RESUMO: Ainda que a manipulação na política não seja algo inédito, as possibilidades trazidas pelo advento da Internet modificaram radicalmente o seu panorama. Fake News, pós-verdade e desinformação tornaram-se conceitos corriqueiros, bem como de enorme impacto na atuação político-jurídica. Com isso, pretende-se fazer um paralelo entre o conceito histórico de ética e a iminência de novas relações interpessoais derivadas precisamente desta massificação informacional abrupta e recente. Pretende-se, sobretudo, ainda que de forma incipiente e simples, compreender se o atual molde político-jurídico-social é compatível com as novas realidades que, conforme as esferas real e virtual, se imiscuem de forma mais visceral à realidade.
Palavras-chave: Ética. Redes sociais. Fake news. Desinformação. Pós-verdade.
ABSTRACT: Although politics manipulation is not something new, the possibilities brought by the creation of the Internet has changed drastically its scenarios. Fake news, post-truth and disinformation have become usual concepts, as well as of huge impact in political-legal agency. Thereby, the intention is to draw a parallel between the historical concept of ethics and the imminence of new interpersonal relations derived from the same abrupt and recent informational massification. Mainly, it is intended to, in an inceptive or simple way, understand if the current political-legal-social mold is compatible with the new realities as the real and virtual domains get involved in a more visceral way into reality.
Keywords: Ethics. Social media. Fake news. Misinformation. Post-truth.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Era da desinformação – 2.1 Onda sísmica – 2.2 Onda tecnológica – 2.2.1 Pós-verdade – 2.2.2 Pós-ética e a construção da ética – 2.2.3 Pós-ética e a desconstrução da ética – 2.2.4 Fake News – 2.2.5 Uma característica brasileira: o uso do WhatsApp – 2.2.6 Uma característica contemporânea: a manipulação feita por robôs – 2.3 Onda política – 3. Considerações finais – 4. Referências
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende fazer um sucinto apanhado de alguns conceitos correlatos às novas formas de comunicação que se apresentam atualmente e se desenvolvem à revelia da sociedade, ao menos no que diz respeito às suas consequências mais impactantes. Fake News (mencionadas no texto como “notícias falsas”), pós-verdade e pós-ética são concepções as quais nos remetem à modernidade, e esta nos leva a uma nova forma de encarar a realidade, sob olhares constantes, polarização ideológica, pré-julgamentos instantâneos - fatos que fizeram surgir novos agentes no jogo político, inclusive - e telas de aparelhos eletrônicos demasiadas, o que nos introduz a uma espécie de era da (des)informação massificada.
O objetivo é debruçar-se sobre tais fenômenos tão novos, contudo decisivos na dinâmica de poder dentro da ainda recente, frágil e aspirante democracia brasileira. Destaque-se que a simples observação à realidade político-jurídica nacional justifica a contribuição acadêmica sobre o tema, que certamente passou e passará a sofrer análises mais aproximadas e críticas da comunidade científica.
A metodologia no trabalho é a pesquisa bibliográfica, partindo da análise de conteúdo técnico que conceitue e esclareça os temas, bem como de notícias correlatas aos temas que contextualizem a discussão. O método de pesquisa é a descritiva
2 ERA DA DESINFORMAÇÃO
2.1 Onda sísmica
No ano de 2011, Sendai, uma cidade de médio porte situada à costa Nordeste do Japão, há algumas horas de carro da capital, Tóquio, foi abalada por um profundo evento geológico. O local habitado secularmente e com uma história rica e diversificada foi atingido por um tsunami com magnitude de 8,9 na escala Richter, que devastou em poucas horas uma região povoada e extensa, deixando algo próximo de 100.000 desabrigados e 16.000 vítimas fatais. Até hoje, as imagens causadas pela destruição continuam impressionando e os estragos, igualmente, sendo percebidos (ISTOÉ, 2018).
Não se pretende tratar sobre oceanografia, geologia ou qualquer disciplina que possa se interessar pelas causas e consequências geofísicas do evento. Contudo, o que foi brevemente descrito serve como analogia ao assunto que se pretende introduzir.
Como informa o professor Manuel Castells em seu trabalho Ruptura (2018), a democracia liberal, inserida no contexto de neoliberalismo reaganiano-thatcherista proveniente dos anos 1970 e 1980 enfrenta, nos últimos anos, a sua pior fase. Uma grande onda de convulsões sociais, diretamente relacionadas a crises políticas, por sua vez atrelada a uma crise econômica sistêmica sem precedentes a qual expôs, simbolicamente, o fim de um ciclo da tal política neoliberal supradestacada. O desemprego, a precarização do trabalho e a diacronia entre o custo e o benefício do sistema político foram o desfecho de um arrocho orçamentário por parte significativa dos países, em especial os ocidentais. Da precarização surge a indignação, e da indignação advém a deslegitimização (CASTELLS, 2018, p. 12). É a deslegitimização subjetiva do modelo, i.e., a descrença na percepção dos cidadãos, que proporciona o espaço necessário para a ampla manipulação dos discursos, potencializada pelas transformações do setor de comunicação.
Não apenas ondas sociais, políticas e econômicos atingem o Brasil. Há também uma profunda transformação tecnológica modificando hábitos e práticas da comunidade brasileira. É bem verdade que tais mudanças vêm alterando drasticamente as formas de falar, ouvir, ler e se comunicar em diversos locais do mundo. Contudo, características peculiares parecem fazer dos acontecimentos no Brasil algo impressionante. Os hábitos mudaram, os comportamentos também. Modificou-se a forma de fazer política, e quando esta muda, todo o movimento social subsequente tende a ser influenciado.
2.2 Onda tecnológica
O percurso histórico da humanidade é marcado pela constante inovação tecnológica. Entendida a tecnologia como a reprodução no tempo do aprendizado técnico-científico, i.e., do conhecimento, ela foi e é a pedra de toque para que o Homem pudesse e ainda possa se posicionar topograficamente no cume do vasto arcabouço animal do planeta. Entretanto, esta atual onda tecnológica vivenciada – de forma mais perceptível – desde o início dos anos 2000 possui uma característica notável: dá ao homem médio a possibilidade de se posicionar como elemento magno na produção de conteúdo, bem como alimentar, com considerável autonomia, o seu manjar informativo.
Em paralelo à realidade física, a esfera digital parece-nos cada vez mais táctil. Hoje, ao imergi-la, significa, ao menos aparentemente, estarmos conectados, interligados e cientes de todo tipo de informação que é disponibilizada na grande rede. Essas pluralidade de canais informativos, disponibilidade de fontes e diversidade de conteúdo parece ser sintoma do que se convencionou chamar “Era da Informação”. Jamil e Neves (2000) assinalam que o surgimento de novas ferramentas, equipamentos, capacitações e especializações impulsionam a criação de uma realidade distinta, passando a ação humana ser influenciada por tal realidade diretamente e objetivamente. Talvez dentre as principais características pertencentes à transformação supracitada estejam a personalização e o imediatismo: personalização constitui individualizar a experiência de acordo com os interesses subjetivos, o que vai de encontro à ideia de massificação do consumo. Na relação que se forma entre utente e negociante, esse passa a nortear a dinâmica produtiva; imediatismo é tema corolário da personalização, pois a maior influência do consumidor nas relações de consumo torna-o mais autônomo quanto ao ato de consumir, o que significa o mais célere possível em geral.
Essa era ou fase, assim chamada de informação ou informacional, é fruto de inovações tecnológicas constantes decorrentes de um processo o qual Castells (2002, p. 570) denominou “capitalismo informacional”. Esse conceito, de suma relevância para o direito, postou-se em relação às crises político-econômicas da década de 1970 e remodelou a relação capital-trabalho no final do século XX, objetivando, especialmente, maximizar o lucro na lógica trabalho/capital; aumentar a produtividade nas relações de trabalho; globalizar e ramificar a produção em escala global, isto em busca de redução de custos operacionais, trabalhistas e regulamentários; e direcionar o apoio dos Estados para a manutenção da produção em âmbito nacional em detrimento da proteção social e das regras de interesse público. Estas modificações, ainda que drásticas sob a ótica trabalhista e social, em especial nos países subdesenvolvidos, aceleraram o processo de remodelação do sistema capitalista, desenvolvendo formulações modernas como “sociedade em rede”, sendo essas de suma importância no processo de disseminação de informação.
2.2.1 Pós-verdade
É possível atestar que a pós-verdade é um conceito relativamente recente, difundido, em especial, pelas eleições estadunidenses de 2016 e pelo plebiscito (o qual ficou conhecido como Brexit) realizado acerca da saída do Reino Unido do bloco macronacional formado por grande parte dos países europeus, a União Europeia. Castells (2018) aponta como causa em ambos os casos, ou seja, um elemento de gênese comum, o afastamento gradual entre o discurso das elites e a compreensão fática dos indivíduos ordinários — vulnerabilizados pelas práticas das elites —, sendo entendidos como tais aqueles cuja realidade foi drasticamente alterada pela globalização. Estes indivíduos, absortos no dia a dia e desprevenidos das transformações macroeconômicas pelas quais o mundo passava, foram atraídos pelos discursos de empoderamento do ego, havendo certa confusão de revolta e medo. O medo que a mudança tanto faz insuflar no ser humano, portanto, foi um sentimento comum das massas insurgentes. Não podendo lutar sós contra o elitismo transnacional, a precarização dos vínculos empregatícios, o deslocamento dos postos de trabalho e as velozes mudanças tecnológicas, voltaram-se ao núcleo cultural duro, ao ideal de nação. O patriarcalismo cultural, o orgulho de raça e o conservadorismo religioso – este mais notável no caso dos EUA –; o repúdio à ideia de comunitarismo supranacional e o gradativo exaurimento da oferta de empregos locais ou regionais – este mais no caso do Reino Unido –, mas ambos os casos influenciados pela radicalização xenofóbica e por bilionárias e copiosas campanhas de desinformação, foram os principais fundamentos da negação ao estranho e do reforço à tradição. Nesse contexto, o sentido de pós-verdade estudado atualmente forma as suas bases e modifica a política global.
Para Dunker et al. (2017), a pós-verdade surge como uma afirmação carregada de subjetividade, ainda que despida do sujeito em si. Isto significa dizer que o sujeito não está na mensagem, todavia a mensagem está no sujeito, na medida em que este se apodera do discurso, aparentemente vazio, passando a preenchê-lo com os seus próprios preceitos que, muito embora não necessariamente correlacionados diretamente ao tema ou à imagem em questão, formam uma noção do real. Agora, irrelevante a verdade real, já que a verdade pessoal passou, dentro do sujeito, a substitui-la. A partir do momento que a informação passa a residir no seu íntimo, sintonizando-se com as suas crenças morais, sociais, culturais e políticas, o êxito do emissor da mensagem foi logrado. Aquela informação passa a acompanhar o sujeito em todos os lugares, pois nada pode ser tão prazeroso como a conciliação entre os seres físico e intelectivo.
A ideia de pós-verdade interage com dois conceitos de fundo psicológico, os quais acabam por marcar, de certo modo, fração da personalidade do ser humano hodiernamente: a afetividade e o narcisismo.
Em sua concepção moderna, a afetividade considera que o Homem carrega em si certa dose de sentimentalidade decorrente da modificação social a qual se submeteu. As ideias de família e ambiente privado de relacionamento afastam-no da convivência puramente coletiva, dando novo sentido à percepção que possui de si. Conforme assinalam Gadea e Leite
(...) a família conjugal, hoje considerada local peculiar da afetividade e cuja centralidade está no casal, é um fenômeno típico da modernidade. Ela surge para responder às necessidades afetivas e sociais dos indivíduos como sujeitos, suprindo as exigências e as expectativas que, anteriormente, eram prerrogativas do Estado, ou mais usualmente da comunidade de uma maneira geral. Ela termina por adquirir um papel demasiadamente importante em relação à sociabilidade e, simultaneamente, a comunidade local acaba por restringir-se. (GADEA; LEITE, 2016, p. 56, grifos nossos)
Desta forma, nota-se como a subjetividade pode se desenvolver com esse processo, já que a mudança cultural terá influência decisiva na formação psicológica e na prática comportamental do indivíduo.
Noutro diapasão, o narcisismo representaria o deleite no “autoamor” e a busca pelo prazer próprio, ainda que a pulsão venha de objeto diferente de si. Freud (2010), em seus estudos sobre a origem da libido , identifica um fenômeno denominado “libido objetal”, cuja essência encontra vivenda em pessoas e coisas externas, em terceiros. É a tradução desta específica forma de libido, no ato de internalização do prazer, que originaria o narcisismo.
Afetividade e narcisismo manifestam-se de forma explícita no fenômeno pós-verdade, pois a subjetividade necessária à aferição de credibilidade à mensagem relaciona-se diretamente com a ideia do “ser egoico”, de forma a produzir um resultado concreto, suficiente autônomo à realidade e sendo capaz de sustentar-se, portanto, tendo como base os afetos e estando, desta forma, distante dos fatos. São as crenças pessoais e a emotividade que caracterizam a pós-verdade.
2.2.2 Pós-ética e a construção da ética
O conceito de ética, quando inserido na realidade da pós-verdade, afasta-se sobremaneira do significado dado ao termo por alguns dos principais pensadores que percorreram o tema ao longo dos séculos.
Para Platão, filósofo grego considerado o criador do gênero filosófico e talvez o pensador mais lido na história do Ocidente, a ética pautava-se na virtude. Para ele, o homem deveria moderar a sua fração existencial responsável pela reprodução e cujas características eram o impulso e o apetite desmedidos. Esta parte mortal do ser submeter-se-ia à sua parte imortal, à parte racional. Ademais, esta fração racional da alma também deveria conter a outra fração irracional, colérica e destemperada, responsável pela autossobrevivência. Alcançadas a sophrosyne (moderação) e a phrónesis (prudência), a psykhé (alma) lograria cumprir a sua ética – a vida em virtude.
Discípulo de Platão, o macedônio Aristóteles tinha outra visão da ideia de ética. De acordo com Chaui (2002, p. 440), Aristóteles foi o primeiro a dar à ética uma substância prática, aproximando-a da ação do Homem. Afasta-se, portanto, do pensamento de seu mentor, pois Platão dava contornos idealistas ao estudo da ética, similarmente aos da metafísica e da filosofia natural. Desce a ética, portanto, de seu pedestal contemplativo e passa a interagir diretamente com a práxis humana. O que caracteriza, todavia, a ética peripatética é a ideia de viver bem. Como o próprio filósofo explicita, “Toda arte e toda investigação, e semelhante toda ação e toda escolha parecem tender a um bem qualquer; por isso, corretamente declararam que todas as coisas tendem ao bem” (ARISTÓTELES, 2015, p. 17). Neste contexto, a racionalidade é a alma humana em sua potência máxima; a felicidade é a vida plena vivida de forma virtuosa e racional. Ética, finalmente, é portar um agir que coadune com a felicidade plena, bem supremo para Aristóteles, alcançada pelo exercício ininterrupto da racionalidade, sempre alcançável, porém jamais certa, pois que subjetiva.
Outro pensador de grande relevância no estudo da ética foi Immanuel Kant. No contexto da filosofia moderna, seu pensamento convergia com algumas das mais respeitadas linhas de estudo filosófico, como o racionalismo — clássico e moderno —, o empirismo e a ciência matemática moderna. Alfred North Whitehead, respeitado filósofo britânico, disse certa vez que “toda a filosofia ocidental poderia ser bem exposta como nota de rodapé à obra platônica” (GHIRALDELLI, 2018, p. 57). Exagerada ou não, a afirmativa guarda certa coerência, pois a releitura de Platão é observada em praticamente todos os grandes pensadores, inclusive em Kant. Contudo, o filósofo prussiano torna-se conhecido por criar uma alternativa às duas correntes de pensamento dominantes em sua época: o racionalismo e o empirismo. Para tanto, o conceito de idealismo transcendental é de grande valor, pois as aproxima. Seguindo tal raciocínio, Silveira (2002) diz que experiência e razão são interdependentes, pois o conteúdo condicionante ao saber é inato ou a priori, mas somente se transforma em saber propriamente dito quando experimentado. Desta forma, não seria possível conhecer a realidade ou a coisa em si, mas sim interpretá-la de acordo com o conteúdo da mente.
Seguindo tal linha, a ética kantiana apoia-se em bases principiológicas irrefutáveis e inabaláveis, que o pensador denominou “imperativos hipotéticos e categóricos”. Conforme próprio autor
(...) Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. (KANT, 2007, p. 50)
Seguindo o entendimento de preceito fundamental, Kant acreditava ser o comportamento ético somente possível pelo acatamento irrestrito do imperativo categórico. Esse conceito foi importante para o direito, pois introduziu a ideia de submissão da vontade humana ao império da lei. Para Kant (2007), lei é a sublimação da vontade coletiva, porquanto ancorada nos imperativos categóricos; liberdade decorre da noção de autonomia, sendo esta fruto da vontade individual. A liberdade do indivíduo, pautada nas regras absolutas de moral, limitar-se-ia à lei, que, em verdade, apenas traria ao coletivo uma regra de comportamento assimilada como justa por cada um. Torna-se o Homem o legislador universal e a lei o espaço de pleno exercício da vontade, pois oriunda dele próprio. Somente seguindo a lei o Homem pode ser livre, pois teria a garantia do respeito da vontade alheia de suprimir a sua própria.
2.2.3 Pós-ética e a desconstrução da ética
Hodiernamente, e em consequência da consagração da pós-verdade, outras imagens ganharam demasiada força no meio jornalístico e acadêmico. Sistemas morais à parte, os conceitos de pós-ética e a autoverdade remetem à gravidade do tema, em especial se considerada a composição orgânica das recentes ocorrências políticas, a algumas delas citadas neste trabalho.
O conceito de pós-ética surge como corolário da pós-verdade, isto porque o jogo de palavras pré-fabricadas e ilações pré-conceituadas exige certo porte moral divergente ao esperado quando observado o que se entende como ética. Se a ética é fazer o certo, pessoal e coletivamente, a pós-ética consagra o egotismo, sendo o agir em si e para si, ignorando as consequências de seus atos. Bem ilustrando a definição, o ocupante da Cadeira nº 32 da Academia Brasileira de Letras (ABL), Zuenir Ventura (2017), comentou
(...) Em tempos de pós-verdade, em que os fatos valem menos do que as crenças, Donald Trump parece ter descoberto um conceito equivalente, que passou a utilizar: a pós-ética. É um sistema com um código moral próprio, em que prevalecem a inconveniência, a incorreção, o desvio como norma e a exceção como regra. (VENTURA, 2017, p. de Internet)
Entendida a ética como a análise crítica da moral, não há possibilidade de ação moral em um ambiente de prevalência da pós-ética, pois a premissa vicia a conclusão necessariamente. Todo julgamento será falho à luz da pós-ética; toda moral será posta em cheque em um ambiente líquido, onde nada mais é fidedigno ou razoável.
Não se pode afastar a possibilidade de a crise de legitimidade política a qual se referiu seja um reflexo de certa crise de valores éticos, pois quando a política se esvazia, a ética costuma sair do debate público. Se a pós-verdade se apropria da verdade utilizando-se de subterfúgios de alta carga subjetiva, a pós-ética eiva a ética com uma absoluta intransparência de racionalidade, isto é, torna-se “(...) evidente que a era da pós-verdade é época em que nenhuma ética é mais possível” (DUNKER et al., 2017, posição 1198).
De mais a mais, o conceito de autoverdade diz respeito à livre proclamação de frases, colocando-as em superior status hierárquico se comparadas ao conteúdo. O ato de dizer o que se pensa torna-se mais relevante do que a razão ou a reflexão ao dizer. Personalismo, se possível for definir em uma palavra, é o valor supremo na autoverdade. Eliane Brum , em seu artigo na coluna política do jornal El País (2018), menciona que a pós-verdade diverge da autoverdade no momento que a segunda importa-se apenas com o dizer, independentemente do valor do que foi dito. Para existir, a pós-verdade deve modificar a realidade, o que já não é obrigatório para a autoverdade. Bastando o dizer, qualquer um pode fazê-lo a qualquer preço.
Concluindo, é interessante notar que o caráter personalista da autoverdade não diz respeito somente à ausência de autenticidade no que se diz. Mais importante, talvez, seja o fato de a mensagem estar diretamente atrelada ao emissor da mensagem e à sua reputação. Portanto, o simples fato de uma figura apelativa ser tal emissor poderia expandir sobremaneira a ideia do seu conteúdo, independentemente da fonte real ou do meio. Este fenômeno reverbera com muita força nas redes sociais e no ambiente virtual, onde os filtros de qualidade são mínimos e quando a afirmação mostra-se forte o bastante para furar a bolha a qual reside e interagir também com a realidade de fora dela.
2.2.4 Fake News
No período grego clássico, alguns pensadores já se rebelavam contra aqueles cuja atividade precípua era dar à forma ares de supremacia na área do conhecimento. Talvez o mais conhecido deles seja Sócrates, filósofo/eu lírico de diversos diálogos do filósofo grego Platão. Em um dos mais conhecidos e importantes, “A República”, Sócrates faz severas críticas aos sofistas, já que para ele os seus ensinamentos faziam aparecer nos jovens todos os tipos vícios que, no futuro, poderiam prejudicar-lhes o entendimento e a moral (Platão, 2012). Como dizia Sócrates a um de seus ouvintes:
(...) Podemos também afirmar, Adimanto, que as almas mais bem-dotadas, influenciadas por uma má educação, tornam-se más no mais alto grau. Ou julgas que, os grandes crimes e a pior perversidade, provêm de uma medíocre e não de uma excelente natureza? E poderá uma alma vulgar realizar grandes coisas, seja para o bem, seja para o mal? (...) (PLATÃO, 2012, posição 3865)
Deste modo, os riscos da manipulação das formas em detrimento do conteúdo eram relevantes para a educação, visto que poderiam influenciar equivocadamente os formadores de opinião do futuro. Para os opositores dos sofistas, como ele próprio, o destino nem sempre era prazeroso, pois esses lograram alcançar esferas de relevo na sociedade, influenciando não só a população em geral, mas diversos líderes. Ou seja, para aqueles que não se rendiam às palavras dos sofistas e que não eram convencidos por seus discursos, a sociedade poderia estigmatiza-los e puni-los, se conveniente fosse.
A concepção de notícias falsas cujos efeitos possam se fazer perceber no mundo fático, ao contrário do que possa aparentar, não é algo aplicável à realidade contemporânea exclusivamente. Pelo contrário, este fenômeno exerce efeitos práticos e relevantes há séculos, em especial na política. Em 1564, por exemplo, a disseminação de notícias falsas quase destruiu o mais poderoso monarca à época, Felipe II, chefe supremo da Coroa Espanhola. Com domínios que se estendiam da América do Sul ao Sudeste Asiático, o poderoso monarca não esperava que um boato pudesse provocar uma crise política grave em seu poderoso império. Com a notícia que Felipe II fora morto a tiros espalhando-se celeremente, o corpo diplomático do monarca instruiu-o no sentido de usar a força da Coroa a fim de tentar frear o avanço da informação maliciosa. "Imediatamente, o rei teve que acionar toda a máquina burocrática dos correios e da transmissão de mensagens, a fim de chegar o mais rápido possível às áreas que ele considerava convenientes que aquela notícia falsa era um boato sem fundamento" (BBC, 2018). Enviadas cartas a diversos setores estratégicos espalhados por todo o império, Felipe II conseguiu arrefecer a disseminação da notícia e saiu incólume do evento. O seu ‘algoz’, contudo, jamais foi descoberto. Pareceria atual se o evento descrito não tivesse ocorrido no século XVI. Como dito, os chamados “boatos” não são fenômenos da contemporaneidade. O que se passa hoje é que, certamente, a capacidade de disseminação e, consequentemente, de modificação da realidade aumentou substancialmente.
Todavia, a “era de boatos” parece estar ultrapassada no Brasil, pelo menos no que diz respeito àqueles que exercem influência na esfera político-social. Com o acesso facilitado a aparelhos de telefonia móvel no que se refere à oferta, à diversidade e ao crédito; com a disseminação da internet móvel; e com o barateamento dos planos oferecidos pelas concessionárias de telefonia móvel, formou-se no país, ao que tudo indica, o cenário ideal para o advento de um outro tipo de desinformação: as notícias falsas.
Diferem-se as notícias falsas dos boatos, essencialmente, pela inexistência de um terceiro, um intermediário que ateste credibilidade à informação. Para o boato, faz-se mister alguém que, por pertencer à esfera pessoal ou por representar isoladamente e/ou integrar um grupo digno de admiração e confiança, confere boa reputação ao conteúdo que é passado. Diversamente, as notícias falsas são marcadas pela manipulação da informação, já que aparentam representar uma notícia verificada e confiável. Além disso, devido às redes digitais de comunicação, disseminam-se com muita velocidade. Ademais, e porventura mais preocupante, essas informações são criadas por seus idealizadores visando lucro (UOL Política, 2017).
2.2.5 Uma característica brasileira: o uso do WhatsApp
Dentre as inovações tecnológicas que mais se imiscuíram na vida prática do brasileiro, provavelmente a mais impactante é o Whatsapp. Informações de 2017 já demonstravam que o aplicativo de mensagens de telefones celulares era utilizado por aproximadamente 120 milhões de brasileiros, número correspondente a um usuário a cada dez em todo o mundo. De acordo com Queiroz, Santos e Silva (2017), o Brasil, de acordo com o MEF (Mobile Ecosystem Forum), é o segundo país do mundo que mais utiliza o aplicativo de mensagens, sendo o uso feito regularmente por 76% dos brasileiros. Hoje, com alguma segurança, é possível afirmar que o Whatsapp é o principal canal de informação de muitos brasileiros, quando não raro o único (Estado de São Paulo, 2017). Com isso, é natural que a empresa responsável pelo aplicativo tenha imensa influência na maneira como parte substancial da população se informa.
Apresentados estes dados, surgem algumas questões. Uma delas é a forma como o aplicativo funciona quanto à sua segurança. Segundo a empresa, é adotada a chamada “criptografia de ponta a ponta”, o que significa dizer que apenas emissor e receptor visualizam as mensagens, não facultado nem mesmo à empresa o acesso ao conteúdo. Essa característica gerou alguns problemas entre a Justiça Brasileira e a empresa Facebook, dona da marca Whatsapp. Em 2016, por exemplo, foi negado o acesso às autoridades brasileiras por parte do aplicativo em caso que tratava de investigação de grupos envolvidos com tráfico de drogas. O processo , que tramita em uma vara criminal de Sergipe sob segredo de justiça, gerou a suspensão por 72 horas dos serviços do Whatsapp, pois este se negou a colaborar com a investigação. O caso em questão originou, inclusive, a ADPF 403 no STF, de relatoria do Ministro Edson Fachin, requerida pelo PPS – Partido Popular Socialista, sob a alegação de a decisão judicial ferir a Constituição Federal em seu Art. 5º, IX e a garantia da liberdade de comunicação. Outro caso que ganhou notoriedade envolvendo o Whatsapp e as autoridades brasileiras foi o ocorrido em uma investigação policial em Caxias, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. A Juíza do caso, em seu decisão, explicitou o comportamento da empresa estadunidense:
[...]Ao ofício assinado por esta magistrada, contendo a ordem de quebra e interceptação telemáticas das mensagens do aplicativo Whatsapp, a referida empresa respondeu através de e-mail redigido em inglês, como se esta fosse a língua oficial deste país, em total desprezo às leis nacionais, inclusive porque se trata de empresa que possui estabelecida filial no Brasil e, portanto, sujeita às leis e à língua nacional, tratando o país como uma ‘republiqueta’ com a qual parece estar acostumada a tratar. Duvida esta magistrada que em seu país de origem uma autoridade judicial, ou qualquer outra autoridade, seja tratada com tal deszelo. Como se não bastasse, nesta resposta enviada ao Juízo em inglês, solicita a empresa que o próximo ofício seja encaminhado na mesma língua e ainda formula perguntas totalmente improcedentes e impertinentes, vez que se trata de procedimento de cunho sigiloso, sendo certo que nenhuma destas informações se faz necessária para o cumprimento ou não da ordem judicial[...] .
Com isso, salienta-se uma das facetas da questão: a segurança e a privacidade das mensagens entram em conflito, em alguns casos, com a intenção do Estado de investigar e punir atos ilícitos. Vale dizer que a decisão de suspensão do funcionamento do aplicativo foi sustada logo após a sua realização em caráter liminar no STF, que inclusive deu origem à ADPF 403, por parte do Ministro Ricardo Lewandowski, sob a afirmação de a decisão ferir a liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento.
Visto por outra perspectiva, a suposta preocupação com a segurança dos usuários auxilia no fenômeno da disseminação de notícias falsas, tendo em vista a dificuldade da verificação do conteúdo por uma fonte externa. Ademais, a impossibilidade de verificação aliada à prática de oferecimento de planos de dados ilimitados por parte das concessionárias de telefonia para o uso do Whatsapp possibilita a criação de uma verdadeira indústria clandestina de notícias falsas. Há suspeitas dos envios impulsionados de centenas de milhões de mensagens na campanha presidencial de 2018 com o financiamento de empresas, o que configura ilegalidade, já que doação não declarada e proibida (Congresso em Foco, 2018). As investigações, ainda que notória a relevância do tema e da importância do deslinde do caso, prosseguem vagarosamente no Tribunal Superior Eleitoral (Folha de São Paulo, 2019).
Considerando a realidade das disputas judiciais, os interesses políticos, empresarias e econômicos, além das incessantes novidades tecnológicas, salienta-se um fato preocupante sobre a realidade da comunicação via Internet atualmente: parece predominar, cada vez mais, o conteúdo adulterado, modificado e falsificado. Se o capital interessado financia, o usuário acredita e a justiça tarda (isto quando é capaz de concluir), fica evidente a configuração de um cenário caótico para a sociedade moderna, pois não será possível confiar em muitas das fontes de informação disponíveis.
2.2.6 Uma característica contemporânea: a manipulação feita por robôs
Outro fator a ser levado em consideração, já que, como dito, a lucratividade é umas das marcas mais significativas do “mercado” de notícias falsas, foi o desenvolvimento nas últimas décadas de técnicas de disseminação em massa da informação. Talvez a mais comentada hoje seja a utilização de “robôs” (bots) no processo de reprodução automática de conteúdo. Esses bots interferem no processo natural de distribuição de conteúdo nas mídias sociais e, replicando comportamentos pré-programados, assumem papéis de coadjuvante, quando reforçam opiniões, crenças e teorias; e de protagonista, quando criam tendências de forma autônoma e orgânica no processo de produção de informação.
Os bots (algumas vezes chamados de social bots por atuarem nas redes sociais) são definidos como programas de computador que controlam contas em redes sociais, podendo atuar de forma benigna ou maléfica a depender da intenção de quem artificia tais simulacros (BARBOSA, 2018, posição 1309). De acordo com Barbosa (2018), a simulação da informação feita por bots tem o condão de dar fluidez à experiência, acelerando-a a certo ponto de torná-la mais dinâmica e atraente ao indivíduo. Passando-se por seres humanos, esses bots manipulam e alteram o foco dos debates à maneira de seus idealizadores que, no fim, possuem interesses políticos e econômicos no que será produzido pelo desfecho da discussão social em questão. Foi o que ocorreu no Brexit e nas eleições presidências estadunidenses de 2016, bem como nas eleições brasileiras de 2018 (HYPENESS, 2018).
Com o avanço constante da inteligência artificial, os obstáculos para a detecção dos bots são cada vez maiores. Novos elementos, como o machine learning, incrementam a dificuldade da atuação de autoridades e corporações de mídias sociais nas grandes redes digitais no que diz respeito a coibição de agente maliciosos. Segundo Barbosa (2018, posição 1397), “a detecção dos social bots é como uma corrida: ao passo que novos métodos de detecção são desenvolvidos, os social bots evoluem, tornando os métodos menos efetivos.”
Um risco importante em consequência da disseminação de bots autônomos é a sua atuação indiscriminada na produção de desinformação nas redes sociais. Em 2015, Broniatowski et al. (2018), através de informações governamentais estadunidenses, notaram a presença de redes virtuais de bots atuando diretamente na produção de desinformação contra campanhas de vacinação nos EUA, especialmente na rede social Twitter. Segundo os autores, ainda que nãos seja possível verificar a procedência de todas as contas cadastradas na plataforma, a presença massiva de bots é sugerida especialmente nos casos onde há vinculação a uma fonte externa promovida por monetização. O trabalho dos bots, portanto, é duo: desinformar pela mensagem e atrair usuários para ambientes virtuais onde se possa obter lucro via propaganda (BRONIATOWSKI, 2018).
2.3 Onda política
Em os “Papéis Federalistas” (Federalist Papers) foram estabelecidos os elementos basilares que fundaram a República dos Estados Unidos da América em 1787. Trata-se de um conjunto de documentos, totalizando 85 artigos, publicados em jornais nos momentos precedentes à formulação da Constituição dos EUA. Dentre eles se destaca o Federalist Paper nº 10, que justificou a criação dos Estados-membros. James Madison, seu idealizador, previa que esta seria uma forma de coibir a ação de facções perturbadoras e as ameaças geradas por possíveis conflagrações contra a forma de Estado recém-estabelecida. Assim,
A influência de líderes facciosos pode acender uma chama dentro de seus próprios Estados, contudo será incapaz de espalhar uma conflagração geral pelos outros. Uma seita religiosa pode degenerar em uma facção política em uma parte da Confederação, mas a variedade de seitas espalhadas por toda a sua superfície deve proteger os conselhos nacionais contra qualquer perigo daquela fonte. O furor por papel-moeda, por uma abolição de dívidas, por uma divisão igualitária de propriedade ou por qualquer outro projeto impróprio ou viperino terá menos probabilidade de se espalhar por todo o corpo da União do que um determinado membro dela; na mesma proporção em que tal doença tem mais probabilidade de contaminar um determinado condado ou distrito do que um Estado inteiro (MADISON, 1787, p. de Internet, tradução nossa, grifo nosso).
O modelo imaginado e instituído por Madison e outros dos Fundadores da então nova República mostrou-se duradouro, pois de fato os EUA permanecem, pelo menos no que se refere à sua forma orgânica, com a mesma configuração inicial prevista.
Essa grande rede de Estados-membros, costumes, leis e pessoas em nada se assemelha à rede digital surgida nas últimas décadas. Se na federação o tamanho do Estado e a distância entre seus constituintes são vantagens, na rede digital elas são irrelevantes. Nesta, a informação se desloca de forma tão veloz, quase instantânea, que as conflagrações podem surgir em questões de minutos, bem como desaparecer também. Em um ataque virtual, poucos elementos podem rapidamente apresentar o caos a estruturas de rede até então consideradas seguras, causando estragos consideráveis em muitos casos (OLHAR DIGITAL, 2017).
É por meio desta rede digital incorpórea que a política vem percebendo transformações práticas e significativas nos últimos anos. Pós-verdade, notícias falsas, hackers e bots são elementos integrantes a ela e moldam constantemente a realidade, atuando onde ninguém vê e quando ninguém espera. Ainda que o espaço cibernético possa sugerir certa neutralidade, ou até mesmo positividade em algumas situações, nota-se que, às vezes, os fenômenos advindos deste ambiente denotam ora polarização, ora radicalismo, quando não ambos. As mídias sociais e a Internet, como se procurou demonstrar, não estão imunes à autonomização intencional do meio digital, o que as deixa suscetíveis às diversas malícias e intenções humanas e não humanas.
Com a missão inicial de conectar pessoas, hoje as mídias sociais também agem como catalisadoras de desavenças pessoais e rupturas sociais, ao se transformares em pseudoarenas de combate político. Não por acaso Haidt e Rose-Stockwell (2019) evocam a característica evolutiva e imperativa da geração de atratividade ante o outro como fator decisivo na crescente animosidade digital. O status gerado com a atuação na rede, status este corroborado por curtidas e compartilhamentos, agravam e incentivam a presença da emotividade e da pessoalidade na rede. Por não encontrarem barreiras naturais na realidade impalpável da Internet, como as idealizadas por Madison no projeto de sua República, a emotividade e a pessoalidade não se fazem conter na Grande Rede Mundial (World Wide Web).
Não por acaso, alguns dos movimentos políticos da contemporaneidade expressam exatamente este fator emotivo que é percebido no bojo do discurso da pós-verdade. O “neopopulismo” carismático se utiliza da carência de mediação do recente e em desenvolvimento ambiente virtual para se comunicar diretamente com a população por meio de portais eletrônicos pouco confiáveis e redes sociais, muitas vezes pregando discursos de ódio e intolerância (SCHWARCZ, 2019, p. 63). Já que os canais políticos institucionalizados e comunicativos tradicionais sofrem com o que se denominou “crise de legitimidade”, o meio digital surge como alternativa natural (ou artificial) para este tipo de atuação, inclusive porque muitos dos representantes do neopopulismo não ocupavam papéis de relevo nestes mesmos canais institucionalizados e tradicionais.
Obviamente, adentrar a discussão sobre a contenção dos discursos de ódio suscitará a confrontação de direitos, pois limitar em certa medida a forma de expressão é o único caminho para delimitar o campo de atuação da informação, de modo que se logre traçar uma linha segura entre ela e a desinformação. É certo, portanto, que caberá aos agentes políticos a aos juristas, bem como aos agentes do campo da tecnologia informática, moldar as regras de convivência virtual do agora e do futuro.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Internet foi um marco tecnológico impressionante sob o aspecto da comunicação. O processo de aproximação causado pela diminuição das distâncias relativas representou um passo largo rumo à globalização, que já há algum se preludiava.
Entretanto, há de se reter atenção ao fato de todo fenômeno novo normalmente demonstrar muitos dos seus efeitos somente a posteriori. No que se refere à Internet, é relevante o fato de ela ter aproximado muitos dos separados por grandes distâncias, mas também afastado muitos antes considerados “vizinhos”. Enquanto a política participativa, porém local, da Ágora parece vencida, a promoção adulatória e narcisista ecoa nas vozes daqueles que estão em campanha permanente no ambiente virtual (CASTELLS, 2018, p. 57). Fomentados por grandes conglomerados econômicos e grupos de interesse, um sem-fim de bots percorre velozmente o entrelaçado digital recém-criado e ainda exposto, auxiliando o processo massivo de manipulação promovido nas redes, o que gerou pouco além de ódio e polarização nos últimos anos.
No que diz respeito à sociedade e ao direito, a Internet foi de tal forma impactante que não se pode ainda (se é que um dia poder-se-á) quantificar o impacto atual, muito menos mensurar o futuro. Contudo, seria ingênuo imaginar que tais fenômenos sociais não seriam ainda mais modificados por uma rede intangível, onipresente, por ora quase que em todo desregulamentada e ocupada por atores que se movem por interesses próprios. Tanto a sociedade como o direito ainda estão em processo de adaptação à nova realidade trazida pelo mundo digital, o que, como é de se esperar, demanda tempo, apresenta inúmeras variáveis e traz, igualmente, muitas possibilidades.
A defasagem temporal da lei é de conhecimento antigo e cristalino dos juristas, e isto se dá por ela não ser hábil o bastante a fim de acompanhar, o que dirá prever, as mudanças ocorrentes e recorrentes como resultado das formas as quais os indivíduos se relacionam. A mutabilidade, inclusive, é um dos elementos caracterizadores do chamado “direito positivo”, já que a sua moldagem depende do potestas populus, ou poder do povo, que não se expressa de forma estável no tempo (BOBBIO, 2006, p. 22). Ocorre que o hiperdinamismo introduzido pela Internet não mais comportará tal discrepância, que se agravará ainda mais, entre o suposto ato protetivo do “Soberano” e o ato disruptivo oriundo de fora, neste caso do ambiente virtual, sob o risco de o primeiro perder a sua faculdade modeladora para o segundo.
Finalmente, há de se mencionar a Lei Federal Nº 12.965/2014, conhecida como “Marco Civil da Internet”, cujo objetivo precípuo é oferecer princípios, direitos e garantias aplicáveis ao uso da Internet. Trata-se de uma legislação muito festejada pelos especialistas do ramo, trazendo em seu bojo três ideias essenciais: (i) a neutralidade da rede, (ii) a liberdade de expressão; e (iii) a privacidade dos usuários (NORTHFLEET, 2020). Sem dúvidas, neutralidade, liberdade e privacidade são potências inafastáveis da utilização da Internet, e a busca pela devida proteção desses valores relacionados diretamente à cidadania deve ser permanente e constante. Mas, os três elementos citados, os quais de fato são necessários no trato com a Internet, são também, paralelamente, três potências utilizadas em favor da disseminação em massa de notícias falsas, sendo possível concluir que, decerto, o “Marco Civil da Internet”, ainda que necessário, não será o bastante para prover um ambiente virtual seguro e justo, portanto ético. O que realmente é certo é a necessidade da atuação da academia para que dali venham as respostas às novas realidades e necessidades que surgirão.
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Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Pós-graduando em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Pós-graduado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV Rio). Bacharel em Turismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Advogado. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Diogo Luiz Teixeira dos. Sociedade fake: a ética do real e os desafios do mundo digital Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2021, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57901/sociedade-fake-a-tica-do-real-e-os-desafios-do-mundo-digital. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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