frequentes os casos de violência prisional em que os encarcerados sofrem com espancamentos, doenças e abuso sexual. Ainda, temos que tais direitos são constantemente violados pelo Estado, tendo em vista ainda que, o Estado insere indivíduos em um ambiente insalubre e superlotado, com condições de higiene inadequadas e com acesso precário e limitado à saúde, sendo até mesmo propício a proliferação de doenças infectocontagiosas.
Assim, a fim e corroborar todo o exposto conclui Sarmento (2015) que, em regra, as sanções são cumpridas em condições incomparavelmente mais gravosas do que aquelas admitidas pela nossa ordem jurídica, presentes na Lei de Execução Penal e consentâneas a nossa ordem constitucional.
2.2 Incompatibilidade do Sistema Carcerário com a nossa ordem jurídico constitucional
A Constituição Federal, em seu artigo 5°, consagra a garantia fundamental da proibição de aplicação de tortura e tratamento desumano ou degradante, sendo também assegurado ao preso o respeito à integridade física e moral. Não apenas no rol de direitos fundamentais, mas como fundamentos da República Federativa do Brasil, previstos no artigo 1°, inciso II e III, da Constituição, estão importantes garantias ao cidadão, como a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Todavia, nos deparamos diariamente com uma situação completamente diversa no atual cenário carcerário brasileiro, com celas superlotadas, pessoas dormindo umas em cima das outras, falta de acesso à educação, saúde e justiça, higiene e alimentação inadequada, proliferação de doenças, dentre outras violações de direitos, sem garantir o mínimo necessário para um tratamento humano, bem como sem assegurar o respeito à integridade física e moral e o acesso ao exercício de sua cidadania.
Conforme salientado na inicial da ADPF 347 (BRASIL. STF, 2015), intitulada pelo PSOL e assinada por renomados juristas brasileiros, as prisões brasileiras são consideradas “verdadeiros infernos dantescos”, onde se vê as seguintes situações: celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos, homicídios frequentes, espancamentos, tortura e violência sexual contra os presos, praticadas tanto por outros detentos quanto por agentes do Estado, ausência de assistência judiciária adequada, bem como de acesso à educação, à saúde e ao trabalho. Ainda, enfatiza o fato de as instituições prisionais estarem dominadas por facções criminosas, sendo comum encontrar, em mutirões carcerários, presos que já cumpriram a pena e poderiam estar soltos há anos.
Ainda, em relação à crise enfrentada pelo Sistema Prisional brasileiro, de acordo com os dados do Banco Nacional de Monitroramento dos Prisões (BNMP), do Conselho Nacional de Justiça, a população carcerária contava com 812.564 mil presos, sendo que, 41,5% (337.126 mil) são presos provisórios.
Segundo Sarmento (2015), a Constituição Brasileira padece de graves problemas de efetividade, mas em nenhum outro campo a distância entre as promessas generosas da Constituição e a realidade é maior ou mais abissal. De modo que não há, talvez, desde a abolição da escravidão, maior violação de direitos humanos no solo nacional, tratando-se da maior e mais grave afronta a Constituição que tem lugar hoje em nosso país.
Este cenário implica a violação de diversos preceitos fundamentais da Constituição de 1988: o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), a proibição da tortura, do tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, inciso III) e das sanções cruéis (artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”), assim como o dispositivo que impõe o cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e sexo do apenado (artigo 5º, inciso XLVIII), o que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX) e o que prevê a presunção de não culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII), os direitos fundamentais à saúde, educação, alimentação apropriada e acesso à Justiça.
Além disso, conforme consta da inicial da ADPF 347, outro fator que contribui para a superlotação é o uso abusivo da prisão provisória. Segundo relatórios do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, 41% dos presos brasileiros estão nessa condição, o que caracteriza a banalização da adoção da medida constritiva antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, evidenciando-se uma “cultura do encarceramento”.
Cabe destacar que, a privação da liberdade constitui medida excepcional de restrição de direitos, de modo que as prisões cautelares devem sempre ser usadas criteriosamente quando necessária e de acordo com a lei.
Conforme Pacelli (2018, p.437):
Ante o princípio constitucional da não culpabilidade, a custódia acauteladora há de ser tomada como exceção, cumprindo interpretar os preceitos que regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os cidadãos, especialmente aqueles prontos a colaborarem com o Estado na elucidação do crime.
Ademais, destaca-se que há violação ainda do Pacto Intramericano no que tange a inobservância da realização de audiência de custódia dentro do prazo de 24 horas da prisão em flagrante, tendo em vista que estão obrigados juízes e tribunais, observado o artigo 7º, item 5 da Convenção Interamericana de Direitos:
“Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”
Conforme expõe Greco (2014), o cárcere brasileiro foi analisado pelo comitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU, em razão da inobservância de tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo país – Pacto dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Segundo o relatório do Subcomitê de Prevenção à tortura (SPT), foi constatado que as condições dos presídios brasileiros, como a superlotação das celas, a insalubridade e a falta de higiene adequada, além da ausência de serviços básicos e de assistência médica necessária, e, em especial, a violência entre os detentos e os relatos de abusos sexuais, configuram uma pena de tratamento cruel e desumano para os condenados.
Nesse sentido, Greco (2014, p.210):
O relatório do comitê da ONU contra a tortura conclui pela superlotação dos presídios brasileiros, ausência de comodidade e falta de higiene das prisões, falta de serviços básicos e de assistência médica adequada e, em especial, pela violência entre os detentos e pelos abusos sexuais.
Ainda, no relatório do SPT (Relatório contra a tortura, 2012, p.96), foi apontada a superlotação em quase todos os estabelecimentos prisionais, destacando-se que se faz necessária a imposição de medidas alternativas à privação de liberdade como forma de desafogar o sistema carcerário. Todavia, tal conduta não é adotada por parte dos magistrados no Brasil, sendo observada a falta de aplicação de penas alternativas à pena privativa de liberdade, estabelecimentos prisionais superlotados, e uma população carcerária cada vez mais crescente.
Por fim, conforme explicitado na inicial da ADPF 347, a União estaria contingenciando recursos do Fundo Penitenciário – FUNPEN, deixando de repassá-los aos Estados, apesar de encontrarem-se disponíveis e serem necessários à melhoria do quadro. Dessa forma, o contingenciamento de recursos do FUNPEN e o excesso de rigidez e de burocracia da União para liberação de recursos aos demais entes federativos revela-se afrontoso à dignidade humana de centenas de milhares de pessoas evidenciando, dentre outras violações mencionados anteriormente, o “estado de coisas inconstitucional”.
3. A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL nº347
3.1 A proposta do PSOL
Em maio de 2015, o Partido Socialista e Liberdade (PSOL) ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) pedindo que o STF declare que a situação atual do sistema penitenciário brasileiro viola preceitos fundamentais da Constituição Federal, mormente direitos fundamentais dos presos.
De acordo com Fernandes (2018), na petição inicial foi alegado que o sistema penitenciário brasileiro vive um verdadeiro “Estado de Coisas Inconstitucional”. A petição inclusive apontou os pressupostos já abordados na presente monografia que caracterizam o fenômeno, quais sejam, a violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, a inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura e a situação estrutural que exige a atuação de mais de um órgão, de uma pluralidade de autoridades para ser sanada.
Salienta-se que a ação foi proposta contra a União e os Estados, sendo que na inicial os juristas requereram ao Supremo Tribunal Federal que determinasse à União e aos Estados que tomassem uma série de providências no intuito de sanar as lesões aos direitos dos presos.
Na petição inicial da ADPF 347, proposta pelo PSOL, postulava-se o deferimento de uma liminar para que fosse determinado aos juízes e Tribunais as seguintes medidas cautelares:
a)que lançassem, em casos de decretação ou manutenção de prisão provisória, a motivação expressa pela qual não se aplicam medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, estabelecidas no art. 319 do CPP; b) que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção lnteramericana de Direitos Humanos, realizassem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão; c) que considerassem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento de implemento de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal; d) que estabelecessem, quando possível, penas alternativas à prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo; e) que viessem a abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos dos presos, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando reveladas as condições de cumprimento da pena mais severas do que as previstas na ordem jurídica em razão do quadro do sistema carcerário, preservando-se, assim, a proporcionalidade da sanção; e f) que se abatesse da pena o tempo de prisão, se constatado que as condições de efetivo cumprimento são significativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica, de forma a compensar o ilícito estatal. Requeria-se, finalmente, que fosse determinado: g) ao CNJ que coordenasse mutirão carcerário a fim de revisar todos os processos de execução penal, em curso no País, que envolvessem a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às medidas pleiteadas nas alíneas "e" e "f"; e h) à União que liberasse as verbas do Fundo Penitenciário Nacional - Funpen, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos. (FERNANDES, 2018, p.1697).
Já no mérito, além da confirmação das medidas cautelares, foi requerido em caráter definitivo:
a) haja a declaração do “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro;
b) seja determinado ao Governo Federal a elaboração e o encaminhamento ao Supremo, no prazo máximo de três meses, de um plano nacional visando à superação, dentro de três anos, do quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro;
c) o aludido plano contenha propostas e metas voltadas, especialmente, à (I) redução da superlotação dos presídios; (II) contenção e reversão do processo de hiperencarceramento existente no país; (III) diminuição do número de presos provisórios; (IV) adequação das instalações e alojamentos dos estabelecimentos prisionais aos parâmetros normativos vigentes, no tocante a aspectos como espaço mínimo, lotação máxima, salubridade e condições de higiene, conforto e segurança; (V) efetiva separação dos detentos de acordo com critérios como gênero, idade, situação processual e natureza do delito; (VI) garantia de assistência material, de segurança, de alimentação adequada, de acesso à justiça, à educação, à assistência médica integral e ao trabalho digno e remunerado para os presos; (VII) contratação e capacitação de pessoal para as instituições prisionais; (VIII) eliminação de tortura, maus-tratos e aplicação de penalidades sem o devido processo legal nos estabelecimentos prisionais; (IX) adoção de providências visando a propiciar o tratamento adequado para grupos vulneráveis nas prisões, como mulheres e população LGBT;
d) o plano preveja os recursos necessários à implementação das propostas e o cronograma para a efetivação das medidas;
e) o plano seja submetido à análise do Conselho Nacional de Justiça, da Procuradoria Geral da República, da Defensoria-Geral da União, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Nacional do Ministério Público e de outros órgãos e instituições que desejem se manifestar, vindo a ser ouvida a sociedade civil, por meio da realização de uma ou mais audiências públicas;
f) o Tribunal delibere sobre o plano, para homologá-lo ou impor providências alternativas ou complementares, podendo valer-se do auxílio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça;
g) uma vez homologado o plano, seja determinado aos Governos dos estados e do Distrito Federal que formulem e apresentem ao Supremo, em três meses, planos próprios em harmonia com o nacional, contendo metas e propostas específicas para a superação do “estado de coisas inconstitucional” na respectiva unidade federativa, no prazo máximo de dois anos. Os planos estaduais e distrital deverão abordar os mesmos aspectos do nacional e conter previsão dos recursos necessários e cronograma;
h) sejam submetidos os planos estaduais e distrital à análise do Conselho Nacional de Justiça, da Procuradoria Geral da República, do
Ministério Público da respectiva unidade federativa, da Defensoria-Geral da União, da Defensoria Pública do ente federativo, do Conselho Seccional da OAB da unidade federativa, de outros órgãos e instituições que desejem se manifestar e da sociedade civil, por meio de audiências públicas a ocorrerem nas capitais dos respectivos entes federativos, podendo ser delegada a realização das diligências a juízes auxiliares, ou mesmo a magistrados da localidade, nos termos do artigo 22, inciso II, do Regimento Interno do Supremo;
i) o Tribunal delibere sobre cada plano estadual e distrital, para homologá-los ou impor providências alternativas ou complementares, podendo valer-se do auxílio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça;
j) o Supremo monitore a implementação dos planos nacional, estaduais e distrital, com o auxílio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de MedidasSocioeducativas do Conselho Nacional de Justiça, em processo público e transparente, aberto à participação colaborativa da sociedade civil.” (BRASIL. STF, 2015).
3.2 A apreciação pelo STF e o deferimento parcial
Conforme o informativo 798 (BRASIL, STF, 2015), que explicita a decisão cautelar da ADPF n°347, o Plenário do STF reconheceu que no sistema prisional brasileiro realmente há uma violação generalizada de direitos fundamentais dos presos. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios acabam sendo penas cruéis e desumanas. Diante disso, o STF declarou que diversos dispositivos constitucionais, documentos internacionais (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais estão sendo desrespeitadas.
Ainda, foi afirmado pela Suprema Corte que os cárceres brasileiros, além de não servirem à ressocialização dos presos, fomentam o aumento da criminalidade, pois transformam pequenos delinquentes em "monstros do crime". Nesse sentido, a prova da ineficiência do sistema como política de segurança pública está nas altas taxas de reincidência, sendo que o reincidente passa a cometer crimes ainda mais graves (FERNANDES, 2018, p.1698).
Além disso, segundo Fernandes (2018), o STF entendeu que a responsabilidade por essa situação deve ser atribuída aos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), tanto da União como dos Estados-Membros e do Distrito Federal. Nesses termos, entendeu o STF, na esteira da tese do estado de coisas inconstitucional que a ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representa uma verdadeira "falha estrutural" que gera ofensa aos direitos dos presos, além da perpetuação e do agravamento da situação. Isto posto, caberia ao STF o papel de retirar os demais poderes da inércia, coordenar ações visando a resolver o problema e monitorar os resultados alcançados, o que torna a intervenção judicial necessária diante da incapacidade demonstrada pelas instituições legislativas e administrativas.
Como bem ressaltado pela ilustre Procuradora Geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge, (N.º 325/2019 – SFCONST/PGR, p.16):
Não deve o Poder Judiciário substituir-se ao Legislativo e ao Executivo na apreciação e definição da melhor forma de prossecução do interesse público, reavaliando o juízo político que envolve a decisão de realocar recursos orçamentários, sobretudo em situação de grave crise financeira. Todavia, a interferência judicial na gestão orçamentária e de políticas públicas pode tornar-se necessária em casos extremos, diante de situações de manifesta e grave violação ao núcleo mínimo de direitos fundamentais por ação ou omissão estatal.
Nesse sentido, reconheceu o Ministro Relator Marco Aurélio que “há dificuldades, no entanto, quanto à necessidade de o Supremo exercer função atípica, excepcional, que é a de interferir em políticas públicas e escolhas orçamentária.”, no entanto a medida excepcional se justifica neste processo, sobretudo pela falta de vontade política para sanar os defeitos estruturais do sistema penitenciário, concluindo o relator que, “a forte violação de direitos fundamentais, alcançando a transgressão à dignidade da pessoa humana e ao próprio mínimo existencial justifica a atuação mais assertiva do Tribunal.” (BRASIL, STF, p. 31).
Nessa mesma linha de pensamento, o Ministro defende que:
Trata-se de entendimento pacificado, como revelado no julgamento do aludido Recurso Extraordinário nº 592.581/RS, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, no qual assentada a viabilidade de o Poder Judiciário obrigar a União e estados a realizarem obras em presídios para garantir a integridade física dos presos, independentemente de dotação orçamentária. Inequivocamente, a realização efetiva desse direito é elemento de legitimidade do Poder Público em geral Isso é o que se aguarda deste Tribunal e não se pode exigir que se abstenha de intervir, em nome do princípio democrático, quando os canais políticos se apresentem obstruídos, sob pena de chegar-se a um somatório de inércias injustificadas
O Ministro entende ainda que, as controvérsias teóricas não devem ser aptas a afastar o convencimento no sentido de que o reconhecimento de preenchimento dos pressupostos do estado de coisas inconstitucional resulta na possibilidade de o Tribunal tomar parte, na adequada medida, em decisões primariamente políticas sem que se possa cogitar de afronta ao princípio democrático e da separação de poderes.
Ainda, conforme o Ministro, “apenas o Supremo revela-se capaz, ante a situação descrita, de superar os bloqueios políticos e institucionais que vêm impedindo o avanço de soluções”, isto significa que cabe ao Tribunal cumprir o papel de retirar os demais Poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações e monitorar os resultados. (BRASIL, STF, p. 33).
Ressalta ainda que, existem bloqueios políticos e institucionais que impedem a resolução desse problema e que “bloqueios dessa espécie traduzem-se em barreiras à efetividade da própria Constituição e dos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos”, dessa forma, “cabe ao Tribunal exercer função típica de racionalizar a concretização da ordem jurídico-penal, de modo a minimizar o quadro, em vez de agravá-lo, como vem ocorrendo”.
Ainda, o Ministro Marco Aurélio defende que esses bloqueios decorrem da falta de vontade política em razão da impopularidade da classe à que pertencem os detentos, conforme afirma:
[…] a impopularidade dos presos faz com que os políticos, salvo raríssimas exceções, não reivindiquem recursos públicos a serem aplicados em um sistema carcerário voltado ao oferecimento de condições de existência digna. A opinião pública está no coração da estrutura democrático-parlamentar. Ignorá-la pode significar não só o fracasso das políticas que defendem, mas também das tentativas de reeleição a cargos no Legislativo e no Executivo. Essa preocupação é tanto maior quanto mais envolvida matéria a atrair a atenção especial do público. Questões criminais são capazes de gerar paixões em um patamar que outros temas e áreas do Direito não conseguem. A sociedade não tolera mais a criminalidade e a insegurança pública, e isso implica ser contrária à preocupação com a tutela das condições dignas do encarceramento. Essa rejeição tem como consequência direta bloqueios políticos, que permanecerão se não houver intervenção judicial. Pode-se prever a ausência de probabilidade de os poderes políticos, por si sós, tomarem a iniciativa de enfrentar tema de tão pouco prestígio popular. Em casos assim, bloqueios costumam ser insuperáveis. Comparem com a saúde pública: há defeitos estruturais sérios nesse campo, mas tem-se vontade política em resolvê-los. Não existe um candidato que não paute a campanha eleitoral, entre outros temas, na melhoria do sistema. Todos querem ser autores de propostas que elevem a qualidade dos serviços. Deputados lutam pela liberação de recursos financeiros em favor da população das respectivas bases e territórios eleitorais. A saúde pública sofre com déficits de eficiência, impugnados judicialmente por meio de um sem número de ações individuais, mas não corre o risco de piora significativa em razão da ignorância política ou do desprezo social. O tema possui apelo democrático, ao contrário do sistema prisional. É difícil imaginar candidatos que tenham como bandeira de campanha a defesa da dignidade dos presos. A rejeição popular faz com que a matéria relativa à melhoria do sistema prisional enfrente o que os cientistas políticos chamam de “ponto cego legislativo” (legislative blindspot): o debate parlamentar não a alcança. Legisladores e governantes temem os custos políticos decorrentes da escolha por esse caminho, acarretando a incapacidade da democracia parlamentar e dos governos popularmente eleitos de resolver graves problemas de direitos fundamentais.
(BRASIL, STF, p. 35):
O Ministro Edson Fachin (BRASIL. STF, 2015, p.50), subscrevendo as palavras do Ministro relator Marco Aurélio, sustenta a importância da atuação do Supremo na Arguição de Preceito Fundamental – ADPF 347, sustentando que:
[...] Não trata de usar o Poder Judiciário e o Supremo Tribunal Federal como espaço constituinte permanente, mas sim como um poder que atua contramajoriatamente para a guarda da Constituição e a proteção de direitos fundamentais que vem sendo violados pelos Poderes que lhes deveriam dar concretude.
Para Fernandes (2018, p.1699), neste contexto, é fundamental ressaltar que, o plenário do STF entendeu que o papel da Corte não pode substituir o papel do Legislativo e do Executivo na consecução de suas tarefas próprias. Assim sendo, o Judiciário deverá superar bloqueios políticos e institucionais sem afastar, os outros poderes (legislativo e executivo) dos processos de formulação e implementação das soluções necessárias, devendo agir em diálogo com os outros poderes e com a sociedade.
Nesse sentido, conforme Fernandes (2018, p.1699):
Não incumbe ao judiciário definir o conteúdo próprio dessas políticas, os detalhes dos meios a serem empregados. Aqui em vez de desprezar as capacidades institucionais dos outros poderes, deveria o STF coordená-las, a fim de afastar o estado de inércia e deficiência estatal permanente. Como já salientado, não se trataria de substituição aos demais poderes, e sim de oferecimento de incentivos, parâmetros e objetivos indispensáveis à atuação de cada qual, deixando-lhes o estabelecimento das minúcias para se alcançar o equilíbrio entre respostas efetivas às violações de direitos e as limitações institucionais reveladas.
Com base nessas considerações, foram indeferidos pela Suprema Corte os pedidos "e" e "f”. No tocante aos demais pedidos elencados no subitem anterior, “a", "c" e "d", o Supremo Tribunal Federal entendeu que seria desnecessário ordenar aos juízes e Tribunais que os realizassem por entender que tais deveres de motivação e de aplicação preferencial de medidas cautelares penais já são decorrência direta de comandos normativos expressos não apenas na Constituição da República (art. 93-IX), como no estatuto processual penal (CPP, arts. 282- § 6º22 e 315). Assim, não há que se falar na necessidade do STF declará-los como obrigatórios, o que seria apenas um reforço.
Sobre as medidas cautelares pleiteadas, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o preenchimento dos requisitos para configuração do Estado de Coisas Inconstitucional no tocante ao sistema carcerário brasileiro e decidiu conceder, parcialmente, a medida liminar, deferindo os pedidos "b" (audiência de custódia) e "h" (liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN).
Confira-se abaixo, o acordão proferido no dia 09 de setembro de 2015, que deferiu parcialmente o pedido da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 347:
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em, apreciando os pedidos de medida cautelar formulados na inicial, por maioria e nos termos do voto do Relator, deferir a cautelar em relação à alínea “b”, para determinar aos juízes e tribunais que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão, com a ressalva do voto da Ministra Rosa Weber, que acompanhava o Relator, mas com a observância dos prazos fixados pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, vencidos, em menor extensão, os Ministros Teori Zavascki e Roberto Barroso, que delegavam ao CNJ a regulamentação sobre o prazo da realização das audiências de custódia; em relação à alínea “h”, por maioria e nos termos do voto do Relator, em deferir a cautelar para determinar à União que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos, vencidos, e menor extensão, os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso e Rosa Weber, que fixavam prazo de até sessenta dias, a contar da publicação desta decisão, para que a União procedesse à adequação para o cumprimento do que determinado; em indeferir as cautelares em relação às alíneas “a”, “c” e “d”, vencidos os Ministros Relator, Luiz Fux, Cármen Lúcia e o Presidente, que as deferiam; em indeferir em relação à alínea “e”, vencido, em menor extensão, o Ministro Gilmar Mendes; e, por unanimidade, em indeferir a cautelar em relação à alínea “f”; em relação à alínea “g”, por maioria e nos termos do voto do Relator, o Tribunal julgou prejudicada a cautelar, vencidos os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Celso de Mello, que a deferiam nos termos de seus votos.” (BRASIL STF, 2015, p. 5).
Ainda, importante citar que o Tribunal, por maioria, deferiu a proposta do Ministro Roberto Barroso, a fim de “determinar ao Governo Federal que encaminhe ao Supremo Tribunal Federal, no prazo de um ano, um diagnóstico da situação do sistema penitenciário e as propostas de solução que cogita para a solução desses problemas, em harmonia com os Estados-membro da Federação.” Assim, ficou determinada a concessão de cautelar de ofício para que se determine à União e aos Estados, e especificamente ao Estado de São Paulo, que encaminhem ao Supremo Tribunal Federal informações sobre a situação prisional, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Relator, que reajustou o voto, e os Ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e Presidente, em sessão presidida pelo Ministro Ricardo Lewandowski. (BRASIL. STF, 2015, p. 78)
3.3 A adoção e Implementação das medidas estruturais determinadas
3.3.1 Audiência de Custódia
Em relação ao pedido “b”, no tocante a realização de audiências de custódia, de modo a viabilizar o comparecimento de presos à autoridade judiciária em até 24 horas do momento da prisão, reconhecendo-se a aplicabilidade imediata do art. 9.3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e do art. 7.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
Dessa forma, eis o que os referidos diplomas estabelecem:
PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS Artigo 9 […] 3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessá - rio for, para a execução da sentença.
CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS Art. 7 – Direito à Liberdade Pessoal […] 5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, á presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condiciona a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
Ainda, segundo definição divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ (BRASIL, 2016, p.11), a audiência de custódia consiste em:
Trata-se de uma ação do Conselho Nacional de Justiça mediante a qual o cidadão preso em flagrante é levado à presença de um juiz em um prazo de 24 horas. Acompanhando de seu advogado ou de um defensor público, o autuado será ouvido, previamente, por um juiz, que decidirá sobre o relaxamento da prisão ou sobre a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. O juiz também avaliará se a prisão em flagrante pode ser convertida em liberdade provisória até o julgamento definitivo do processo, e adotará, se for o caso, medidas cautelares como monitoramento eletrônico e apresentação periódica em juízo. Poderá determinar, ainda, a realização de exames médicos para apurar se houve maus-tratos ou abuso policial durante a execução do ato de prisão.
Ainda, conforme a ilustre Procuradora Geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge, (N.º 325/2019 – SFCONST/PGR, p.24) preconiza em seu parecer, ambos tratados foram internalizados no Direito brasileiro pelos Decretos 592, de 6 de julho de 1992, e 678, de 6 de novembro de 1992, respectivamente. Assim, quanto à posição hierárquico-normativa de tratados internacionais internalizados, a Constituição da República confere natureza de norma constitucional aos acordos sobre direitos humanos aprovados de acordo com o procedimento de emendas constitucionais (art. 5º-§ 3º da CR). No tocante aos demais tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, a despeito de divergência doutrinária, o Supremo Tribunal Federal consolidou interpretação de possuírem posição hierárquico-normativa específica no ordenamento jurídico, abaixo da Constituição e acima do corpo legislativo interno, isto é, status supralegal.
Dessa forma, conclui-se que a realização da audiência de custódia decorre de normas de nível supralegal vigentes no ordenamento nacional. Além de cumprir compromissos internacionais assumidos pelo país, a realização das audiências, com apresentação da pessoa presa a juiz até 24 horas após a prisão e participação do Ministério Público, da Defensoria Pública (quando necessário) e de advogado, constitui prática salutar no contexto do sistema criminal e da segurança pública brasileira.
Nesse sentido, e como alternativa para solucionar a problemática da superlotação nos presídios, o STF concedeu a medida liminar para deferir o pedido "b" (audiência de custódia).
3.3.2 Descontingenciamento do Fundo Penitenciário Nacional – FUPEN
O pedido da alínea “h” é no sentido do descontingenciamento e da liberação de recursos do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN).
Conforme o Ministro Celso de Mello aduz, em seu voto, diante da escassez de recursos orçamentários, surge a necessidade de priorizar determinadas opções políticas, o que conduz, inevitavelmente, a “escolhas trágicas” e ao sacrifício de direitos, interesses e valores constitucionalmente protegidos. No exame dessa ponderação, o parâmetro a ser observado pelo Judiciário deve ser o mínimo existencial, que deriva da dignidade da pessoa humana, fundamento da ordem republicana e democrática (inteiro teor do acórdão, BRASIL, STF, p. 173).
Ressalta-se que o Fundo Penitenciário Nacional foi criado pela Lei Complementar 79, de 7 de janeiro de 1994 e possui como receitas dotações orçamentárias da União, multas de sentenças penais condenatórias, recursos confiscados ou perdidos em favor da União, fianças quebradas ou perdidas, entre outras.
Conforme artigo 2º da Lei 79/1994, constituem recursos do FUNPEN:
I - dotações orçamentárias da União;
II - doações, contribuições em dinheiro, valores, bens móveis e imóveis, que venha a receber de organismos ou entidades nacionais, internacionais ou estrangeiras, bem como de pessoas físicas e jurídicas, nacionais ou estrangeiras;
III - recursos provenientes de convênios, contratos ou acordos firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou estrangeiras;
IV - recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal, nos termos da legislação penal ou processual penal, excluindo-se aqueles já destinados ao Fundo de que trata a Lei nº 7.560, de 19 de dezembro de 1986;
V - multas decorrentes de sentenças penais condenatórias com trânsito em julgado;
VI - fianças quebradas ou perdidas, em conformidade com o disposto na lei processual penal;
IX - rendimentos de qualquer natureza, auferidos como remuneração, decorrentes de aplicação do patrimônio do FUNPEN;
X - outros recursos que lhe forem destinados por lei.
Além disso, conforme se infere do artigo 1º da Lei 79/1994, tem por finalidade “proporcionar recursos e meios para financiar e apoiar as atividades e os programas de modernização e aprimoramento do sistema penitenciário nacional”.
De acordo com Moreira (2015, p.18):
Tem por finalidade proporcionar recursos e meios para financiar e apoiar as atividades e programas de modernização e aprimoramento do Sistema Penitenciário Brasileiro, sendo que a gestão de seus recursos é a atribuição do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, órgão vinculado ao Ministério da Justiça.
Nesse sentido, a Suprema Corte, considerando o notório estado de superlotação, precariedade e falência estrutural do sistema penitenciário brasileiro, com violação massiva e generalizada de direitos fundamentais de presos, reconheceu a inconstitucionalidade dos atos infralegais de contingenciamento e de não liberação de verbas do FUNPEN, deferindo, portanto, a medida cautelar em relação à alínea “h” da peça exordial.
CONCLUSÃO
Ao longo deste trabalho estudou-se o instituto do “estado de coisas inconstitucional”, uma categoria que foi desenvolvida e aplicada pela Corte Constitucional Colombiana e que no Brasil foi objeto de recente debate na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº347, tema objeto do presente estudo.
Através do estudo, foi possível observar que existe um impasse na doutrina brasileira no tocante a importação e reconhecimento do instituto do “Estado de Coisas Inconstitucional” dentro do âmbito jurídico brasileiro. Isto porque, como visto, alguns doutrinadores entendem que o Supremo Tribunal Federal não possui legitimidade democrática e institucional para adotar as medidas pleiteadas na referida ADPF, sendo a sua atuação indevida e restando caracterizada um ativismo judicial e consequente violação ao princípio da separação de poderes.
Lado outro, temos que o reconhecimento do instituto, na verdade, trata-se de uma alternativa que não está expressamente prevista na Constituição ou em qualquer outro instrumento normativo, mas que tem como objetivo superar hipóteses excepcionais de violações maciças e generalizadas de direitos em decorrência de falhas estruturais dos órgãos públicos. Nesse sentido, diante de um quadro gravíssimo de omissão institucional, em que a atuação de apenas um órgão não se demonstra suficiente, tem-se entendido ser possível conferir a Corte um papel atípico, sob a perspectiva da separação de poderes, exercendo uma maior intervenção sobre o campo das políticas públicas.
De um modo geral, pode-se dizer que restou claramente demonstrado através do estudo, que o princípio pilar do nosso ordenamento jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana, vem sendo diariamente desrespeitado nos estabelecimentos prisionais espalhados pelo país. Ainda, além da inobservância ao princípio da dignidade da pessoa humana, e demais princípios inseridos na Constituição Federal, nos depararam cotidianamente com um cenário de violação generalizada de direitos e garantias fundamentais que, na verdade, deveriam estar sendo asseguradas aos detentos pelo próprio Estado.
Dessa forma, foi possível concluir que a situação do Sistema Prisional Brasileiro preenche os requisitos e pressupostos estudados para o reconhecimento do Instituto. Isto porque, foi constatado que estamos diante de uma violação massiva de direitos fundamentais, decorrente de atos comissivos e omissivos praticados por diferentes autoridades públicas, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público se tornam aptas a superar o estado de inconstitucionalidade.
Como visto, a superlotação das celas, falta de higiene adequada, condições de insalubridade, escassez de materiais, ausência de uma assistência médica e serviços básicos, falta de acesso à educação, à justiça e a um trabalho digno, o ambiente hostil marcado pela violência e pelos abusos sexuais entre os detentos, a ausência de uma proposta de ressocialização adequada, e o convívio dos detentos de níveis de periculosidade diferentes no mesmo ambiente, além de caracterizarem um quadro gravíssimo de violação de direitos, também configuram um tratamento desumano, degradante, equiparado a tortura, e tornam os estabelecimentos prisionais verdadeiras escolas do crime.
Assim sendo, conclui-se que ante a gravidade excepcional do quadro aqui demonstrado, a atuação contramajoritária da jurisdição constitucional na tutela dos direitos fundamentais se justifica e se legitima a fim de promover a superação da violação massiva e generalizada dos direitos dos detentos no cenário brasileiro.
Portanto, tendo em vista a crise enfrentada pelo Sistema Prisional Brasileiro, temos que o reconhecimento do ECI através do julgamento da ADPF 347, e o deferimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de medidas como, o descontingenciamento do FUNPEN e a audiência de custódia, funcionam como importantes ferramentas para superar esse quadro e trabalhar em busca de assegurar os direitos fundamentais mínimos aos presos determinados por nossa Carta Magna.
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advogada, sócia proprietária no Barbosa Andrade e Rodrigues Advogados Associados, pós graduada em direito público govtech e regtech pelo instituto new law.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Nathália Ferreira Netto. Análise acerca do reconhecimento do Estado de coisas inconstitucional no Brasil à luz da ADPF 347 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 nov 2021, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57412/anlise-acerca-do-reconhecimento-do-estado-de-coisas-inconstitucional-no-brasil-luz-da-adpf-347. Acesso em: 22 nov 2024.
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