LUDMILA GOMES DINIZ[1]
(coautora)
EDUARDO RODRIGUES DE MELO SOUSA[2]
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho visa examinar o regime de condomínio da multipropriedade, também conhecida como time-sharing, em especial os aspectos gerais advindos da Lei nº 13.777, de 20 de dezembro de 2018, que incluiu os artigos 1.358-B ao 1.358-U no Código Civil Brasileiro, modificando também a Lei de Registros Públicos. A motivação deste trabalho é a comprovação do exercício da função social através da multipropriedade, esclarecendo a modalidade de condomínio de fração de tempo imobiliário, bem como as características e natureza jurídica. Durante a pesquisa deste tema, iremos apresentar e compreender o conceito e características da multipropriedade, propriedade, direito real e de suas limitações. Do mesmo modo, será abordado sobre a função social de ambos os institutos, para melhor entendimento do tema. Para o trabalho, a metodologia utilizada foi pesquisa subsidiada em doutrinas, artigos científicos, trabalhos acadêmicos, jurisprudências, legislações vigentes e livros de renomados autores, para melhor compreensão e aplicabilidade do preceito constitucional da função social da multipropriedade.
Palavras-chaves: propriedade; multipropriedade; time-sharing; código civil; função social.
ABSTRACT: This paper aims to examine the multi-ownership condominium regime, also known as time-sharing, in particular the general aspects of Law No. 13,777, of December 20, 2018, which included articles 1,358-B to 1,358-U in the Brazilian Civil Code, also modifying the Public Records Law. This papers’s goal is the proof of exercise of the social function through the multi-ownership, enlightening the type of real estate condominium time fraction, as well as the characteristics and legal nature. While researching this topic, we will present and understand the concept and characteristics of timeshares, property, real rights and their limitations. Likewise, the social function of both institutes will be addressed, for a better understanding of the subject. The methodology is based on subsidized doctrines research, scientific articles, academic papers, jurisprudence and current legislations and well renowned authors publications, for a better understanding and applicability of the constitutional precept of the social function of multi-ownership.
Keywords: real estate; property; multi-ownership; timeshares; time-sharing; civil code; social function.
1 INTRODUÇÃO
No presente trabalho serão estudados de forma geral os aspectos da propriedade e sua definição, esclarecendo seus poderes e suas restrições, formas de aquisição e perda, demonstrando a mudança de direito absolutista da propriedade antiga e sua concepção moderna de funcionalidade social.
A Lei nº 13.777, de 20 de dezembro de 2018, incluiu dispositivos na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o Código Civil e à Lei 6.015 de 31 de dezembro de 1973, a Lei de Registros Públicos, implementando o instituto da multipropriedade.
É certo que o direito à propriedade é resguardado pela Constituição, advindo de constituições passadas com longo caminho histórico até os tempos atuais. Tal direito era exercido no passado sem nenhuma restrição, ou seja, o proprietário se valia do bem conforme seu dito agrado. Atualmente, referindo-se como direito fundamental, à propriedade encontra-se enraizada na Constituição da República de 1988, está positivada também no Código Civil de 2002, que, apesar de não conceituar o instituto, define os poderes e as faculdades inerentes ao proprietário.
Porém, o direito à propriedade não é exercido como antes. Os poderes reconhecidos pela Lei, esbarram nos critérios estabelecidos pela norma constitucional, que restringe ao proprietário o uso das suas atribuições. Podemos identificar como maior fator de limitação ao livre uso da propriedade à função social, abarcada pelo artigo 5º, XXIII, da Carta Magna (BRASIL, 1988).
Assim, questiona-se: a multipropriedade, sendo um desdobramento da propriedade, conforme demonstraremos neste artigo, atenderia aos mesmos requisitos constitucionais de função social? De que forma? Este é o objeto central que será discutido em nosso trabalho, que analisará a propriedade e a multipropriedade sob o viés constitucional da função social e sua execução.
Como bem ensina Venosa (2021, p. 156), ainda que devam ser resguardados os direitos do proprietário, toda propriedade, necessita cumprir com a sua função social.
Torna-se necessário para melhor compreensão da função social, esclarecermos o que seria a propriedade do bem imóvel, que se relaciona ao tema deste trabalho.
Tem-se a propriedade como um dos direitos fundamentais e básicos do homem, assim como a vida, liberdade, igualdade e segurança, garantidos constitucionalmente segundo o artigo 5º, caput, da Constituição da República de 1988, bem como os incisos XXII e XXIII que, de forma moderna traz a interpretação da propriedade, sendo sua essência sempre atrelada a função social:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes.
(...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
Infelizmente, o legislador, no Código Civil de 2002, deixou de conceituar o instituto, restringindo-se apenas à definição dos elementos que irão compor a propriedade, chamados poderes ou faculdades. Tal ausência é criticada pela doutrina no sentido de que ocorre uma limitação ao potencial da propriedade nas formas de atuação do instituto pelas pessoas, uma vez que, por ausência refere-se mais às ações que constituem a propriedade do que seu elemento essencial, que poderia explorar seu uso de forma mais ampla.
Neste sentido, demonstra a crítica de Farias e Rosenvald (2010):
No Código Civil em vigor, o art. 1.228 reproduz a ideia mestra da propriedade. Endossamos a crítica formulada por Luiz Roldão de Freitas no sentido de o Código Civil de 2002 - a exemplo do BGB - ter mais uma vez emitido o conceito de propriedade, pois, ao enumerar as faculdades essenciais que integram o domínio - uso, fruição, e disposição da coisa -, a lei guiou-se menos por um viés científico do que por um singelo critério descritivo da propriedade, através de seus poderes. Isto conduz a soluções pouco exatas, pois aprisionam o direito de propriedade a um tipo de propriedade. De fato, este modelo estático impede que a funcionalização do direito de propriedade possa alcançar as inúmeras manifestações proprietárias que surgem das múltiplas formas de atuação das pessoas sobre as coisas. (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 167)
Desta forma, frente a complexidade da conceituação do instituto, podemos entender por propriedade a concentração de atribuições reunidas na pessoa que detém o domínio sobre a coisa.
Também explicam Farias e Rosenvald (2010):
A propriedade é um direito complexo, que se instrumentaliza pelo domínio, possibilitando ao seu titular o exercício de um feixe de atributos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto. (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 168)
Isto posto, podemos identificar na propriedade a submissão da coisa em relação ao proprietário, como define Venosa (2021, p. 160) “[...] o direito de propriedade é o direito mais amplo da pessoa em relação à coisa. Esta fica submetida à senhoria do titular, do dominus, do proprietário [...]”.
Nesta mesma linha temos o conceito de propriedade feita por Gomes (2012):
Sua conceituação pode ser feita à luz de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo, com Windscheid, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei. (RA) À luz do refinamento técnico adotado na parte final do art. 1.228,1 o novo Código Civil acrescentou o detentor como destinatário possível da reivindicação, ao lado do possuidor injusto. Um apuro técnico que já se verificava na doutrina e na prática forense (RA). (ORLANDO GOMES, 2012, p. 103).
Destarte, da caracterização da propriedade como direito real, segundo descreve o art. 1.225, inciso I, do Código Civil (BRASIL, 2002). Importante ressaltarmos as características que se baseiam a propriedade, sendo elas o direito absoluto; a perpetuidade; a exclusividade e a elasticidade.
O direito absoluto está envolto na capacidade do proprietário em definir sua forma de uso ou até mesmo seu não uso, sua capacidade em dispor da maneira que lhe convir, ainda pelo entendimento de que a propriedade enquanto direito real é oponível a todos (erga omnes), devendo terceiros respeitar a relação da coisa com o proprietário. Entretanto, esta característica encontra-se cada vez mais mitigada em virtude da interpretação conforme a Constituição, dada a propriedade como função social.
A perpetuidade se dá pela continuidade da propriedade, não se perde nem se extingue mesmo em frente ao tempo, perdura até mesmo além da pessoa do proprietário, sendo passível de sucessão, segundo Gomes (2012, p. 104), “[...] significa-se que tem duração ilimitada”. Lado outro, poderá decair a perpetuidade da propriedade diante da utilização por terceiro, como por exemplo a usucapião.
A exclusividade pode ser entendida como o poder que detém o proprietário de utilizar-se de forma exclusiva do seu bem, impedindo que terceiros o façam. Também explica Gomes (2012, p. 104), “[...] consiste no poder de proibir que terceiros exerçam sobre a coisa qualquer senhorio”. Por esse motivo, diz-se que é um direito exclusivo.
A elasticidade da propriedade condiz na faculdade do proprietário do fracionamento dos poderes inerentes à propriedade, logo, será elastecida a propriedade plena (usar, gozar, dispor e reaver), quando não se reunir sob o proprietário todas as faculdades referidas, por exemplo, a instituição de usufruto a terceiro ou até mesmo a constituição de hipoteca ou penhor sobre a coisa, como esclarece Venosa (2021, p. 164), “Esses direitos restringem o âmbito do direito de propriedade. Quando desaparecem, a propriedade volta a ser plena”.
2.2 Poderes inerentes à Propriedade
Conforme dito o Código Civil em vigor, em seu artigo 1.228, caput, define os direitos inerentes à propriedade, quais sejam ao proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha (BRASIL, 2002).
2.2.1 Usar ou utilizar (jus utendi)
O direito de uso consiste na faculdade atribuída ao proprietário, de servir-se da coisa como bem entender e de acordo com a sua necessidade, dando a ela a sua destinação econômica sem alterar sua substância, e o não uso permanece a coisa em seu poder e à sua disposição. Bem salientado por Venosa (2021, p. 161) “Usa de seu terreno o proprietário que o mantém cercado sem qualquer utilização”, ou seja, a coisa continua servindo o seu titular quando lhe é conveniente, podendo excluir terceiros de igual uso.
2.2.2 Gozar ou usufruir (jus fruendi)
O direito de fruição é a faculdade do proprietário de perceber os frutos (naturais, industriais ou civis) ou explorar economicamente da coisa ou de seus produtos, como por exemplo o dono de uma fazenda de plantação de café, que vende a sua produção e se beneficia dos lucros, ou do proprietário que vai morar fora e aluga seu imóvel para um receber o aluguel.
2.2.3 Dispor (jus abutendi ou jus disponendi)
A faculdade de dispor é o elemento constitutivo do direito de propriedade mais abrangente, exercido pelo proprietário permitindo-o dispor do seu bem, aliená-lo a título oneroso (venda) ou gratuito (doação), dividindo ou gravando de ônus real (penhora, hipoteca, etc.).
Ressalta-se que, neste caso temos exemplo de que a função social da propriedade está sendo amplamente utilizada, quando o proprietário encontra-se instituindo ônus reais sobre o bem, desdobrando a posse por vários institutos reconhecidos pela sociedade, a condição de dispor é permitida apenas ao proprietário do bem, como explica Venosa (2021):
A faculdade de dispor envolve o poder de consumir o bem, alterar-lhe sua substância, aliená-lo ou gravá-lo. É o poder mais abrangente, pois quem pode dispor da coisa dela também pode usar e gozar. Tal faculdade caracteriza efetivamente o direito de propriedade, pois o poder de usar e gozar pode ser atribuído a quem não seja proprietário. O poder de dispor somente o proprietário o possui. (VENOSA, 2021, p. 161)
2.2.4 Reivindicar (rei vindicatio)
O direito de reivindicar exterioriza-se na faculdade do proprietário reaver o bem de quem injustamente o detenha ou possua, protegendo a sua propriedade contra o possuidor injusto em virtude do seu direito de sequela, que é exercido por meio de Ação Reivindicatória.
Neste sentido, demonstra Farias e Rosenvald (2010):
[...] a pretensão reivindicatória emerge da lesão ao direito subjetivo de propriedade e traduz o conteúdo jurídico do direito subjetivo. Ou seja, reivindicar consiste justamente na possibilidade de o proprietário sancionar aquele que possui injustificadamente a coisa, por ter violado o dever genérico de abstenção, prestação negativa que serve de objeto à relação jurídica com a coletividade. (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 169)
2.3 Formas de Aquisição da Propriedade de Bem Imóvel
O Código Civil de 2002, sabiamente não elencou de forma consolidada as hipóteses de aquisição de propriedade, como foi feito no código anterior. Isto porque, são inúmeras as formas de aquisição disponíveis no arcabouço jurídico brasileiro.
Contudo, iremos nos conter as formas mais comuns e corriqueiras de aquisição de domínio do bem imóvel, que podem ocorrer por atos inter vivos, a título singular, transmitindo o bem de forma onerosa, como por exemplo a compra e venda. Outra forma seria a permuta, que consiste na troca de um bem por outro e, eventual quantia de complemento caso necessário. Nas transmissões de forma gratuita como exemplo a doação, que é um ato de liberalidade onde proprietário doa o bem a outra pessoa.
A legislação brasileira define que estas transmissões ocorrem pelo registro do negócio jurídico no Cartório de Registro de Imóveis competente, conforme os artigos 1.227 e 1.245, do Código Civil, (BRASIL, 2002), In verbis:
Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
Existe também a forma de transmissão por mortis causa, que em geral são feitas a título universal, onde transmite-se uma universalidade de bens, contendo todos os direitos reais e obrigações.
Toda matéria relativa a atos constitutivos, modificativos ou extintivos de direitos reais e outros ligados a bens imóveis é regulada também pela Lei 6015/73, (BRASIL, 1973), que traz as formalidades e obrigatoriedades dos Registros Públicos, que define em seu artigo nº 167, suas atribuições para o registro das relações jurídicas.
Cuida-se, da aplicação do mesmo pensamento sistêmico descrito nas formas de aquisição da propriedade, uma vez que, assim como inúmeras são as formas de aquisição em si, inúmeras serão as formas de perda da propriedade, sendo desnecessária sua explanação em rol descritivo. Sendo as formas mais comuns de perda da propriedade, as descritas no art. 1.275, do Código Civil, (BRASIL, 2002). Vejamos:
Art. 1.275. Além das causas consideradas neste Código, perde-se a propriedade:
I - por alienação;
II - pela renúncia;
III - por abandono;
IV - por perecimento da coisa;
V - por desapropriação.
Parágrafo único. Nos casos dos incisos I e II, os efeitos da perda da propriedade imóvel serão subordinados ao registro do título transmissivo ou do ato renunciativo no Registro de Imóveis.
2.5 Função social da propriedade
Ao longo do tempo, o modelo de propriedade sofreu diversas modificações até perfazer a ideia atual de propriedade que temos hoje. Diferentemente da visão antiga, tinha-se uma propriedade absoluta, onde a autonomia privada não sofria restrições nem tinha uma finalidade senão a de satisfazer aquele que detinha seu domínio.
Todavia, com a evolução do pensamento jurídico, pautado nos princípios basilares da Constituição da República vigente, como o da dignidade da pessoa humana, os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, dentre outros, (BRASIL, 1988), a propriedade passa ser vista com uma nova roupagem, como aquela que necessita cumprir uma função de primazia na sociedade, que abrange sua utilidade a todos, um interesse maior do que o direito individual em si, que socorria apenas aquele dono da coisa.
Fazendo uma breve disposição histórica, Farias e Rosenvald (2010), apresentam, em sua obra, a síntese feita por Eros Roberto Grau, sobre o tema:
Eros Roberto Grau sintetiza com maestria, o escorço evolutivo da propriedade absoluta para a propriedade-função: “a revanche da Grécia sobre Roma, da Filosofia sobre o Direito: a concepção romana que justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade de patrimônio), sucumbe diante da concepção aristotélica, que a justifica por seu fim, seus serviços sua função. (GRAU apud FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 197)
Evidentemente, esta nova concepção foi suplantada ao longo do tempo, e consequentemente, para que seja aferida real eficácia, restou à necessidade de criação de mecanismos que limitassem a autonomia da propriedade privada, priorizando o interesse coletivo, o bem-estar comum, o equilíbrio social e econômico, o acesso à propriedade pela sociedade, de forma a ultrapassar o interesse individual.
Estes mecanismos atuam sobre as faculdades da propriedade, Venosa (2021, p. 162), bem explica que “O direito de propriedade é absoluto dentro do âmbito resguardado pelo ordenamento”. Contudo, o direito de propriedade terá que ser feito dentro dos limites legais, respeitando sua finalidade, ou seja, o bem-estar social, socioambiental, preservando o meio ambiente e atendendo o que preconiza a função social da propriedade, não podendo o seu titular utilizar-se da coisa meramente por disputa, além disso são vedados o abuso e a má utilização do bem, não podendo destrui-la gratuitamente.
A utilização fora dos limites legais constitui exercício irregular do direito, caracterizando abuso de direito, conforme expresso no artigo 187, do Código Civil “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002).
Em sua obra Venosa (2021, p. 164), demonstra exemplos de outras restrições legais impostas pelo legislador: o direito de vizinhança, o usucapião, a servidão, o tombamento, a desapropriação, o perecimento e as paisagens naturais e outros. Há também as restrições de ordem militar, que em casos de urgência e defesa nacional o bem pode ser requisitado às forças armadas, e a requisição do imóvel em períodos eleitorais para sediar as eleições, a propriedade também pode sofrer restrições voluntárias, ou seja, aquelas instituídas não pelo Estado e sim pelo particular, quais sejam: a inalienabilidade, a impenhorabilidade e a incomunicabilidade em doações e testamentos.
Todos estes exemplos são utilizados para ressaltar o caráter não absoluto da propriedade moderna e a supremacia do princípio da função social que atua como pilar de todos os atos destinados a regular o exercício da propriedade como função, resguardada na Carta Magna sob o artigo 5º, XXIII, também sob o artigo 170, III, que trata da relevância de ordem econômica. Ela também faz uma dicotomia em referenciar os aspectos da função social no imóvel urbano e rural, sob os artigos art. 182 e art. 186. O princípio também reflete na lei infraconstitucional, no artigo 1.228, §1º, do Código Civil, In verbis:
Art. 1.228 [..]
§1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (BRASIL, 2002)
Por fim, o princípio da função social preconiza a interpretação para além de cunho restritivo descrito pela doutrina como repressivos, e sim sob uma mentalidade de incentivo às novas ideias de exercício da propriedade, assim descritas anteriormente. Vejamos a definição feita por Norberto Bobbio sobre a visão da função social, Farias e Rosenvald (2010):
Norberto Bobbio enfrenta a função social pelo viés da passagem do direito repressivo para o direito promocional. Enquanto o direito repressivo procurava sancionar negativamente todo aquele que praticasse uma conduta contrária aos interesses coletivos, o Estado promocional pretende incentivar todas as condutas que sejam coletivamente úteis, mediante a imposição de sanções positivas, capazes de estimular uma atividade, uma obrigação de fazer. (BOBBIO apud FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 199)
3.1 Definição de multipropriedade
A Lei nº 13.777, de 20 de dezembro de 2018, instituiu na legislação brasileira a multipropriedade, um regime de condomínio diferenciado, que possibilita a utilização de um único bem imóvel por vários condôminos.
Também conhecida como time-sharing, a multipropriedade é conceituada no art. 1.358-C, do Código Civil, In verbis:
Art. 1.358-C. Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.
Na doutrina, o conceito de Farias e Rosenvald (2010):
[...] na multipropriedade incide uma pluralidade de direitos de igual conteúdo sobre um mesmo imóvel, sendo certo que o direito de fruição será exercitado de forma exclusiva e periódica, na forma estabelecida ao tempo da aquisição. A periodicidade é o traço essencial que confere particularidade a esta propriedade, limitando o seu aproveitamento a intervalos regulares e descontínuos, com início e fim predeterminados. (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 178)
Também discorre sobre o conceito do instituto Venosa (2021)
Multipropriedade de forma genérica é a relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua. (VENOSA, 2021, p. 366).:
3.2 Aparato histórico da multipropriedade
A doutrina, de forma geral, aponta o nascimento da multipropriedade na Europa, sendo o instituto decorrente de um movimento estratégico econômico com objetivo de auxiliar na reestruturação dos países que se encontravam em um cenário monetário defasado, após a Segunda Guerra Mundial, como nos demonstra Saraiva (2013).
Rodrigues (2010) relata o pontapé inicial na França e Suíça, em meados dos anos sessenta (séc. XX). Segundo Saraiva (2013), vislumbraram no turismo um grande potencial para mobilização de capital nos países, implementando assim a multipropriedade, uma nova forma do exercício da propriedade que possibilitou a junção daqueles que detinham a propriedade em locais estratégicos para o turismo, como donos de hotéis, prédios e agências e aqueles particulares proprietários de imóveis, que não utilizavam o bem durante todo o tempo, ou não possuíam recursos para a sua manutenção e conservação, exercerem a propriedade diferentemente do convencional, fracionando-a com outros condôminos, permitindo sua utilização, de forma exclusiva, por um lapso temporal específico, tanto para auferir lucro, quanto para lazer.
Após o surgimento na Europa o modelo de utilização da propriedade ganha força e se espalha por vários países com nomenclaturas diferentes, porém, com o mesmo intuito, nos explica Venosa (2021):
O sistema utilizado para os imóveis é conhecido como time-sharing nos países de língua inglesa, multipropriedade na França, na Espanha e na Itália, nesta também como proprietà spazio-temporale; como direito real de habitação periódica, em Portugal. A doutrina argentina refere-se à propriedade de tempo compartilhado. (VENOSA, 2021, p. 366)
No Brasil, o início da multipropriedade deu-se por grande interesse de parte da população de classe média e baixa que, necessitava por um lugar de lazer com a família, sendo de costume em temporadas de férias e pausas no labor a busca por lugares diferentes do habitat de costume, como uma casa de verão na praia e sítios.
Diante desta necessidade, assim como na Europa, teve início uma tentativa de proporcionar àqueles que não possuíam condições financeiras suficientes para comprar ou manter um imóvel destinado ao lazer a capacidade de obter uma fração de tempo deste imóvel, é o que diz Venosa (2021):
O fenômeno social nasceu da procura da classe média por uma residência de férias na praia ou na montanha. Os empresários optaram por um sistema que facilitasse o acesso a essa segunda propriedade a grupo social ao qual não convém ou não pode manter vários imóveis concomitantemente. Busca-se com o time-sharing a democratização do imóvel de férias. A possibilidade se estende tanto a unidades em apartamentos, como em imóveis como construções térreas, casas, em vilas, fazendas ou assemelhados. (VENOSA, 2021, p. 367)
Destarte, a referida Lei nº13.777, de 20 de dezembro de 2018, incluiu os artigos 1.358-B ao 1.358-U no Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, modificando também a Lei de Registros Públicos nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973, nos seus artigos 176, incluindo nº6, no inciso II do §1º, e parágrafos 10, 11 e 12, e artigo 178, incluiu o inciso III.
Vale ressaltar que após positivação da referida lei, a doutrina pacificou o entendimento, com relação à natureza jurídica da multipropriedade, sendo está um direito real, afirmado por Venosa (2021, p. 367): “Trata-se, portanto, de mais um direito real limitado, assim reconhecido por lei”.
Também afirmam Farias e Rosenvald (2017, p. 280) “A multipropriedade imobiliária é direito real. Alguns poderiam insinuar que a legislação é silente neste particular. Porém, sabemos que o atributo da taxatividade os direitos reais não lhes inserem na redoma da tipicidade”.
O mesmo pensamento já vinha sendo disseminado pelo Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial (REsp) 1546165/SP, reiterou como direito real a multipropriedade, sem nenhuma ofensa ao rol do artigo 1.225, do CC/02 (BRASIL, 2002), que elenca os direitos reais.
Importante ressaltarmos algumas características que se baseiam a multipropriedade e que se diferenciam de outras formas de condomínio:
a) Não se extinguirá se todas as ações forem do mesmo titular, não está sujeito a ação de divisão ou extinção de condomínio;
b) O multiproprietário possui a faculdade de usar e gozar com exclusividade da totalidade do imóvel, de suas instalações, mobiliários e equipamentos em seu período de tempo correspondente a sua fração;
c) O imóvel instituído de multipropriedade é indivisível;
d) O interessado poderá adquirir a multipropriedade, sendo o período mínimo 7 (sete) dias indivisíveis, anualmente de tal período, que pode ser seguido ou intercalado, fixo e determinado, ou flutuante, ou misto, podendo usar, gozar, dispor e reaver da multipropriedade;
e) Poderá adquirir ao seu critério frações maiores que a quantidade mínima exigida, sendo preservado a isonomia de direitos;
f) A multipropriedade se estabelece por ato entre vivos ou por testamento, com registro imobiliário;
g) O condomínio de multipropriedade possuirá instituição e convenção de condomínio própria e poderá integrar condomínio edilício e podem também coexistir em regime misto, parte multipropriedade, parte edilício;
h) o titular pode ceder sua fração por locação ou comodato;
i) A transferência da multipropriedade prescinde de anuência ou cientificação dos demais proprietários.
Com relação às demais regras existe ainda um grande campo onde paira um abismo legislativo com referência aos direitos e deveres dos condôminos. Contudo, grande parte das nuances serão tratadas de formas analógicas e supletivas aos demais regramentos condominiais já existentes, como a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 e também o Código de Defesa do Consumidor Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Como bem explica Venosa, (2021):
É evidente que sua proximidade analógica permitirá o emprego de certos conceitos, como, por exemplo, o dever do condômino de concorrer na proporção de sua fração ideal no rateio das despesas. O mesmo se diga a respeito dos deveres e direitos emanados da convenção e do regulamento ou regimento interno do empreendimento.
[...] Muitas das disposições que estarão presentes na convenção e regulamento são semelhantes às do condomínio edilício. Em nosso Código Civil Interpretado descemos a minúcias mais amplas. (VENOSA, 2021, p. 370)
3.4 Função social da multipropriedade
Sendo a multipropriedade um desdobramento da propriedade, esta deverá atender a função social, aludida no artigo 5º, inciso XXIII da Constituição da República.
A multipropriedade pode inclusive ser facilmente traduzida como fruto do pensamento sistêmico de função social, seguindo pela própria definição do instituto que traz em seu conceito ideias de compartilhamento, de coletividade, acessibilidade, capacidade de melhor aproveitamento econômico de um único bem, que se comparado ao modo de definição antiga e absoluta de propriedade mostra-se categoricamente inversa, sendo evidente sua função social.
Ainda que a inserção da lei no ordenamento jurídico brasileiro tenha sido de forma lenta, com a sua promulgação ocasionou-se maior expansão do negócio e desenvolvimento do mercado imobiliário no Brasil.
A utilização de forma alternada do imóvel por vários multiproprietários, possibilita acesso para outras camadas sociais que antes eram impossibilitadas de adquirir devido aos elevados preços e despesas com manutenção e impostos, sendo claro o alcance de sua função social.
Também afirma o status social da multipropriedade os estudos de Rodrigues e Marques (2010):
A multipropriedade chega para acelerar e aumentar esta mesma conquista da função social do imóvel, adicionando-lhe a questão do tempo compartilhado em turnos, satisfazendo e proporcionando um número maior de proprietários do mesmo solo ou imóvel. Isto significa um efeito multiplicador no que concerne ao bem estar, desenvolvimento, justiça social e valorização do trabalho. Sociabiliza-se, assim, o imóvel com muitos proprietários utilizando a mesma base material em variados turnos de tempo. (RODRIGUES; MARQUES, 2010, p. 420).
Neste contexto, podemos identificar outras formas de utilização da multipropriedade, como por exemplo o sistema pool de locação da multipropriedade, é a possibilidade de o multiproprietário disponibilizar sua semana a um operador hoteleiro, ou ao administrador do condomínio que irá convertê-las em diárias para venda.
Outro exemplo seria a intercambiadora de férias, que consiste na entrega da sua semana (fração de tempo) em troca do uso em outro imóvel de sua rede credenciada da intercambiadora, desta forma o multiproprietário não necessariamente se prende no mesmo local.
O impacto do instituto no mercado imobiliário e suas possibilidades, é outro exemplo de alcance da função social assim como explica TEPEDINO (2021):
A nova lei regula, de forma minuciosa, os variados aspectos jurídicos do empreendimento, compatibilizando os interesses dos multiproprietários e do condomínio. Desse modo, trouxe a segurança jurídica necessária para a expansão desse importante produto imobiliário, abrindo a oportunidade para um novo ciclo de desenvolvimento do setor de imóveis para férias. (TEPEDINO, 2021, p. 272)
Conseguinte, podemos identificar a genialidade do instituto da multipropriedade, sendo inúmeras as formas de alcance da função social, tendo em vista a elasticidade do instituto em propiciar a liberdade patrimonial sob viés de exploração econômica e acesso à coletividade que refletem em muitos benefícios para a sociedade.
Conforme vimos, a função social da propriedade condiz na relevância social que aquele bem possui, se a propriedade sobre o bem está sendo exercida e como decorrência deste exercício está sendo atribuído uma finalidade, está atinge a função social.
Verificamos em nossa pesquisa que, assim como em seu surgimento, a multipropriedade veio para atender uma necessidade social, incentivando o mercado imobiliário, turístico e hoteleiro, aumentando a rotatividade no uso do imóvel.
Neste mesmo pensamento enaltece Ferrari (2019):
Em especial, a multipropriedade imobiliária desempenha sua função social e econômica na medida em que promove a ocupação mais racionalizada do imóvel, aquecendo a economia local e contribuindo diretamente para a geração de empregos e a criação de riqueza. (FERRARI, 2019)
Conclui-se que o uso, de forma contínua e fracionada, dos imóveis em condomínio de multipropriedade permite, além do acesso à moradia e lazer, o proveito econômico do bem e a movimentação de capital, gera o desenvolvimento do comércio regional, que por consequência alavanca o crescimento da economia, o que eleva empregos e reduz a desigualdade, assim a implementação da multipropriedade no ordenamento jurídico brasileiro permitiu o alcance da função social através da destinação socioeconômica moderna.
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[1] Estudante de Direito do Centro Universitário UNA - [email protected]
[2] Advogado. Mestrando em Direito nas Relações Econômicas e Sociais pela Faculdade Milton Campos, Nova Lima (MG), Brasil. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Faculdade Pitágoras, Belo Horizonte (MG), Brasil. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima (MG), Brasil. Professor do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário UNA, Belo Horizonte (MG), Brasil. Professor do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu da Escola Superior de Advocacia OAB/MG, Belo Horizonte (MG), Brasil. Professor em cursos preparatórios - [email protected].
Graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Una- Aimorés/MG; Auxiliar de Cartório II, no cartório 1º Oficio de Registro de Imóveis de Belo Horizonte.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEITE, Jefferson Coutrin de Jesus. O instituto da multipropriedade e sua função social: existem meios para se alcançar função social no instituto da multipropriedade? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 dez 2021, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57911/o-instituto-da-multipropriedade-e-sua-funo-social-existem-meios-para-se-alcanar-funo-social-no-instituto-da-multipropriedade. Acesso em: 22 nov 2024.
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