RESUMO: Diante do número de mortes de pessoas na espera por um órgão para transplante, e do insucesso das medidas adotadas pelo Brasil para atingir as metas de doadores, é necessário um estudo sobre o panorama das normas brasileiras que regulamentam a doação de órgãos. Nesse contexto, o estudo apresenta tese doutrinária de solução da aparente antinomia entre a Lei nº 9.434/1997 e o Código Civil de 2002, e discute sua não recepção pela prática médica brasileira, concluindo pela necessidade de modificação da regulamentação atual da manifestação de vontade de ser doador, de modo que a autonomia do indivíduo prevaleça sobre a vontade de familiares.
Palavras-chave: Doação de Órgãos. Antinomia. Direitos fundamentais. Autonomia do indivíduo.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO 2 A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS NO BRASIL. 2.1 A antinomia entre a Lei nº 9.434/1997 e o Código Civil de 2002. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Um dos desafios que se impõe perante o Brasil na próxima década é o de solucionar a carência de órgãos para transplante. Para compreender a dimensão da problemática, cabe fazer referência aos dados apresentados pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), que estima a necessidade anual de transplantes do país, comparando-a aos transplantes efetivamente realizados.
Se, em 2018, cenário pré-pandêmico, o Brasil possuía demanda por 1.661 transplantes de coração, apenas 353 foram realizados. Quanto aos transplantes de pulmão, a estimativa de iguais 1.661 necessários se depara com a realidade de apenas 121 transplantes concretizados. Das 12.460 pessoas que esperavam na fila por um rim, apenas 5.923, menos da metade, conseguiram o transplante. O resultado: 2.851 pessoas morreram na expectiva de um órgão apenas em 2018, uma média de 8 falecimentos por dia. (ABTO, 2018).
É esse cenário que constitui premissa à reflexão proposta pelo presente estudo. Com efeito, é objetivo desse artigo apresentar e avaliar panorama de como o ordenamento jurídico brasileiro regulamenta o processo de transplante de órgãos. Assim, investiga-se se, para além de campanhas educativas, o atendimento das metas nacionais de potenciais doadores demandaria alteração legislativa.
2 A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS NO BRASIL
A remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante é regulamentada no Brasil pela Lei nº 9.434/1997. O art. 4º dessa Lei, com redação dada pela Lei nº 10.211/2001, determina que cabe aos familiares do falecido decidir pela sua inclusão no rol de doadores:
Art. 4º A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. (BRASIL, 1997, grifo nosso).
A partir da previsão transcrita de que a determinação dependerá da autorização da família, Maynard et al. (2015) justificam a inexistência de mecanismo apto a garantir efetivamente a vontade do doador na legislação pátria. Qualquer manifestação de decisão sobre a doação realizada em vida deve ser informada aos familiares, que no momento do falecimento decidem sobre a doação, sem necessidade de justificação ou vinculação aos desejos do falecido.
Essa interpretação do artigo é reforçada pelo conteúdo do Decreto nº 9.175/2017, que, ao regulamentar a Lei nº 9.434/1997, apresentou seção específica para tratar do consentimento familiar na qual consta a seguinte previsão:
Art. 20. A retirada de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano, após a morte, somente poderá ser realizada com o consentimento livre e esclarecido da família do falecido, consignado de forma expressa em termo específico de autorização. (BRASIL, 2017a, grifo nosso).
Essas disposições refletem a tradicional prática das equipes médicas brasileiras, que independentemente de eventual manifestação prévia do falecido, apenas realizam a extração dos órgãos para transplante com o consentimento dos familiares. Nesse cenário, inexiste no Brasil um cadastro nacional de doadores de órgãos, ou mesmo a possibilidade de fazer constar em documento oficial, de forma vinculativa, o desejo do falecido.
A referida Lei nº 10.211/2001 tem origem na conversão da Medida Provisória nº 2.083-32/2001. Ao tramitar no Congresso Nacional por meio do Projeto de Lei de Conversão (CN) nº 6 de 2001, o texto da Medida Provisória foi modificado para incluir parágrafo único no art. 4º da Lei nº 9.434/1997 com a seguinte redação: “Parágrafo único. A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas poderá ser realizada a partir de registro feito em vida, pelo de cujus, nos termos do regulamento” (BRASIL, 2001b). Entretanto, essa previsão foi vetada pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sob a seguinte argumentação:
Razões do veto: A inserção deste parágrafo induz o entendimento que, uma vez o potencial doador tenha registrado em vida a vontade de doação de órgãos, esta manifestação em si só seria suficiente como autorização para a retirada dos órgãos. Isto além de contrariar o disposto no caput do art. 4º - a autorização familiar contraria a prática da totalidade das equipes transplantadoras do País, que sempre consultam os familiares (mesmo na existência de documento com manifestação positiva de vontade do potencial doador) e somente retiram os órgãos se estes, formalmente, autorizarem a doação. (BRASIL, 2001b).
Conclui-se que a submissão da autonomia individual ao consentimento familiar encontra suporte em interpretação do art. 4º da Lei nº 9.434/1997, no Decreto nº 9.175/2017 que a regulamenta, e na prática adotada tradicionalmente pelas equipes transplantadoras brasileiras.
Nessa conjuntura, considerada a existência de razões médicas inevitáveis de exclusão de potenciais doadores — contra-indicação clínica, não confirmação da morte encefálica, entre outras — a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos indica os elevados índices de recusa familiar no país como um obstáculo a ser superado. Segundo o Registro Brasileiro de Transplantes (ABTO, 2018), revista oficial da instituição, em 2018, 25,5% dos potenciais doadores não se converteram em efetivos em razão da recusa familiar.
Esse modelo de valorização da decisão familiar, em detrimento da autonomia individual do falecido, é alvo de severas críticas por parte da doutrina. Stancioli et al. (2011, p. 137) defendem que:
[...] alijar o possível doador da escolha fundamental do destino de seus órgãos implica privá-lo do mais elementar espaço de autodeterminação. Ainda que bem-intencionada, a família não pode, em última instância, suprir completamente a vontade manifestada em vida pelo potencial doador.
Em seguida, os autores sugerem a adoção de um sistema no qual o doador possa manifestar sua vontade, de forma livre e circunstanciada, em um documento jurídico específico. Apenas na ausência dessa manifestação, supletivamente, caberia à família decidir se a doação deve ou não ser realizada.
Parcela significativa da doutrina entende que tal efetividade da decisão individual do falecido já é prevista pelo ordenamento jurídico brasileiro. Essa conclusão deriva do teor do art. 14 do Código Civil de 2002, que dispõe: “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.” (BRASIL, 2002).
Parece existir uma relação de antinomia entre o art. 4º da Lei nº 9.434/1997 e o art. 14 do Código Civil de 2002, na medida em que o primeiro estabeleceria a necessidade de consentimento familiar e o segundo a validade da disposição autônoma do próprio corpo. Cabe, portanto, discorrer sobre a suposta contrariedade entre essas duas normas.
2.1 A antinomia entre a Lei nº 9.434/1997 e o Código Civil de 2002
Ao iniciar a análise sobre a antinomia entre o art. 4º da Lei nº 9.434/1997 e o art. 14 do Código Civil de 2002, é necessário que tais normas sejam confrontadas aos clássicos critérios mencionados por Bobbio (2011): hierárquico, cronológico e da especialidade.
Em exposição sintética, preleciona a doutrina que a norma hierarquicamente superior deve prevalecer sobre norma inferior, que a norma posterior deve prevalecer sobre a anterior, bem como que a norma especial deve prevalecer sobre a geral.
No caso em tela, ambos os diplomas — Código Civil de 2002 e Lei nº 9.434/1997 — são leis ordinárias, inexistindo diferença hierárquica apta a ensejar a aplicação desse critério na solução da antinomia.
Quanto ao critério cronológico, temos que o Código Civil de 2002 é posterior à Lei nº 9.434/1997, o que nos levaria em direção à conclusão de que sua previsão de disposição autônoma do próprio corpo, sem necessidade de autorização familiar, deveria prevalecer.
Ocorre que o art. 14. do Código Civil de 2002 constitui norma geral sobre a disposição gratuita do corpo após a morte, autorizando-a caso seja realizada com objetivos altruísticos ou científicos. O art. 4º da Lei nº 9.434/1997, entretanto, regula o procedimento de uma espécie de disposição do corpo altruística, qual seja a doação de órgãos.
Isto é, teríamos hipótese que a doutrina classifica como antinomia aparente de segundo grau, hipótese de choque de normas válidas que envolvem dois dos critérios supramencionados. No caso, visualiza-se conflito de norma especial anterior com norma geral posterior.
Conforme discorre David (2014), a resposta mais recorrente é a de prevalência da especialidade sobre a cronologia. Nesse sentido, merecem referência as palavras de Bobbio (2011, p. 109):
Conflito entre o critério da especialidade e o cronológico: esse conflito tem lugar quando uma norma anterior-especial é incompatível com uma norma posterior-geral. Tem-se conflito porque, aplicando o critério da especialidade, dá-se preponderância à primeira norma, aplicando o critério cronológico, dá-se prevalência à segunda. Também aqui foi transmitida uma regra geral, que soa assim: Lex posterior generalis non derogat priori speciali. Com base nessa regra, o conflito entre critério da especialidade e critério cronológico deve ser resolvido em favor do primeiro: a lei geral sucessiva não tira do caminho a lei especial precedente. O que leva a uma posterior exceção ao princípio lex posterior derogat priori: esse princípio falha, não só quando a lex posterior é inferior, mas também quando é generalis (e a lex prior é specialis). Essa regra, por outro lado, deve ser tomada com certa cautela, e tem um valor menos decisivo que o da regra anterior. Dir-se-ia que a lex specialis é menos forte que a lex superior, e que, portanto, a sua vitória sobre a lex posterior é mais contratada. Para fazer afirmações mais precisas nesse campo, seria necessário dispor de uma ampla casuística.
Em síntese, ainda que a solução geral seja de aplicação da norma especial anterior em detrimento da norma geral posterior, defende o autor que em situações específicas tal regra pode não ser aplicável. Em raciocínio similar, Diniz (2014) defende que não há regra definida na hipótese do referido conflito, variando a norma prevalecente conforme o caso concreto.
Se a aplicação dos critérios clássicos não é suficiente para se concluir pelo entendimento mais adequado, é necessário recorrer à solução proposta pela doutrina sobre essa hipótese específica.
Pereira (2011, p. 188) concebe que a prevalência da autonomia do indivíduo sobre a vontade familiar, extraída da aplicação do art. 14 do Código Civil de 2002, seria mais condizente em nossa ordem constitucional, visto que adequada “ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o qual garante à pessoa, em lugar de aos seus parentes, o direito de dispor sobre o destino de seu próprio corpo”.
O mesmo entendimento é manifestado por Venosa (2011, p. 182), que concilia ambos os dispositivos ao estabelecer o caráter supletivo da decisão familiar, apenas na hipótese de ausência de manifestação em vida do potencial doador:
Tendo em vista o teor do art. 14 mencionado, temos que concluir, mesmo perante o sistema atual, que, enquanto não regulamentada diferentemente a disposição, será idônea qualquer manifestação de vontade escrita do doador a respeito da disposição de seus órgãos e tecidos após sua morte, devendo os parentes ou o cônjuge autorizar somente perante a omissão da pessoa falecida.
Venosa (2011) justifica essa proposta de solução da antinomia aparente por meio do entendimento de que a faculdade de doar órgãos constitui verdadeiro direito potestativo do indivíduo, dependendo exclusivamente da vontade daquele que deseja exercer deveres sobre si mesmo, independentemente de opinião diversa de terceiros, ainda que parentes próximos.
No mesmo sentido preleciona Diniz (2017), que entende a previsão do art. 14 do Código Civil de 2002 como delimitadora do âmbito de aplicação do art 4º da Lei n. 9.434/1997, que se limitaria aos casos de ausência de manifestação do potencial doador.
Para oferecer suporte ao raciocínio de prevalência do disposto no art. 14 do Código Civil de 2002, Barbieri (2012) invoca o princípio bioético da autonomia do paciente, o qual preleciona a proteção à capacidade do paciente em deliberar autonomamente, bem como a necessidade de que tal manifestação seja atendida.
O posicionamento prevalecente na doutrina brasileira pode ser sintetizado pelas palavras de Teixeira e Konder (2010, p. 21):
Não há dúvidas de que a família, no momento em que é consultada sobre o transplante, sofre o dramático impacto da perda do ente querido. Mas é exatamente por isso que não deve caber a ela de forma absoluta, em qualquer hipótese, a decisão final acerca da doação de órgãos – principalmente se o falecido manifestou sua vontade. Seria cruel exigir dos familiares, neste momento traumático, o desprendimento para autorizar o transplante. Deve caber a ela sim, a decisão, no caso de silêncio do falecido, pois representam o que está mais próximo do que seria sua própria manifestação. Todavia, expresso em vida o desejo de doar seus órgãos, esta declaração deve ser reputada válida independente do consentimento dos familiares.
Na conjuntura dessa discussão, o Conselho da Justiça Federal (CJF), na IV Jornada de Direito Civil, editou o Enunciado 277, in verbis:
277 – Art. 14: O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador. (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2006).
Em síntese, entende a doutrina pela conciliação entre os dispositivos a partir de uma leitura do art 4º da Lei n. 9.434/1997 enquanto disposição aplicável em caráter supletivo, apenas na hipótese de ausência de expressão de vontade do falecido, caso contrário prevalece a autonomia prevista no art. 14 do Código Civil de 2002.
Entretanto, conforme citado, não é esse o entendimento prevalecente na prática médica brasileira. Buscando garantir a aplicação da prevalência da autonomia individual sobre a vontade familiar, o Senador Lasier Martins (PSD/RS) propôs o Projeto de Lei do Senado nº 453/2017, cuja epígrafe dispõe :
Altera o caput do art. 4º da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, a fim de tornar explícito que o consentimento familiar, no caso de doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para depois da morte, só se faz necessário quando o potencial doador não tenha, em vida, se manifestado expressa e validamente a respeito. (BRASIL, 2017b, p. 2).
Sobre as razões de veto ao parágrafo único do art. 4º da Lei nº 9.434/1997 previsto pela Lei nº 10.211/2001, que se fundamentaram na referida prática das equipes de transplantes brasileiras, a justificação do Projeto de Lei do Senado nº 453/2017 afirma:
Ora, a prática das equipes de transplantes não teria – e nunca terá – o condão de se sobrepor à lei, razão pela qual se faz necessário que a lei clara e expressamente autorize a retirada de partes de cadáver para efeito de doação, sem a necessidade do consentimento familiar, desde que possa ser constatada a manifestação válida do doador nesse sentido, como, por exemplo, em dizeres na sua carteira de identidade, desse modo facilitando a captação e distribuição de órgãos para mitigar o principal empecilho no processo de doação e transplante de órgãos, que é justamente a falta de consentimento familiar. (BRASIL, 2017b, p. 5).
Diante do exposto, conforme conclui Barbieri (2012), as legislações pertinentes ao consentimento para doação de órgãos não são contraditórias, mas apenas complementares. Apesar de atualmente a manifestação em vida ser preterida pela exigência dos médicos pelo consentimento familiar, o ordenamento jurídico ora vigente já estabelece a prevalência da autonomia individual.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo apresenta uma incoerência no atual regramento brasileiro sobre o consentimento apto a autorizar a extração dos órgãos para transplante. Se a doutrina jurídica majoritária entende pela prevalência da autonomia individual — de modo que, na existência de manifestação em vida do indivíduo, essa deveria prevalecer — a prática médica vale-se da abertura à divergências interpretativas presente na legislação para definir o consentimento familiar como prevalente.
Diante do exposto, visualiza-se que, apesar da melhor interpretação do ordenamento jurídico apontar a prevalência da autonomia individual, é necessária modificação legislativa que torne tal entendimento cristalino, de modo a garantir a eficácia da previsão legal.
REFERÊNCIAS
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAIO HENRIQUE ALCâNTARA, . A autonomia individual no panorama normativo brasileiro sobre a doação de órgãos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 fev 2022, 14:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58088/a-autonomia-individual-no-panorama-normativo-brasileiro-sobre-a-doao-de-rgos. Acesso em: 22 nov 2024.
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