RESUMO: A transexualidade é a incompatibilidade entre a consciência e o aspecto físico da pessoa e essa condição tem sido um desafio para o Direito e seus operadores, pelo fato de não haver uma legislação específica que ampare direitos – tais como a alteração de gênero e nome civil nas certidões de nascimento - que se devem a singularidade desta condição. Atualmente, o que se tem é um esforço interpretativo do princípio da dignidade humana e o direito da personalidade, no qual há uma espécie de filtragem constitucional das normas legais. Nesse sentido, o presente trabalho visa discutir a respeito da importância do Provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) n° 73/2018 e da ADI nº 4.275/2018, que possibilitaram que a alteração de gênero não tivesse mais como exigência a cirurgia de redesignação sexual imposta, uma vez que a ADI nº 4275/2018 decidiu que a imposição de tal cirurgia se mostra contrária ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que a cirurgia de resignação sexual apresenta riscos a vida dos indivíduos que a realizam, sendo uma intervenção invasiva e desnecessária ao entendimento da pessoa como transexual – ou seja, de gênero diferente da designação sexual a qual nasceu.
Palavras-Chave: Direito Constitucional; Prenome; Gênero; Transexualidade; Alteração de nome.
ABSTRACT: Transsexuality is the incompatibility between the conscience and the physical aspect of the person and this condition has been a challenge for the Law and its operators, because there is no specific legislation that supports rights - such as the change of gender and civil name in birth certificates - which are due to the uniqueness of this condition. Currently, there is an effort to interpret the principle of human dignity and the right to personality, in which there is a kind of constitutional filtering of legal norms. In this sense, this paper aims to discuss the importance of the Provision of the National Council of Justice (CNJ) No. 73/2018 and ADI No. 4.275/2018, which made it possible for the gender change to no longer have as a requirement the surgery of sexual reassignment imposed, since ADI No. 4275/2018 decided that the imposition of such surgery is contrary to the principle of the dignity of the human person, since the sexual resignation surgery poses risks to the lives of individuals who undergo it, being an invasive and unnecessary intervention to the understanding of the person as a transsexual – that is, of a gender different from the sexual designation to which they were born.
Keywods: Constitutional right; First name; Gender; Transsexuality; Name change.
INTRODUÇÃO
O nome civil da pessoa é o sinal de individualização mais visível no meio social. É a partir dele que o seu detentor pode ser identificado no âmbito familiar e social, podendo também distinguir-se das demais pessoas
Assim, o registro de nascimento é muito importante para que o indivíduo possa exercer sua cidadania: é através dele que se origina todos os outros documentos, uma vez que ele deve conter informações relevantes tais como o nome, a data de nascimento, o sexo e a filiação.
Nesse sentido, o nome é fundamental para que a pessoa se identifique em seu convívio familiar e na sociedade em geral e é utilizado com diversos sentidos, qual seja: nome completo (prenome e o sobrenome), nome próprio (prenome, nome de batismo, primeiro nome), nome de família (sobrenome, patronímico ou apelido de família).
No Registro Civil das Pessoas Naturais são assentadas as informações acerca do estado individual do registrado, como a anotação de matrimônio, de óbito e as devidas averbações: de emancipação, divórcio, reconhecimento de paternidade, alteração de patronímico materno, alteração de prenome e gênero e retificações em geral.
A Lei n° 6.015 de 31/12/1973 de Registros Públicos ensina que o prenome só pode ser alterado quando expuser ao ridículo o seu portador, sendo admitida à alteração somente a pedido do interessado, contanto que não prejudique o sobrenome da família.
Outra objeção que impede a mudança do nome decorre da vedação do art. 1.604 do Código Civil: “Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”. Esse é o fundamento que leva o Poder Judiciário, muito frequentemente, a indeferir o pedido de retificação
Desta forma, o presente trabalho visa discutir a respeito das alterações concretizadas pela ADI nº 4.275/2018 e pelo Provimento do CNJ nº 73/2018, que fizeram com que, entre outras alterações, fosse desnecessária a cirurgia de redesignação sexual para a alteração de nome e gênero na certidão de nascimento do interessado.
1 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL A DIVERSIDADE NO BRASIL: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PROTEÇÃO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DAS PESSOAS TRANSEXUAIS
Como vimos, o nome civil da pessoa é o sinal de individualização mais visível no meio social e é a partir dele que o seu detentor pode ser identificado no âmbito familiar e social, podendo também distinguir-se das demais pessoas, uma vez que um dos objetivos para sua criação e manutenção dentro da sociedade é, além de seu valor cultural ao ser humano, também, o de determinar direitos e obrigações para os indivíduos.
Segundo Araújo (2017), o nome civil tem entre suas características a indisponibilidade, inalienabilidade, intransmissibilidade, irrenunciabilidade e outros:
Como direito da personalidade, o nome é indisponível, inalienável, intransmissível, irrenunciável, extrapatrimonial, geral, absoluto e imprescritível. Sua importância conferiu-lhe características próprias, como a regra da imutabilidade do nome civil, nos termos do artigo 58 da Lei n. 6.015/73. Apesar de pautar-se na segurança jurídica, essa regra acaba dificultando, muitas vezes, o desempenho do seu papel primordial de individualizar o ser e fazer com que ele se identifique na sociedade em face da segurança jurídica.
Em razão disto, o nome ganha especial importância na ordem jurídica, pois constitui uma marca exterior, o que facilita a aplicação da lei no que tange o reconhecimento de direitos e obrigações às pessoas, devendo, portanto, receber especial proteção do Estado, uma vez que sem a utilização de nome civil seria muito difícil distinguir pessoas e atribuir a alguém um benefício ou encargo, por exemplo.
Ocorre que, até então, discutiu-se a respeito do nome civil de maneira geral, sem se importar com a diversidade de grupos sociais existentes, como é o caso das pessoas transexuais.
Segundo Pacheco e Pacheco (2016, p. 207), as pessoas trans foram um dos grupos sociais excluídos e marginalizados no decorrer da criação do Estado brasileiro. Essa realidade, no entanto, está mudando, uma vez que atualmente estes grupos buscam seu reconhecimento e a promoção de diretos negados historicamente a estes grupos:
Sabemos que os grupos sociais que foram excluídos e marginalizados ao longo da construção do Estado brasileiro, demandam hoje, por novos espaços. E, entender a dinâmica de articulações, redes e encontros nacionais que estes grupos promovem e participam é uma forma de registro de suas estratégias de troca de informações e experiências de politização localizadas, fomentando a emergência de novos grupos e segmentos.2
Durante toda a história humana, verifica-se a existência de cidadãos e cidadãs que não correspondem ao papel social que lhes foi atribuído. Dentre as diversas formas de "transgressão", é nítida e polêmica aquela que diz respeito à identidade de gênero e orientação sexual.
Importa salientar que, atualmente, não existe lei no Brasil que trate especificamente da alteração do nome e do sexo do transexual no Registro Civil, tendo ou não havido a cirurgia de transgenitalização.
O que ocorria com essas pessoas, até antes do julgamento da ADI n. 4275/2018 e da instituição do Provimento CNJ 73/2018, era a exigência da realização de uma cirurgia conhecida como transgenitalização para a mudança de tais dados no Registro Civil de pessoas transexuais, o que se demonstrava uma afronta ao direito de integridade corporal destes indivíduos.
Apesar da inexistência de norma legal, a busca pela justiça é algo muito almejado na sociedade brasileira. Tanto o é que, em inexistindo norma específica sobre determinado assunto, é autorizada a utilização dos princípios fundamentais do direito e trata-se de previsão legal contida no Código de Processo Civil brasileiro:
Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá a analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (BRASIL, 2002, p 106).
Os seres humanos não nascem todos iguais, como que vindos de uma “forma”. Existem pessoas que sempre apresentaram características opostas ao seu sexo biológico e que, nesse sentido, sempre se sentiram desconfortáveis e diferentes desde crianças.
Tal situação singular poderia causar constrangimentos e inseguranças na pessoa transexual, que tem a possibilidade de sofrer severas consequências no decorrer de sua vida em decorrência dos traumas gerados por este desconforto, que começa pelo seu nome.
Segundo Pacheco e Pacheco (2016, p. 210), há uma violência simbólica vivida pelas pessoas transexuais, uma vez que seus traumas advém a partir de um processo sustentado pelo reforço de pensamentos e predisposições alinhados às estruturas impostas, pensamentos estes que condenam aqueles que não se encaixam dentro do padrão estabelecido:
Segundo (Butler, 2010), devemos entender que existe uma matriz heterossexual que atua de forma compulsória, constituindo não somente o que é normal, mas também as identidades e as possibilidades de existência do que pode ser considerado anormal. Além disso, é importante considerar que o poder simbólico se materializa sobre os(as) sujeitos por meio de violência simbólica (Bourdieu, 1975; 2003).
Em relação à violência simbólica, vale ressaltar que esta se instaura por meio de um processo sustentado pela existência e pelo reforço de pensamentos e predisposições alinhados às estruturas impostas (Bourdieu, 1975; 1998; 2003).
Esse tema vêm à tona ao analisarmos os discursos de alguns(as) transexuais femininas e masculinos, os(as) mesmos(as) evidenciam que, apesar de se sentirem "diferente" desde cedo, não conseguiam romper com o modelo reprodutivo heterossexual, procurando na maioria das vezes, ajustarem-se as estruturas sociais da matriz heterossexual. Nesse sentido, a violência a que eram e são submetidos(as) é evidente.
A violência simbólica anteriormente referida pode ser evidenciada pelo fato de que, por muito tempo, a condição de pessoa transexual foi tida como uma espécie de doença mental. Esse discurso que considerava o gênero unicamente como consequência direta do sexo biológico do indivíduo tinha, por entre outros objetivos, a invalidação da luta por direitos das pessoas transexuais e sua marginalização.
Apesar disso, em que pese tratar-se de entendimento que se preocupa com aspectos inerentes a personalidade individual, não cremos que pessoa biologicamente normal e pertencente a um gênero sexual bem definido possa ser transportada para outro, com embasamento, único e exclusivo, em seus transtornos psíquicos (GARCIA, 2010, p. 196).
A afirmação sustentada faz com que repensemos a respeito da consideração da pessoa transexual como alguém que não se identifica com seu sexo biológico em razão de ter uma doença mental.
Entendimento diverso, em verdade, terminaria por fazer que o próprio Registro Civil fosse acometido dos mesmos males do termo “transexualismo”: retrataria o que sente, não o que é visto na realidade, o que certamente afrontaria a sua funcionalidade, conduzindo-o ao descrédito.
O Registro Civil seria, portanto, uma instituição transfóbica e excludente das diversidades presentes no país se não considerasse as realidades sociais presentes, como é o caso das pessoas trans, por exemplo.
Assim, o Provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) n° 73/2018 – que regulamentou a alteração do nome civil e do sexo no registro civil – demonstra sua importância, uma vez que na falta de uma legislação específica para a alteração de nome civil para a pessoa transexual, este provimento é utilizado como principal instrumento de levar a dignidade da pessoa humana a estas pessoas que sentem a incompatibilidade entre seu nome e quem são.
2 A POSSIBILIDADE DA ALTERAÇÃO DE PRENOME E GÊNERO NA CERTIDÃO DE NASCIMENTO: A CONQUISTA DE DIREITO SUBJETIVO E SEUS DESAFIOS A PESSOAS TRANSEXUAIS
A alteração de prenome e gênero na certidão de nascimento nem sempre foi realidade fácil, principalmente em se tratando das pessoas transsexuais. É que havia possibilidades limitadas para que essa alteração de nome pudesse ocorrer, principalmente em razão da importância do nome civil no meio jurídico, que serve para inúmeros propósitos, tais como a concessão de direitos e instauração de obrigações.
Segundo Hatje, Ribeiro e Magalhães (2019, p.123), as reivindicações de direitos das pessoas trans estão cada vez mais em evidência dentro da sociedade, e esse debate começa a partir da concessão de direitos da personalidade, como o debate a respeito do nome civil:
As reivindicações dos sujeitos transgêneros são cada vez mais frequentes em diferentes instâncias sociais e têm impulsionado o debate acerca das demandas dos indivíduos que constroem seus gêneros em oposição às expectativas sociais sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. Nesse sentido, um dos assuntos que têm ganhado visibilidade são as demandas dos sujeitos transgêneros ao poder Judiciário
É necessário destacar que o Código Civil de 2002 nada fala a respeito da possibilidade de alteração de nome civil, sendo essa tarefa de encargo da lei n. 6015/73, também conhecida como Lei de Registros Públicos.
Apesar de não falar a respeito da possibilidade de mudança de nome civil, o art. 16 do Código Civil, ao tratar dos Direitos da Personalidade, afirma que: “Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.
Nesse sentido, para Cunha (2018), o nome civil da pessoa é direito subjetivo que carrega a função de distinção dos indivíduos e a atribuição de direitos e deveres. Dessa maneira, é de extrema importância para a sociedade atual que cada pessoa possua nome civil:
O nome civil da pessoa natural é mais do que simples denominação, é de extrema relevância na vida social, por ser um direito subjetivo da personalidade e também de interesse da coletividade, já que carrega a função de distinguir os indivíduos e atribuir-lhes corretamente direitos e deveres, o que torna o nome obrigatório e regrado
Apesar de ser de extrema importância, Brito (2003, p. 3) entende que o nome civil pode perder sua função precípua no decorrer da vida de alguém, uma vez que este pode deixar de identificar alguém por vários motivos:
O prenome e o nome podem, no decorrer da vida, deixar de identificar a pessoa que o possui ou as famílias às quais pertence, ou pior, podem, nunca ter identificado aquelas, sofrendo alterações de fato que geram o direito de modificá-los, e é esta a diretriz do estudo desenvolvido neste trabalho: demonstrar os possíveis e previsíveis casos de mudança do prenome ou do nome e como processar judicialmente este direito de alteração no registro público.
O caso das pessoas transsexuais é exatamente este: como a pessoa não se identifica com seu nome de batismo, uma vez que ao decorrer de sua vida percebe que se sente “aprisionada” em um corpo físico que difere da maneira que ela entende e se porta socialmente, seu nome civil acaba por perder sua função precípua, causando constrangimentos em situações que exijam que haja apresentação de documentos originais de identidade.
Essas situações são corriqueiras, uma vez que a apresentação de documentos originais de identificação são requeridas na entrada de alguns estabelecimentos – como é o caso de bares, por exemplo – e para exercer direitos inerentes a sua cidadania, como ocorre nos casos do direito a voto e a buscar outros documentos em repartições públicas.
Antes da possibilidade de alteração do nome civil sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização, Hatje, Ribeiro e Magalhães (2019, p. 128) ensinam que a inovação brasileira da carteira com o nome social da pessoa transgênero possibilitou uma maior concessão de dignidade a estas pessoas, haja vista que sua utilização diminuiu o constrangimento sofrido por estas pessoas:
A carteira de nome social para pessoas transgêneras é uma inovação brasileira que possibilitou a utilização do nome pelo qual a pessoa quer ser identificada na sociedade, uma vez que o nome de registro não confira com a sua identidade de gênero e possa implicar constrangimento (BENTO, 2014). Quanto a isto, cabe explicar que o nome social é o nome pelo qual os sujeitos transgêneros optam por serem chamados em diferentes espaços sociais, em contraste com o nome nos registros oficiais que não refletem a sua identidade de gênero.
Assim, o direito brasileiro permite que haja alteração de prenome e do gênero na certidão de nascimento, que atualmente não precisa mais passar por um processo de judicialização para que ocorra.
Trata-se de uma vitória, uma vez que o processo de judicialização, como se sabe, é influenciado pela morosidade presente dentro do Poder Judiciário em razão da alta quantidade de processos – realidade esta já sabida pela população brasileira.
Esta realidade, no entanto, não é muito antiga: começou a ser mudada a partir do Provimento 73/2018 e da ADI 4275/2018, que provocaram enormes alterações na maneira que as alterações de prenome e gênero ocorriam até então.
Nesse sentido, cabe a discussão a respeito dos impactos do Provimento do Conselho Nacional De Justiça (CNJ) n° 73/2018 e da ADI nº 4.275/2018 na alteração do registro civil de pessoas transexuais, ao facilitar o acesso ao direito fundamental do nome civil, o Estado brasileiro concede a estas pessoas o respeito a direitos a todos concedidos, tendo como um dos fundamentos para esta concessão o princípio da dignidade da pessoa humana.
3 IMPACTOS DO PROVIMENTO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ) N° 73/2018 E DA ADI Nº 4.275/2018 NA ALTERAÇÃO DO REGISTRO CIVIL DE PESSOAS TRANSEXUAIS
A transexualidade é a incompatibilidade entre a consciência e o aspecto físico da pessoa, e isso tem sido um desafio pelo fato de não haver uma legislação específica. Atualmente, o que existe é um esforço interpretativo do princípio da dignidade humana e seus impactos nos direitos da personalidade, no qual há uma espécie de filtragem constitucional das normas legais.
Segundo Arán, Murta e Lionço (2009), o conceito de separação dos sexos foi imposto como ideia absoluta a partir do século 17, uma vez que as condições jurídicas impostas aos indivíduos e outros fatores fizeram com que houvesse a restrição da livre escolha dos indivíduos incertos, conforme se verifica atualmente:
Antigamente, convivíamos mais livremente com a possibilidade da mistura dos sexos. Somente a partir do século XVII é que as teorias biológicas da sexualidade e as condições jurídicas impostas aos indivíduos conduziram pouco a pouco à refutação da idéia da mistura de dois sexos em um só corpo e restringiram a livre escolha dos indivíduos incertos. Assim, o dispositivo da sexualidade instaurou a necessidade de saber, através da medicina, qual o sexo determinado pela natureza e, por consequência, aquele que a justiça exige e reconhece. Ser sexuado é estar submetido a um conjunto de regulações sociais, as quais constituem uma norma que, ao mesmo tempo em que norteia uma inteligibilidade e uma coerência entre sexo, gênero, prazeres e desejos, funciona como um princípio hermenêutico de auto-interpretação. Neste sentido, o verdadeiro sexo é o efeito da naturalização de uma norma materializada
Tal linha de pensamento continuou sendo enraizada dentro da cultura mundial, até que após vários debates públicos, passeatas e outros atos de militância da comunidade LGBT, a ideia de transexualidade como doença foi se desconstruindo aos poucos.
Uma das maiores revoluções nesse sentido foi a ocorrida no dia 08 de junho de 2018, data em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) deixou de considerar a transexualidade como uma patologia.
A desconsideração da transexualidade como patologia é um grande avanço, uma vez que antes a transexualidade era considerada como uma doença de acordo com a CID-11 (Classificação Internacional de Doenças) e houve, então, o desuso do termo taxativo “transexualismo”. Ainda assim, não são todos os países que têm uma cultura de respeito a estes indivíduos, sendo esta construída aos poucos com a ajuda do Estado e da própria sociedade civil.
No Brasil, a transexualidade e a maneira que esta é encarada pela população – que marginaliza os indivíduos transexuais - demonstra que se fazem necessárias políticas públicas que valorizem a saúde e a inclusão da pessoa transexual no Brasil, tendo em vista que há muito preconceito por parte dos padrões religiosos e da sociedade em que o indivíduo está inserido.
Conforme o art. 5º, da CF/88: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade”.
Tais direitos são básicos aos direitos humanos, direitos esses muito importantes na medida em que viabilizam uma convivência harmônica, pacífica e produtiva entre os indivíduos de uma coletividade.
Verifica-se que o respeito a estes direitos é essencial à formação de um Estado Democrático de Direito, uma vez que o Estado que nega tais direitos basilares dá causa a revoluções, guerras e revoltas, sendo o reconhecimento de tais direitos instrumentos indispensáveis à proteção da dignidade da pessoa humana.
Atualmente já é possível solicitar a mudança de prenome e gênero em cartório de registro civil, mediante ao oficial ou seus prepostos, sem a necessidade da cirurgia de mudança de sexo, não sendo necessário também a decisão judicial ou laudos médicos e psicológicos autorizando o ato.
Segundo Veloso, Soares e Jesus (2018), a imposição ao indivíduo transexual de uma cirurgia de resignação sexual é uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que a liberdade de escolher o que quer fazer ou não com seu corpo não deve ser punida pelo direito:
Impor ao indivíduo tal procedimento mostra-se contrária aos princípios constitucionais, especificamente, a dignidade da pessoa humana. Nos dizeres do ministro Fachin (2014), “o direito ao próprio corpo deve ser tomado em uma ampla acepção, de modo que envolve tantas ações quanto omissões, ou melhor dizendo, trata-se de poder fazer ou deixar de fazer algo com o próprio corpo, sem que haja qualquer punição pela escolha deliberada”.
Para Rotondano, Souza e Armentano (2021), a “(...) cirurgia de redesignação sexual se caracteriza como um procedimento demorado e delicado, que invariavelmente não se coloca como possibilidade que está prontamente à disposição da pessoa transgênera”.
Veloso, Soares e Jesus (2018) concluem que a autonomia privada do indivíduo transexual deve ser respeitada e, dessa maneira, a autodeterminação de seu corpo persiste, apesar da realização ou não da cirurgia de redesignação sexual:
Nesse sentido é restrito a autonomia privada do indivíduo transexual a autodeterminação sobre a disposição do seu corpo no que concerne a realização ou não da cirurgia. Nas palavras do supracitado jurista (2014), configura constrangimento a exigibilidade da cirurgia de redesignação e uso de medicamentos para que se reconheça um direito acolhido como próprio da personalidade.
Segundo Veloso, Soares e Jesus (2018), a doutrina entende que a imposição de referida cirurgia é inconstitucional, uma vez que fere o princípio da dignidade da pessoa humana. Esta imposição significaria agredir os corpos das pessoas transexuais que não aceitam se submeter a esta cirurgia, violando seu direito de integridade corporal para que possa ter um Direito da Personalidade a ele garantido:
Ainda na explanação do ministro Fachin (2014), esse preleciona:
“Compete atinar que a cirurgia de redesignação sexual, como toda e qualquer cirurgia, apresenta inegáveis riscos aos indivíduos, além de, por si só, ser uma cirurgia demasiadamente agressiva e invasiva. (…) Não parece adequado, dentro do ponto de vista constitucional da dignidade da pessoa humana, tornar a cirurgia condição sinequa non para a mudança de nome e sexo, pois, se assim fosse, de algum modo o sujeito sofreria uma violação a um direito. Se não aceitar realizar a cirurgia terá seu direito ao nome e identidade negados, se fizer a cirurgia para que então possa ter reconhecido seu direito ao nome e sexo, terá seu direito ao corpo agredido. Uma análise sistemática da Constituição de 1988 dá conta de demonstrar que esse escambo entre direitos não parece ser a tônica que o constituinte pretendeu dar a lei fundamental. A Constituição de 1988 surgiu como uma luz ao final de um sombrio túnel; sua essência está na garantia de todos os direitos previstos em seu texto, de modo que se faz inadmissível impor a uma parcela da sociedade que tenham que fazer uma opção entre direitos fundamentais”. (FACHIN, 2014, pág. 60)
O reflexo dessa discussão ocorreu na supracitada Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, ajuizada pela Procuradoria Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal, julgou procedente a ação para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei nº 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018)
Nesse sentido, cabe analisarmos os impactos decorrentes da imposição da ADI 4275/2018 e do Provimento CNJ 72/2018. A ementa do inteiro teor do acórdão proferido na decisão da ADI 4275/2018 traz que a pessoa transgênero tem direito a seu reconhecimento de personalidade jurídica, a liberdade, honra e dignidade, sendo esta expressa, principalmente, pelo reconhecimento da identidade de gênero.
Assim, basta a pessoa transexual comprovar sua identidade de gênero dissonante da designada ao nascer para que seja possível a alteração de dados constantes no Registro Civil, quais sejam, seu nome e gênero:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADI 4275 / DF DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada procedente.
O Provimento n. 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça, no mesmo sentido, dispõe que será possível a alteração de prenome e gênero na certidão de nascimento, por meio da inteligência de seu artigo 2º e seguintes: “Art. 2º Toda pessoa maior de 18 anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A transexualidade é a incompatibilidade entre a consciência e o aspecto físico da pessoa e essa condição tem sido um desafio para o Direito e seus operadores, pelo fato de não haver uma legislação específica que ampare direitos – tais como a alteração de gênero e nome civil nas certidões de nascimento - que se devem a singularidade desta condição.
Considerando a falta de legislação específica para estes indivíduos, o presente trabalho teve por objetivo a discussão a respeito das alterações concretizadas pela ADI nº 4.275/2018 e pelo Provimento do CNJ nº 73/2018, que fizeram com que, entre outras alterações, fosse desnecessária a cirurgia de redesignação sexual para a alteração de nome e gênero na certidão de nascimento do interessado.
Verificou-se que, devido a uma ausência de normativa legal, as pessoas transexuais eram, por muitos anos, obrigadas a se submeter a cirurgia de redesignação sexual e este procedimento era imprescindível para que pudessem obter a alteração de seus nomes, prenomes e gênero em Registro Civil.
Essa exigência, por obvio, fazia com que aqueles que não aceitavam se submeter a essa cirurgia ou ao tratamento com hormônios passassem constrangimentos devido ao nome e sexo em seus documentos, que não condiziam com a realidade daquela pessoa, uma vez que esta já é conhecida por um nome diferente do que consta em seus documentos.
Como recurso paliativo, a utilização de carteira com o nome social da pessoa transgênero possibilitou uma maior concessão de dignidade a estas pessoas, haja vista que sua utilização diminuiu o constrangimento sofrido por estas pessoas. Esse recurso, no entanto, não foi suficiente para o regular exercício de direitos dos indivíduos transgêneros, que precisavam de uma opção que os concedesse maior segurança jurídica.
Assim, apesar de inexistir norma legal a respeito da necessidade ou não de certos requisitos como a realização de cirurgia para alteração de nome e gênero em seu Registro Civil, a ADI nº 4.275/2018 trouxe a decisão de que estes requisitos não mais seriam necessários a alteração dos dados acima referidos, levando em consideração o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ao retirar esta exigência.
Dessa maneira, como a jurisprudência também é considerada como uma das fontes do Direito, a ADI n. 4275/2018 pode viabilizar estas alterações, que junto ao julgamento da respectiva ação no Poder Judiciário, foi viabilizado pelo Provimento CNJ nº 73/2018.
Ante ao exposto, concluiu-se que a desnecessidade de imposição de cirurgia aos transgêneros – trazida a partir do julgamento da ADI n. 4275/2018 e da edição do Provimento CNJ nº 73/2018 – foi uma conquista necessária aos transgêneros, haja vista que tal cirurgia imposta poderia ter sérias complicações a saúde das pessoas as quais a ela são submetidas, tal como qualquer cirurgia.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DAKDOUK, Yasmin Rafic. O direito constitucional dos transgêneros: a mudança de prenome e gênero na certidão de nascimento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2021, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57929/o-direito-constitucional-dos-transgneros-a-mudana-de-prenome-e-gnero-na-certido-de-nascimento. Acesso em: 22 nov 2024.
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