AIRTON ALOISIO SCHUTZ[1]
VALDIRENE CÁSSIA DA SILVA[2]
(orientadores)
RESUMO: A presente pesquisa visa analisar quais os princípios que fundamentam a responsabilização civil por abandono afetivo inverso. O estudo tem como base a necessidade de observância acerca do direito dos idosos, levando em consideração o crescente aumento da população idosa no Brasil, e consequentemente o abandono por parte de seus descendentes. Com a pesquisa pretende-se trazer, com maior profundidade, os aspectos das relações familiares, principalmente no que tange ao direito dos idosos. Para isto, optou-se pela utilização da abordagem qualitativa, da metodologia indutiva, bem como a utilização da pesquisa bibliográfica para obter as informações necessárias acerca da temática.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Abandono afetivo inverso. Direito de família.
ABSTRACT: This research aims to analyze the principles that underlie civil liability for inverse affective abandonment. The study is based on the need to observe the rights of the elderly, taking into account the increase in the elderly population in Brazil, and consequently the abandonment by their descendants. With the intention to bring, in greater depth, the aspects of family relationships, especially with regard to the rights of the elderly. For this, we chose to use the qualitative approach, as well as the use of bibliographic research to obtain the required information on the subject.
Keywords: Civil Liability. Inverse affective abandonment. Family right.
1. INTRODUÇÃO
O envelhecimento da população é um fenômeno social decorrente de uma remodelagem acerca do perfil demográfico de grande parte da população mundial, tendo como auxiliadores nesse processo a queda das taxas de mortalidade e natalidade.
De acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) de 2017, 14,6% da população brasileira encontra-se na faixa etária de 60 anos ou mais, o equivalente a 30,3 milhões de pessoas, além disso, com base na Projeção da População do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualizada em 2018, esse número tende a aumentar significativamente até o ano de 2060.
Nesse contexto, nota-se que o envelhecimento da população brasileira traz uma considerável altereção social diante da comunidade, exigindo novas soluções em todas as esferas, inclusive, nas dos profissionais do Direito.
No âmbito jurídico o processo de senilidade trouxe a necessidade de tutela especial para as situações delicadas vivenciadas pelos idosos, tendo a Constituição Federal de 1988 delineado importantes preceitos acerca da temática. Em relação a legislação infraconstitucional é possivel encontrar normas que versam sobre a proteção ao idoso, como as Leis nº 8.842 (Política Nacional do Idoso) e 10.741 (Estatuto do Idoso), as quais tutelam de forma mais específica acerca das adversidades vivenciadas por aqueles de idade avançada.
É criada uma nova discussão com a mudança em relação ao crescimento da população e sua tutela, questionando se o dever de cuidado dos descendentes para com seus ascendentes é exclusivamente material, excluindo a questão moral e afetiva. Para a discussão, dividiu-se o trabalho em três seções.
A primeira seção versará sobre o idoso nas relações familiares, abordando, também, os reflexos dos princípios constituicionais trazidos como valores sociais fundamentais pela Carta Magna.
A segunda seção abordará o conceito de abandono afetivo e abandono afetivo inverso.
Por fim, a terceira seção tem o objetivo de exemplificar a relação entre responsabilidade civil e o abandono afetivo inverso.
Diante disso, o presente trabalho visa demonstrar como os princípios norteadores das relações familiares podem ser usados como fundamentação para a responsabilização dos descendentes em a relação ao abandono afetivo inverso.
2. A RELAÇÃO FAMILIAR E SEUS PRINCÍPIOS À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O conceito de família, bem como as estruturas familiares, vêm sendo modificados todos os dias com as consideráveis mudanças ocorridas nos últimos anos. Nos séculos passados, em uma sociedade predominantemente conservadora, o núcleo familiar tinha um perfil patriarcal. Hoje é possível identificar na sociedade uma extensa diversidade no que diz respeito à composição familiar. Com essa constante mudança, cobra-se, também, um avanço jurídico no que tange ao direito de família.
É inegável a importância da família para a sociedade. Para Maria Berenice Dias,
A família é cantada e decantada como a base da sociedade e, por essa razão, recebe especial proteção do Estado (CF 226). A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece (XVI3): A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. Sempre se considerou que a maior missão do Estado é preservar o organismo familiar sobre o qual repousam suas bases. (DIAS, 2016, p. 23)
Sabendo dessa importância é que surge a necessidade da tutela deste instituto, criando-se o Direito de Família, que vem trazer a tutela jurídica necessária para proteção deste instituto tão importante para a construção social dos indivíduos.
Sobre a estrutura do Direito de Família, esta pode ser considerada um ramo do Direito Civil, conforme observa Tartuce (2020). Este tem como base a análise dos seguintes institutos: a) casamento; b) união estável; c) relações de parentesco; d) filiação; e) alimentos; f) bem de família; g) tutela, curatela e guarda.
Acerca da tutela do Estado para com o instituto familiar, Maria Berenice Dias entende que:
O direito é a mais eficaz técnica para o Estado cumprir sua importante função de organizar a vida em sociedade. Para isso impõe pautas de condutas, nada mais do que regras de comportamento a serem respeitadas por todos. O ordenamento jurídico - verdadeiro interdito proibitório dos impulsos que podem inviabilizar o convívio social - possibilita a vida em sociedade. (DIAS, 2016, p.18)
Nesse sentido, é importante ressaltar as alterações extremamente significativas que ocorreram com o decorrer dos anos na legislação brasileira. No Código Civil de 1916, a concepção de família era extremamente restrita ao casamento, trazendo uma visão simplista e discriminatória para o instituto familiar. Filhos ilegítimos e vínculos extramatrimoniais eram tratados com alusões punitivas, usadas apenas para exclusão de direitos com o intuito de resguardar a família anteriormente constituída pelo casamento “oficial”.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a família passou a ser um alicerce para o bem estar, felicidade e desenvolvimento social do indivíduo. Ademais, inovou positivamente ao desconsiderar estritamente laços biológicos para a constituição de família. Alguns fundamentos expressos na Carta Magna valem ser lembrados para a exemplificação do assunto, entre eles: a igualdade de todos os filhos independendo de sua origem (CF, 226 § 6º); a adoção (CF 227 §§ 5º e 6º); a família formada por qualquer dos pais e descendentes, incluindo os adotivos, com os mesmo direitos e deveres (CF 226 § 4º); e o direito à convivência familiar como prevalência da criança, do adolescente e do jovem (CF 227).
Importante destacar, ainda, a relevância da Constituição Federal de 1988 no que diz respeito aos princípios reguladores e auxiliadores na resolução de conflitos na seara familiar. Na doutrina, Maria Berenice Dias observa brilhantemente o tema: “Um novo modo de ver o direito emergiu da Constituição Federal, verdadeira carta de princípios, que impôs eficácia a todas as suas normas definidoras de direitos e de garantias fundamentais (CF 5.o § 1º).” (DIAS, 2016, p. 39).
Fontes formais do direito, não necessariamente expressos em lei, esses institutos têm grande função no que diz respeito a interpretação das normas. Em outros termos, os princípios são os norteadores da lei, aqueles que auxiliam o intérprete na compreensão mais justa e adequada do dispositivo legal e, por conseguinte, sua aplicação diante de novos conflitos jurídicos originados da evolução de conceitos e padrões sociais.
Em relação a estas bases da normativa jurídica, Miguel Reale exemplifica que:
Princípios são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, a aplicação e integração ou mesmo para a elaboração de novas normas. São verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis. (REALE, 2003, P.37)
Todos eles têm extrema relevância quando se aborda o direito da família e, sem eles, seria impossível a interpretação da lei civil. Isso porque, como explanado, uma sociedade organizada em um Estado Democrático de Direito necessita estruturar sua pirâmide normativo-jurídica em princípios basilares, os quais identificam o espírito, as intenções e finalidades que deseja alcançar aquele grupo de indivíduos.
Dentre os princípios previsto na Constituição Federal de 1988, interessam-nos, para o aprofundamento do tema, princípios específicos norteadores do direito de família, são alguns deles: dignidade de pessoa humana; solidariedade familiar e afetividade.
O primeiro, princípio da dignidade da pessoa humana, elencado no art. 1º, III, da Constituição Federal, é considerado como um dos fundamentos da República Federtiva do Brasil. A sua delimitação é hoje uma das maiores dificuldades entre os doutrinadores, devido a infinidade de situações em que ele pode incidir.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho o define como “Um valor fundamental de respeito à existência humana, segundas suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis a sua realização pessoal e a busca da felicidade”. (GAGLIANO E FILHO, 2016, p. 78).
Por ser considerado um macroprincípio e diante de sua grande amplitude, a dignidade da pessoa humana exerce um papel importante em relação a estrutura familiar. Tal princípio também é de enorme relevância no que diz respeito ao direito dos idosos.
O Estatuto de idoso, disposto pela lei 10.741 de 01 de outubro de 2003, é um instrumento que visa garantir um envelhecimento digno, devendo ser assegurado solidariamente pela família, pela comunidade e pelo Estado. É o que dispõe o art. 3º:
“Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”. (ESTATUTO DO IDOSO, 2003)
Além disso, este princípio possui relevante função hermenêutica no ordenamento jurídico, sendo um parâmetro para a aplicação e interpretação das normas.
Outro princípio de significativa relevância é o princípio da solidariedade familiar. Para Maria Berenice Dias (2016, p. 78) solidariedade é o compromisso que cada pessoa tem com outra. Defende que esse princípio dispõe de notável ética, pelo fato de possuir em sua estruturação o sentido literal do termo solidariedade, o qual compõe a fraternidade e a reciprocidade.
Por último, tendo relação direta com o dano moral por abandono afetivo, encontra-se o princípio da afetividade, considerado atualmente como um dos pilares da relação familiar. Não obstante a falta de previsão expressa na Constituição federal, encontra-se diretamente ligado ao princípio da dignidade humana e o da solidariedade.
Maria berenice dias alude que:
A afetividade é o princípio que fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico. (DIAS , 2016, p. 52)
Em vista disso, percebe-se a importância dos três princípios acima citados para a proteção das relações familiares, sendo eles a base para uma possível responsabilização civil quando o individuo tiver seu direito violado.
3. ABANDONO AFETIVO E ABANDONO AFETIVO INVERSO
Diante das mudanças ocorridas no Direito de Família, bem como na própria forma de conceituação de família, torna-se oportuno indicar os princípios da dignidade humana, da afetividade e da solidariedade como norteadores das relações familiares. Introduzindo, assim, o afeto no ordenamento jurídico.
Hoje a contrução da família diverge da que alguns estavam habituados. Valoriza-se muito mais os laços afetivos do que anos atrás, deixando de lado a rigidez em relação aos laços sanguíneos como base para a construção familiar.
Com essa significativa modificação veio a tona como a falta desse instituto pode afetar os indivíduos que compõe a estrutura familiar. O dever de cuidado está expressamente determinado na lei como dever legal tanto dos pais com os filhos quanto dos filhos com os pais. Trazendo aqui a figura do abandono afetivo, o qual não trata da condição da pessoa amar outra, e sim do seu dever legal de cuidado e assistência previsto no ordenamento jurídico brasileiro.
Inicialmente, importa conceituar o que é abando afetivo. Este instituto configura-se quando os responsáveis legais são negligentes ou omissos em relação ao dever de cuidar para com seus descendentes, deixando de suprir as necessidades internas e subjetivas do agente. Ocorre, assim, o abandono moral da criança, trazendo a ela grande sofrimento, inclusive, psicológico.
Insta pontuar que, ao citar o abandono afetivo, não está sendo colocada em pauta a condição de amar. Sabe-se que amor, carinho e afeto em sua literalidade são sentimentos que não podem ser exigidos de outrem. O que se tem nestes casos é a violação de sua honra, dignidade e moralidade de forma objetiva e absoluta.
Em relação ao abandono afetivo na modalidade inversa, de acordo com o desembargador Jones Figueiredo Alves (PE), diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o compreende como: “Abandono afetivo é a inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família”.
Similarmente, Maria Berenice Dias (2016, p.648) o compreende como o descumprimento da obrigação de cuidado dos descendentes para com os ascendentes, previstos na Constituição Federal no art. 229.
A lei 10.741 de 01 de outubro de 2003, que define o Estatuto do Idoso, versa sobre o papel da sociedade, da comunidade e do Poder Público acerca da obrigação em assegurar os direitos fundamentais das pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. Destacando principalmente a função da família nesse contexto.
Os Arts. 3, 10 e 44, mencionam as medidas de proteção ao idoso, as quais devem ser baseadas no fortalecimento da estrutura familiar e comunitária. Além disso, dispõem sobre a obrigação da família em assegurar ao idoso a tutela de seus direitos fundamentais.
Tais normas vem com o intuito de assegurar uma proteção mais adequada aos idosos diante de sua vulnerabilidade. Isso não quer dizer que as pessoas com maior idade estão sendo transformadas em pessoas totalmente incapazes. O que esses institutos procuraram trazer é uma forma de transformar o processo de envelhecimento em algo digno e com a devida proteção na medida de sua incapacidade e necessidade.
Para isso, o cuidado é elemento essencial. As pessoas com mais idade necessitam de uma atenção especial. Como as crianças menores, os idosos tem suas peculiaridades que precisam ser respeitadas e atendidas por toda a sociedade.
Quando se fala em abandono afetivo é certo que não se pode impor para o outro a obrigação de amar ou de demonstrar afeto no sentido literal da palavra. Ocorre que existe no ordenamento jurídico brasileiro a responsabilidade de prestação de auxílio imateral, a qual consiste em amparo, proteção e cuidado tanto dos pais com os filhos quanto dos filhos com os pais. Assim, possuindo o auxílio imaterial valor jurídico, a violação desse dever moral representa um ato ilícito que deve ser reparado.
De acordo com o enunciado número 10 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM): “É cabível o reconhecimento do abandono afetivo em relação aos ascendentes idosos”. Embora o enunciado sirva de diretriz para a doutrina e a jurisprudência, o cabimento da indenização encontra-se bastante controvertido no sistema judiciário brasileiro. Por um lado muitos se posicionam afirmando que estaria ocorrendo monetização das relações familiares, enquanto há quem acredite no cabimento da indenização por abandono afetivo inverso, visto que o dever de cuidado é tutelado pelo ordenamento jurídico.
4. RESPONSABILIDADE CIVIL E O ABANDONO AFETIVO
Em seu conceito mais simples, a responsabilidade civil é o dever de reparar o dano que uma pessoa, eventualmente, cause a outra. Para maior didática e compreensão, podemos dividi-la em responsabilidade civil objetiva e responsabilidade civil subjetiva, cujos fundamentos legais estão nos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil Brasileiro.
A respeito do tema, lecionam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
A noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, às consequências do seu ato (obrigação de reparar). Trazendo esse conceito para o âmbito do Direito Privado, eseguindo essa mesma linha de raciocínio, diríamos que a responsabilidade civil deriva da agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando, assim, o infrator, ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura o estado anterior de coisas. (GAGLIANO E PAMPLONA FILHO, 2016, livro digital)
A principal diferença entre as duas modalidades de responsabilização civil acima expostas está na caracterização da culpa. A culpa, em sentido estrito, é caracterizada quando o indivíduo causa algum tipo de dano por negligência, imprudência ou imprudência.
Portanto, temos que, na responsabilidade civil subjetiva, exige-se a culpa do agente (ação ou omissão). Entende-se como ação o agir voluntário do agente, neste caso, mesmo sem culpa, o agente pratica ato voluntário (negligência ou imprudência). Por omissão, conceitua-se o ato ou efeito de omitir-se diante de uma situação que exigia ação voluntária do agente. Enquanto a responsabilidade civil objetiva independe da constatação de qualquer variante subjetiva do agente (culpa), ou seja, não se analisa o aspecto íntimo (intenção do ator).
O Código Civil brasileiro, mais especificamente em seu artigo 186, sustenta a teoria da culpa na modalidade da responsabilidade civil subjetiva como regra. Nesse ponto cabe ressaltar que o emprego da palavra culpa está sendo usado em sentido amplo, para indicar não só a culpa em sentido estrito, incluindo também o dolo.
Por isso, Cavalieri (2014, p. 27) aponta que mediante leitura e interpretação do art. 186 é possível identificar com clareza os pressupostos para a responsabilização civil subjetiva. O ato culposo do agente, vem expresso na locução “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia”; o nexo causal, evidenciado no verbo causar; e por fim, o dano, salientado nas expressões “violar direito ou causar dano a outrem”.
Por outro lado, a responsabilidade objetiva, apesar de exceção, é lembrada no art. 927, parágrafo único, do CC que traz em seu conteúdo:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, é obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Esse tipo de responsabilização independe de culpa e é comprovada com a caracterização de nexo causal entre a conduta do agente (entendido aqui como causador do ilícito) e o resultado danoso. Em olhar mais detalhado, a concepção da responsabilidade civil objetiva tem como fundamento a teoria do risco. Tal teoria pode ser entendida como qualquer atividade, praticada por um indivíduo, que crie risco de dano para terceiros, devendo a pessoa que a exerce reparar eventual dano, independentemente de culpa.
Nesse sentido, é de bom alvitre mencionar o pensamento de Maria Helena Diniz (2007, p. 42), que aponta a existência de três elementos para que seja caracterizada a responsabilidade civil do indivíduo, são eles: a existência de ação, comissiva ou omissiva, que caracterize ato ilícito; dano moral ou material causado à vítima; e o nexo de causalidade entre o dano e ação.
Pois bem, no direito de família, que é o foco desta pesquisa, questiona-se acerca da possibilidade da responsabilização civil entre familiares, mais precisamente acerca da responsabilização por danos morais decorrente do abandono afetivo inverso. Para isso, é necessário entender, também, o conceito de ato ilícito e dano, com foco principal no dano moral.
O ato ilícito pode ser definido como o conjuto dos presupostos da responsabilidade civil. Quando o agente mediante conduta culposa, viola o direito de outrem causando-lhe dano, tem-se um ato ilícito. Diante de tal ato deflui o dever de indenizar, conforme o art. 927 do Código Civil.
Dessa forma, o ato ilícito é a conduta humana que causa dano a terceiro, ferindo seus direitos privados e estando em desacordo com as normas jurídicas. O art. 186 do Código Civil traz a referida construção:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”
Tendo isso em vista, a partir da consumação de tal ato ilícito tem-se a caracterização do dano. É sabido que para haver o pagamento de indenização é exigido a comprovação de culpa ou dolo na conduta que ocasionou o dano patrimonial ou extrapatrimonial suportado por alguém. Em regra, não é cabível a aplicação da responsabilidade civil sem dano, sendo o prejudicado responsável em apresentar provas acerca do prejuízo sofrido.
O dano pode ser divido em duas modalidades: dano material e dano moral.
Importante ressaltar que a súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça, do ano de 1992, aduz a possibilidade de cumulação de pedido de reparação, em uma mesmo ação, de danos materiais e danos morais. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, tornou-se possível tal reparação.
Com isso, a tendencia é expandir o reconhecimento de novos danos. Neste cenário, em 2009 o próprio Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 387, permitindo a cumulação de danos estéticos tanto aos danos morais quanto aos danos materiais.
Acerca do dano material, esse consiste no prejuízo ou perda que atinja o patrimônio corpóreo do indivíduo. Além da prova de dolo ou culpa, de acordo com arts. 183 e 403 do Código Civil não é possível a responsabilização civil sem dano, cabendo ao autor da demanda a obrigação de provar os fatos por ele alegados.
De acordo com o art. 402 do CC os danos materiais podem ter uma subclassificação. Flavio Tartuce exemplifica:
Danos emergentes ou danos positivos – o que efetivamente se perdeu. Como exemplo típico, pode ser citado o estrago do automóvel, no caso de um acidente de trânsito.
[...]
Lucros cessantes ou danos negativos – o que razoavelmente se deixou de lucrar. No caso de acidente de trânsito, poderá pleitear lucros cessantes o taxista, que deixou de receber valores com tal evento, fazendo-se o cálculo dos lucros cessantes de acordo com a tabela fornecida pelo sindicato da classe e o tempo de impossibilidade de trabalho. (TARTUCE, 2020, LIVRO DIGITAL)
A segunda espécie, o dano moral, é caracterizado pela lesão dos direitos da personalidade de um indivíduo. Neste caso a violação é do direito subjetivo, aquele que não se pode ver ou tocar. O dano moral se fundamenta pelo teor vexatório da ofensa, que pode acarretar danos tanto psicológicos quanto danos à imagem da pessoa ofendida.
Importante frisar que a indenização por dano moral não vem com a intenção de “precificar” a dor ou o sofrimento suportado. Flavio Tartuce (2020, LIVRO DIGITAL) alude que a reparação não determina um preço ou uma valoração para a dor e para o sofrimento. O objetivo é buscar uma meio adequado para atenuar, em parte, os prejuízos imateriais que foram suportados. Por esse motivo é utilizado a expressão ressarcimento e não reparação. Lembrando que não há intenção de acrécimo patrimonial para a vítima, mas sim apenas a compensação pelos males suportados.
A reparação do dano moral também é garantida pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, incisos V e X:
Art. 5º, inciso V. É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.
[...]
Art. 5º, inciso X. São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Quando se trata de indenização por dano moral em relação ao abandono afetivo e ao abandono afeito inverso nota-se uma divergência entre os doutrinadores, bem como na jurisprudência atual.
No ano de 2012, em decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de relatoria da ministra Nancy Andrighi, considerou-se possível a aplicação do conceito de dano moral nas relações de família. Para a Ministra, o dano extrapatrimonial estaria consolidado na obrigação dos pais em dar todo o auxílio psicológico necessário aos filhos. Nesse julgado, aplicou-se o cuidado como valor jurídico, com fulcro no princípio da afetividade, resultando na responsabilidade por dano moral em relação ao abandono do filho.
No mesmo sentido, a 8ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) manteve, por maioria, a decisão em que condenava um pai que por mais de 20 anos abandonou afetivamente uma das filhas. No ato o desembargador destacou que “não se pode exigir, judicialmente, desde os primeiros sinais do abandono, o cumprimento da "obrigação natural" do amor. Por tratar-se de uma obrigação natural, um juiz não pode obrigar um pai a amar uma filha”, destacou. “Mas não é só de amor que se trata quando o tema é a dignidade humana dos filhos e a paternidade responsável. Há, entre o abandono e o amor, o dever de cuidado. Amar é uma possibilidade; cuidar é uma obrigação civil”, resaltou na decisão.
Nesse contexto, nota-se que, mesmo o idoso recebendo assistência material de algum familiar, pode-se concluir que na omissão do deveres de cuidado citados na Constituição Federal e no Estatuto ocorre um ato ilícito, possibilitando a reparação de cunho moral.
Sabendo que no ordenamento jurídico brasileiro inexiste regulamentação acerca de tal matéria, questiona-se a possibilidade de trazer uma interpretação principiológica para a pretensão. Segundo o desembargador Jones Figueirêdo Alves (PE), diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) a resposta é positiva:
“O princípio do “neminem laedere” (“não causar dano a ninguém”) que serve de fundamento para toda a doutrina da responsabilidade civil. Demais disso, cuidando-se de ilicitude civil de conduta, exorta-se a regra geral do art. 186 do Código Civil, onde ínsito o princípio, segundo a qual “aquele que por, ação ou omissão voluntária, negligência ou imprududência violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Segue-se, então, a aplicação do artigo 927 do mesmo estatuto civilista, indicando que aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo; sendo certo que dita reparação pela via da indenização, deve medir-se pela extensão do dano, na forma do artigo 944 do Código Civil.”
Assim, nota-se a possibilidade de reparação civil de forma analógica e principiológica acerca da violação do dever de cuidado perante os idosos. Cumprido os requisitos para a responsabilização civil, torna-se adequada a imposição da reparação.
Por se tratar de algo subjetivo, impalpavél; a responsabilização dos filhos por infração no dever de cuidado dos pais deve ser analisada com cautela. É de extrema relevância a análise minuciosa de cada caso concreto a fim de assegurar uma solução justa para ambas as partes da lide. O dano moral, aqui sustentado, não pode se tornar um meio para ”punir” o outro por chateações. O dano moral tem sua base firmada no sentido de reparar os danos internos do indíviduo, aqueles que não são vistos ou tocados.
Insta pontuar, por fim, que a ideia da reparação não deve ser considerada como uma imposição de amar ou um artifício para monetizar as relações familiares, e sim como uma consequência diante do descumprimento diante de um dever imposto pelo ordenamento jurídico brasileiro, dispondo ao terceiro atingido (nesse caso, o idoso) a possibilidade de receber reparação pelo dano suportado.
CONCLUSÃO
O dever de cuidado assegurado pelo ordenamento jurídico brasileiro ultrapassa o simples pagamento de pensão alimentícia. É encargo dos filhos amparar seus pais materialmente e moralmente na velhice. Tal amparo moral tem fundamento nos princípios da dignidade humana, solidariedade e, em especial, no princípio da afetividade.
O presente artigo propôs-se a contribuir com a discussão referente a responsabilidade civil e o abandono afetivo inverso. Nele foram apresentados alguns princípios norteadores da relação familiar, os quais podem ser usados para basear a responsabilização civil dos filhos quando estes abandonam afetivamente seus genitores.
Ademais, tal proteção é pautada através de uma interpretação em conjuto frente a Constituição Federal, ao Código Civil e também a outras legislações infraconstitucionais, como o Estatuto do Idoso e da Política Nacional do Idoso.
Embora atualmente no direito brasileiro pouco se fale a respeito da praticabilidade de responsabilização civil por abandono afetivo inverso, é inequívoco a existência de sua possibilidade. Portanto, não obstante a falta de carinho e amor não seja considerada uma infração jurídica, a inobservância e a omissão do dever de cuidado legalmente assegurados pelo ordenamento jurídico podem configurar ato ilícito, podendo, assim, haver a responsabilização dos filhos na medida de seus atos ou omissões.
Por fim, insta pontuar que tal responsabilização deve ser observada de forma coerente, para que a reparação não se torne apenas um meio de indenização pecuniária, perdendo, assim, sua essência.
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[1] Doutor em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, Pós graduação latu sensu em Processo Civil pela UCS, Advogado e professor da Universidade Católica do Tocantins e da Universidade Estadual do Tocantins.
[2] Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Comunicação, Estratégias e linguagens. Atualmente leciona no Centro Universitário Católica do Tocantins - UniCatólica.
Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRUSTOLON, Thayna Braz. A responsabilização por abandono afetivo inverso na perspectiva principiológica. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2021, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57522/a-responsabilizao-por-abandono-afetivo-inverso-na-perspectiva-principiolgica. Acesso em: 22 nov 2024.
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