RESUMO: O presente artigo tem como finalidade abordar a distanásia e suas infringências no direito à vida e à dignidade da pessoa humana, valendo-se da metodologia indutivo por meio da revisão literária para tanto, debruçando-se sobre as possíveis prejudicialidades da aplicação do instrumento e a qualidade de vida do paciente terminal, tudo, porém, sob a ótica da dignidade humana. Trata-se, outrossim, sobre a absolutização da vida e suas consequências nos casos de possibilidade de utilização da morte digna, além de trazer conceitos básicos sobre os princípios da dignidade, da autonomia individual e da autodeterminação. A pesquisa, contudo, se limita a casos específicos e excepcionais em pacientes cujo direito de existência digna se encontra em risco. Desse modo, chegou-se à conclusão de que a distanásia possui elementos que não respeitam a vida e a dignidade do indivíduo, uma vez que a prolongação do estado aviltante causado pela morte inevitável por meio de manobras médicas e superficiais fere diretamente os princípios sobre os quais ela é abordada.
SUMÁRIO: 1. A morte digna: 1.1 Espécies instrumentais de morte digna: 1.1.1 Eutanásia; 1.1.2 Ortonásia; 1.1.3 Distanásia. 2. O princípio da dignidade da pessoa humana e da vida como precursor do direito à morte digna: 2.1 A vida como direito absoluto; 2.2 O direito à autodeterminação em contato com a intervenção do Estado na escolha do tratamento terminal; 2.3 A qualidade de vida frente ao direito da dignidade humana em casos de distanásia. 3. Distanásia e suas infringências no primado do direto à vida e à dignidade: 3.1 O caráter degradante e desumano da prorrogação exagerada da morte e suas razões jurídicas; 3.2 O direito à vida útil e com qualidade como pressuposta da morte com dignidade.
INTRODUÇÃO
O tema delimita-se à distanásia em face do direito à vida com qualidade e à dignidade da pessoa humana, cuja problemática concentra-se em analisar as colisões dos princípios supra sensíveis em decorrência da aplicação da distanásia como forma de prolongar a morte de pacientes em estado terminal e irreversível.
Por se tratar de um tema delicado e ligado aos direitos fundamentais do homem, a morte digna, como gênero, abrange a eutanásia, a ortonásia e a distanásia, sendo estas três últimas tratadas como espécie. O direito à vida contempla o direito à morte digna, em casos excepcionais relacionados a doenças terminais sem cura, tratamento ou chances de reversão.
Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo geral analisar as possibilidades de aplicabilidade do direito à morte digna, especificamente da distanásia, à luz do posicionamento doutrinário brasileiro. Como objetivo específico, tem o fito de demonstrar os conceitos ligados à morte digna e suas possibilidades de uso diante do direito à vida. Busca, ainda, verificar conflitos materiais ligados ao direito à vida e à morte digna, pautado pelos princípios fundamentais constitucionais.
E, por fim, objetiva-se expor as infringências ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana quando do uso prolongado, descomedido e degradante da distanásia, trazendo, para tanto, os posicionamentos contrários à distanásia pois dela se origina violações aos primados básicos.
1 MORTE DIGNA
A tutela pelos direitos inerentes ao ser humano alcança um nível acentuado após a promulgação da Constituição Federal de 1988, na qual se vislumbra um cuidado especial sobre a vida, desde a sua concepção, a fase de desenvolvimento do indivíduo ligada às condições mínimas de existência e, sobretudo, até mesmo na morte.
A amplitude do direito à vida, na lição de Diniz (2017, pg. 47), não se restringe somente ao direito de nascer, alcança também o direito a ter uma morte com dignidade, além do direito de existência adequada, atingindo quaisquer pessoas, independentemente de suas particularidades.
O direito à morte digna interage não somente com o primado da vida, mas também com o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual forma base para frear as eventuais infringências ao ser humano durante sua existência.
1.1 Espécies instrumentais de morte digna
Naturalmente, a morte alcança a todos. Uns de modo mais repentino e outros, de forma incessante e agoniante. Nestes casos, alguns são acometidos por doenças severas cuja cura, tratamento ou meios paliativos são inexistentes para, ao menos, atenuar as suas dores.
É nesse prisma, portanto, que entra um dos preceitos inerentes ao homem, o direito à morte digna, presente implicitamente no bojo do direito à vida e da dignidade da pessoa humana que lhe dão sustento legal em casos específicos.
Salienta-se, contudo, que os casos em que são aplicáveis tais medidas são exclusivamente por razão de doenças terminais e incuráveis, cuja falta de tratamento e/ou meios paliativos não só prolongam a sobrevida como, deleteriamente, atingem profundamente a dignidade do paciente e sua qualidade de existência, ampliando ainda mais o sofrimento psíquico e físico.
Dentro desse enfoque, é salutar ficar a par dos conceitos que abrangem o direito à morte digna ou morte com dignidade, os quais se desdobram em três: eutanásia, ortonásia e distanásia.
1.1.1 Eutanásia
Embora se apresente polêmica, a eutanásia, como forma de cessar os sofrimentos do indivíduo por razões humanísticas, é considerada um desafio do ponto de vista jurídico brasileiro, por não haver, até então, uma posição do legislador decantada e tampouco da jurisprudência a esse respeito.
Pela lição de Barroso e Martel (2010, pg. 5) a eutanásia é o meio pelo qual a medicina age com o fim de atenuar o sofrimento do paciente, reduzindo, deste modo, o prolongamento da sua vida, respeitando todas as diretrizes bioéticas, mas tal medida é aplicada tão somente em casos de doenças incuráveis e quando o quadro do paciente não lhe garante chances de sobrevivência.
Cumpre esclarecer que tais enfermidades causam nos acometidos dores psicológicas, físicas e familiares, em razão de não haver à disposição meios que dirimem suas moléstias. É tão somente em casos excepcionais que a eutanásia é utilizada.
Do ponto de vista penal, o presente instrumento de supressão de sofrimento, no mais das vezes, é benquisto, já que o legislador impõe tratamento análogo ao que seria o homicídio privilegiado.
1.1.2 Ortonásia
A ortonásia, apesar de indicar uma possível semelhança com a eutanásia, se distingue desta por oportunizar ao indivíduo uma morte mais natural possível, de forma condolente, sem lhe aplicar meios pelos quais o sofrimento se perpetuará ou cessará de imediato.
No magistério de Ramos (2020, pg. 424) sobre o presente instrumento:
A ortotanásia consiste na desistência, pelo médico, do uso de medicamentos e terapias, pois não há esperança de reversão do quadro clínico nos pacientes terminais. Ocorre a suspensão de aplicação de processos artificiais médicos, que resultariam apenas em uma morte mais lenta e mais sofrida, mas o que mata o paciente é a doença e não o médico. Diferentemente da eutanásia, a ortotanásia deixa de manter a vida por modo artificial, para evitar prolongar a dor em um quadro clínico irreversível.
Barroso e Martel (2012, pg. 6) entendem ser a ortonásia a aceitação natural, na qual não se busca obstaculizar as intempéries da morte por meios artificiais nem a adiantar por meio eutanásico. Mais que tudo, oferece ao paciente a compaixão de seus sofrimentos, diferentemente do modo em que é tratado pela distanásia.
1.1.3 Distanásia
O prolongamento dos sofrimentos causados pela morte inevitável, antes fosse considerado um gesto de altruísmo, configura-se um nítido atentado ao primado do direito à vida com qualidade, por não ser considerada a dignidade da pessoa humana, mas tão somente as vontades de absolutização e manutenção da vida a qualquer custo, ainda que esse custo seja extremamente danoso aos pacientes nesse estado.
Nesse esteio, o conceito dado por Diniz (2017, pg. 535) abre margem para maior compreensão do instrumento utilizado e suas consequências drásticas na vida humana:
Pela distanásia, também designada obstinação terapêutica (L’acharnement thêrapeutique) ou futilidade médica (medical futility), tudo deve ser feito mesmo que cause sofrimento atroz ao paciente. Isso porque a distanásia é a morte lenta e com muito sofrimento. Trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo da morte.
De forma similar, Barroso e Martel (2012, pg. 5) identificam a distanásia como um modo de estender a morte por uso de métodos que implicam diretamente na continuação do grave quadro clínico, o qual poderia ser remediado, mas é evitado em detrimento da existência do indivíduo, ainda que esta seja indigna e, sobremaneira, sem possibilidades de fruição dos direitos de autodeterminação.
Para Ramos (2020, pg. 424) a distanásia “[...] consiste na pratica de prorrogar, por quaisquer meios, a vida de um paciente incurável, mesmo em quadro de agonia e dor, o que é denominado também “obstinação terapêutica”.
Diante dos conceitos que assimilam a distanásia, percebe-se a sensibilidade que esta apresenta quando de encontro com os princípios fundamentais do ser humano, o que abre ampla margem de discussão nos mais variados âmbitos jurídico-filosóficos onde a vida humana com qualidade e dignidade é posta em xeque.
2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA VIDA COMO PRECURSOR DO DIREITO À MORTE DIGNA
O primado da dignidade humana atrai numerosas proteções em favor do indivíduo, sendo elas unanimemente relembradas quanto aos caracteres que envolvam a qualidade de existência mínima do homem e a indisponibilidade de direitos garantidores da condição humana.
Nesse sentir, prescrevem Barroso e Martel que o presente princípio oferece ao paciente a liberdade ou autonomia da vontade, cuja consequência é o seu poder de autodeterminação diante de situações que envolvam diretamente sua existência (2012, pg. 18). Desse modo, o princípio da dignidade cuida de proteger o indivíduo de determinadas violações, ao mesmo tempo que garante a ele o exercício da autonomia sem transbordar dos limites legais.
A relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a faculdade de escolha da morte digna, pautada em casos extremamente excepcionais e em último caso, resta evidenciada, pois aquela garante aos sujeitos a fruição da vida em condições essenciais e, em eventual supressão deste princípio em virtude de enfermidade incurável e terminal, o indivíduo poderia se valer da liberdade de escolha, pois, segundo Barroso e Martel (2012, pg. 13), o referido primado é imprescindível para a manutenção das liberdades de escolhas, sem o que há prejuízo de sua integridade humana em decorrência do processo degradante da extensão da morte inevitável.
Torna-se caraterizada a dignidade da pessoa humana como pressuposto para a possibilidade de afastabilidade da manutenção de eventuais estados degradantes ocasionados pela utilização da distanásia, uma vez que seria aprazível a invocação e interligação dos princípios da dignidade com o da liberdade, de modo que, para Silva et al (2009, pg. 315) ambas são inseparáveis uma da outra.
2.1 A vida como direito absoluto
A vida é dotada de um valor fundamental no ordenamento jurídico pátrio, sendo protegida frente a determinadas situações extremas, tal como é em detrimento da vedação à pena de morte e ao tratamento desumano no bojo constitucional. Tão importante é a vida que, na dicção de Bucci et al (2012, pg. 323) o direito à vida atravessa todas as fases da existência humana, desde o momento da concepção até o instante final de sua vida.
Dada importância do direito em epígrafe, no saber de Silva et. al (2009, pg. 42) é base para a administração dos direitos fundamentais que lhe são intrínsecos, já que a vida interage com os princípios forjados a proteger o ser humano das violações pelas quais fica exposto ao longo de sua existência.
Tal proteção, por vezes, garante um status relativamente absoluto. Relativo, pois, em casos excepcionais, como os tangíveis à aplicação da morte digna, a vida tem sua natureza absoluta flexionada para amparar direitos que vão além da apenas proteção da vida em seu caráter objetivo.
A flexibilização do direito à vida, no ensinamento de Lima (2012, pg. 39), é similar aos fenômenos que ocorrem com os demais direitos, de sorte que, uma vez perceptível a colisão do direito à vida com um ou vários dos demais direitos fundamentais, aquele pode ser limitado a ponto de desnaturar seu caráter absoluto.
Nesse sentido, observa-se a lição consignada por Alexy (2006, pg. 93):
Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições.
Com efeito, a distanásia encontra um dilema entre estes dois princípios que regem a vida em sociedade do indivíduo. Uma vez que a condição clínica do paciente é calamitosa e extremamente irreversível, entra em análise a proteção unânime da vida e a devida observação da dignidade da pessoa humana.
Sendo a vida um bem inalienável e indisponível, a dignidade impõe um freio a esta, de modo que a perpetuação do estado degradante do paciente terminal enseja a este, por meio da dignidade, a decisão de se dispor ou não a tratamentos e meios superficiais cuja finalidade é tão somente estender sua morte de forma dolorosa.
Este impasse, segundo o entendimento de Diniz (2017, pg. 509) concerne à ponderação, no âmbito dos dois paradigmas, entre o que pode ser oponível ou não, levando em consideração a complexidade e particularidade de cada caso, sobretudo porque presentes interesses que não são adstritos somente ao Estado como protetor e garantidor da vida, mas também ao núcleo familiar e ao exercício da autodeterminação e, sobretudo, à dignidade do indivíduo em sociedade.
Dentro desse enfoque, entra a bioética, também denominada de biodireito, a qual, para Diniz (2017, pg. 42) determina que, sob essa visão, a vida digna deve prevalecer quando o modo de existir do paciente não compreender o exercício satisfatório de uma vida com as condições mínimas à sua disposição.
Em outros termos, a bioética defende, sobremaneira, a vida com qualidade, onde não haja, para sua manutenção, empecilhos que prejudiquem profunda e indelevelmente a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana frente ao prolongamento da vida a custos penosos.
O habitual posicionamento em torno da proteção à vida, de forma exaustiva, deve levar em consideração as prerrogativas do direito à dignidade da pessoa, pois, ainda em relação aos princípios, Alexy (2006, pg. 103-104) defende que estes devem ser sopesados dentro das realidades fáticas possíveis, porquanto apresentam não uma diretriz absoluta a ser respeitada, mas a ser seguida como medida de assegurar que não seja aplicada sempre sem considerar o prejuízo a outros direitos inerentes ao indivíduo.
2.2 O direito à autodeterminação em contato com a intervenção do estado na escolha do tratamento terminal
A autodeterminação do indivíduo, como sujeito de direitos e obrigações, lhe confere uma capacidade peculiar. Isto é, em uma interrelação com o princípio da dignidade humana, a autodeterminação desenvolve um papel fundamental de modo a proteger este primado, invocando a disposição de o indivíduo ter a faculdade de escolher a que estará sujeito no cenário da eventual utilização da distanásia.
O princípio corrente, embora não se confunda, não se afasta dos da honra e da personalidade, que são substratos essenciais para o exercício pleno do direito à autodeterminação. De sorte que, segundo o ensinamento de Fiuza (2009, pg. 113) a honra não se desvincula do seu titular, sendo parte de sua identidade. A personalidade, ainda, é um direito emanado da honra, de modo que seu objetivo é resguardar a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, o direito de autodeterminação, subsidiado pelos princípios da honra e da dignidade, entra em aparente colisão com a intervenção estatal, quando esta busca preservar a vida do paciente em distanásia por meio de tratamentos aviltantes. Assim sendo, deve-se considerar que o direito à vida digna pressupõe situações subjetivas, nas quais os principais atingidos vislumbram a supressão de seus direitos básicos, tal qual o de autodeterminação.
Para Martins et al (2005, pg. 585) os indivíduos que padecem nesse estado, apesar das remotas possibilidades de manifestação de suas escolhas, não deixam de ser titulares de direito, podendo dispor ou não de manobras de ressurreição, administração de medicamentos severos, prolongamento dos órgãos por meios superficiais, pois tal é a sua autonomia que a vida com dignidade deve ser respeitada.
Importante meio de exercer as escolhas, quando em cenários suscetíveis de aplicação da morte digna, é o testamento vital. Por meio dele, o paciente atesta suas vontades, relacionadas ao recebimento de medicações e manobras médicas que prolongarão sua vida, ainda que está só tenha o objetivo de estender a morte inevitável, bem como àqueles referentes ao recebimento de transfusão de sangue e mutilação do corpo, entre outros.
Destaca-se, desse modo, que a intervenção estatal, se tomada integralmente paternalista e positivista, acaba por reduzir e limitar o direito à liberdade de autodeterminação do paciente em distanásia, daí porque presente o dissenso entre os princípios fundamentais.
2.3 A qualidade de vida frente ao direito da dignidade humana em casos de distanásia
O paciente que experimenta a administração da distanásia para prolongar sua morte tem, notadamente, uma redução drástica não só nas suas chances de sobrevivência, mas, sobretudo, na garantia e manutenção de uma vida com qualidade e direitos mínimos.
Sobre essa questão, Diniz (2017, pg. 521) afirma que, uma vez detectada a supressão das condições que garantem uma vida com qualidade, o princípio da qualidade de vida é diretamente afetado. Daí a invocação dos instrumentos de redução de danos deletérios causados por doenças terminais e irreversíveis, por meio da eutanásia e ortonásia.
A distanásia, ao revés, não consente em adiantar o fim dos sofrimentos do paciente, que perde progressivamente sua qualidade de vida e a respectiva expectativa de tê-la de volta, mas sim em condicionar a vida em um caráter desumano a custo de manter os sinais vitais do sujeito.
No ensinamento de Lima (2012, pg. 43) a vida digna é imiscuída de garantias e direitos mínimos, incluindo nesse rol os direitos que garantem as condições de sobrevivência justa e digna e forneçam bem-estar ao indivíduo em todas as esferas.
É cediço que os direitos de bem-estar psíquico e social estão diretamente ligados à qualidade de vida do paciente sujeito à distanásia. Em grau preocupante, o Estado, determinado a cuidar do paciente, mantém atos que, fora das suas vontades, acabam minando uma vida com dignidade.
Via de exemplo, há inúmeros casos, de grande repercussão midiática internacional, onde os pacientes comatosos perduraram por décadas nos leitos de hospitais sem, nesse interstício, manifestar suas vontades, usufruir da vida, expressar seus sentimentos e, tudo isso, sem um cuidado sob a ótica de ter uma vida com qualidade e dignidade.
Em relação aos pacientes comatosos, destaca-se o conceito dado por Martins (2005, pg. 582), para o qual estes são pacientes que, uma vez no estado grave de dano neurológico, têm suas chances de reversão extremamente reduzidas.
Em tais casos, o paciente comatoso acaba por passar inúmeras décadas em estado vegetativo, em cujas condições levam à reflexão se a vida com qualidade e dignidade lhes é oportunizada ou se são somente indivíduos sujeitos às vontades alheias sem características de dispor do seu direito de autodeterminação e personalidade.
3 DISTANÁSIA E SUAS INFRIGÊNCIAS NO PRIMADO DO DIREITO À VIDA E À DIGNIDADE
Como anteriormente apontado, a vida, por ser um bem sensível e inalienável, é revestida de uma proteção que alcança, no mais das vezes, um caráter absoluto quando em colisão com outros direitos fundamentais. Diante disso, cumpre lembrar que o homem, uma vez sujeito de dignidade, deve ser tratado não como um mero composto do coletivo, mas, sim, à luz das diretrizes que compõem o bojo dos direitos fundamentais, sem, para tanto, ser alvo de arbitrariedades.
É nesse caminho que, para fazer um paralelo entre a distanásia e as suas consequências no direito à vida e à dignidade faz-se necessário rememorar o conceito do imperativo categórico firmado pelo filósofo alemão Immanuel Kant, que, na lição de Fiuza (2009, pg. 131) a intocável característica do homem ser um fim em si próprio impede que este seja colocado em posição de indisponibilidade de seus direitos no que tange à sua dignidade.
A dignidade humana é objeto de proteção de cujo alcance atinge proporções universais, restando estabelecido e uníssono que a instrumentalização do homem para corresponder direitos com fins alheios a ele configura potencial descaracterização da sua dignidade e de seus demais direitos inerentes.
Por essa razão, a manutenção da distanásia, em casos extremos e irreversíveis, causa um claro atentado no direito da vida e da dignidade, pois não há que se falar em respeito a este último princípio, já que o modo pelo qual a vida é estendida não concorda com os preceitos estampados nos princípios em tela.
3.1 O caráter degradante e desumano da prorrogação exagerada da morte e suas razões jurídicas
A extensão prolongada da morte em pacientes receptores da distanásia surte na sociedade um dilema ético-moral, em que as circunstâncias de quem padece nesse estado devem ser tratadas com o máximo de humanismo possível, seja pelo médico, pela família, pelas crenças religiosas e ideológicas, seja pelo legislador e operadores de justiça, e, principalmente, pelo coletivo social.
Tal é a gravidade do paciente que se encontra nesse estado de coisas que, para elucidar a conjuntura distanásica, veja-se o ensinamento de Diniz (2017, pg. 563):
Não se pode aceitar que o profissional de saúde tenha o poder de controlar a vida de pacientes. Deverá o médico esforçar-se para prolongar o quanto possível a vida do doente, mas sem alterar, de forma inaceitável, a qualidade de vida que lhe resta. Deve humanizar a vida do paciente terminal, devolvendo-lhe a dignidade perdida. A medicina deve ter a humildade de não tentar, obstinadamente, vencer o invencível, seguindo os passos do paciente com mais sprit de finesse, orientada por nova ética fundada em princípios sentimentais e preocupada em entender as dificuldades do final da vida humana. Tal ética é imprescindível para suprir uma tecnologia dispensável.
Percebe-se a prejudicialidade com que é tratada a vida e a dignidade humana quando vai ao encontro da aplicação da distanásia. Em que pese ser uma temática complexa, a humanização, concebida pelo núcleo médico, familiar e social do paciente é o que mais de intrínseco existe à morte digna, sem a qual estaria colocando o paciente em estado de degradação humana.
Em posicionamento contrário à manutenção absoluta e a qualquer custo da vida, explica Sarmento (2016, pg. 172) que o princípio da dignidade humana imprime uma força maior na autonomia do indivíduo, já que concerne a ele dispor das questões que cuidam da sua existência digna.
Nesse esteio, quanto às características jurídicas que mantêm a distanásia em plena execução, sinaliza Barroso e Martel (2012, pg. 13) que o direito à vida, compreendido pelo constituinte e pelas normas pátrias como um direito absoluto, obsta que a interrupção da vida por meios intervencionistas seja reconhecida.
Por essa razão, a distanásia permanece incólume e em pleno funcionamento, sem que haja uma visibilidade profunda sob o ângulo de uma vida com o mínimo existencial e a sua dignidade.
3.2 A distanásia em confronto com o direito à vida e à dignidade e as suas incompatibilidades
Equiparando-se a distanásia e seus efeitos no direito à vida e à dignidade, compreende-se que é inevitável a ocorrência de violação dos direitos fundamentais, em essência o desses dois princípios, pois o paciente terminal tem seus primados confrontados diretamente. A vida, nesse sentido, acaba prevalecendo sobre todos os direitos, de modo que não há vias de, do ponto de vista instituído no ordenamento jurídico brasileiro, flexionar tal direito em vista de oferecer ao indivíduo uma morte digna e humanitária.
Por esse prisma, consigna-se, precipuamente em relação a intervenção estatal quando da aplicação da distanásia, o magistério de Fiuza (2009, pg. 133) para quem as ações estatais devem disponibilizar aos sujeitos todos os meios de manter em plena execução e integridade o primado universal da dignidade humana.
De tal modo, para Moraes (2012, pg. 30-31), os direitos fundamentais não têm garantia absoluta, em razão do princípio da relatividade. Assim, há que se entender a possibilidade de abertura para uma interpretação do direito à vida como um direito, também, de ter uma morte digna.
Em sendo incompatível a distanásia com os princípios em tela, daí a importância da dignidade da pessoa humana como instrumento de proteção do indivíduo em casos tais, pois, segundo Barroso (2014, pg. 9) a dignidade ganha um horizonte ético de proporções internacionais, sendo utilizada em defesa dos direitos básicos da humanidade quando em contato com ameaças à sua integridade como sujeito.
Por dizer respeito a direitos de natureza subjetivos, pois estão restritos às particularidades e condições do paciente receptor da distanásia, a dignidade e autonomia da vontade, quando em contato com o direito à vida, conferem à pessoa essa característica de direito subjetivo, que para Alexy (2006, pg. 181) é o direito inerente à pessoa e para quem a sociedade não deve cercear de modo a excluir o seu uso e garantia.
No presente caso, a configuração da dignidade como um direito subjetivo permite que o direito à vida, em vias de perpetuar a distanásia, seja ressignificado sob outro ângulo, sem que perca seu objeto e finalidade, para preservar ao paciente a garantia de uma morte em condições justas e dignas.
Deste modo, outro caminho não seria possível senão o evidente reflexo negativo da distanásia na condução do prolongamento da vida humana em estado aquém da dignidade. Sendo o direito à vida assecuratório do bem maior do indivíduo, a observância da dignidade se desvincula daquele na medida em que o paciente não tem escolha de morrer com pacificidade. Tanto é que, no saber de Diniz (2017, pg. 545):
Uma exagerada preservação da vida pode ser conducente ao desrespeito de determinados doentes em estado terminal. Isso é assim porque a moléstia destrói a integridade do corpo, e a dor, a integridade global da pessoa. Por isso, a medicina deveria, ao cuidar dos que estão no processo de morrer, aliviar seu sofrimento físico-psíquico.
Por tais motivos, a distanásia se configura uma potencial ameaça aos princípios da dignidade humana e da vida, encontrando reflexos negativos também nos princípios da autonomia individual e autodeterminação, razão pela qual a vida se fragiliza à medida que não são observados os princípios supra.
CONCLUSÃO
A presente pesquisa buscou, com fundamento nos vetores basilares da existência humana, quais sejam, o direito à vida e o princípio da dignidade, apresentar as consequências que a distanásia acarreta na vida dos pacientes em estado terminal e irreversível, sob o ponto de vista do atual posicionamento jurídico no Brasil.
Preliminarmente, essencial que se soubesse os conceitos vinculados ao que se conhece morte digna para maior aprofundamento na pesquisa. Ao esmiuçar as características do direito à vida, depreendeu-se que este é revestido de natureza absoluta, após detidas análises dos principais nomes pensadores da área. No entanto, nessa mesma linhagem, extraiu-se que o direito à vida alcança não somente o nascimento e a existência, mas também e principalmente uma morte digna, humanitária e compassiva.
O direito de autodeterminação do paciente comatoso e destinatário da eutanásia apresentou indícios de violações, uma vez que suas liberdades de escolhas não são, usualmente, levadas em conta quando de encontro com as determinações de proteção absoluta da vida pelo Estado.
Uma vez que o presente trabalho detectou os riscos ao direito à vida, ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao da autodeterminação, tornou-se compreensível que a qualidade de vida dos pacientes submetidos a esse tratamento desobedece ao mínimo existencial estampado na hermenêutica constitucional.
Em sendo a morte digna é um direito amparado, implicitamente, pelo direito à vida, a não observância daquele é suscetível de infringir direitos sensíveis do homem, como a dignidade e a sua autodeterminação. Por ser a distanásia um meio de prolongar a morte inevitável, o direito à vida se mostra absoluto, de modo que sua relativização é afastada por uma parcela dos doutrinadores.
A consequência dessa absolutização do direito à vida traz prejuízos ao indivíduo destinatário da distanásia, posto que não há uma posição determinada e humanista do legislador ou do poder judiciário, no cenário normativo brasileiro, que trate a aplicação da extensão degradante do estado terminal como uma violação aos direitos básicos do homem.
Essa violação, por meio do uso da distanásia, afeta direta e inevitavelmente a qualidade de vida do paciente, pois não há possibilidades de manifestação da sua vontade de continuar experimentando tratamentos e meios superficiais que tão só prolongam a inevitável morte, estendendo um estado vegetativo e desumano por inúmeras décadas. A marcha existencial não deve ser mantida a qualquer custo, isto é, ainda que a vida não seja usufruída com o mínimo de qualidade e dignidade, a sua disponibilidade deve levar em consideração o cumprimento de outros princípios fundamentais garantidores.
Para a sociedade, a presente pesquisa visou contribuir, sob o ponto de vista jurídico e constitucional, a gravidade do uso da distanásia, onde não é observada a ponderação entre os direitos subjetivos e individuais, mas tão somente os direitos e interesses coletivos que se sobrepõem sobre aqueles.
Assim, chegou-se à conclusão de que a utilização da distanásia no sistema de saúde pátrio não leva em consideração, nem a fundo, os primados da vida e da dignidade humana. Ante a essa omissão e aquiescência normativa e estatal, até mesmo social, o atual instrumento de prolongação de morte perpetua ainda mais as violações aos direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal de 1988. Dessa forma, a pesquisa demonstrou que resta nítida a incompatibilidade da distanásia com os direitos e princípios ora tratados.
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