RESUMO: Considerado complexos a intepretação do conceito contemporâneo de família e conciliação dos conflitos acerca da filiação no contexto social, afetivo e principalmente jurídico. O presente trabalho tem por finalidade demonstrar a relevância da temática que envolve o vínculo parental socioafetivo e em decorrência desse interesse aprofundar a compreensão de como o instituto da filiação socioafetiva se define no ordenamento jurídico brasileiro. Desta forma, sob à luz do princípio da unidade familiar, a revisão busca identificar e analisar conjuntamente a Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 e as fontes pertinentes ao tema em questão, abordar o conceito, elementos constitutivos, os princípios e efeitos relacionados ao reconhecimento do instituto da filiação socioafetiva bem como comparar os aspectos controvertidos mencionados pela jurisprudência, e ao final mostrar que a filiação socioafetiva é o reconhecimento jurídico do vínculo parental motivado nas expressões do afeto e nos princípios constitucionais que norteiam a proteção da dignidade da pessoa humana e da unidade família, base fundamental da sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Família. Parentalidade. Filiação Socioafetiva.
ABSTRACT: The interpretation of the contemporary concept of family and the conciliation of conflicts about affiliation in the social, affective and mainly legal context is considered complex. The purpose of this paper is to demonstrate the relevance of the theme that involves the socio-affective parental bond and, as a result of this interest, to deepen the understanding of how the institute of socio-affective filiation is defined in the Brazilian legal system, in addition to knowing which elements constitute the set of characteristics that they determine the persuasion necessary for the motivated realization of the recognition. Thus, under the light of the principle of family unity, the review seeks to jointly identify and analyze the Federal Constitution of 1988, the Civil Code of 2002 (Law 10.406/02) and sources relevant to the topic in question, addressing the concept, elements constitutive, the principles and effects related to the recognition of the institute of socio-affective affiliation, as well as comparing the controversial aspects mentioned by the jurisprudence and, according to the referral of each of these primary sources, it is intended to achieve the objective of describing the concept of affiliation by socio-affective and the modes of recognition of this kinship bond and, at the end, to show that socio-affective affiliation is the legal recognition of the parental bond motivated by the expressions of affection and the constitutional principles that guide the protection of the dignity of the human person and of the family unit , fundamental basis of society.
KEYWORDS: Family. Parenting. Socio-affective affiliation.
1. INTRODUÇÃO
Diante da continua evolução social, a estrutura familiar passa por novas formações de modo a manter preservado o vínculo criado através do afeto entre os sujeitos dessa relação. Dada a decorrência das situações de fato que se fortalecem com o passar do tempo e os inúmeros questionamentos da família-moderna em torno do instituto da filiação por socioafetiva, tem sido recorrente as batalhas jurídicas que as famílias enfrentam para concretizar o reconhecimento desse direito e poder alcançar plenamente seus efeitos jurídicos. Nesse contexto, o instituto do parentesco civil se mostrou renovado quando, secundarizando o caráter biológico, priorizou a afetividade como elemento essencial para caracterizar a relação parental, por conseguinte a inevitável revisão conceitual do instituto do Parentesco Socioafetivo, destacando a definição do vínculo de filiação, os atributos do reconhecimento e os efeitos jurídicos no ordenamento pátrio – insta destacar que o complexo conceito contemporâneo de família tem provocado inúmeras dúvidas e conflitos acerca da filiação no contexto social, afetivo e principalmente jurídico, justifica-se a presente reflexão sobre a filiação na contemporaneidade e sem a pretensão de alcançar definições exauridas, espera-se responder o problema proposto – como a filiação por socioafetiva e o reconhecimento desse instituto se contextualiza no ordenamento jurídico brasileiro?
Desta forma, sob a luz do princípio da unidade familiar, a revisão busca identificar e analisar conjuntamente a Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 (Lei 10.406/02) e as fontes pertinentes ao tema em questão, abordar o conceito, elementos constitutivos, os princípios e efeitos relacionados ao reconhecimento do instituto da filiação socioafetiva bem como comparar os aspectos controvertidos mencionados pela jurisprudência e, de acordo com o encaminhamento de cada uma dessas fontes primárias, pretende-se alcançar o objetivo qual se constitui em descrever o conceito de filiação por socioafetiva e os modos de reconhecimento desse vínculo de parentesco e ao final mostrar que a filiação socioafetiva é o reconhecimento jurídico do vínculo parental motivado nas expressões do afeto e nos princípios constitucionais que norteiam a proteção da dignidade da pessoa humana e da unidade família, base fundamental da sociedade.
Logo, a pesquisa ora pretendida é demonstrar a relevância da temática que envolve o vínculo parental socioafetivo e em decorrência desse interesse aprofundar a compreensão de como o instituto da filiação socioafetiva se define no ordenamento jurídico brasileiro, além de conhecer quais os elementos constituem o conjunto de características que determinam o convencimento necessário para concretização motivada do reconhecimento.
Levando em conta essas transformações importantes ocorridas nos campos da família, resta clara a importância da manutenção da unidade da família para a proteção de seus integrantes. Nesse sentido o estudo pretende analisar como têm se posicionado a jurisprudência pátria e com esse apontamento contribuir para formação de argumentos defensores.
2. FAMÍLIA E A PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA
Em nossa cultura contemporânea, já começa a fazer parte do imaginário social a ideia de que os cidadãos podem escolher o estilo de família que desejam ter e que não devem ser penalizados por preferirem uniões alternativas à família heterossexual e monogâmica (POMBO, 1999).
Isso porque as comuns são comuns, sendo, portanto, comum como separações conjugais, com uma consequente reorganização das famílias. Vale ressaltar que há uma diferenciação entre os conceitos de parentesco e de família, posto que os cônjuges e os companheiros podem ser considerados uma família, mas não são parentes entre si.
2.1 CONCEITO DE FAMÍLIA
O conceito de “família” é amplo, podendo ser definido diferentemente dependendo da perspectiva abordada, do viés sociológico, dos costumes e tradições, assim como da cultura e do estudado local.
De acordo com Caio Mário Pereira (2007, p. 19) família em sentido genérico e biológico é o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum; em senso estrito, uma família se restringe ao grupo formado pelos pais e filhos; e em sentido universal é considerado uma célula social por excelência.
Já Maria Helena Diniz (2005, p. 9) discorre sobre família no sentido amplo como todos os incluídos que vinculados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade, chegando a incluir estranhos. No sentido restrito é o conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio e da filiação, ou seja, unicamente os cônjuges e o prole.
Na área jurídica o tema possui uma definição mais restrita. Como regra geral, o Direito civil considera membros da família apenas como pessoas unidas por relação conjugal ou de parentesco.
As várias legislações definidas, por sua vez, o âmbito do parentesco. A Constituição Federal de 1988 abrange uma família como sendo o relacionamento entre um homem e uma mulher, podendo surgir o casamento ou uma união estável. Afirma também que pode ser composto pelo aspecto social.
Desse modo, importa considerar a família em um conceito amplo, como parentesco, ou seja, o conjunto de pessoas unidas por um vínculo jurídico de natureza familiar, porém esse conjunto não recebe tratamento pacífico e uniforme. A ordem jurídica enfoca-a-razão de seus membros, ou de suas relações recíprocas.
2.1.1 Conceito de parentesco
Parentesco é a relação de vinculação existente entre aqueles que descendem dos outros ou de um tronco comum, bem como entre um cônjuge e os parentes do outro consorte, além de entre adotante e adotado.
Assim também é o entendimento de Silvio Rodrigues (2012, p.10), “Filiação é a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que geraram, ou a receberam como se a tivessem gerado”. Essa relação de parentesco, dada a proximidade de grau, cria efeitos no campo do direito, daí derivando a importância de sua verificação.”
Para Maria Helena Diniz (2000, p. 467), parentesco não é somente aquele que vincula as pessoas que descendem uma das outras ou de um mesmo tronco, porém também entre um cônjuge ou companheiro e os seus parentes, entre adotante e adotado e entre pai institucional e filho socioafetivo.
Além disso, a autora classifica em espécies de parentesco, quais sejam, o natural ou consanguíneo, o afim e o civil:
“1) Natural ou consanguíneo, que é o vínculo entre as pessoas descendentes de um mesmo tronco ancestral, portanto ligadas, umas às outras, pelo mesmo sangue. P. ex.: pai e filho, dói irmãos, dois primos, etc. O parentesco por consanguinidade existe tanto na linha reta como na colateral até o quarto grau. Será matrimonial se oriundo de casamento, e extramatrimonial se proveniente de união estável, relações sexuais eventuais ou concubinárias. (...).
2) Afim, que se estabelece por determinação legal (CC, art. 1.595), sendo o liame jurídico estabelecido entre consorte, companheiro e os parentes consanguíneos, ou civis, do outro nos limites estabelecidos na lei, desde que decorra de matrimônio válido, e união estável (...).
3) Civil (CC, art. 1.593, in fine) é o que se refere à adoção, estabelecendo um vínculo entre adotante e adotado, que se estende aos parentes de um e de outro. (...) O parentesco civil abrange o socioafetivo (CC, arts. 1.593, in fine, e 1.597, V), alusivo ao liame entre pai institucional e filho advindo de inseminação artificial biológica entre o filho gerando relação parento-filial apesar de não haver vínculo biológico entre o filho e o marido de sua mãe, que anuiu na reprodução assistida. (...)”.
Além de ser um vínculo natural, o parentesco é também uma vinculação jurídica, que resguarda direitos e atribui deveres recíprocos. Segundo Silvio Rodrigues (2004, p. 4), parentesco não se limita apenas ao conceito que vincula as pessoas que são descendentes umas das outras ou de um tronco em comum, mas também abrange o parentesco civil e o parentesco por afinidade.
Para o autor acima citado, o que gera o parentesco, no mundo jurídico, é o reconhecimento e diferenciação este como forçado ou judicial ou o reconhecimento espontâneo derivado de “ato solene e público, pelo qual alguém, de acordo com uma lei, declara que especificado pessoa é seu filho.
Para a sociedade a simples relação de consanguinidade não é mais importante do que os laços afetivos e do que a própria convivência no âmbito familiar. A estrutura da família, teoricamente, é baseada nos laços de confiança, amor, respeito, reciprocidade, harmonia e bem estar comum.
2.1.2 Conceito Jurídico de Filiação
A Constituição Federal de 1998, aboliu a diferença entre as espécies de filiação, como é possível verificar no art. 227, § 6º, onde, em suma, dispõe sobre a igualdade dos filhos havidos ou não da relação do casamento, ou até mesmo, por adoção, em direitos e qualificações, sendo vedadas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Este fato é de grande avanço para o direito de família pátrio, uma vez que considera todos como filhos, frutos ou não na constância do casamento, com iguais direitos. A filiação se determina como sendo a relação jurídica existente entre ascendentes e descendentes de primeiro grau, ou seja, é a relação de parentesco consanguíneo ou não o qual uma pessoa uma pessoa àquelas que a geraram ou àquelas que receberam em seus lares, como se a tivessem gerado.
Para Carlos Roberto Gonçalves relatou em uma de suas obras: (2007, p. 582):
“Filiação é a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àqueles que a geraram, ou a receberam como se a tivessem gerado. Todas as regras sobre parentesco consanguíneo estruturam-se a partir da noção de filiação, pois a mais próxima, a mais importante, a principal relação de parentesco é a que se estabelece entre pais e filhos”
Assim sendo, filiação é uma relação jurídica que conecta o filho aos seus pais e o mesmo autor ainda menciona que existem a filiação propriamente dita, que é aquela considerada sob o ponto de vista do filho, bem como a filiação em sentido inverso, ou seja, considerada sob o ponto de vista dos genitores em relação ao filho, que é a paternidade ou a maternidade.
2.1.3 Filiação socioafetiva
O Código Civil de 2002, foi omisso com relação a filiação socioafetiva, tratando apenas da filiação biológica, nada se pronunciando a respeito da afetividade que é a principal relação que une pais e filhos.
Parte da doutrina pátria, bem como da jurisprudência reconhece a multiparentalidade, como se pode perceber em acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que reconheceu a maternidade socioafetiva, mas preservando a maternidade biológica, in verbis:
“(...) Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuas, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes. A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade (...)” (TJSP, Apelação n. 0006422-26.2011.8.26.0286, 1ª Câmara de Direito Privado, Itu, Rel. Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, j. 14.08.2012).
Para Paulo Luiz Netto Lobo (2008, p. 3): “A afetividade é construção cultural, que se dá na convivência, sem interesses materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Revela-se em ambiente de solidariedade e responsabilidade” -como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situação real. Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação ou comunidade unidas por laços de afetividade, sendo estas suas causas originária e final, haverá família.
2.2 RECONHECIMENTO JURÍDICO DA FILIAÇÃO POR SOCIOAFETIVIDADE
O reconhecimento dos filhos é ato jurídico que possui características especiais, pois constitui estado, é personalíssimo, irrevogável e unilateral, não havendo vontade de terceiro ou do filho incapaz, salvo em vício de consentimento.
2.2.1 CONCEITO DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
Além de ser um vínculo natural, o parentesco é também uma vinculação jurídica, que resguarda direitos e atribui deveres recíprocos. Segundo Silvio Rodrigues, parentesco não se limita apenas ao conceito que vincula as pessoas que são descendentes umas das outras ou de um tronco em comum, mas também abrange o parentesco civil e o parentesco por afinidade.
O vínculo socioafetivo aparece como uma força jurídica expressiva e, por essa razão, merece atenção e regulamentação. Afinal, o artigo 1.593 do Código Civil admite não somente o parentesco consanguíneo, mas também o civil de outra origem. O reconhecimento formal da filiação socioafetiva é feito no âmbito da Justiça. Durante o processo, o juiz observará se o vínculo declarado se destacar como uma relação comprovadamente socioafetiva, típica de uma relação filial, que seja pública, contínua, duradoura e consolidada.
Nesse contexto, como já é de conhecimento geral, a Corregedoria Nacional do Conselho Nacional de Justiça editou, em 14 de novembro de 2017, o Provimento nº 63 estabelecendo regras para o procedimento do registro extrajudicial da filiação socioafetiva, estipulando na ocasião, dentre outras matérias, que o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade seria autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais (art. 10).
Ao final do processo, com a decisão pelo reconhecimento da filiação, a Justiça determina que seja alterado o registro de nascimento do filho, com a inclusão do nome do pai e/ou mãe socioafetiva, bem como dos avós.
O reconhecimento da filiação socioafetiva pode ser buscado a qualquer tempo, até mesmo após a morte dos pais. Para tanto, o juiz observará as provas que evidenciem o tipo de relação existente.
O reconhecimento do parentesco socioafetivo produz os mesmos efeitos, pessoais e patrimoniais, do parentesco biológico, tanto para os pais, quanto para os filhos. Portanto, aos filhos estão assegurados direitos como o recebimento de pensão alimentícia e a convivência familiar, entre outros, e aos pais o mesmo vale para questões como guarda e direito de visita.
ROSANA FACHIN, desembargadora e doutora em Direito de Família no Paraná, adverte:
“A paternidade dos laudos. Inicialmente ressalto a importância da engenharia genética no auxílio das investigações de paternidade por meio do exame de DNA. Sem embargo dessa importante contribuição, é preciso equilibrar a verdade socioafetiva com a verdade de sangue, pois o filho é mais que um descendente genético, devendo revelar uma relação construída no afeto cotidiano. Em determinados casos, a verdade biológica deve dar lugar à verdade do coração; na construção de uma nova família, deve-se procurar equilibrar estas duas vertentes: a relação biológica e a relação socioafetiva.” (Em busca da família no novo milênio, Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família, BH, 2002, pág. 63).
PAULO LUIZ NETTO LÔBO, da Universidade de São Paulo, pontifica:
“Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade. A filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares. A igualdade entre filhos biológicos e adotivos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é a relação entre eles fundada no afeto. O princípio da afetividade especializa, no campo das relações familiares, o macro princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF). O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto à frente da pessoa humana nas relações familiares.” (Princípio jurídico da afetividade na filiação, Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, BH, 2000, págs. 245-253).
LUIZ EDSON FACHIN, professor titular de Direito Civil da UFPr, em seus “Comentários ao novo Código Civil”, 2004, com a autoridade e experiência de civilista, proclama:
“[…] como bem se reconhece, “a paternidade, mais do que ato de procriação, é fato cultural. A procura pelo vínculo biológico é um meio de melhor alcançar a dignidade humana do filho, uma vez que não existam vínculos socioafetivos suficientes para superar o dado genético em razão do amor. Não há, a rigor, fórmula geral e abstrata capaz de compreender a gama de situações humanas que se vertem em demandas sobre a paternidade e litígios concernentes aos filhos na separação e no divórcio. O Direito administra possibilidades num campo recheado de complexidade.” (Pág. 74)
Tais reflexões demonstram que se vive hoje, no Direito de Família contemporâneo, um momento em que há duas vozes soando alto: a voz do sangue (DNA) e a voz do coração (AFETO). Isto demonstra a existência de vários modelos de paternidade, não significando, contudo, a admissão de mais de um modelo deste elo a exclusão de que a paternidade não seja, antes de tudo, biológica.
No entanto, o elo entre pais e filhos é, principalmente, socioafetivo, moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o elo biológico.
A doutrina aponta três requisitos da paternidade socioafetiva: o nome, o trato e a fama. O filho que usa o nome do seu pai socioafetivo por longo tempo já tem no seu registro a marca da sua identidade familiar. O tratamento recíproco entre pai e filho socioafetivos, dando e recebendo afeto, assistência, convivência prolongada e exclusiva, com transmissão de valores, constituem a exteriorização dessa paternidade real e efetiva. E a fama consiste na aparência e notoriedade desse estado de filiação paternidade perante os familiares, amigos, vizinhos e a comunidade.
2.3 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
A flexibilização do art. 178, §§ 3º e 9º do CC, a nova Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 27 e o art. 1601 do novo Código Civil, direcionou a seguintes decisões:
TJRS “A verdade biológica não se sobrepõe à relação paterno-filial havida por 28 anos, entre o investigante e seu pai registral. A paternidade deve ser vista como um ato de amor e desapego material, e não simplesmente como um fato biológico. Reconhecimento da filiação socioafetiva.” (Apel. 70008792087, 8a CC, rel. Catarina Rita Kriegear Martins, j. em 23/09/2004).
“Se a parte já contava mais de trinta anos de idade ao ajuizar a ação e sempre soube da inexistência do liame biológico com os pais registrais, mas manteve com eles e com o irmão proveniente dessa relação, estreito liame social e afetivo, descabe buscar a desconstituição do vínculo, tendo ocorrido de forma indelével a decadência do seu direito. Inteligência do art. 362 do Código Civil de 1916.” (Apel. 70011110327, 7a CC, rel. Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves, j. em 04.05.2005).
“Caso em que, ao registrarem a investigante, os pais registrais fizeram uma “adoção à brasileira”. Ao depois, os pais registrais foram os pais socioafetivos da investigante. Verdade socioafetiva que prevalece sobre a verdade genética.” (Apel. 70010973402, 8a CC, rel. Rui Portanova, j. em 04.08.2005).
“Não restou demonstrada a alegação de erro substancial no momento em que a paternidade foi registrada. Ademais, com o tempo, restou configurada a paternidade socioafetiva, que prevalece mesmo na ausência de vínculo biológico.” (Apel. 70012504874, 8a CC, rel. Rui Portanova, j. em 20.10.2005).
“EMENTA: NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO. CARACTERIZAÇÃO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. PEDIDO JURIDICAMENTE IMPOSSÍVEL. Entre a data do nascimento da criança e o ajuizamento da ação transcorreu mais de onze anos. Narrativa da petição inicial demonstra a existência de relação parental. Sendo a filiação um estado social, comprovada a posse do estado de filho, não se justifica a anulação de registro de nascimento. Reconhecimento da paternidade que se deu de forma regular, livre e consciente, mostrando-se a revogação juridicamente impossível.” (Apel. 70012665444, 7a CC, rel. Maria Berenice Dias, j. em 14/12/2005).
“EMENTA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PAI REGISTRAL. PRELIMINAR DE EXTINÇÃO DO PROCESSO ACOLHIDA. HIPÓTESE DE DECADÊNCIA. É de ser acolhida a preliminar de extinção do processo em face da decadência. Decaiu o requerente do direito que possuía de impugnar a paternidade registral e ver reconhecida a paternidade biológica em 28.03.1988, quatro anos após atingir a maioridade. Assim, o ajuizamento da ação vinte anos depois de decorrido o prazo legal previsto para impugnar a paternidade registral, não pode ser admitida.” (Agravo de Instrumento 70015624828, 7a CC, rel. Ricardo Raupp Ruschel, j. em 06/09/2006).
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PAI REGISTRAL QUE É MARIDO DA MÃE. PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE. Cuida-se de parentalidade ficta, estabelecida a partir da presunção de paternidade do marido da mãe (pater is est), hipótese prevista no art. 1.597 do CCB. 2. Não há falar em erro como vício de consentimento se a relação de parentesco se forja por força de imperativo legal e ao longo de 25 anos houve a convivência da autora com o pai registral, encontrando-se o marido e mulher ainda casados. No caso concreto, coincidem a filiação noticiada no registro civil e aquela que se firmou na posse do estado de filho.” (Apel. 70015797301, 7a CC, rel. Luiz Felipe Brasil Santos, j. em 13.09.2006).
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGISTRO. PREPONDERÂNCIA DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA ESTABELECIDA ENTRE A MENOR E O PAI REGISTRAL. 1. A moderna noção de família, fundada no afeto, não admite a preponderância absoluta da verdade biológica sobre a situação socioafetiva consolidada entre a investigante e o pai registral, o único que ela conhece e que muito a ama, que tem a sua guarda e é responsável exclusivo por todos os cuidados dispensados à menina desde os oito meses de vida. 2. Não há nenhuma vantagem em alterar o registro civil da menor para desconstituir a filiação socioafetiva, tirando dela um pai que mesmo sabendo não possuir vínculo biológico, segue lhe amando, cuidando e protegendo, para atribuí-la ao pai biológico, que, mesmo ciente do vínculo genético, já manifestou que não a quer como filha, tampouco desejando assumir as obrigações inerentes à paternidade.” (Apel. 70016894719, 7a CC, rel. Luiz Felipe Brasil Santos, j. em 29/11/2006).
“EMENTA. PEDIDOS DE DESCONSTITUIÇÃO DA RELAÇÃO DE FILIAÇÃO CUMULATIVAMENTE COM INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. OPOSIÇÃO DO PAI REGISTRAL. VÍNCULO SOCIOAFETIVO. 1. Cabe apenas ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher. Inteligência do art. 1601 do CCB. 2. O filho maior pode impugnar o reconhecimento da sua filiação apenas dentro de quatro anos que se seguirem à maioridade civil, sendo totalmente descabida a ação se proposta quando o filho já contava 38 anos, é casado e inclusive já possui filho. Art. 1.614, CCB. 3. A anulação do registro, para ser admitida, deve ser sobejamente demonstrada como decorrente de vício do ato jurídico, ou seja, coação, erro, dolo, simulação ou fraude, o que não se verifica, quando se trata de uma declaração de paternidade feita pelo marido da mãe em relação a filho que foi concebido e nasceu na constância do casamento. 4. Mesmo que esteja ausente o liame biológico, pelo fato de a mãe do autor ter sido infiel ao pai registral, induzindo-o a erro, descabe desconstituir a relação jurídica de paternidade quando resta incontroversa a existência da filiação socioafetiva, e o pai registral (e socioafetivo) não concorda com a desconstituição do registro civil.” (Apel. 70018883215, 7a CC, rel. Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves, j. em 27/06/2007).
Ao analisar os casos, percebe-se que tendência hoje dos tribunais é o acolhimento da filiação socioafetiva, a ponto de fazê-la predominar no conflito com a biológica - o julgador não pode fechar os olhos a esta realidade que se impõe e o direito não deve deixar de lhe atribuir efeitos –, se afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica.
3 CONCLUSÃO
Este artigo analisou questões e desafios importantes e atuais que se colocam com as transformações ocorridas no campo da família, filiação e parentalidade. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa versou sobre os conceitos, elementos constitutivos, os princípios e os efeitos relacionados ao reconhecimento do instituto da filiação socioafetiva de acordo com a legislação pátria como também na posição doutrinaria de alguns autores em relação, seja de crítica e recusa ou de acolhimento e problematização. Ademais, sobre os aspectos controvertidos mencionados pela jurisprudência e, de acordo com o direcionamento de cada uma dessas fontes primárias chegou-se ao objetivo qual se constituiu em analisar o conceito de filiação por socioafetiva e identificar os modos de reconhecimento desse vínculo de parentesco. Alfim restou confirmado a hipótese proposta de que a filiação socioafetiva é o reconhecimento jurídico do vínculo parental motivado nas expressões do afeto e nos princípios constitucionais que norteiam a proteção da dignidade da pessoa humana e da unidade família, base fundamental da sociedade.
Nesse contexto, o instituto do parentesco civil se mostrou renovado quando, secundarizando o caráter biológico, priorizou a afetividade como elemento essencial para caracterizar a relação parental, por conseguinte a inevitável revisão conceitual do instituto do Parentesco Socioafetivo, destacando a definição do vínculo de filiação, os atributos do reconhecimento e os efeitos jurídicos no ordenamento pátrio.
Mapeada a discussão em torno da parentalidade socioafetiva é seguro afirmar que, socialmente, o que gera efetivamente a filiação socioafetivo é o reconhecimento voluntário – diferente do forçado judicialmente ou o derivado do ato solene estabelecido na lei –, logo, a filiação deve, sobretudo, ser vista como um ato de amor e desapego material, e não simplesmente como um fato biológico.
A filiação socioafetiva ou desbiologização da paternidade tem por defensores eminentes juristas e filósofos do direito, como se pôde conferir no desenvolvimento da pesquisa.
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SOUZA, Carlos Magno Alves, CNJ Cria Regras para Reconhecimento Extrajudicial de Filiação Socioafetiva. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2017-dez-03/carlos-souza-cnj-cria-regras-reconhecer-filiacao-socioafetiva, Acesso em: 30 abr. 2021.
Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário FAMETRO
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, DARANA KID LIMA DA. Filiação socioafetiva: reconhecimento no ordenamento jurídico sob a luz do princípio da unidade familiar. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2021, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57634/filiao-socioafetiva-reconhecimento-no-ordenamento-jurdico-sob-a-luz-do-princpio-da-unidade-familiar. Acesso em: 25 nov 2024.
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