RESUMO: O presente artigo aborda a violência obstétrica, cometida contra gestantes, parturientes e puérperas, usuárias do Sistema Único de Saúde na capital do Estado do Amazonas, como uma prática reiterada que gera a supressão do princípio da dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade da paciente. Por meio do tipo de pesquisa qualitativa e bibliográfica, através do método dedutivo, será possível analisar como o ordenamento jurídico brasileiro pode garantir maior segurança jurídica às mulheres em todo ciclo gravídico-puerperal, bem como assegurar o ressarcimento adequado pelos danos sofridos. Buscará identificar ainda quais fatores incidem na ocorrência de tantos casos de violência obstétrica em Manaus e verificar como o ordenamento jurídico brasileiro tem se mostrado ineficaz frente ao problema, inclusive com a carência de normas específicas capazes de coibir tal ato.
PALAVRAS-CHAVE: Violência obstétrica. Dignidade da Pessoa Humana. Autonomia da Vontade. Responsabilidade Civil.
ABSTRACT: This article addresses obstetric violence committed against pregnant women, parturients and postpartum women, users of the Unified Health System in the capital of the State of Amazonas, as a repeated practice that generates the suppression of the principle of human dignity and autonomy of the patient's will . Through the type of qualitative and bibliographical research, through the deductive method, it will be possible to analyze how the Brazilian legal system can guarantee greater legal security to women throughout the pregnancy-puerperal cycle, as well as ensure adequate compensation for the damage suffered. It will also seek to identify which factors affect the occurrence of so many cases of obstetric violence in Manaus and verify how the Brazilian legal system has been ineffective in the face of the problem, including the lack of specific rules capable of curbing such an act.
KEYWORDS: Obstetric violence. Dignity of human person. Autonomy of the Will. Civil responsability.
SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Da violência obstétrica: origem, conceitos e formas. 2.1 A história do parto e a institucionalização da violência obstétrica 2.2 Conceitos e divergências acerca do tema 2.3. As formas de violência obstétrica 3. Da violência obstétrica como violação dos princípios constitucionais e bioéticos 3.1 O princípio da dignidade da pessoa humana no ciclo gravídico-puerperal 3.2 O princípio da autonomia da vontade da parturiente 4. Das responsabilidades derivadas da ocorrência da violência obstétrica 5. Da responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica praticada na rede pública de saúde na capital do amazonas 5.1 A responsabilidade do médico e demais profissionais de saúde do SUS ou da rede conveniada 5.2 A responsabilidade dos hospitais e demais estabelecimentos de saúde ligados ao SUS 5.3 A análise de casos reais ocorridos na rede pública de saúde em Manaus-AM 6. Conclusão - 7. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Segundo a pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada pela Fiocruz em parceria com a ANS, metade das mulheres que têm seus filhos na rede pública de saúde sofre violência obstétrica. Apesar de ser uma prática reiterada que se estende com o passar dos anos, essa violação não possui tipificação penal e não há atendimento específico para as vítimas. Com tal lacuna legislativa, a resolução dos casos fica dependente da interpretação do judiciário, que na maioria das vezes tem uma concepção ínfima do que seja a violência obstétrica.
Tal forma de violência ocorre no momento em que a mulher está mais vulnerável, violando sua dignidade como pessoa e sua autonomia como mulher e mãe. Pode ocorrer de várias formas e não há como mensurar os impactos que causa na vida das vítimas, podendo se obter sequelas permanentes. Vale ressaltar que poucas mulheres sabem identificar quando são vitimadas pela violência obstétrica, podendo-se concluir que o número de casos reais ultrapassa o conhecimento do poder judiciário.
No ano de 2020, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), fez um levantamento e analisou 60 processos onde teria sido identificada a ocorrência de violência obstétrica. Foi constatado que as condenações contra o poder público, ultrapassam o montante de R$ 1 milhão em indenizações, tendo como pontos principais as falhas na prestação do serviço público e erros médicos. O objeto das ações é o ressarcimento por óbitos maternos, fetais ou de recém-nascidos, sequelas no bebê ou na mãe, por erros no atendimento ou nos procedimentos realizados no parto.
O motivo para a escolha do tema justifica-se por ser uma forma de violação à integridade, dignidade e autonomia da mulher que ainda não foi tratada com a devida importância pelo ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, o tema se mostra atual e relevante, visto que é um assunto que nos últimos anos vem conquistando espaço para discussão na sociedade amazonense e que precisa ser compreendido melhor, principalmente no âmbito jurídico, para então poder se evitar e punir de modo eficaz a ocorrência da violência obstétrica.
Posto isto, este trabalho buscará demonstrar porque o debate acerca da violência obstétrica deve ter prioridade na seara do Direito e apresentar mecanismos jurídicos capazes de combatê-la, contribuindo assim para a preservação da dignidade e autonomia da mulher como indivíduo detentor de direitos e, principalmente, como ser capaz de gerar a vida.
2 DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: ORIGEM, CONCEITOS E FORMAS
Em se tratando do estudo sobre a violência obstétrica, primeiramente, é importante dar a devida atenção a sua historicidade, isto porque é através da análise desta que é possível compreender a maioria dos fatores que contribuíram para a sua institucionalização. Vale ressaltar ainda que tal forma de violência possui muitas nuances, o que gera opiniões distintas sobre seu real conceito e sobre o porquê ocorre. Ademais, a violência obstétrica pode ocorrer de diversas formas, como será exposto mais à frente.
2.1 A história do parto e a institucionalização da violência obstétrica
Antigamente, o parto era tratado como uma tradição, sendo realizado dentro do ambiente domiciliar. Era realizado ou assistido apenas por mulheres, sendo proibida qualquer participação masculina no evento. É o que aduz Brenes (1991, p. 135) ao explanar que “os partos e seus cuidados eram realizados por mulheres conhecidas popularmente como aparadeiras, comadres ou mesmo de parteiras-leigas”.
Contudo na Europa, após o século XVIII, com o iluminismo, ocorreram diversos avanços na medicina e passou a ser recomendado que o parto fosse realizado com o auxílio de um médico. A partir desse momento que homens, na sua grande maioria médicos, começaram a ter participação no processo fisiológico do parto, já que poucas mulheres exerciam a medicina de forma profissional.
No final do século XIX, parte das gestantes passou a parir em ambiente hospitalar, isto em decorrência de partos difíceis que demandavam a realização de cesariana. Ocorre que o grupo de gestantes que necessitava ir ao hospital para dar à luz tratava-se, na maioria das vezes, de mulheres pobres, sem lar estabelecido, mães solteiras ou prostitutas, já que as senhoras “de família” tinham os partos feitos em suas residências (SENTIDOS DO NASCER, 2015). Assim, abriu-se margem para a ocorrência dos casos de violência institucional no que se refere à obstetrícia, também denominada de violência obstétrica (VO), objeto deste trabalho.
2.2 Conceitos e divergências acerca do tema
Com base no dossiê realizado pela Rede Parto do Princípio, “Parirás com dor” (2012, p. 60), a violência obstétrica pode ser entendida como um conjunto de atos “praticados contra a mulher no exercício de sua saúde sexual e reprodutiva, podendo ser cometidos por profissionais de saúde, servidores públicos, profissionais técnicos administrativos de instituição pública e privada, bem como civis”. Trata-se de uma forma de violência cometida nas instituições de saúde contra a mulher no momento do atendimento do pré-natal, na realização do parto, na assistência nos casos de aborto e no atendimento no pós-parto. Pode ser tida ainda uma como violência de gênero, ou seja, que ocorre pelo simples fato da vítima ser mulher.
No Amazonas, a Lei Nº 4.848/2019, que trata sobre a implantação de medidas contra a violência obstétrica nas redes pública e particular de saúde do Estado do Amazonas, dispõe no Art. 1º, parágrafo único que:
[...] Entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres durante o pré-natal, parto, puerpério ou em abortamento, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada por membros que pertençam à equipe de saúde, ou não, sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia. (AMAZONAS, 2019)
O uso do termo violência obstétrica causa grande desconforto na comunidade médica, pois, no entendimento de alguns profissionais de saúde, a nomenclatura para tal forma de violência causa grande ofensa à profissão. No ano de 2019, o Ministério da Saúde (MS) considerou, através de um despacho que o termo “violência obstétrica” possuía conotação inadequada e orientou que fosse abolido dos documentos de políticas públicas, pois fazia alusão ao uso intencional de força, o que não ocorre em todos os incidentes em uma gestação, parto ou puerpério (DAPES/SAS/MS, 2019). Logo, o Ministério Público Federal (MPF) se manifestou através da Recomendação Nº 29/2019 - MPF, orientando que o Ministério da Saúde emitisse nova nota informando que o termo deve continuar sendo usado, independentemente da eventual preferência do MS e que, em vez de tentar abolir a expressão, voltasse seus esforços para promover ações que coibissem a prática da VO. O MPF recomendou ainda que o Ministério da Saúde desenvolvesse ações com a finalidade de produzir dados relativos a práticas desrespeitosas na assistência à saúde, com sistemas de responsabilização, independentemente da intencionalidade dos profissionais em causar dano à vítima (MPF, 2019). Assim sendo, frente a grande repercussão sobre o tema, o Ministério da Saúde voltou atrás e reconheceu a legitimidade do uso do termo violência obstétrica como sendo um direito das mulheres que sofrem maus tratos e desrespeito durante a gravidez, parto e puerpério.
2.3 As formas de violência obstétrica
Embora haja leis vigentes que asseguram em parte os direitos das mulheres no ciclo gravídico-puerperal, principalmente no momento do parto, não há legislação federal específica e a prática da violência obstétrica continua sendo uma realidade frequente na rede pública de saúde. A VO é caracterizada por diversas formas, umas mais perceptíveis que outras, que leva a vítima a ter dificuldade para identificar sua ocorrência. A violência obstétrica pode ter caráter físico; psicológico; sexual, institucional; material e midiático.
Possuirá caráter físico quando a ação afetar o corpo da mulher, gerando dor ou dano físico de qualquer grau e não houver recomendação baseada em evidências científicas para ser realizada. Por exemplo: privar a mulher de se alimentar em decorrência do parto ou induzir ou forçar a prática de tricotomia (raspagem de pelos). (PARIRÁS COM DOR, 2012).
A VO psicológica é configurada por uma ou demais ações praticadas por meio de comportamentos ou/e palavras que faça a mulher se sentir ofendida, inferior, com medo, instável emocionalmente ou que lhe cause qualquer outro tipo de sentimento ruim. São exemplos: proferir ameaças, fazer chantagens, omitir informações ou prestá-las com linguagem apenas técnica. (PARIRÁS COM COR, 2012).
A violência obstétrica sexual ocorre por meio de ação que viole a intimidade ou pudor da mulher, causando dano a sua integridade sexual e reprodutiva, independentemente do toque em suas partes íntimas ou órgãos sexuais, como: realizar exames de toque invasivos, constantes ou agressivos ou induzir/forçar a realização de lavagem intestinal. (PARIRÁS COM DOR, 2012).
Em caráter institucional, a VO ocorrerá através de ação ou forma de organização por parte de órgãos, entidades e prestadores de serviço que dificulte, retarde ou impeça a mulher de ter acesso a direitos já constituídos, por exemplo: impedir a mãe de amamentar o bebê e cumprir protocolos institucionais que impeçam o cumprimento ou contrariem normas vigentes sobre o tema. (PARIRÁS COM DOR, 2012).
A violência obstétrica em caráter material se dá por meio de ação/conduta ativa ou passiva que tem como objetivo conseguir recursos financeiros da mulher durante o processo reprodutivo em benefício de pessoa física ou jurídica, violando assim seus direitos. São exemplos: cobranças indevidas por parte de planos de saúde ou profissionais e induzir a contratação de plano de saúde privado para ter direito a um acompanhante. (PARIRÁS COM DOR, 2012).
Por fim, em caráter midiático, a VO neste caso será configurada pela ação praticada por profissional através dos meios de comunicação com o intuito de causar abalo psicológico em mulheres em processo reprodutivo e violar direitos. Pode ocorrer através de mensagens, imagens, vídeos ou qualquer outra forma de comunicação exibida publicamente fazendo apologia a práticas cientificamente não recomendadas, com a finalidade de obter vantagem econômica ou dominar a mulher, como por exemplo: ridicularizar o parto normal; fazer apologia à cesariana e incentivar o uso de fórmulas no lugar do leite materno. (PARIRÁS COM DOR, 2012).
3 DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA COMO VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E BIOÉTICOS
Quando ocorre a violência obstétrica, direitos e garantias fundamentais, além de princípios constitucionais e bioéticos, são violados. Dentre estes, pode-se destacar a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, onde a mulher pode ser constrangida ou exposta a perigo. Ademais, destaca-se ainda a violação ao princípio da autonomia da vontade da paciente, um dos pilares da bioética, que gera grande frustração e até mesmo traumas permanentes nas gestantes. Conforme salienta Sarmento (2016, p.149), “a ligação entre autonomia e dignidade é frequente na jurisdição constitucional em todo o mundo.” Assim, sem detrimento de outros princípios constitucionais e bioéticos, estes merecem destaque, como será explanado a seguir.
3.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana no ciclo gravídico-puerperal
Segundo Sarmento (2016. p. 72), o princípio da dignidade da pessoa humana é base para toda a ordem jurídica e “se as constituições anteriores começavam disciplinando a estrutura estatal e só depois enunciavam os direitos fundamentais, a Carta de 88 faz o oposto, principiando pela consagração dos direitos das pessoas”. Nesse diapasão, fica claro que as mulheres são protegidas por tal princípio implícito no disposto no Art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 88, devendo receber sempre tratamento humanizado e digno. Ocorre que, na prática, esse princípio constitucional é violado quando se trata de atendimento médico no ciclo gravídico-puerperal.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2014), a violência na assistência ao parto é um problema a nível mundial e, quando as mulheres relatam suas experiências na gestação, principalmente durante o parto, o quadro é preocupante. Nas maternidades e hospitais públicos de Manaus, esse quadro se repete frequentemente.
A Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seu Art. 6º, dispõe que são direitos sociais a saúde e a proteção à maternidade. Nesse sentido, é oportuno trazer à baila o entendimento da ilustríssima Maria Helena Diniz:
As normas de tutela à maternidade, que é um direito social garantido constitucionalmente, são imprescindíveis em atenção à função biológica e perpetuação da espécie humana, de modo a que a mulher, possa ter condições favoráveis para tanto e para não perder os efeitos de sua faculdade procriadora, evitando os possíveis riscos que ameacem sua saúde e o desenvolvimento da gestação e da criança, dando-lhe toda a proteção durante a gravidez, o parto e a amamentação. (DINIZ, 2017, p. 168).
Ademais, ainda analisando a VO sob o prisma da dignidade da pessoa humana, faz-se mister mencionar que muitos casos se dão por motivo de orientação sexual, raça, idade, condição econômica, nível de escolaridade, dentre outros fatores. Neste ponto, a Organização Mundial da Saúde ressaltou que:
Entre outras, as adolescentes, mulheres solteiras, mulheres de baixo nível sócio-econômico, de minorias étnicas, migrantes e as que vivem com HIV são particularmente propensas a experimentar abusos, desrespeito e maus-tratos. Todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde atingível, incluindo o direito a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre da violência e discriminação. Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente. (OMS, 2014, p. 1).
Neste contexto, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, dispõe que todas as pessoas são iguais perante a lei e que não deve haver distinção de qualquer natureza, lhes sendo garantido o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança (BRASIL, 1988). Qualquer ato atentatório ou violador de direitos constitucionais enseja a obrigação de indenizar o ofendido, neste caso a mulher que vive uma das fases do ciclo gravídico-puerperal, pois conforme preconiza a Carta Magna “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988, Art. 5º, X). Assim sendo, qualquer mulher que tenha constatado a violação da sua dignidade como pessoa detentora de direitos e garantias, por qualquer uma das formas de prática de violência obstétrica, pode e deve procurar punir os agressores em todas as esferas cabíveis.
3.2 O Princípio da Autonomia da Vontade da parturiente
Segundo Sarmento (2016. p. 140), a autonomia privada consiste na “faculdade do indivíduo de fazer e implementar escolhas concernentes à sua própria vida. Ela expressa a autodeterminação individual e resulta do reconhecimento do ser humano como um agente moral, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, e com o direito de seguir a sua decisão, desde que ela não viole direitos alheios.” Percebe-se então que a autonomia privada é inerente ao ser humano e através desta que ocorrerá a manifestação de vontade e a tomada de decisões.
Nos casos de VO há a clara violação ao princípio da autonomia da vontade da mulher, já que muitos procedimentos vão de encontro com o seu querer ou com o que foi planejado no decorrer da gravidez, como por exemplo, a indução do parto. Fatores como a falta de informação adequada e a falta de acesso do mínimo existencial fazem com que muitas mulheres não questionem ou reajam a procedimentos incômodos e, por conseguinte, acarretam na interferência e mitigação da autonomia da vontade da paciente. Neste sentido, Cilene Rennó Junqueira afirma que:
Para que o respeito pela autonomia das pessoas seja possível, duas condições são fundamentais: a liberdade e a informação. Isso significa que, em um primeiro momento, a pessoa deve ser livre para decidir. Para isso, ela deve estar livre de pressões externas, pois qualquer tipo de pressão ou subordinação dificulta a expressão da autonomia. (JUNQUEIRA, 2012, p. 7).
Ainda, conforme o manual de prática obstétrica do CREMESP, no que concerne ao princípio da autonomia no parto, entende-se que, ‘ad litteram’:
Em relação às mulheres, o princípio da Autonomia enfatiza o importante papel que devem adotar na tomada de decisões quanto aos cuidados de sua própria saúde. Neste ponto, os médicos deverão observar a vulnerabilidade feminina, questionando expressamente sobre suas escolhas e respeitando suas opiniões, como salienta, desde 1994, a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO). (CREMESP, 2018, p. 21).
Posto isto, é fundamental que os profissionais de saúde busquem cumprir com o que foi combinado com a paciente durante toda a gestação para que não haja frustrações. Além disso, é primordial que a equipe médica conceda todas as informações necessárias acerca dos procedimentos que serão realizados e esteja apta a sanar as dúvidas da gestante, a deixando confortável e segura para expressar sua vontade e assim ser parte ativa no parto, como deve ser. A mulher como pessoa detentora de direitos e que goza de tutela constitucional, deve ter seus direitos fundamentais, dignidade e autonomia preservadas em todo o ciclo gravídico-puerperal, sob pena de responsabilização cível e ética pelos danos sofridos e, embora raramente ocorra, a aplicação das tipificações penais existentes quando necessário.
4 DAS RESPONSABILIDADES DERIVADAS DA OCORRÊNCIA DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
No Brasil, ainda não há lei federal específica acerca da violência obstétrica, então todos os direitos e garantias das mulheres durante o ciclo gravídico-puerperal emergem da Carta Magna ou leis estaduais, municipais e esparsas, enquanto que as punições ficam a cargo das legislações cível e penal, bem como dos códigos do consumidor e de ética médica.
O Código de Ética Médica - Resolução N° 2.217/2019, além de disciplinar as condutas vedadas no exercício da medicina quanto aos Direitos Humanos e Relação com pacientes (capítulos IV E V), também dispõe no capítulo XIV, inciso II, que os médicos que cometerem faltas graves, cuja continuidade do exercício da medicina apresente risco de dano irreparável ao paciente ou à sociedade poderão ter o exercício profissional suspenso por meio de procedimento administrativo específico (CFM, 2019).
Ainda, o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem – Resolução Nº 564/2017, aplicado também aos Técnicos, Auxiliares, Atendentes, Obstetrizes e Parteiras, esclarece no capítulo IV, artigo 105, que responderá pela infração ética/disciplinar o profissional que cometer ou contribuir para sua prática e, se praticada por terceiro, se dela obter benefício. O referido código aduz ainda em seu artigo 108 que são formas de penalidades pelas infrações cometidas a advertência verbal, a multa, a censura, a suspensão do exercício profissional, podendo-se chegar à cassação do direito ao exercício profissional. (COFEN, 2017).
Quanto à responsabilidade penal, esta se dará mediante a prática de conduta ilícita ativa ou passiva, devendo haver a presença de dolo ou culpa por parte do agente. Segundo o Código Penal, artigo 18, incisos I e II, o crime é doloso quando o agente almejou o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo, enquanto o crime culposo ocorre quando o agente deu causa ao resultado por agir com imprudência, negligência ou imperícia (BRASIL, 1940). Assim, os atos da VO podem se enquadrar em vários tipos penais como lesão corporal, violência psicológica contra a mulher, ameaça, injúria, constrangimento ilegal, entre outros.
O Código do Consumidor trata sobre a responsabilidade dos prestadores de serviço, neste caso dos profissionais liberais, hospitais e clínicas particulares, além de outros atendimentos médicos prestados dentro das relações de consumo. Já o Código Civil de 2002 dispõe sobre o instituto da responsabilidade civil, que é frequentemente aplicada nos casos envolvendo violência obstétrica. Como a maioria das demandas judiciais envolvendo VO desaguam nas varas cíveis, há de se dar maior ênfase neste instituto.
5 DA RESPONSABILIDADE CIVIL NOS CASOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA PRATICADA NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE NA CAPITAL DO AMAZONAS
A responsabilidade civil é o dever jurídico de reparar o dano causado a alguém mediante a prática de um ato ilícito. Para Diniz (2009), a responsabilidade civil tem o seguinte conceito:
A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa que por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal. (DINIZ, 2009, p. 35)
Embora a violência obstétrica ocorra tanto da rede privada quanto na rede pública de saúde, nesta última a quantidade de casos chega a ser preocupante, isto porque o Sistema Único de Saúde é gerenciado pela Administração Pública, que deve ser a principal provedora de atendimento médico à população. Portanto, quando se constata um alto número de casos envolvendo a prática de VO no SUS, é possível perceber que o Estado tem falhado em promover um dos direitos mais básicos previstos na Lei Maior: o direito à saúde.
5.1 A responsabilidade do médico e demais profissionais de saúde do SUS ou da rede conveniada
A responsabilidade civil subjetiva ou aquiliana é aquela que tem como elemento principal a culpa. Adotando a teoria tetrapartida, Farias, Netto e Rosenvald (2015) esclarecerem que os elementos que constituem este tipo de responsabilidade civil são o ato ilícito, a culpa, o dano e o nexo causal. A culpa por sua vez, elemento que diferencia a responsabilidade subjetiva da objetiva, segundo Gagliano e Pamplona Filho (2020), contém em sentido amplo os elementos da voluntariedade do comportamento do agente, a previsibilidade e a violação de um dever de cuidado e, em sentido estrito, se divide em culpa por negligência, imprudência e imperícia. Assim, o Código Civil Brasileiro diz que:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. (BRASIL, 2002)
No caso dos médicos e profissionais de saúde recai a responsabilidade subjetiva. O problema está no fato da vítima de VO ter que comprovar que o dano realmente ocorreu mediante culpa, ou seja, há dificuldade probatória. Para Oliveira (2019, p. 48), na maioria dos casos de violência obstétrica que chegam ao judiciário “dificulta-se a aplicação da punição correta, tendo em vista que é enquadrada como erro médico sem nenhuma análise mais apurada em relação à conduta, aplicando os critérios gerais de responsabilidade civil dos profissionais de saúde”. Neste sentido e a fim de observar como os tribunais lidam com as demandas que versam sobre a violência obstétrica, vale analisar a seguinte decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Amazonas:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E NEGLIGÊNCIA MÉDICA. ATIVIDADE MÉDICA. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE CULPA. 1. A responsabilidade do médico é apurada mediante a verificação da culpa, nas modalidades de negligência, imperícia e imprudência, devendo o autor demonstrar a presença dos requisitos da responsabilidade civil (conduta culposa, dano e nexo causal entre a conduta e o dano). 2. A análise das provas constantes nos autos evidenciam a inexistência de culpa em quaisquer de suas modalidades. 3. Recurso conhecido e não provido. (TJ-AM - AC: 06208865820158040001 AM 0620886-58.2015.8.04.0001, Relator: Airton Luís Corrêa Gentil, Data de Julgamento: 29/04/2019. Terceira Câmara Cível. Data de Publicação: 29/04/2019).
Nestes casos, o julgador pode decretar a inversão do ônus da prova, que nesta situação é mecanismo jurídico decisivo e fundamental, a fim de que o médico ou profissional de saúde comprove em juízo que agiu dentro das conformidades, já que estes possuem melhor capacidade probatória. Neste sentido, a inversão do ônus da prova da responsabilidade civil médica deveria ser a regra e não a exceção, não no intuito de agravar a responsabilidade dos profissionais de saúde, mas sim de reconhecer que há sempre uma hipossuficiência técnica e probatória por parte do paciente. (FARIAS; NETO; ROSENVALD, 2015).
Além disso, sem prejuízo do direito de ingressar com ação contra o hospital público, a vítima pode demandar diretamente contra o profissional causador do dano material, moral ou estético, podendo ainda pleitear judicialmente contra ambos. Como exemplo, têm-se a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Maranhão:
RESPONSABILIDADE CIVIL. PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRESCRIÇÃO. INEXISTÊNCIA. CITAÇÃO VÁLIDA. ART. 219,§ 1º, DO CPC. REVELIA. PRECLUSÃO QUANTO À MATÉRIA FÁTICA. ERRO MÉDICO. SUS. LEGITIMIDADE PASSIVA DE MÉDICO. LUCROS CESSANTES. SENTENÇA ULTRA PETITA. PROVIMENTO PARCIAL. [...] III - em demanda em que se discute erro médico, a circunstância de o atendimento ter sido feito pelo SUS não retira a possibilidade de a autora promover a ação indenizatória diretamente contra o profissional médico causador dos danos à sua saúde, vez que, do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, não se abstrai nenhuma determinação de que a demanda deva obrigatoriamente ser movida somente tendo como parte ré a pessoa jurídica de direito público responsável pelo serviço de saúde pública; [...]. (TJ-MA - APL: 0538372013 MA 0000341- 23.2008.8.10.0024, Relator: CLEONES CARVALHO CUNHA, Data de Julgamento: 26/02/2015, TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 13/03/2015).
Ademais, Farias, Netto e Rosenvald (2015) aduzem que para ocorrer a responsabilização do médico ou profissional de saúde não é necessário que a culpa seja de natureza grave, isto porque o direito brasileiro não reconhece a gradação da culpa e o que define o quantum indenizatório é a extensão do dano, não o grau de culpabilidade do agente causador. É o que esclarece o artigo 944 do Código Civil (BRASIL, 2002) ao dispor que “a indenização mede-se pela extensão do dano”. Assim sendo, mesmo diante da culpa leve há o dever de indenizar o indivíduo lesado, neste caso, a vítima de violência obstétrica.
5.2 A responsabilidade dos hospitais e demais estabelecimentos de saúde ligados ao SUS
A responsabilidade civil objetiva é aquela que independe da comprovação de culpa, bastando haver um liame de causalidade entre o dano e a conduta do agente para gerar o dever de indenizar. Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2020), a responsabilidade objetiva é destaque no Código Civil de 2002 e, quando presente a atividade de risco, a maioria dos casos que chegam ao judiciário pleiteando a aplicação de responsabilidade civil são resolvidos sem a análise de culpabilidade do infrator.
Posto isto, os hospitais públicos, UBS, UPAS, CAICS, Policlínicas ou qualquer outro órgão ligado ao SUS pertence à Administração Pública e, sendo assim, o Estado responderá objetivamente pelos danos causados por seus funcionários a terceiros, podendo regressar posteriormente se for comprovado que estes agiram mediante culpa ou dolo. Neste sentido, o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, que dispõe que:
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (BRASIL, 1988).
Isto quer dizer que o Estado será responsabilizado objetivamente com base na teoria do risco administrativo, ou seja, o risco decorre da atividade administrativa que a Administração Pública realiza. Neste diapasão, Nehemias Domingos de Melo esclarece que:
Assim, a teoria do risco foi desenvolvida a partir da constatação de que a responsabilidade fundada na culpa se mostrava insuficiente para que o lesado obtivesse a plena satisfação de seus prejuízos. [...] Nestas situações, a obrigação de reparar o dano surge tão-somente do simples exercício da atividade que, em vindo a causar danos a terceiros, fará surgir, para o agente que detenha o controle da atividade, o dever de indenizar. (MELO, 2014, p. 23)
É importante ainda mencionar que em muitos casos levados ao judiciário envolvendo violência obstétrica, assim como na maioria das ações ajuizadas que envolvem direitos relacionados à saúde, o ente federativo citado pode alegar sua ilegitimidade para compor o polo passivo da demanda. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), definiu que qualquer dos entes públicos pode ocupar o polo passivo da demanda em razão da responsabilidade solidária desses pelo funcionamento do SUS, in litteris:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ERRO MÉDICO. HOSPITAL PRIVADO. ATENDIMENTO CUSTEADO PELO SUS. RESPONSABILIDADE MUNICIPAL. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. 1. Considerando que o funcionamento do SUS é de responsabilidade solidária da União, dos Estados e dos Municípios, é de se concluir que qualquer um destes entes tem legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de quaisquer demandas que envolvam tal sistema, inclusive as relacionadas à indenizatória por erro médico ocorrido em hospitais privados conveniados. (STJ - REsp: 1388822 RN 2012/0055646-4, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 16/06/2014, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/07/2014).
Outro ponto que merece esclarecimento é no que tange a responsabilidade do Estado quando a violência obstétrica ocorre em hospital ou unidade privada de saúde que presta atendimento obstétrico em decorrência de convênio com o SUS. Nestes casos, os serviços públicos prestados pela rede privada de saúde não perdem a sua natureza pública e o Estado, em regra, poderá compor o polo passivo de ações indenizatórias em litisconsórcio facultativo com o prestador do atendimento médico, em razão do dever de observância às diretrizes do SUS.
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. ERRO MÉDICO. MORTE DE FETO DURANTE PROCEDIMENTO DO PARTO. HOSPITAL CONVENIADO AO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE - SUS. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL. SENTENÇA ANULADA. PROSSEGUIMENTO DO FEITO. INAPLICABILIDADE DO ART. 515, PARÁGRAFO 3º DO CPC. 1. A União responde por erro médico ocorrido em hospital conveniado ao SUS, já que é responsável pelos atos praticados pelas pessoas jurídicas de direito privado que prestam serviço público delegado. É atribuição legal da União efetuar o controle e fiscalização de serviços de interesse para a saúde, nos termos da art. 6º, VII, da Lei 8.080/90, que trata do Sistema Único de Saúde - SUS. Legitimidade da União. 2. Impossibilidade de aplicação do art. 515, parágrafo3º do CPC, em face da causa não versar questão exclusivamente de direito, eis que há requerimento expresso da parte autora para a realização de audiência para oitiva do médico que efetuou o parto, bem como da equipe que participou da cirurgia, impondo-se a reabertura da instrução processual para sejam produzidas às provas pleiteadas, sob pena de cerceamento de defesa. 3. Apelação provida. (TRF-5 - AC: 429554 CE 0082303-51.2007.4.05.0000, Relator: Desembargador Federal Francisco Wildo, Data de Julgamento: 25/08/2009, Segunda Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário Eletrônico Judicial - Data: 10/09/2009 - Página: 507 - Ano: 2009).
Por fim, é necessário ressaltar que a responsabilidade civil do Estado poderá ser extinta frente a algumas situações que excluirão o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano causado, como ocorre no caso fortuito força maior, culpa da vítima, culpa de terceiro e no estado de necessidade. Neste sentido, Mello afirma que o Estado se exime da responsabilidade “apenas se não produziu a lesão que lhe é imputada ou se a situação de risco inculcada a ele inexistiu ou foi sem relevo decisivo para a eclosão do dano. Fora daí responderá sempre”. (MELLO, 2015, p. 1052)
5.3 A análise de casos reais ocorridos na rede pública de saúde em Manaus-AM
Em 2019, o tema violência obstétrica ganhou grande repercussão local e nacional quando um vídeo do ano anterior passou a ser compartilhado em massa nas redes sociais. O conteúdo da filmagem se trata de uma grávida sendo agredida durante o parto em uma maternidade da capital amazonense, com cenas fortes e revoltantes. Após a repercussão negativa, o IGOAM (Instituto de Ginecologia e Obstetrícia do Amazonas) afastou o médico que cometeu o ato. O médico em questão já respondia por corrupção passiva, inclusive pela cobrança de R$ 2 mil para realização de parto em maternidade pública, além de estupro e erros médicos, sem que recebesse qualquer tipo de punição do CRM.
A violência obstétrica ocorre com frequência nos hospitais e maternidades de Manaus, embora a minoria dos casos sejam divulgados pela mídia ou levados ao judiciário. Com base no registro e controle dos processos que versam sobre VO feito pela Defensoria Pública Estadual Cível do Amazonas, percebe-se que as partes autoras, na maior parte das demandas, são pacientes do Sistema Único de Saúde da capital. Para exemplificar o exposto acima, faz-se mister a análise de 3 casos onde foi constatada uma ou mais formas de VO. Os casos a seguir foram ajuizados no Tribunal de Justiça do Amazonas e a identidade dos envolvidos será preservada.
CASO 1 – (Processo: 0712661-******8.04.0001): A ação foi ajuizada pela mãe e filhos da vítima, pois a mesma faleceu. Ainda gestante, a vítima buscou assistência médica na Maternidade Ana Braga, apresentando sangramento, sendo constatado que a mesma estava com infecção urinária. Após a prestação de atendimento básico e prescrição de medicações a gestante foi aconselhada a ir para sua residência. No dia 29/11/2009, a gestante retornou à referida maternidade com forte sangramento e contrações, sendo submetida à cesariana prematura de urgência depois de 2h de espera por atendimento.
Após a realização do parto, a mãe da vítima ficou impedida de visitá-la por 11h. Ao encontrar a filha, lhe viu em lençóis sujos de sangue e ao lado do próprio vômito. Em conversa com a vítima foi relatado que as enfermeiras a tratavam com brutalidade, não faziam sua higiene pessoal adequadamente e que:
[...] após a criança nascer, duas enfermeiras seguraram em seus braços e uma outra apertou forte sua barriga para tirar o sangue causando-lhe intenso sofrimento. (Petição Inicial)
Com vômitos incessantes, houve a transferência da paciente para a UTI. A puérpera foi submetida a exames e verificou-se a presença de infecção generalizada. A vítima foi a óbito no dia 19/12. A parte autora relatou que, ao dar a notícia da morte da filha, os funcionários do hospital foram insensíveis e ainda ressaltaram que a paciente deu muitos gastos à maternidade.
Na presente situação resta claro a presença de violência obstétrica nas formas física, através de manobras não indicadas, e institucional, caracterizada pelo descumprimento da Lei Federal n° 11.108/2005 (Lei do Acompanhante) e demora no atendimento médico. Na sentença, o juiz condenou o Estado a pagar pensão aos dois filhos da vítima até que atingissem a idade de 21 anos, como danos materiais, além de R$ 20.000,00 a título de danos morais, a ser dividido entre as partes autoras.
CASO 2 – (Processo: 0658022-******8.04.0001): No presente caso, a parte autora pleiteou a condenação do Estado por danos morais decorrentes de constrangimento e humilhação durante o parto no Instituto da Mulher e Maternidade Dona Lindu. A vítima esclarece na petição inicial que escolheu a referida maternidade por ser referência em parto humanizado, inclusive recebeu aula sobre humanização e realizou visita nas instalações da instituição. Com 38 semanas de gestação, a vítima procurou atendimento médico na maternidade citada por sentir fortes contrações e durante a realização dos exames a bolsa da paciente rompeu. Ocorre que no decorrer do parto a vítima sofreu uma série de transtornos que a abalaram psicologicamente.
Segundo o texto da inicial:
[...] Subiu então os degraus, abriu as pernas na frente de outras 7 mulheres, algumas com seus maridos, com a porta da sala aberta e recebeu o seu primeiro toque, que seria seguido de muitos outros depois. (grifos nossos)
[...] A Autora já estava exausta, fraca, cansada e com muita fome. A última refeição tinha sido no final da tarde do dia anterior. A Autora pediu comida e suco, que lhe foi negado. (grifos nossos)
[...] Mesmo diante da insistência da Autora para não ser medicada, o médico ministrou 10 (dez) unidades de ocitocina por meio endovenoso, conforme registrado no prontuário anexo e sem esclarecer maiores detalhes sobre a necessidade do medicamento. (grifos nossos)
Ainda, o médico disse:
“Você sabe que será muito difícil o seu parto não é? Você tem mais de 30 anos e mulheres com mais de 30 anos não devem ter parto normal. Só cesárea! Não era nem para você estar aqui. Além do mais, o bebê ainda está muito alto, vai demorar esse parto. Você está fazendo tudo errado, tem que ficar deitada, de barriga para cima e de perna aberta. Você tá empurrando seu bebê para dentro.” (Petição Inicial)
Em determinado momento, a parturiente precisou abraçar o médico que estava próximo e ouviu risos e piadas por parte da equipe médica que dizia:
“Calma, senhora, ele é bonito, mas não é pra tanto!” (Petição Inicial)
No presente caso, é nítida a caracterização da VO nas formas física, sexual, psicológica e institucional, pois houve o descumprimento do plano de parto; impedimento do direito de se alimentar; impedimento de locomoção; privação de informações; piadas; mentiras; negativa para acompanhante; toques invasivos na frente de muitas pessoas e etc. O processo foi arquivado, pois a PGE ofertou acordo no valor de 15 mil e a vítima aceitou.
CASO 3 – (Processo: 0613175-******8.04.0001): Neste terceiro caso, ocorrido na Maternidade Balbina Mestrinho, houve a demora na realização da cirurgia cesariana que resultou na paralisia cerebral do nascituro. Ademais, houve cobrança por parte do primeiro médico atendente para realizar o parto cesariano. A parte autora é o bebê prejudicado, representada em juízo por seus genitores.
Segundo o texto na inicial, a parturiente buscou atendimento médico na referida maternidade em razão das contrações indicativas do nascimento do bebê. Durante o parto, o médico constatou que a bolsa ainda não havia rompido e disse à parturiente que poderia acelerar o parto se a mesma desse “algo a mais” para ele, porém, a paciente não tinha recursos financeiros para isso. O médico disse, então, que faria o parto normal e furou a bolsa amniótica com um objeto pontiagudo. Segundo a inicial:
[...] utilizou um instrumento pontiagudo para estourar a bolsa, sendo que este teria dito que esse procedimento era necessário para fazer a criança nascer mais rápido. Apesar disso, a criança não nascia e o médico insistiu por mais de 05 horas no parto normal, foi então que o médico determinou que o enfermeiro subisse na barriga da declarante para forçar o parto, mas mesmo assim a criança não nascia. (grifos nossos)
Vendo a situação, o enfermeiro salientou que seria melhor fazer o parto normal, mas o médico alegou que seu plantão já teria acabado e deixou o recinto com a paciente em pleno trabalho de parto e sem assistência médica. Após 30min desassistida, uma enfermeira chamou outro médico que imediatamente encaminhou a parturiente para a sala de cirurgia. A criança nasceu desfalecida, foi para a sala de reanimação, onde passou três dias, e depois foi transferida para a UTI, onde permaneceu por 42 dias.
Na alta médica, foi receitada a medicação Gadernal, mas não informaram o real motivo. Com a retirada gradativa da medicação a menor começou a apresentar episódios de convulsão e a mãe a levou para um hospital particular de Manaus. Após exames, foi constatado que a menor possui Paralisia Cerebral Tetraplégica Espatica – Síndrome de Lennox-Gastaut. Segundo o relatório médico, houve sofrimento fetal devido à demora na realização do parto.
Ressalte-se que a genitora havia feito o pré-natal e o feto sempre esteve saudável e, conforme exposto na inicial:
[...] a paralisia cerebral foi adquirida em razão da demora do parto e evidente negligencia e omissão do médico que, diga-se de passagem, foi filmado agredindo uma paciente durante o parto, fato que foi amplamente divulgado pela mídia local e nacional. (grifos nossos)
Ao procurar uma das delegacias especializadas da capital, os próprios funcionários da delegacia informaram que “não daria em nada”, pois a equipe médica não iria querer testemunhar contra o médico causador dos danos.
No presente caso, fica clara a ocorrência de dolo e culpa do médico, que além de praticar a violência obstétrica na forma física, institucional e material, praticou também o crime de concussão, previsto no artigo 316 do Código Penal Brasileiro, ao cobrar por serviço médico prestado no SUS. O Estado foi condenado ao pagamento da quantia de R$ 50.000,00 a título de danos morais e pensão vitalícia de dois salários mínimos a contar do evento danoso.
Em todos os 3 casos expostos acima fica comprovado como o atendimento obstetrício-ginecológico do SUS na capital amazonense tem sido falho e prejudicial às gestantes, parturientes e puérperas que procuram a rede pública de saúde, ocorrendo a clara violação do princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia da paciente. Estes são apenas alguns de vários casos de violência obstétrica ocorrida em Manaus, o que leva ao entendimento que as leis que protegem as mulheres durante o ciclo gravídico-puerperal não tem sido cumpridas e nem tem força suficiente para coibir a prática da VO, devendo o poder público e o ordenamento jurídico ter um olhar mais apurado sobre o tema e assim tomar atitudes e precauções a fim de mudar essa realidade.
Diante do exposto, é possível notar que, apesar de existirem leis que assegurem parte dos direitos da mulher durante o ciclo gravídico-puerperal, estas são descumpridas com frequência nos hospitais e maternidades públicas do país, inclusive em Manaus, o que demonstra a deficiência governamental. Isto se dá principalmente pelo fato de não existir lei federal tipificando a violência obstétrica como crime em si, o que propicia que este tipo de violência continue a ser praticada, demonstrando a ineficácia do ordenamento jurídico vigente. As punições pela prática de VO acabam, na maioria das vezes, em sanções administrativas previstas nos Código de Ética Médica ou Enfermagem e raramente os agressores são punidos criminalmente.
Ficou comprovado que fatores como idade, nível sócio-econômico, estado civil e etnia são fatores que contribuem para a ocorrência da violência obstétrica, tornando algumas mulheres mais vulneráveis que outras. Tais fatores propiciam a violação dos princípios da dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade da paciente. Ademais, a violência obstétrica pode ocorrer de diversas formas, causando prejuízos físicos, morais e psicológicos nas vítimas, podendo ocorrer ainda, no pior dos cenários, óbitos maternos, de recém-nascidos ou fetais.
Assim, com a falta de lei federal de caráter sancionatório, o instituto da responsabilidade civil, principalmente na sua modalidade objetiva, é empregado nas demandas judiciais que pleiteiam indenizações de caráter moral, material e estético decorrentes da violência obstétrica praticada no SUS. Ademais, poucos casos são levados ao judiciário e nos ajuizados a vítima geralmente encontra dificuldade em comprovar o ocorrido por conta de sua hipossuficiência probatória.
Posto isso, além da criação de lei federal que tipifique a violência obstétrica como crime para auxiliar na coibição de sua prática, é imprescindível que o instituto da responsabilidade civil seja melhor aplicado pelos juízes e tribunais, que devem considerar sempre a dificuldade da vítima em apresentar provas comparado à facilidade que o profissional ou hospital possui, devendo a decretação da inversão do ônus da prova ser a regra. Além disso, é necessário que os órgãos governamentais trabalhem na elaboração de novas políticas públicas e reforcem as já existentes no que tange a violência obstétrica para que as gestantes, parturientes e puérperas, não só de Manaus, mas como em todo o país, se sintam seguras e acolhidas durante todo o ciclo gravídico-puerperal.
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Advogada OAB/AM
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANJOS, Nicole Oliveira dos. Violência obstétrica: uma análise acerca da prática reiterada da supressão do princípio da dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade nos serviços obstétricos prestados pelo sus na capital do Amazonas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2021, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57646/violncia-obsttrica-uma-anlise-acerca-da-prtica-reiterada-da-supresso-do-princpio-da-dignidade-da-pessoa-humana-e-autonomia-da-vontade-nos-servios-obsttricos-prestados-pelo-sus-na-capital-do-amazonas. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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