Resumo: O presente artigo volta-se ao estudo da estruturação do Estado Federativo, mediante a compreensão e a identificação de seus principais elementos e de suas características constitutivas. Partindo de sua recomposição histórica, com especial destaque para a experiência norte-americana, buscar-se-á analisar a evolução desses elementos identificadores ao longo dos mais de duzentos anos de prática federativa, oportunidade em que também será destacada a maleabilidade e a flexibilidade que esses elementos podem emprestar à estrutura federativa. Será também conferida atenção especial à caracterização de uma possível tendência de centralização do exercício do poder político na figura de um dos entes que compõe a Federação e, por fim, analisada a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal na matéria correlata à delimitação do pacto federativo, se favorável a um exercício compartilhado e descentralizado das principais temáticas correlatas ao Estado Federal, ou se tendente à sua centralização na figura da União Federal.
Palavras-Chave: Federalismo; Evolução; Justiça Constitucional; Centralização.
Abstract: The article aims the study regarding the structure inherent to the Federative State, through the comprehension and identification of its constitutive characteristics. Starting from its historical reconstitution, with a special focus on the North American experience, an attempt will be made to analyze the evolution of such elements over the more than two hundred years of federative practice, as also the flexibility that these elements can lend to the federative structure. A special focus will be granted to the characterization of a possible – and eventual – tendency to centralize the exercise of the political power on a specific federative entity, together with the relevance granted to Constitutional Justice – in special Supreme Court – in delimiting the joint action among the entities and, thus, the very structuring of the federative model, either to a decentralized exercise of the main political themes, or if it tends to its centralization in the Federal Government.
Keywords: Federalism; Evolution; Constitutional Justice; Centralism.
Sumário: 1. Introdução – 2. Evolução do Estado Federal – 3. Federalismo e Centralização – 4. A Justiça Constitucional e a delimitação da estrutura federativa – 5. Considerações Finais – 6. Referências.
1 - Introdução
A análise do Federalismo, juntamente da formação do que se conveio em denominar por Estado Federal, representam, certamente, tema dos mais relevantes e envolventes nos estudos correlatos não apenas ao Direito Constitucional, mas à própria Ciência Política como um todo. Estudar e, de certa forma, dissecar o Federalismo e o Estado Federal é, antes de mais nada, observar e compreender um dos principais elementos que suportam e justificam a estruturação de diversos estados modernos, distribuídos ao redor dos cinco continentes do globo, submetidos a contextos históricos, laços culturais e linguísticos dos mais diversos, mas que compartilham entre si um objetivo comum: a necessidade de integrar as diversas entidades subnacionais que integram a respectiva estrutura federativa, permitindo um exercício compartilhado do poder político e, assim, uma certa descentralização quanto à tomada das decisões afeitas a cada uma dessas entidades, juntamente daquelas que guardem relação ao Estado Federal como um todo. Mais do que um questionamento sobre “o que se deve fazer?”, a indagação central que se impõe quando da opção pelo Federalismo, seguida da estruturação do Estado Federal em si, é “quem pode ou deve fazer o quê?” [1].
O vocábulo “certa” foi acima empregado não para fins de mera retórica, mas justamente para, de antemão, externar toda a dificuldade subjacente a esse processo de descentralização do poder ao longo de diversos níveis verticalmente apostos[2], dificuldades essas que acabam por resultar – ou, eventualmente, de justificar – uma das questões que aqui pretendem ser abordadas, representada pela temática da centralização do exercício do poder político em apenas uma das “ordens de poder” que compõe a estrutura federativa então adotada, centralização essa usualmente avocada pelo ente central (a “União”), em detrimento da participação dos demais centros de poder, os quais serão aqui referidos genericamente como entes federativos[3].
De fato, a implementação do Estado Federal representa matéria ínsita ao texto constitucional, nele ocupando papel de destaque, competindo-lhe o primoroso mister consistente na estruturação do modelo federativo proposto, mister esse efetivado mediante a delimitação da forma com que o poder político haverá de ser exercido, uma vez que, como é imanente à estrutura federativa, referido exercício é compartilhado por diferentes ordens, representadas pelos diversos entes que integram o Estado Federal então pretendido. É o que caracteriza a tão desejada descentralização, que tão bem caracteriza essa forma de estruturação do Estado. Precisamente neste aspecto é que reside a importância conferida à ideia de repartição de competências, por representar o mecanismo de que se vale a ordem constitucional para delimitar o âmbito de atuação afeito a cada uma das entidades componentes da Federação e, principalmente, para orientar a dinâmica correlata aos temas e matérias que a Constituição optou por conferir seu trato (seja a nível normativo, seja no âmbito exclusivamente material) conjuntamente a mais de um ente federativo, demandando, portanto, uma atuação conjunta e coordenada entre eles para a consecução da finalidade que lhes foi atribuída. A opção por um modelo que contemple um campo mais significativo de matérias atribuídas – seja de forma concorrente, como também em caráter exclusivo – aos diversos entes federativos, ou por uma estrutura que implique na reunião dos mais relevantes temas de cunho político e social no plexo de atribuições conferidas ao ente central, haverá de ser necessariamente promovida pelo texto constitucional, o que somente reforça e ressalta a importância inerente à figura da repartição de competências.
O destaque conferido pelo parágrafo anterior ao papel de relevo albergado pela Constituição em matéria de estruturação do modelo federativo – juntamente de seu mais fiel e expressivo corolário, a repartição de competências – pode, num primeiro momento, transmitir a ideia de que a redação dos dispositivos constitucionais responsáveis por elencar as atribuições conferidas – concorrente ou exclusivamente – aos entes federativos seriam, por si só, suficientes a elidir todo e qualquer problema ou até mesmo dificuldade na identificação do campo de atuação ínsito a cada ente federativo, o qual estaria estabelecido de forma rígida e insuscetível a maiores questionamentos. A realidade empírica, no entanto, parece externar uma conclusão diversa, evidenciando uma série de situações em que a mera leitura de tais dispositivos – especialmente quando lidos de forma conjunta e analítica – não fornece os subsídios necessários à identificação, clara e precisa, do(s) ente(s) competente(s) para apresentar(em) proposições legislativas sobre determinado tema, ou ainda para a execução de políticas públicas afeitas a uma dada matéria. Diante de cenários como tais, a Justiça Constitucional é convocada para exercer um papel não apenas de “simples” guardiã da Constituição, mas da própria estrutura federativa como um todo, reprimindo excessos e primando pelo respeito e pela manutenção do modelo proposto pelo Constituinte de 1988 (já assegurado logo no artigo 1º).
E é precisamente no exercício dessa primorosa atribuição que a prática acaba por revelar indícios de uma possível e deveras interessante conclusão: não obstante o cuidado do Constituinte em buscar delimitar, de forma clara e exaustiva, o campo de atuação aposto a cada um dos entes federativos – seja em caráter exclusivo, seja mediante participação conjunta e concorrente entre eles – a roupagem conferida à estrutura federativo, longe de ser estática e imutável, apresenta-se de forma dinâmica, permitindo determinados ajustes com relação ao modelo adotado. Dentre esses possíveis ajustes, destacam-se aqueles que se impõe sobre a própria dinâmica que rege a participação de diversos entes no exercício das atribuições constitucionais representativas do poder político, se propensa a preservar espaço para uma maior e mais efetiva atuação dos Estados (e, no modelo federativo Brasileiro, dos Municípios e do Distrito Federal) nos assuntos que sejam de seu interesse, ou se o trato correlato a essas matérias haverá de ser absorvido pelo ente central (a União). Conforme se buscará expor na sequência, referidos ajustes e, consequentemente, a escolha quanto ao modelo federativo a ser observado (se propenso a uma maior descentralização ou à reunião das principais temáticas na figura do ente central) representa mister assumido pela Justiça Constitucional, especialmente quando da análise dos denominados “conflitos federativos”.
Duas, portanto, são as questões de interesse que se pretende aqui desenvolver, as quais estão fortemente interligadas e associadas. A primeira deles consiste em uma tentativa de se atribuir uma resposta aos seguintes questionamentos: (i) haveria, de fato, um certo movimento ou uma espécie de tendência pela centralização do exercício do poder político na figura do ente nacional – no caso Brasileiro, na União – (ii) e, em havendo, poderia isso implicar em uma relativização ou até mesmo numa supressão do modelo federativo, ao menos quanto à forma com que hoje o concebemos?
Na sequência, o foco se volta à atividade desempenhada pela Justiça Constitucional quando da apreciação dos denominados conflitos federativos, assim compreendidos os casos cuja atuação jurisdicional reside na identificação empírica do(s) ente(s) competentes(s) para a edição de leis sobre um tema, ou para a execução de uma determinada política pública, juntamente da importância subjacente a essa atuação para fins de delimitar a estrutura federativa constitucionalmente proposta, capaz, por exemplo, de prestigiar um modelo de matiz descentralizado – conferindo um espaço de destaque à participação de todos os entes integrantes da Federação – ou “chancelando” a centralização do enfrentamento dos principais temas constitucionais na figura do ente central. O questionamento que será enfrentado quanto a esse tópico em específico pode ser assim sintetizado: qual o reflexo da atuação da Justiça Constitucional, quando da apreciação e do julgamento dos denominados conflitos federativos, na delimitação e na estruturação do modelo federativo?
2 – Evolução do Estado Federal
Uma abordagem analítica e histórica do Federalismo, seguida de sua evolução no quadro político moderno, tem sua importância e contribuição associadas à identificação da estrutura federativa de Estado como um importante passo na evolução da sociedade e de seus indivíduos. Isso se evidencia especialmente no que se refere às tratativas e aos desígnios correlatos ao poder político, representando uma tentativa válida – e comprovadamente eficaz - de estabelecer uma série de limites e de condições ao seu exercício, conferindo, assim, um importante e necessário alicerce à firmação da liberdade individual.
Imanente à ideia de Federalismo, portanto, é a ideia de descentralização, de compartilhamento do exercício do poder político e das questões e temáticas que lhes são afeitas. A afirmação acima proposta, no sentido de que o Federalismo representaria um marco expoente na evolução da configuração moderna do poder estatal, seria justificada na sua compreensão como elemento disruptivo de todo um histórico de concentração e abuso no seu exercício – o qual esteve fortemente presente, ao ponto de se impor como marco definidor, nos governos despóticos e no absolutismo monárquico – ao passo em que se apresentava, paralelamente, como uma alternativa “para o modelo de autoridade política centralizada, desenvolvido durante a Revolução Francesa”[4]. Paulo Bonavides, identifica no sistema federativo uma forma de combater uma indesejada concentração da autoridade, já que residiria em seu âmago a nota necessária da distribuição vertical de poderes, a qual complementaria aquela separação horizontal, já preconizada por Montesquieu[5]. Raul Machado Horta, por sua vez, extrai da forma federativa um “processo de renovação estrutural”, o qual seria imanente à ampliação do grau de descentralização e que conduziria àquilo que o mestre mineiro denominou por “descentralização regional”[6].
Paralelamente à primordial ideia de descentralização quanto ao exercício do poder político, reside no âmago da forma federativa uma segunda característica de igual relevância e destaque: o papel agregador conferido à forma federativa, que permite unir, sob um mesmo manto político, governativo e estrutural, indivíduos, povos e nações dotados dos mais diversos laços culturais e submetidos a contextos históricos dos mais plurais possíveis. De fato, a história demonstra que a forma federativa de Estado em muito contribuiu para a unificação, sob uma estrutura política comum, de povos heterogêneos quanto aos seus traços culturais, históricos e, até mesmo, linguístico, algo difícil de se conceber sob a égide dos antigos estados absolutistas e que, muitas vezes, contribuiu para seu enfraquecimento e posterior desvanecimento. Paulo Bonavides associa esse mérito federativo à própria fórmula vinculativa que caracteriza essa forma de Estado, em que os laços políticos são mais apertados, possuindo – em uma feliz expressão - maior força agregativa quanto aos vínculos que unem os povos que aderem à forma federativa, ainda que essas unidades aderentes se apresentem visivelmente desiguais quanto ao seu território, riqueza ou densidade populacional[7]. Fernanda Dias Menezes de Almeida, com esteio nos artigos federalistas de Alexander Hamilton e James Madison, vislumbra que a união jurídica e política dos distintos povos americanos representava uma preocupação ativa dos autores federalistas, os quais identificavam na fórmula federativa o mecanismo competente a possibilitar essa união e, assim, o alcance dos objetivos então por eles pretendidos (como, por exemplo, a defesa e a manutenção da integridade territorial, frente a possíveis investidas da antiga metrópole britânica), justamente pelo fato dessa nova fórmula conferir “maior força agregativa aos laços que uniam os povos da América”.[8]
Karl Loewenstein afirma que a unidade nacional é perseguida justamente com base na diversidade regional, diversidade essa que pode ser visualizada em diversos elementos (como, por exemplo, a comunidade de interesses políticos, econômicos ou estratégico-militares, tradição e aspirações comuns). Na sequência, e em referência expressa e nominal ao Brasil, destaca a extensão territorial também como um dos elementos a justificar a adoção da forma federativa de Estado[9]. Também orientando-se pelo histórico federativo Brasileiro, Pinto Ferreira reforça que nossa imensidão territorial representou critério elementar à adoção de uma forma de Estado que permitisse uma necessária descentralização de governo, de modo a primar pela integridade de cada uma das regiões, juntamente da manutenção da pluralidade das condições regionais[10].
Dessa breve contextualização dos elementos que permeiam o surgimento do Estado de Federal, pode-se observar que, na verdade, os dois pontos acima destacados complementam-se reciprocamente. É dizer, a existência de entes distintos entre si por laços históricos e culturais próprios, demanda a adoção de uma forma de Estado que compatibilize, em um só tom, sua união sob uma estrutura política comum – possibilitando a consecução das finalidades então pretendidas, como, por exemplo, a defesa e a integridade do território nacional – e a preservação, na medida do possível, das peculiaridades e dos diferentes vínculos agregativos que compõe, e tão bem particularizam, cada uma das entidades integrantes do Estado Federal, caracterizando, assim, uma certa diferença na unidade. Da mesma forma, essa reunião de diferentes entidades somente se perfectibiliza mediante a adoção de uma estrutura política que traga consigo o condão de descentralizar o exercício do poder político, compartilhando-o perante a totalidade dos entes que compõe a recém-formada Federação, ainda que de forma distinta entre cada um deles.
Esta distinção aposta ao processo de compartilhamento ou de repartição interna do exercício do poder político representa tema dos mais relevantes, cujo interesse extrapola qualquer cunho retórico ou meramente acadêmico, refletindo diretamente na dinâmica com que os Estados Federais exercitam, internamente, os poderes que foram constitucionalmente compartilhados entre as entidades que os integram. É de extrema relevância que essa repartição seja norteada pela observância das circunstâncias, peculiaridades e da própria realidade ínsita a cada uma das entidades que integram a estrutura federativa, as quais, conforme acima destacado, não necessariamente serão compartilhadas pelas demais entidades (ademais, pensa-se ser possível a enfática afirmação de que tais circunstâncias não são partilhadas pelos demais entes). Precisamente quanto a esse ponto que reside a distinção entre um denominado “federalismo simétrico”, no qual, em vista de uma certa homogeneidade de desenvolvimento e cultural entre os entes federativos, faz-se possível a sua idêntica representação na Federação e, de outro lado, um “federalismo assimétrico”, no qual, em sendo constatadas diferenças das mais diversas ordens entre os entes, impõe-se a implementação de regras de representação e de tratamento específicas para essas unidades distintas entre si, sendo que caberá “à Constituição estabelecer os limites dessa assimetria, que não deve significar preferência por uma entidade federativa ou superioridade em relação a outras componentes federativas”[11].
Expostos esses dois elementos essenciais à estruturação do Pacto Federativo – mais precisamente (i) uma necessária descentralização do poder político, de cujo exercício participam, ainda que de forma diferenciada, todos os entes que integram a Federação, juntamente (ii) do reconhecimento da força dos vínculos agregativos que caracterizam as diferentes unidades que integram o Estado Federal, juntamente do respeito a essas diferenças, a serem consideradas quando da delimitação do quinhão do poder a ser exercido por cada unidade integrante da Federação (representada por uma técnica de repartição de competências constitucionalmente delineada) – são válidos alguns comentários sobre a evolução do Estado Federal, seja quanto ao modelo utilizado por alguns Estados modernos, seja também quanto à dinâmica afeita à efetiva participação dos “atores federativos” nesse pretendido exercício compartilhado do poder político.
3 – Federalismo e Centralização
Como destacado inicialmente, o estudo do Federalismo compreende uma série infindável de temas e questões das mais relevantes, as quais em muito contribuem para denotar a própria concepção hoje proposta sobre a estruturação dos Estados modernos optantes pela sistemática federativa, juntamente da forma como a desejada – e celebrada – forma de exercício compartilhado do poder político vem se denotando no mundo empírico. A descentralização – que, como acima destacado, configura um relevante traço definidor desse mecanismo de estruturação do Estado, por refletir e respeitar as distintas características e peculiaridades presentes nas diversas unidades integrantes da Federação – continua sendo, de fato, uma constante no Federalismo moderno, ou a prática empírica externaria uma certa tendência para a centralização das principais questões constitucionais em apenas uma das esferas de poder, usualmente a esfera central?.[12]
Aqui novamente a experiência norte-americana em muito contribui para a firmação das balizas sobre as quais o tema haverá de ser desenvolvido. Não obstante a existência de experiências prévias que poderiam denotar, ainda que de forma indireta, a configuração de confederações e, assim, de estágio embrionário de formação federativa[13], o Estado Federal, da forma como atualmente concebido e analisado, tem sua matiz claramente estabelecida e firmada em solo estadunidense, mais especificamente no território da Filadélfia, onde, em 1787, uma convenção entre doze das treze antigas Colônias britânicas (por não ter se feito presente a antiga colônia de Rhode Island), seria responsável pela firmação dos alicerces necessários à implementação e estruturação do Estado Federal. A importância desse marcante momento da história política, social e constitucional, transcende a “simples” instituição do modelo federativo de Estado, para alcançar também a delimitação das condições e dos elementos que o suportam e lhe conferem a forma necessária à sua estruturação, especialmente a necessidade de o pacto federativo estar suportado e amparado em uma Constituição (que se impôs como resultado das discussões entabulados ao longo da Convenção de Filadélfia), responsável por designar a esfera de atuação atribuída a cada um dos entes, juntamente da dinâmica correlata a esse exercício conjunto do poder político[14], além de consagrar a indissolubilidade do vínculo então firmado.
A experiência federativa se inicia mediante a solução de um dos maiores empecilhos do modelo confederativo, representado pela manutenção do status soberano fruído por cada um dos “Estados Confederados”, que os munia da prerrogativa de imiscuir-se do cumprimento das disposições emanadas da autoridade confederada. A solução consistia, basicamente, na renúncia, por parte das antigas Colônias, da condição soberana por elas até então fruída – assim compreendida como a capacidade de autodeterminação plena e absoluta, que não reconhece limitação, seja a nível interno, seja internacionalmente – para assumirem uma posição de autonomia, muito bem definida pela pena de Fernanda Dias Menezes de Almeida como capacidade de autodeterminação, mas agora limitada a um círculo de competências definida pelo poder soberano, “que lhes garante auto-organização, autogoverno, autolegislação e autoadministração, exercitáveis sem subordinação hierárquica dos Poderes estaduais aos poderes da União”[15]. Daí o acerto da lição de Dalmo de Abreu Dallari, ao afirmar que a decisão pelo ingresso em uma estrutura federativa configura o exercício do último ato soberano pelo ente interessado[16]. A expressão é corretíssima, pois bem denota a natureza central dessa autonomia ínsita às unidades que compõe o Estado Federal, uma vez que toda a atuação de tais unidades – e, principalmente, os limites e condições que lhes são inerentes – passa a estar expressa e literalmente orientados pela Constituição Federal, que será o documento responsável por ditar não apenas as atribuições de cada unidade particularmente considerada, mas também a de todos as demais que passam a integrar a Federação, inclusive com relação às atribuições pertinentes à Federação como um todo.
Superados os entraves e as dificuldades que caracterizaram o modelo confederativo, a implementação do Estado Federal, por sua vez, ensejou o enfrentamento de uma série de novas questões. Talvez a principal delas consistira na viabilização desse exercício conjunto ou compartilhado do poder político por diversos entes. Como compatibilizar os interesses de entes que, até então, fruíam da mais ampla autodeterminação, ínsita à condição soberana, com a criação de um novo ente, responsável por aglutinar os interesses de todas essas entidades subnacionais? [17] É precisamente neste contexto que se observa o papel de destaque conferido à repartição constitucional de competências, como sendo representativa da indispensável estruturação da forma com que diferentes unidades partilharão do exercício do poder, seja com relação aos seus próprios e exclusivos misteres, seja com relação àqueles que guardem maior relação com o Estado como um todo. Não é por outra razão que Raul Machado Horta visualiza na repartição de competências a própria “coluna de sustentação de todo o edifício constitucional do Estado Federal”, já que nela residirá os ditames essenciais às regras de configuração de cada um dos entes federativos, além de indicar a área de atuação constitucional afeita a cada um deles, de modo que a decisão a respeito da repartição de competências se reveste do condão de condicionar a fisionomia do Estado Federal, determinando os graus de centralização e de descentralização do poder federal[18].
Este é tema dos mais relevantes, por revelar a importância albergada pelo Texto Constitucional em um Estado que se molda sob a forma federativa, verdadeiro instrumento competente e responsável pela estruturação do Estado Federal, do papel conferido a cada um dos entes que a integram – juntamente da forma com que esse papel será desempenhado, se de forma equânime ou conferindo maior destaque ou certa propensão a um ente em específico – além de orientar o fluxo ou a dinâmica com que diferentes entes partilharão do exercício do poder, especialmente sobre os temas mais caros ao Estado e aos seus nacionais. Do estudo do capítulo constitucional voltado à estruturação da forma de Estado federativa – principalmente aquele voltado à repartição das competências legislativas e administrativas – será possível extrair uma série de elementos que em muito contribuirão para a identificação do modelo federal que se espera implementar, o qual pode externar o interesse dos constituintes por um Estado com uma tendência centralizadora, mediante a alocação de diversas atribuições de relevo na figura da União, ou ainda uma propensão a um federalismo decentralizado, em que diversos entes albergam a capacidade legislativa ou executiva de temas tidos como relevantes no interior do Estado Federal.[19]
No contexto Norte-Americano, em que ainda era recente a experiência soberana de Estados independentes[20], a opção inicialmente veiculada pela Constituição de 1787 foi por um federalismo designado como “dual”, mediante o reconhecimento de dois níveis de poder, sem que haja qualquer predisposição hierárquica entre eles, mas sim campos específicos e previamente delimitados de atuação. Nessa nova formatação, a Constituição optou pelo elenco de todas as matérias que compunham o plexo de competências da União (“poderes enumerados”), reservando aos Estados-Membros os poderes não enumerados[21]. Nesse iter, questões de relevo, como aquelas atinentes aos poderes de tributar, contrair empréstimos, questões de política monetária, dentre outras, foram expressamente foram atribuídas à União (Art. I, Seção 8). Aliás, não apenas essas expressamente estabelecidas. Conforme firmado pela Suprema Corte no julgamento do conhecido caso “McCulloch v. Maryland”, de 1816, à União competiria não apenas os poderes a ela expressamente definidos pela Constituição, mas também todos aqueles necessários à consecução e efetiva concretização desses expressamente firmados.[22] Tem-se aqui formalizada a renomada “cláusula dos poderes implícitos”, a qual representou um preponderante reforço na atividade hermenêutica despendida pela Suprema Corte com o intuito de dilatar o campo de atuação do Governo Federal.[23]
Isso somente foi processado, contudo, em um segundo momento. A doutrina destaca que, no período compreendido entre as primeiras três décadas do século XX, o entendimento prevalecente na Suprema Corte privilegiava a autonomia estadual e a delimitação de competências proposta pela 10ª Emenda, havendo, inclusive, uma certa hostilidade para com as tentativas de regulação da economia e do comércio por parte do Governo Federal.[24]
O principal gatilho temporal responsável por apor uma nova interpretação ao modelo federativo Norte-Americano reside, precisamente, no pacote de medidas albergada no “New Deal”, implementadas pelo Governo Roosevelt entre os anos de 1933 e 1937. A flagrante necessidade de regulamentação de todo o sistema econômico passava, necessariamente, pelo fortalecimento do papel da União, ainda que em detrimento da considerável autonomia fruída pelos Estados ao longo desses quase 150 anos de vigência do Estado Federal. Neste instante, e sob a égide desse marcante contexto histórico, passa-se a identificar em território Estadunidense uma certa resistência para com a manutenção do sistema dual e, por conseguinte, a implementação de um novo modelo federativo, denominado “federalismo cooperativo”[25]. Sob essa sistemática cooperativa, a atuação dos entes federativos passa não mais a estar suportada (ou não mais suportada exclusivamente) em uma distinção estanque e pré-fixada da área de atuação ínsita a cada um deles. Pelo contrário, a definição das atribuições e das competências passa a ser ditada por uma aproximação (ainda que forçada) entre as unidades federativas, demandando, assim, uma cooperação entre elas. [26]
Referido modelo cooperativo de estruturação do Estado Federal é, certamente, marcado pelo reconhecimento de uma propensão quanto à atuação do Governo Federal nas questões de maior relevo nacional, ensejando, como consequência direta e imediata, uma certa preterição quanto à atuação dos demais entes federativos, que podem tanto ter seu campo de atribuições reduzido, como ter o exercício de algumas delas condicionado à regulamentação federal. Por esta característica em específico que Paulo Bonavides, na defesa de seu “federalismo das regiões”, visualiza na expressão “federalismo cooperativo” um eufemismo ingênuo, utilizado para dissimular o que autor defendia como “a morte do federalismo das autonomias estaduais”[27]. Ainda que não se reconheça uma efetiva “morte das autonomias estaduais”, a questão é que a implementação desse modelo federativo de matiz cooperativa implica, inevitavelmente, em erigir a União a um papel de destaque no exercício das competências que guardem relação direta com o Estado Federal, contribuindo, assim, para uma efetiva centralização (para não se usar a expressão concentração, a qual, a nosso ver, também não seria incorreta) do exercício do poder político, algo que, como destacado inicialmente, poderia colidir com um dos principais elementares e estruturantes do sistema federativo (a saber, a descentralização política).
Com efeito, seja mediante interpretação jurisdicional quanto aos termos em que firmado o pacto federativo (como se efetivou nos Estados Unidos da América), seja por força da forma com que a Constituição (inicialmente concebida, ou mediante alterações implementadas via processo de emenda constitucional) venha a disciplinar a estrutura federativa e, principalmente, a repartição das competências entre os entes que integram a Federação (como ocorre no contexto Brasileiro, conforme será adiante demonstrado), a questão reside na percepção que a realidade nos impõe sobre uma nova compreensão do Estado Federal, em que, diferentemente de sua concepção inicial, a centralização do poder político em apenas um de seus entes (usualmente o ente central), parece se impor como uma constante. Mesmo nos Estados Unidos, em que o próprio contexto que permeou a fundação do Estado Federal em muito pesava pela opção por um modelo federativo que primasse pelos interesses dos Estados (até então independentes e soberanos), o que se verificou na evolução empírica foi o prevalecimento por uma tendência de crescimento da autoridade federal, consubstanciada no acréscimo das competências da União. A questão, contudo, passa longe de ser uma exclusividade norte-americana.[28]
Diversas são as causas que justificam e que suportam essa tendência centralizadora[29], as quais podem compreender desde a impossibilidade de os entes federativos concretizarem os misteres que lhe foram constitucionalmente atribuídos – por exemplo, pela ausência de condições técnicas ou financeiras para tanto – ensejando a sua avocação pelo entende central, passando até mesmo por um certo “desinteresse” por parte de Estados (e, no caso Brasileiro, de Municípios), em exercer ativamente as competências a eles atribuídas pelos Constituintes, justificando e legitimando a atuação do ente nacional na consecução de tais competências. Essas hipóteses são reforçadas por uma flagrante perda de representatividade dos entes federativos no processo político nacional, especialmente força de uma “nacionalização”, não apenas dos partidos políticos, mas do próprio Senado Federal, que, em inobservância à própria causa quer sustenta sua implementação (reforçando aqui o papel de relevo que o sistema bicameral exerce no Federalismo, ainda que não constitutivo, haja vista a existência de diversos Estados Federais amparados, por exemplo, no regime unicameral), tem sua atuação claramente deslocado da defesa dos interesses dos Estados, para atuar como um simples ator político no quadro nacional (sendo, no caso Brasileiro, uma verdadeira extensão da Câmara dos Deputados). Essa perda de representatividade no processo legislativo é extremamente prejudicial aos Estados-membros, que deixam de contar com uma relevante instituto de defesa de seus interesses frente ao Governo Federal, inclusive para fins de intermediação de acordos políticos com a União.
A essas causas associadas diretamente a uma omissão ou impossibilidade de atuação pelas entidades subnacionais, outras hão de ser acrescidas, representativas de uma tendência – ou até mesmo de uma propensão – por um relevo na atuação da entidade central, como, por exemplo, a própria forma com que as competências legislativas e administrativas foram repartidas pela Constituição Federal, denotando a existência ou não de uma “preferência” por um ente em detrimento de outro.
A análise do contexto federativo brasileiro, estruturado após a promulgação da Constituição Federal de 1988, permite extrair a existência de determinadas características que evidenciam a existência de uma possível tendência centralizadora, seja com relação à representatividade dos Estados-membros no cenário político nacional[30], seja pela insuficiência de recursos suficientes a dar vazão aos misteres constitucionais que lhe foram designados – gerando uma efetiva dependência para com os repasses do Governo Federal (e também dos Governos Estaduais, no contexto específico dos Municípios), seja por força do próprio modelo de repartição de competências proposto pela ordem Constitucional.
O modelo de repartição constitucional de competências proposto pela Constituição Federal de 1988 é estruturado tanto sob um alicerce dual, uma vez que as competências dos entes federativos (inclusive dos Municípios, erigidos à condição de entes federativos autônomos) foram expressamente listadas[31] – havendo ainda a previsão da competências dos Estados-membros quanto às demais competências que “não lhes sejam vedados por esta Constituição” (art. 25, § 1º, C.F.) – como também mediante recurso à sistemática cooperativa, mediante a eleição de uma série de temas e de matérias cuja consecução – seja a nível executivo, seja mediante proposição legislativa – serão desenvolvidos conjuntamente pelos entes federativos, mediante cooperação recíproca.
De fato, o artigo 23 da Constituição Federal elenca uma série de tarefas (doze, mais especificamente) que, pela própria importância que albergam, deverão ser executadas conjuntamente por União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios. Trata-se das denominadas competências comuns, que exprimem muito mais valores e deveres materiais do que propriamente uma habilitação para o seu trato a nível normativo.[32]
O núcleo do modelo “cooperativo” do Federalismo Brasileiro está estruturado no artigo 24 da Constituição Federal, responsável pela definição das denominadas competências legislativas concorrentes, de modo que as matérias ali consignadas serão alcançadas pela atividade legiferante da União, do Distrito Federal e dos Estados-membros[33]. Impõe-se, contudo, a observância dos critérios aventados pelos parágrafos que integram a dicção do artigo 24, responsáveis por orientar e por definir os critérios relacionados a esse exercício compartilhado das competências ali estabelecidas.
O parágrafo 1º do precitado dispositivo prevê a competência da União para o estabelecimento de “normas gerais” sobre os temas elencados no rol do “caput”. Já o parágrafo 2º afirma que a competência da União para a definição das normas gerais não excluiria a competência suplementar[34] dos Estados-Membros, adequando o conteúdo das precitadas normas gerais de cunho federal à sua realidade e às suas especificidades sociais, políticas e econômicas. Por fim, o § 3º do dispositivo em referência prevê a denominada competência supletiva dos Estados, a qual compreende a habilitação para, diante da existência de lei geral editada pela União sobre matéria correlata aos temas listados no rol do “caput”, eles mesmos poderem vir a editar referida lei geral, apenas para fins de suportar a edição de sua lei particular, de modo que a superveniência da lei geral pela União sobre o tema, implicará na suspensão da eficácia daquela editada pelo Estado-membro, naquilo que lhe for contrária (§ 4º).
Não obstante o cuidado do Constituinte em estabelecer um modelo cooperativo que reunisse, a um só tempo, a habilitação das unidades da Federação para legislarem sobre temas caros e relevantes ao País como um todo, e o compartilhamento no exercício de tais atribuições, suportado em regras que se pretenderem claras e bem definidas, o modelo não é isento de questionamentos, podendo, a depender da forma como vir a ser interpretado, propiciar uma certa preferência à participação da União quanto ao exercício dessas competências concorrentes. E muito da existência ou não dessa preferência passa pela interpretação a ser aposta à expressão norma geral, especialmente aquela conduzida pelo Supremo Tribunal Federal quando do enfrentamento de questões que envolvam o denominado “condomínio legislativo”[35].
4 – A Justiça Constitucional e a delimitação da estrutura federativa
Conforme já destacado, um dos elementos essenciais à constituição do pacto federativo reside na implementação de um tribunal federal (ainda que não necessariamente estruturado sob a forma de Corte Constitucional), com competência constitucionalmente definida para a apreciação dos conflitos federativos, no fiel exercício daquilo que André Ramos Tavares denominou como função de “árbitro da federação”[36].
A existência de um órgão jurisdicional que reúna essa primordial atribuição de árbitro federativo se demonstra elementar não apenas para a resolução propriamente dita dos conflitos que envolvam, de alguma forma, disputas entre os entes que integram a Federação. Mais do que isso, a participação da Corte Suprema – representada, no contexto Brasileiro, pela figura do Supremo Tribunal Federal – em muito contribui para a própria delimitação da esfera de atuação atribuída a cada um dos entes, seja mediante a indicação das competências que lhes são próprias e particulares e, principalmente, daquelas em que a própria Constituição condicionou seu exercício à participação conjunta (ou concorrente) entre mais de um ente federativo. Assim, antes de se afirmar se a ordem constitucional conferiu maior prevalência à participação de um entre em detrimento da atuação dos demais – e, consequentemente, se esse modelo federativo mais se aproximaria de um pretenso “estado unitário descentralizado” – mister se impõe a análise da forma com que o pacto federativo é efetivamente analisado, interpretado e compreendido pela Justiça Constitucional nos conflitos que lhe são submetidos[37].
No contexto Brasileiro, a atuação do Supremo Tribunal Federal em matéria de delimitação da esfera de atuação dos entes federativos está em muito associada a uma questão em específico e que em muito contribuiu para ilustra a posição da Corte quanto à estruturação de nosso modelo federativo: a definição quanto ao conteúdo da “norma geral” a que se refere o parágrafo 1º do artigo 24. A importância subjacente ao tema reside no fato de que, em sendo sua elaboração atribuída à União Federal, restando aos Estados o exercício de sua competência complementar (ou supletiva, a depender da existência ou não de lei geral editada pela União), a extensão conferida à atividade legiferante compreendida no núcleo dessa “norma geral” ditará a participação dos entes na consecução da matéria nela veiculada. É dizer, a depender da amplitude de que dispõe a União no momento de edição da legislação geral – se deve ela se ater a veicular genericamente o tema proposto, fixando parâmetros e balizas básicas, já antevendo a futura normatização complementar pelos Estados ou, em outra mão, se pode exaurir o tema em referência, abordando-o em suas minúcias e, assim, restringindo em muito a atividade legislativa conferida aos Estados, no exercício de sua competência complementar – poder-se-á ter uma noção mais precisa quanto à forma com que estruturado o federalismo cooperativo brasileiro, se suportado em uma base descentralizada, mediante o respeito à participação dos Estados (e Municípios) na condução do processo político, ou se amparado num pilar centralizador, erigindo a União a uma posição de destaque no modelo federativo nacional.
A definição da norma geral representa também tema dos mais relevantes. Tércio Sampaio Ferraz Júnior busca reforço na lógica jurídica, destacando que uma norma pode se apresentar como geral quanto aos seus destinatários (especialmente se se volta a um público universal), ou quanto ao seu conteúdo (caso sua aplicação seja voltada a uma totalidade de casos).[38] Manoel Gonçalves Ferreira Filho prefere uma conceituação pelo “ângulo negativo”, afirmando que uma norma geral não pode descer “a particularizações, que visem a atender a peculiaridades regionais”[39]. Não obstante os louváveis esforços desses e de tantos(as) outros(as) renomados(as) juristas, entende-se que a identificação do que seja uma “norma geral”, ou do que venha a ser uma “norma complementar”, haverá de ser processada pelo Judiciário diante de cada caso concreto que é submetido à sua apreciação.[40]
Em análise conduzida sobre diversos acórdãos prolatados pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do julgamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, André Ramos Tavares identifica a existência de três critérios em específico que se extraem com maior nitidez das razões de decidir expressadas pelos(as) Ministros(as), a saber: (i) norma geral como como sendo a norma que detém “potencialidade de aplicação federativa uniforme”[41]; (ii) norma geral como sendo revestida de um caráter de abrangência[42]; e (iii) e norma geral como sendo aquela responsável por veicular comandos que expressem proibições e/ou permissões[43].[44] A identificação da existência de diversos critérios utilizados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal para a delimitação do conceito de “norma geral”, somente reforça a complexidade do tema e o quão árdua se impõe a compreensão do modelo cooperativo proposto pelo Constituinte de 1988[45]. Seja compreendida como uma norma dotada de maior abstração, seja uma norma que, pela importância do tema nela veiculado, há de ser aplicada uniformemente no território nacional, ou ainda uma norma que expressa um comando proibitivo ou permissivo (e que, precisamente por isso, os Estados-membros não poderão dela dispor contrariamente), a temática afeita à definição e à extensão da “norma geral” representa tema dos mais controversos no tocante ao Estado Federal Brasileiro e, consequentemente, na definição do campo de atuação de União e Estados-membros (sem que se esqueça da competência dos Municípios para suplementar a legislação federal e estadual em matérias que versem sobre seu interesse local).
Em outro estudo igualmente esclarecedor[46], André Ramos Tavares destaca uma segunda problemática que reside no modelo de competências concorrentes proposto pela Constituição de 1988: a dificuldade de categorização de determinados tópicos como matérias de competências privativa da União e como matérias sujeitas ao “condomínio legislativo”. A questão aqui se descola um pouco da definição das normas gerais e passa a residir na na dificuldade de determinação de uma dada matéria como sendo objeto do rol de competências privativas da União (legislar sobre Direito Civil, por exemplo), ou em integrando o condomínio legislativo (e.g., legislar sobre direito financeiro), especialmente por força de uma possível zona de confluência entre os temas retratados em cada uma das listas (art. 22 x art. 24). Após analisar uma série de casos e de acórdãos emanados do Supremo Tribunal Federal, ao Autor demonstra que o critério da especificidade da matéria (ou seja, da identificação da matéria tratada com maior propensão e de forma mais específica) objeto da proposição legislativa conferiria maior segurança para a sua definição como sendo de competência legislação da União ou submetida às normas que permeiam as competências concorrentes, sem excluir toda a dificuldade afeita ao tema, principalmente no que se refere à definição de qual matéria seria tratada de forma mais específica pela legislação analisada.
Concluindo o exaustivo estudo realizado, André Ramos Tavares identifica, na jurisprudência do STF, uma “leitura pró-federal”, seja ao atuar no significado e no alcance das matérias elencadas no rol do artigo 22, seja na concepção emprestada à “norma geral”, de modo a atrair a competência da União.[47]
A principal conclusão que se extrai da identificação das controvérsias acima exploradas – seja com relação à definição do conceito de “norma geral”, seja quanto à identificação da matéria tratada numa dada proposta legislativa e, assim, de sua vinculação ao rol de competências privativas da União ou a sua submissão ao “condomínio legislativo” – reside na demonstração da importância do papel exercido pelo Supremo Tribunal Federal para a sua resolução e, assim, pelo estabelecimento das regras voltadas a ditar a própria dinâmica federativa Brasileira, principalmente no que se refere à delimitação do campo de atuação ínsito a cada uma de suas unidades. A opção, pelos(as) Ministros(as), por atribuir à norma geral um papel mais orientativo, fixando premissas gerais e cânones basilares dos respectivos temas, para que os Estados (e também os Municípios), possam editar normas próprias, adequando às suas realidades empíricas, além de primar pela alocação das normas dentre aquelas submetidas às competências concorrentes (no “choque” com as competências legislativas da União), evidenciarão o entendimento da Corte por um federalismo descentralizado, com ampla autonomia e respeito aos interesses de Estados e Municípios. Por outro lado, a defesa por um conceito de “norma geral” como sendo aquela que venha a exaurir o tema proposto (por exemplo, por demanda uma aplicação federativa uniforme), reduzindo (ou suprimindo) a competência complementar (e também supletiva) dos demais entes, além de promover uma alocação dos temas dentre as matérias que compõe a competência legislativa privativa da União, excluindo-as do condomínio legislativo (e, assim, da possibilidade de complementa normativa pelos Estados), evidenciará a propensão por um Federalismo centralizado na figura da União, com pouca (ou nenhuma) atuação das demais entidades subnacionais.
Busca-se, assim, oferecer uma possível resposta ao questionamento inicialmente suscitado, mediante a demonstração da relevância subjacente à atuação da Justiça Constitucional para a definição do desenho e da própria estrutura apostos ao modelo federativo Brasileiro, especialmente quando do exercício de sua função de “árbitra federativa”, interpretando as disposições constitucionais voltados à indicação das competências afeitas aos entes federativos, delimitando a extensão de tais atribuições e, assim, o próprio campo representativo de suas atuações. É neste momento que se pode visualizar a relevância de tal atuação para a definição do modelo federativo que passa a ser então vigente, se propenso a uma maior e mais efetiva participação dos entes no exercício das questões que lhes são sejam pertinentes (tendente, portanto, a uma moldagem de matiz descentralizadora), ou se predisposto a reunir na União as competências para a condução dos temas que assumam maior relevo à Federação como um todo (caracterizando um modelo de viés centralizador).
A título ilustrativo do entendimento hoje sustentado pelo Supremo Tribunal Federal na apreciação da temática representada pelo precitado “condomínio legislativo”, destaca-se o acórdão prolatado no último dia 08/04/2021, nos autos da ADI nº 6.214/PE, na qual discutia-se a constitucionalidade de diversos dispositivos da Lei Pernambucana nº 16.559/2019 (Código de Defesa do Consumidor do Estado de Pernambuco). Dentre as diversas questões apreciadas no âmbito de referida ADI, impõe-se aquele relacionado ao artigo 46 de referida lei Estadual[48], responsável por propor uma definição de “produto essencial”, termo expressamente aludido pelo artigo 18, § 3º, da lei nacional nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
Na ocasião, o Plenário da Corte concluiu pela inconstitucionalidade do artigo 46 da Lei Estadual nº 16.559/2019, por nele visualizar uma usurpação, pelo legislador estadual, da competência concorrente dos Estados-membros para legislares sobre produção e consumo (art. 24, V, C.F.), a quem seria vedado propor um conceituação para “produto essencial”. O ponto de relevo que exsurge reside no fato de o próprio artigo 18, § 3º, do CDC, não ter veiculado qualquer definição sobre o que haveria de ser compreendido por “produto essencial”[49]. Não obstante, os(as) Ministros(as) entenderam que essa “omissão” – ou, possivelmente, uma generalidade proposital e pré-concebida – não legitimaria a competência complementar – ou até mesmo supletiva – dos Estados-membros para legislarem sobre o tema em referência (a despeito da habilitação legiferante que lhes fora conferida pelo Constituinte em matéria de produção e consumo, art. 24, V) [50]. O caso merece destaque, pois, uma forma de interpretar a orientação defendida pela maioria do Plenário, reside no reconhecimento de as competências complementar e supletiva dos Estados-membros terem sido, possivelmente, preteridas por um ato normativo atribuído – e ainda não editado - ao “Conselho de Ministros da Câmara Nacional de Relações de Consumo”.
Em recentes decisões proferidas no contexto da pandemia da COVID-19 que insiste em nos assolar, o Supremo Tribunal Federal, ainda que de forma embrionária, aparenta iniciar uma revisão de sua orientação “pró-federal”, passando a estimular a participação dos demais entes federativos, especialmente na execução de medidas associadas à saúde pública e ao controle da flagrante crise sanitária.
Essa nova orientação pode ser perfeitamente identificada no julgamento das ADI’s 6.341[51] e 6.343[52]. Em ambos os casos, as medidas cautelares concedidas pelo Ministro Marco Aurélio – já devidamente referendadas pelo Plenário da Corte – expressaram o entendimento da maioria dos Ministros de que, no exercício das competências comuns elencadas no rol do artigo 23 da Constituição, a atuação concreta e efetiva dos Estados, o Distrito Federal e os Municípios não está condicionada à prévia autorização da União Federal, ou tampouco à sua ação prévia, de modo que lhes seria legítimo, portanto, o exercício pronto e imediato das medidas associadas a essas matérias.[53]
Deste modo, ainda que restrita à interpretação das competências elencadas no rol do artigo 23 da Constituição (competências comuns, de índole não legislativa)[54], não se pode negar que a orientação definida pelo STF no julgamento inicial das precitadas ADI’s (ambas aguardam julgamento final, representa um interessante indicativo a respeito da dinâmica em que se estrutura o exercício compartilhado de competências pelos entes da Federação, sendo doravante conferido papel de destaque à atuação dos demais entes. Deve-se agora conferir se o entendimento consignado nos dois julgados acima referidos será, de alguma forma refletido na apreciação da temática correlata ao “condomínio legislativo”, de modo a alçar a atividade legiferante dos demais entes à mesma condição de destaque reconhecida no âmbito das competências executivas comuns (art. 23).
A escolha, portanto, por um modelo propenso a uma maior centralização das principais atribuições na figura da União – conferindo-lhe papel de destaque na estrutura federativa – conforme se extrai da orientação do Supremo Tribunal Federal representada pelos primeiros julgados acima analisados, parece não implicar, “ipso facto”, numa espécie de supressão, ou de uma relativização que seja, da cláusula federativa. Tanto é que, ao se observar o entendimento consignado nos dois últimos julgados acima referidos, a orientação pretoriana parece tender para a consolidação de uma estrutura voltada a prestigiar a participação de Estados e Municípios na efetivação de políticas públicas dotadas de elevado interesse social, especialmente como medida de combate aos nebulosos dias que se repetem a cada novo alvorecer. Tem-se aqui, portanto, uma importante evidência da dinamicidade que caracteriza o Federalismo, capaz de permitir essa espécie de movimento pendular – ora tendente a uma maior centralização, ora favorável a uma ampla participação dos entes no processo político – conforme o contexto e as circunstâncias assim o exigirem, em muito contribuindo para a efetividade do sistema federativo ao longo desses mais de dois séculos que nos separam da Convenção de Filadélfia.
5 - Considerações Finais
Após a fixação das duas principais colunas que sustentam o edifício federativo – representadas pelo exercício descentralizado do poder político e o respeito aos diferentes laços e vínculos federativos que formam a Federação – pretendeu-se demonstrar que a temática correlata à centralização representa uma constante na temática federativa, seja pela existência de uma predisposição constitucional (a título inicial, ou mediante emendas à Constituição), seja como resultado da atividade hermenêutica da Corte Constitucional, pela atuação de um ente em específico (possivelmente a União). Isso, contudo – e aqui uma conclusão importante – não implica necessariamente em uma supressão do pacto federativo, nem tampouco na adoção paulatina de uma espécie de “estado unitário descentralizado”. Longe disso, implica isso sim no enriquecimento do estudo federativo e na assunção de dois de seus principais atributos, que é a sua mutabilidade e a sua adaptabilidade às mais distintas realidades, algo essencial para sua ampla reprodução e adoção em Estados com diferentes contextos históricos e culturais, diversas formas de estruturação política (por exemplo, estados com representação política bicameral e unicameral), além de diferentes realidades empíricas, as quais podem demandar uma certa modelagem em sua estruturação, de modo a atender aos desígnios impostos por um conjunto de circunstâncias, evidenciando e, de certo modo, justificando, o movimento pendular que tão bem o identifica.
Também se buscou destacar a importância conferido à Justiça Constitucional, no processo de estruturação do modelo federativo e de delimitação da atuação dos entes, seja com relação à suas atribuições próprias, seja mediante o exercício compartilhado das competências que lhes foram concorrentemente atribuídas. De fato, a realidade empírica e pragmática nos impõe que a efetiva elaboração do desenho inerente à estrutura federativa, representa incumbência constitucionalmente atribuída ao Supremo Tribunal Federal, que a concretiza especialmente ao interpretar os conflitos federativos submetidos à sua apreciação, oportunidade em que será estabelecida a dinâmica correlata a esse exercício compartilhado do poder político, especialmente o grau de compartilhamento – e, por conseguinte, de descentralização do modelo federativo – que haverá de ser reconhecido.
6 - Referências
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[1] BARCELLOS, Ana Paula de. Pandemia e Federação: a nova diretriz do Supremo Tribunal Federal para a interpretação das competências comuns e alguns desafios para sua universalização. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, n. 42, set./dez. 2020, p. 168. Disponível em: https://revistas.newtonpaiva.br/redcunp/n-42-pandemia-e-federacao-a-nova-diretriz-do-supremo-tribunal-federal-para-a-interpretacao-das-competencias-comuns-e-alguns-desafios-para-sua-universalizacao/. Acesso em: 07/12/2021.
[2] “Trata-se da repartição vertical do ‘poder’, como comumente é chamada, e pela qual é possível identificar a existência de um Estado federal.” (TAVARES, André Ramos: Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2021, p. 865).
[3] A expressão será utilizada com cunho genérico, com o intuito de albergar, sob um denominador comum, as diversas unidades de poder que, ao lado do ente central, integram e compõe a estrutura federativa. Assim, por exemplo, em referência ao Estado Federal Brasileiro, a expressão designará os Estados-Membros, os Municípios e o Distrito Federal. Marta Arretche, em interessante obra sobre o tema, confeccionada sob a ótica da Ciência Política, compreende a referência a essas entidades mediante o uso da expressão “entes subnacionais”. (ARRETCHE, Marta. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.)
[4] ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 5ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 03.
[5] BONAVIDES, Paulo. O caminho para um federalismo das regiões. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 17, nº 65, jan./mar., 1980, p. 117.
[6] HORTA, Raul Machado. Organização Constitucional do Federalismo. Revista da Faculdade de Direito. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte: v. 30, n.º 28/29. 1985-1986, p. 09.
[7] BONAVIDES, Paulo. O caminho para um federalismo das regiões. p. 116-117.)
[8] ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. p. 07. Ainda com relação ao riquíssimo histórico norte-americano, curioso observar que, mesmo unidos por um laço histórico, cultural e étnico em comum – já que os colonizadores provinham em sua quase totalidade do império britânico, o passar dos anos possibilitou que as antigas Treze Colônias fossem se estruturando de maneira própria e particular, não necessariamente idêntica à das Colônias vizinhas. Seja por fatores climáticos, geográficos ou até mesmo pelo contato com os povos indígenas originários (cita-se aqui a obra prima do historiador Howard Zinn, “A people’s history of the United States”), as Colônias assumiram feições políticas, sociais e culturais próprias, o que representou um considerável complicador no processo de união federativa, cujo mérito em muito deveu-se aos louváveis esforços dos autores federalistas, como bem destacado por Fernanda Dias Menezes de Almeida. Ademais, há que se destacar que essas diferenças culturais persistiram à formação do Estado do Federal Norte-Americano, representando um dos principais fatores à deflagração, no século que se sucedeu à Convenção de Filadélfia (1787), da lamentável Guerra de Secessão entre os povos do Norte e do Sul (1861 a 1865).
[9] “Junto a la constitución escrita y el estabelecimiento de la forma republicana de gobierno, esto es, no monárquica, en Estados con um extenso territorio, el federalismo es la aportación americana más importante a la teoria y la pratica del Estado moderno.” (LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. 2ª edição. Barcelona: Ediciones Ariel, 1970, p. 354-355).
[10] FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de Direito Constitucional. 6ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1993, p. 265. Marcelo Figueiredo, em referência à obra de Pinto Ferreira, pontua que essa peculiaridade do elemento territorial foi responsável pela consagração da pluralidade geográfica regional, englobada na unidade nacional, a qual conferiria o suporte necessário à “causa social do vínculo federativo”. (FIGUEIREDO, Marcelo. Federalismo x Centralização. A eterna busca do equilíbrio – a tendência mundial de concentração de poderes na União. A questão dos Governos locais. In: CAGGIANO, Monica Herman; RANIERI, Nina (Org.). As Novas Fronteiras do Federalismo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, p. 125).
[11] TAVARES, André Ramos: Curso de Direito Constitucional. p. 867. O autor ainda destaca a impropriedade de ter o Estado Brasileiro erigido a nível constitucional um Federalismo simétrico em uma nação visivelmente assimétrica, em que diferentes Estados receberam idêntico tratamento no pacto federativo (mediante, por exemplo, idêntica representatividade no Senado Federal), algo que somente contribui para a efetivação de desigualdades e injustiças. Na abalizada pena do autor, “Estados diferentes entre si merecem, dependendo do grau e natureza dessas diferenças, tratamento federativo diferente”. No mesmo sentido, também destacando os problemas na estruturação do pacto federativo Brasileiro pela Constituição de 1988, é a lição de Marcelo Figueiredo (FIGUEIREDO, Marcelo. Federalismo x Centralização. A eterna busca do equilíbrio – a tendência mundial de concentração de poderes na União. A questão dos Governos locais. p. 131).
[12] A importância subjacente ao tema transcende, ao nosso ver, a esfera argumentativa ou meramente acadêmica (sem aqui ter-se a pretensão de relegar a importância desses campos, especialmente aquele atinente à pesquisa científica, já por demais sucateado e menosprezado em nosso País), adentrando à própria temática da efetividade de direitos fundamentais, cuja efetivação está diretamente relacionada com a delimitação do(s) entes(s) federativo(s) competente(s) para seu desígnio, especialmente mediante a sistemática de repartição de competências constitucionalmente proposta. Com efeito, a questão pode ser perfeitamente visualizada no cenário Brasileiro, por exemplo, com a compreensão da dinâmica afeita ao exercício das competências legislativas concorrentes, elencadas pelo artigo 24 da Constituição Federal, mais especificamente na necessidade de se delimitar o conteúdo e a extensão das “normas gerais” (art. 24, § 1º, C.F.), cuja edição há de ser desenvolvida pela União, juntamente do conteúdo e da extensão da “competência suplementar” atribuída aos Estados-Membros (art. 24, § 2º, C.F.), sem se excluir a competência dos Municípios para editar leis que versem sobre assuntos atinentes a seus interesses locais (art. 30, I, C.F.).
[13] Karl Loewenstein cita como exemplo de possíveis uniões de Estados sob a forma federativa, anteriores à formação do Estado Federal Norte-Americano, as ligas “sinoikas” gregas; a “aliança eterna” dos cantões suíços e a “União de Utrecht”, responsável por firmas as bases sobre as quais posteriormente se assentariam os Países Baixos (LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. p. 354).
[14] Raul Machado Horta elenca uma série de requisitos e de elementos que, além de ínsitos à estrutura federativa, seriam elementares à construção normativa do Estado Federal. (i) a decisão constituinte criadora do Estado Federal e de suas partes indissociáveis, a Federação ou União, e os Estados-membros; (ii) a repartição de competências entre a Federação e os Estados-membros; (iii) o poder de auto-organização constitucional dos Estados-membros, conferindo-lhes autonomia constitucional; (iv) o instituto da intervenção federal como instrumento competente a reestabelecer o equilíbrio federativo, em casos constitucionalmente definidos; (v) a Câmara dos Estados, como órgão do poder legislativo federal, com o intuito de permitir a participação dos Estados-membros no processo de formação da legislação federal; (vi) a titularidade dos Estados-membros, através de suas Assembléias Legislativas, mediante número qualificado, para a propositura de emendas à Constituição Federal; (vii) o fato de a criação de novos Estados ou a modificação territorial de um dos Estados estar condicionada à aquiescência da população do Estado afetado, além (viii) da existência de um Supremo Tribunal ou de uma Corte Suprema para interpretar e proteger a Constituição Federal, além de dirimir os litígios federativos e enfrentar as questões relativas à aplicação ou vigência da lei federal. (HORTA, Raul Machado. Organização Constitucional do Federalismo. p. 12). Aos pontos elencados pelo Autor, nos quais podem ser perfeitamente visualizadas as capacidades de auto-organização, autolegislação e de autogoverno, acrescentasse a necessidade de que cada unidade da Federação possa contar com suas próprias receitas, de modo a conferir-lhes a indispensável capacidade de autoadministração, repartição de receitas essa que configura “requisito inerente ao Estado Federal, pois, repartindo-se as competências entre os entes federativos, é imperioso que a Constituição lhes propicie os meios econômicos adequados à realização dessas competências.” (ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vida Serrano. Curso de Direito Constitucional. 14ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 302).
[15] ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. p. 11. Sobre o marco distintivo entre soberania e autonomia, são válidas as palavras de Sampaio Dória: “O poder que dita, o poder supremo, aquele acima do qual não haja outro, é a soberania. Só esta determina a si mesmo os limites de sua competência. A autonomia não. A autonomia atua dentro de limites que a soberania lhe tenha prescrito.” (DÓRIA, Antônio de Sampaio. Direito Constitucional. 3ª Edição. Tomo 2. São Paulo: Editora Nacional, 1953, p. 7).
[16] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Estado Federal. 2ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2019, p. 23-24. O autor ainda faz expressa referência à conhecida expressão de Giorgio Del Vecchio, para quem o nascimento do Estado Federal representaria uma espécie de “suicídio de Estados”.
[17] Válido o registro de que a delimitação da margem de atuação das antigas Colônias, até então soberanas, albergou papel de destaque nas discussões entre os Federalistas (especialmente Alexander Hamilton e James Madison) e aqueles contrários a essa nova estruturação política, representados, por exemplo, por Thomas Jefferson.
[18] HORTA, Raul Machado. Organização Constitucional do Federalismo. p. 13-18.
Karl Loewenstein afirma não haver nada mais delicado na técnica constitucional que a designação das tarefas estatais nos respectivos campos de competência constituídos pelo Estado Central e pelos Estados-membros, fazendo com que a repartição de competências se apresente como a “chave da estrutura do poder federal” (LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. p. 356)
[19] Nas palavras de Raul Machado Horta, “assegurar a coexistência entre esses múltiplos ordenamentos, o da Federação, que é central, e os Estados-membros, que são parciais, é a fundação da Constituição Federal (...)” (HORTA, Raul Machado. Organização Constitucional do Federalismo. p. 10).
[20] Precisamente por força dessa experiência soberana que ainda se mostrava recente, Bernard Schwartz afirma que “se houve uma coisa que os elaboradores da Constituição americana procuraram fazer foi reservar um lugar significativo no sistema que estavam criando para os estados, cujos delegados eles eram.” (SCHWARTZ, Bernard. O Federalismo Norte-Americano Atual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984, p. 09).
[21] Esta interpretação foi expressamente reconhecida e confirmada pela 10ª Emenda, ratificada em 1791, segundo a qual “Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem proibidos por ela aos Estados, são reservados, respectivamente, aos Estados, ou ao povo.”
[22] Como firmado pelo Chief Justice John Marshall, “a um governo ao qual se confiou uma série de poderes amplos, de cuja execução depende a felicidade e a prosperidade da nação, devem-se, também, ser confiados amplos meios para a sua execução.” (TAVARES, André Ramos: Curso de Direito Constitucional. p. 853).
[23] Neste sentido, HORTA, Raul Machado. Organização Constitucional do Federalismo. p. 14.
[24] ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. p. 21-24. A referência talvez mais expressiva do posicionamento então aventado pela Suprema Corte seja o julgamento proposto no caso “Hammer vs. Dagenhart”, no qual se discutia a constitucionalidade de legislação federal que, restringindo o transporte de mercadorias produzidas nos Estados, buscava impedir ou ao menos desincentivar, a exploração do trabalho infantil. Não obstante o contundente elemento social subjacente ao normativo federal, a Suprema Corte reputou-a como inconstitucional, por implicar em uma indevida interferência federal no funcionamento manufatureiro e comercial dos Estados.
[25] Os julgados emanados da Suprema Corte após o período indicado, bem evidenciam a nova orientação assumida pela Corte, especialmente nos casos envolvendo comércio interestadual, mediante uma extensão do conceito afeito à compreensão de “interestadual”. André Ramos Tavares cita o julgamento conduzido no caso “Wickard vs. Filburn”, em que a Corte afirmou que mesmo em se tratando de produção para consumo próprio, no interior da fazenda em que cultivado o trigo, poderia haver repercussão de interesse federal (TAVARES, André Ramos: Curso de Direito Constitucional. p. 855). O contraponto de Bernard Schwartz ao entendimento da Corte é dos mais interessantes, além de expressar com clareza a evidente a intenção jurisprudencial de prestigiar a legislação federal, uma vez que tudo pode vir a assumir reflexo fora dos limites do Estado (SCHWARTZ, Bernard. O Federalismo Norte-Americano Atual. p. 36).
[26] Importante observar que o recurso a esse modelo cooperativo não se impôs como opção exclusiva dos Estados Unidos da América, opção essa que, conforme destacado, esteve muito mais atrelada ao papel conferido à Suprema Corte na interpretação do pacto federativo, no âmbito de uma dificultosa conjuntura, que impunha a necessidade de redimensionar o peso atribuído à participação de cada ente no exercício do poder. Já na Constituição de Weimar, promulgada em 1919, e na Constituição Austríaca de 1920, encontravam-se (na segunda ainda mais que na primeira) regras voltadas a disciplinar a atuação conjunta de União e Estados (“Länder”). Fernanda Dias Menezes de Almeida destaca ainda a importância que se há de conferir à Constituição Indiana de 1950, responsável pela definição de três listas, uma contendo as matérias de competência exclusiva da União, outra com as competências exclusivas dos Estados e, por fim, uma terceira, com as competências a serem exercidas concorrentemente entre União e Estados; bem como à Constituição Alemão de 1949 (“Lei Fundamental de Bonn”), a qual confere ampla participação aos Estados (“Länder”), seja ao lhes assinalar as competências remanescentes, seja ainda por seu âmbito de atuação no espectro das competências concorrentes ser, inclusive, superior àquele designado à União. (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. p. 34-39). Vale aqui uma importante ressalva quanto ao corte metodológico do presente estudo. Em vista da limitação de seu objeto, optou-se por uma análise mais profunda sobre o histórico Norte-Americano, não por qualquer preferência ou afinidade, mas sim, unicamente por ir ao encontro da temática aqui proposta, que é uma breve análise sobre a centralização do poder no Estado Federal, algo que a experiência dos Estados Unidos da América em muito contribui, não apenas por alocar o nascedouro do Federalismo, mas também por toda evolução vivenciada, em que, mesmo caracterizado por uma força centrífuga, mediante a união de Estados independentes e soberanos, a centralização do poder (centrípeta) também veio a se espraiar.
[27] BONAVIDES, Paulo. O caminho para um federalismo das regiões. p. 123.
[28] Como resultado de um rico levantamento, Fernanda Dias Menezes de Almeida identifica a presença desse “fenômeno centralizador” em uma série de outros Estados, como por exemplo (I) na Argentina, em que o fortalecimento do poder central estaria associado a diversas causas, das quais se destacam (i) a necessidade de satisfação de exigências de cunho social e econômico, impondo a adoção de critérios nacionais uniformes, (ii) juntamente da própria corrupção sistêmica, mediante uso abusivo do instituto da intervenção federal nos Estados, como corolário da imposição dos designíos da autoridade presidencial, ao que se acrescenta a (iii) a inoperância dos governos provinciais na busca de soluções próprias para problemas que não dependeriam de nenhum auxílio do Governo Federal, optando por uma dócil e cômoda submissão aos desígnios centrais; (II) no México, em que o processo de reordenação federativa se conclui mediante a edição de diversas Emendas Constitucionais, as quais se voltam à centralização do poder na figura do Governo Central; (III) na Suíça, na qual a perda sucessiva do poder historicamente conferido aos Cantões se deve, além da aprovação de Emendas Constitucionais (sem muita resistência do eleitorado Suíço), ao uso excessivo, pelo Governo Federal, das competências implícitas que lhe foram atribuídas; (IV) e até mesmo na Alemanha, em que a Lei Fundamental de Bonn de 1949 reconheceu a relevância da legislação federal no processo de reconstrução econômica que o pós-Segunda Guerra Mundial impunha.
[29] Karl Loewenstein elenca uma série de elementos que, não obstante terem sido listadas pelo Autor em 1970, ainda se apresentam extremamente atuais e perfeitamente identificáveis na atualidade, a maioria delas facilmente identificável no cenário Brasileiro. Dentre elas, destaca-se: (i) a centralidade da figura do Presidente da República no cenário político nacional, relativizando a importância dos Estados e de seus representantes no processo político; (ii) a perca, pelo Senado Federal, de seus mister original de representante e protetor dos Estados-membros, os quais acabaram por sucumbir ao caráter nacional dos partidos políticos; (iii) a industrialização e o crescimento das cidades, que teriam resultado numa perda paulatina das individualidades que caracterizavam as unidades estaduais, juntamente de um esfacelamento do sentimento de pertença anteriormente munido por seus cidadãos; (iv) a grande dependência mantida pelos Estados para com as subvenções provenientes do Governo Federal; (v) o caráter nacional dos partidos políticos, deslocando todo o foco da atividade política para a União, inclusive mediante a manutenção de programas e de estatutos completamente desassociados da realidade regional e, por fim, (vi) a atividade também desenvolvida a nível nacional dos demais grupos pluralistas da sociedade (LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. p. 362-364).
[30] Especificamente sobre essa relevante questão afeita à representatividade dos Estados no processo legislativo conduzido a nível nacional, Marta Arretche demonstra empiricamente que a atuação do Senado Federal vem se demonstrando insuficiente, no que concerne à defesa dos interesses estaduais. Com base em uma série de estudos que evidenciam o comportamento das bancadas partidárias na votações de temas envolvendo diretamente questões federativas, a Autora demonstra que o elemento primordial considerado pelos(as) Senadores(as) reside exclusivamente na definição fixada pelas lideranças partidárias, até mesmo com relação aos parlamentares vinculados ao mesmo partido do(a) Governador(a). Ou seja, os interesses dos Estados pouco são considerados nas votações conduzidas pelo Senado Federal. (ARRETCHE, Marta. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. p. 140-144).
[31] As competências privativas da União estão elencadas nos artigos 21 (competências materiais ou executivas) e 22 (competências legislativas); a competência privativa dos Estados para a exploração de gás canalizado está veiculada no artigo 25, § 2º (sendo que no § 1º reside a competência relativa às matérias que não lhes sejam vedadas pela Constituição); ao passo que no artigo 30, inciso I, está estabelecida a competência dos Municípios para legislarem sobre os assuntos de seu “interesse local” e, no inciso II, a competência para suplementarem a legislação federal e estadual, no que couber). Vale destacar que, a despeito da listagem proposta pelos dispositivos há pouco referidos, o Texto Constitucional contempla outras atribuições aos entes federativos ao longo de sua redação.
[32] Ana Paula de Barcellos destaca a inexistência de parâmetros voltados a conferir uma organização mínima à atuação conjunta dos entes federativos, com relação à consecução dos deveres fixados pelo artigo 23 da Constituição Federal, havendo tão somente a referência por demais genérica à necessidade de lei complementar voltada à fixação de normas para a cooperação entes os entes. (BARCELLOS, Ana Paula de. Pandemia e Federação: a nova diretriz do Supremo Tribunal Federal para a interpretação das competências comuns e alguns desafios para sua universalização. p. 169).
[33] A redação do dispositivo constitucional evidencia a ausência de referência à figura dos Municípios, que, em regra, não integram o sistema de competências concorrentes. Destaca-se, contudo, a competência conferida aos entes municipais pelo artigo 30, inciso II, da Constituição, consistente na possibilidade de suplementar a legislação federal no que lhes couber A nosso sentir, o uso da expressão “no que lhes couber” denota uma direta e necessária referência à competência definida pelo inciso imediatamente anterior (inciso I), atinente à legitimação dos entes municipais a legislares sobre os assuntos de seus interesses locais.
[34] André Ramos Tavares entende que a expressão competência suplementar, referida pelo Texto Constitucional, abrange tanto a competência complementar que lhes permite editar normas particulares, adequando o conteúdo da lei nacional à sua realidade, juntamente da competência supletiva, que habilita os Estados a legislarem sobre as normas gerais e particulares, quando a União se tenha mantido inerte na edição de sua lei geral (TAVARES, André Ramos. Normas Gerais e Competência Legislativa Concorrente: uma análise a partir das decisões do STF. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 73/74, jan./dez. 2011, p. 05).
[35] A expressão é extraída da obra de André Ramos Tavares, que destaca sua utilização inicial pelo Ministro Celso de Mello, em voto proferido na ADIn-MC n. 903-6/MG (TAVARES, André Ramos. Normas Gerais e Competência Legislativa Concorrente: uma análise a partir das decisões do STF. p. 02).
[36]TAVARES, André Ramos. Normas Gerais e Competência Legislativa Concorrente: uma análise a partir das decisões do STF. p. 07.
[37] Não obstante essa importante ressalva, a análise do Texto Constitucional, especialmente de seus dispositivos voltados direta e centralmente à repartição de competências (sem prejuízo de outros que também se voltem ao tema), pode sim evidenciar um possível destaque conferido à figura da União, não apenas pela quantidade de temas inseridos em sua competência legislativa privativa (o artigo conta com 29 incisos), mas também pela relevância das matérias ali elencadas. Isso sem contar que o exercício da competência concorrente é condicionado à prévia existência da lei geral, a ser por ela editada (ao que se ressalva a já referida competência supletiva dos Estados).
[38] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Normas Gerais e Competência Concorrente. Uma exegese do art. 24 da Constituição Federal. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo: v. 90, jan. 1995, p. 248-249.
[39] FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. O Estado Federal Brasileiro à luz da Constituição de 1988. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo: v. 86, jan. 1991, p. 127.
[40] Esta é, por exemplo, a posição de André Ramos Tavares (TAVARES, André Ramos. Aporias acerca do “Condomínio Legislativo” no Brasil: uma análise a partir do STF. In: TAVARES, André Ramos; LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado constitucional e organização do poder. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 163).
[41] O Autor cita como fonte desse critério o entendimento defendido pelo Ministro Carlos Ayres Britto, em voto proferido na ADI 3.645-9/PR, juntamente do voto proferido pelo Ministro Cezar Peluso, no âmbito da ADI 1950-3/SP. Em sua exposição, e em vista de determinadas variáveis encontradas no voto apresentado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, o Autor promove uma subdivisão desse critério em três outros: (i) subcritério da relevância, (ii) subcritério do comércio interestadual e (iii) subcritério da matéria em questão.
[42] Quanto a esse critério em específico, o Autor o identifica em voto proferido pelo Ministro Carlos Velloso na ADI-MC 927-3/RS.
[43] O critério consistente na identificação da norma geral como sendo aquela responsável por estabelecer comandos proibitivos ou permissivos está amparado em voto proferido pela Ministra Ellen Gracie na ADI 2.396-9/MS, além de voto proferido pelo Ministro Maurício Corrêa na ADI 2.656-9/SP. Em vista do estudo conduzido e das premissas analisadas, o Autor concluiu que, de todos os critérios analisados, este é o que se afigura como mais certo e seguro, algo que, por sua vez, não exclui por completo a subjetividade ou a discricionariedade na sua aplicação.
[44] TAVARES, André Ramos. Normas Gerais e Competência Legislativa Concorrente: uma análise a partir das decisões do STF. p. 08-10.
[45] Vale a ressalva feita pelo Ministro Gilmar Mendes, em voto proferido na ADI 4167/DF: “A ideia das chamadas normas gerais que está no texto constitucional prepara essas armadilhas, porque o texto sobre normas gerais acaba por invadir esferas, as mais diversas no âmbito legislativo estadual.”
[46] TAVARES, André Ramos. Aporias acerca do “Condomínio Legislativo” no Brasil: uma análise a partir do STF. p. 180-188.
[47] A existência dessa posição é perfeitamente observada pelo Autor na reprodução de trecho de voto apresentado pelo Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 3.645-9/PR, a qual vale a transcrição: “Dentro desse movimento pendular que caracteriza o federalismo brasileiro, com momentos de grande concentração de poder ao nível da União, e outros de grande desconcentração em favor dos demais entes federativos, verifica-se que, paulatinamente, estamos caminhando, na verdade, para um Estado unitário descentralizado, haja vista as recentes reformas administrativa, previdenciária, judiciária, tributária. Observa-se também, que, no âmbito da competência concorrente prevista no art. 24 da Carta Magna, cada vez mais esvaziada a competência dos Estados de legislar supletivamente, porque a União, quando legisla, esgota o assunto, não se limita a editar apenas normas gerais. (ADIn 3.645/PR; Min. rel. Ellen Gracie, DJ de 01/09/2006 – nossos grifos)”
[48] “Art. 46. Considera-se produto essencial, para fins do disposto no § 3º do art. 18 do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), aquele que, por sua natureza e características, sejam imprescindíveis à vida ou à profissão do consumidor, tais como: I - alimentos em geral; II - medicamentos; e III - equipamentos para tratamento de saúde.”
[49] Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes reconhece expressamente que a redação do dispositivo do CDC não contempla a definição do que haveria de ser compreendido por “produto essencial”, definição essa atribuída ao Conselho de Ministros da Câmara Nacional de Relações de Consumo, por meio do Decreto nº 7.963/2013. Não se tem registro de se tal atribuição fora efetivamente concretizada pela autoridade eleita competente para tanto.
[50] O Ministro Edson Fachin, em voto vencido, concluiu neste exato sentido, reconhecendo que a inexistência de legislação federal (seja pelo CDC, seja pelo precitada “delegação” promovida pelo Decreto nº 7.963/2013), não implicaria em qualquer vedação ou óbice ao exercício da competência legislativa concorrente por parte dos Estado de Pernambuco.
[51] Proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em face de diversos incisos do art. 3º da Lei nº 13.979/20, com a redação que lhe foi conferida pela MP 926/20, precisamente a legislação ordinária federal responsável pelo combate da pandemia da COVID-19, os quais implicariam em uma concentração, na União, da prática de atos voltados ao enfrentamento da situação pandêmica, resultando em violação á competência concorrente de Estados, Distrito Federal e Municípios.
[52] Proposta pela Rede Sustentabilidade, em face dos mesmos dispositivos impugnados pela ADI 6.341, agora com a redação das MP’s 926/2020 e 927/2020.
[53] O seguinte trecho do voto do Ministro Edson Facchin, proferido no âmbito da ADI nº 6.341, bem ilustra o novo parâmetro fixado pelo STF: “A posição do Supremo Tribunal Federal deve ser, assim, a de exigir o cumprimento integral das obrigações do Estado: obrigações de respeitar, proteger e realizar os direitos fundamentais. Deve também, desde que não haja violação material à Constituição, abster-se de declarar a nulidade de leis estaduais e locais apenas por ofensa à competência dos demais entes. A União exerce sua prerrogativa de afastar a competência dos demais entes sempre que, de forma nítida, veicule, quer por lei geral (art. 24, § 1º, da CRFB), quer por lei complementar (art. 23, par. único, da CRFB), norma que organiza a cooperação federativa. Dito de outro modo, na organização das competências federativas, a União exerce a preempção em relação às atribuições dos demais entes e, no silêncio da legislação federal, têm Estados e Municípios a presunção contra essa preempção, a denominada “presumption against preemption” do direito norte-americano.” (nossos grifos e destaques)
[54] Em interessante artigo sobre o tema, Ana Paula de Barcellos identifica algumas questões controversas que resultam desse entendimento ora fixado pela Corte, especialmente (i) o fato de a diversas competências executivas comuns não corresponder a respectiva competência legislativa, muitas vezes por estar inserida no campo das competências privativas da União (Art. 22), juntamente (ii) da dificuldade em se conceber a competência legislativa supletiva dos Municípios (ainda que para fins de legislação complementar sobre seus interesses locais), nas hipóteses em que União e Estado deixem de editar “normas gerais” sobre o tema (BARCELLOS, Ana Paula de. Pandemia e Federação: a nova diretriz do Supremo Tribunal Federal para a interpretação das competências comuns e alguns desafios para sua universalização. p. 175-179).
Mestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito e Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paul. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREGO, Leonardo Guimarães. A evolução do Federalismo e a centralização: o papel da Justiça Constitucional na delimitação da estrutura federativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2022, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58047/a-evoluo-do-federalismo-e-a-centralizao-o-papel-da-justia-constitucional-na-delimitao-da-estrutura-federativa. Acesso em: 22 nov 2024.
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