RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar os fundamentos que propiciaram a viragem jurisprudencial realizada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 357, ocorrido em 24 de junho de 2021. O cerne da questão se traduz na preferência conferida à União em relação aos entes subnacionais no que diz respeito à cobrança judicial de créditos tributários. Tal predileção encontra amparo na literalidade do parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66) e no parágrafo único do art. 29 da Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/80), cujo conteúdo foi corroborado pela Súmula 563 e por sucessivas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. A temática foi abordada sob o prisma de uma análise comparativa entre os contextos jurídico e histórico que embasaram o entendimento jurisprudencial anterior e a sua recente modificação, com o exame da Constituição Federal, da legislação infraconstitucional e da doutrina correspondentes.
Palavras-chave: crédito tributário; execução fiscal; preferência; federalismo; autonomia; Código Tributário Nacional; Lei de Execução Fiscal.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Panorama legal e jurisprudencial. 3. Controvérsias evidenciadas em sede doutrinária. 4. O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 357. 5. Reflexos do julgamento da ADPF 357. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
É certa a existência de dispositivos legais, em nosso ordenamento jurídico, os quais preconizam que, em relação à cobrança judicial de créditos tributários, haveria um concurso de preferência entre pessoas jurídicas de direito público que sejam credoras de um mesmo devedor. Isto é, dever-se-ia obedecer uma ordem de prioridades, a qual sempre beneficiaria a União, em face dos demais entes, bem como os Estados e o Distrito Federal, caso a concorrência se desse em relação aos Municípios.
2. PANORAMA LEGAL E JURISPRUDENCIAL
Estabelecem o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66) e o parágrafo único do art. 29 da Lei 6.830/80, mais conhecida como Lei de Execução Fiscal:
Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)
Parágrafo único. O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem:
I – União;
II – Estados, Distrito Federal e Territórios, conjuntamente e pró rata;
III – Municípios, conjuntamente e pró rata.
Art. 29 – A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento.
Parágrafo Único – O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem:
II – Estados, Distrito Federal e Territórios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata;
III – Municípios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata.
Há, portanto, a definição de uma ordem preferencial entre as pessoas jurídicas de direito público na qual se privilegia a União e suas autarquias e, em seguida, os Estados, o Distrito Federal e Territórios e suas autarquias.
Observa-se que até mesmo o Código Civil de 1916, o qual vigia no momento da entrada em vigor tanto do Código Tributário Nacional quanto da Lei de Execução Fiscal, dispunha, em seu art. 1.571: “A Fazenda Federal prefere a Estadual, e esta, a Municipal”.
Considerando que o Código Tributário Nacional remonta à década de 1960, o disposto no parágrafo único do seu art. 187 veio sendo corroborado pelo Supremo Tribunal Federal nas décadas seguintes, em especial entre os anos de 1975 e 1977, a exemplo do que se demonstrou no julgamento dos seguintes Recursos Extraordinários: RE 80.045, Relator Min. Aliomar Baleeiro, Relator p/acórdão Min. Rodrigues Alckmin, DJ 13/12/1976; RE 80.748, Relator Min. Leitão de Abreu, DJ 29/04/1977; RE 80.398, Relator Ministro Cordeiro Guerra, DJ 06/06/1975; RE 81.154, Relator Ministro Cordeiro Guerra, DJ 21/11/1975.
Tratava-se, por conseguinte, de um entendimento indubitavelmente consolidado no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o qual, em razão disso, terminou por consubstanciar o seu posicionamento por meio da aprovação da Súmula 563, durante a Sessão Plenária realizada em 15 de dezembro de 1976, nos seguintes termos: “O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9º, I, da Constituição Federal”.
Cumpre ressaltar que a Constituição Federal mencionada pelo verbete citado é a Carta de 1969, porquanto a edição da Súmula 563 se deu, como indicado, no ano de 1976. Por esse motivo, existe sentido na menção ao art. 9º, I, da Constituição Federal.
Denota-se que parte da doutrina defendia que a Súmula 563 se mantinha pertinente mesmo após a Constituição Federal de 1988, a exemplo de Luiz Felipe Silveira Difini (2006, p. 341): “A nosso ver, tal permanece válido à luz da Constituição atual, que não tem norma claramente incompatível com os dispositivos em estudo. Pelo contrário, a diferença entre o art. 9º, I, da Carta de 1969 e o art. 19, III, da Constituição vigente é meramente redacional”.
De fato, pelo menos nessa última afirmação, assiste razão ao referido autor, uma vez que o art. 9º, I, da Carta de 1969 possuía a seguinte redação: “A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: I – criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uma dessas pessoas de direito público interno contra outra”. Por sua vez, dispõe o art. 19, III, da Constituição Federal de 1988: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. Assim, cotejando-se ambos os dispositivos constitucionais, realmente não se vislumbra qualquer modificação substancial quanto à literalidade de um para o outro.
Salienta-se que, mesmo após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal permaneceu caminhando no sentido de compreender como constitucional e legítimo o estabelecimento de uma ordem de preferência em favor dos entes maiores em detrimento dos entes menores. A ilustrar essa constatação:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. PREFERÊNCIA DE PAGAMENTO. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO FEDERATIVO. INOCORRÊNCIA. SÚMULA N. 563 DO STF. O Supremo fixou entendimento no sentido que a disposição legal prevista no artigo 187, parágrafo único, do CTN não viola o princípio federativo [artigo 9º, I, da CB/67, artigo 19, III, da Constituição do Brasil]. Tal entendimento foi consolidado na Súmula n. 563 do STF. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AI 745114 AgR, Relator(a): EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-148 DIVULG 06-08-2009 PUBLIC 07-08-2009 EMENT VOL-02368-22 PP-04709 RT v. 98, n. 889, 2009, p. 203-204)
Verifica-se que seguiram essa compreensão as decisões proferidas nos seguintes julgamentos: Agravo de Instrumento 197771, Relator Min. Cezar Peluso, julgado em 16/08/2007, publicado em 12/09/2007; Agravo de Instrumento 808646, Relatora Min. Rosa Weber, julgado em 18/03/2013, publicado em 05/04/2013; Recurso Extraordinário 639139, Relator Min. Teori Zavascki, julgado em 14/05/2013, publicado em 21/05/2013; Agravo de Instrumento 833386, Relator Min. Dias Toffoli, julgado em 24/06/2014, publicado em 04/08/2014.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, acompanhava a noção de subsistir, legitimamente, a existência da ordem de preferência:
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. EXECUÇÃO FISCAL. EXISTÊNCIA DE PENHORAS SOBRE O MESMO BEM. DIREITO DE PREFERÊNCIA. CRÉDITO TRIBUTÁRIO ESTADUAL E CRÉDITO DE AUTARQUIA FEDERAL. ARTS. 187 DO CTN E 29, I, DA LEI 6.830/80. PREFERÊNCIA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO FEDERAL.
1. O crédito tributário de autarquia federal goza do direito de preferência em relação àquele de que seja titular a Fazenda Estadual, desde que coexistentes execuções e penhoras.
(Precedentes: REsp 131.564/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/09/2004, DJ 25/10/2004 ; EREsp 167.381/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/05/2002, DJ 16/09/2002 ; EDcl no REsp 167.381/SP, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 22/09/1998, DJ 26/10/1998 ; REsp 8.338/SP, Rel. MIN. PEÇANHA MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/09/1993, DJ 08/11/1993)
2. A instauração do concurso de credores pressupõe pluralidade de penhoras sobre o mesmo bem, por isso que apenas se discute a preferência quando há execução fiscal e recaia a penhora sobre o bem excutido em outra demanda executiva.
(Precedentes: REsp 1175518/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/02/2010, DJe 02/03/2010; REsp 1122484/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 18/12/2009; REsp 1079275/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/09/2009, DJe 08/10/2009; REsp 922.497/SC, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/09/2007, DJ 24/09/2007)
3. In casu, resta observada a referida condição à análise do concurso de preferência, porquanto incontroversa a existência de penhora sobre o mesmo bem tanto pela Fazenda Estadual como pela autarquia previdenciária.
4. O art. 187 do CTN dispõe que, verbis: "Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005) Parágrafo único. O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem: I – União; II – Estados, Distrito Federal e Territórios, conjuntamente e pró rata; III – Municípios, conjuntamente e pró rata."
5. O art. 29, da Lei 6.830/80, a seu turno, estabelece que: "Art. 29 - A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento Parágrafo Único – O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem: I – União e suas autarquias; II – Estados, Distrito Federal e Territórios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata; III – Municípios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata."
6. Deveras, verificada a pluralidade de penhoras sobre o mesmo bem em executivos fiscais ajuizados por diferentes entidades garantidas com o privilégio do concurso de preferência, consagra-se a prelação ao pagamento dos créditos tributários da União e suas autarquias em detrimento dos créditos fiscais dos Estados, e destes em relação aos dos Municípios, consoante a dicção do art. 187, § único c/c art. 29, da Lei 6.830/80.
7. O Pretório Excelso, não obstante a título de obiter dictum, proclamou, em face do advento da Constituição Federal de 1988, a subsistência da Súmula 563 do STF: "O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9º, I, da Constituição Federal", em aresto assim ementado:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA INDIRETA. CONCURSO DE PREFERÊNCIA. ARTIGO 187 CTN.
1. O Tribunal a quo não se manifestou explicitamente sobre o tema constitucional tido por violado. Incidência das Súmulas ns. 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal.
2. Controvérsia decidida à luz de legislação infraconstitucional. Ofensa indireta à Constituição do Brasil. 3. A vedação estabelecida pelo artigo 19, III, da Constituição (correspondente àquele do artigo 9º, I, da EC n. 1/69) não atinge as preferências estabelecidas por lei em favor da União. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AI 608769 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 18/12/2006, DJ 23-02-2007)
8. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008.
(REsp 957.836/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/10/2010, DJe 26/10/2010).
Inclusive, alguns anos após, em 08 de agosto de 2012, o Superior Tribunal de Justiça solidificou o entendimento exarado, aprovando a Súmula 497, segundo a qual “os créditos das autarquias federais preferem aos créditos da Fazenda estadual desde que coexistam penhoras sobre o mesmo bem”.
Infere-se, pois, que as deliberações realizadas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça seguiam em consonância com as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.
Concebia-se que a ordem legal de prioridades se mostrava um critério razoável para a resolução da questão de existirem múltiplas execuções fiscais em face do mesmo devedor.
É preciso sublinhar a necessidade de existência de constrição sobre o mesmo bem do patrimônio do devedor em comum. Além disso, aponta-se que a preferência do ente maior recairia sobre o eventual produto da expropriação ocorrida em execução fiscal ajuizada pelo outro ente federativo.
Ademais, um dos fundamentos para a predileção conferida à União era o fato de haver a repartição de receitas tributárias em âmbito nacional, o que prestigiaria os outros entes federativos na medida em que estes participariam consideravelmente do produto da arrecadação federal.
Somado a isso, defendia-se que, constitucionalmente, incumbia-se à União um feixe de atribuições muito maior do que aquele que se confiava aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. À União caberia, por exemplo, a elaboração e a execução de planos nacionais e regionais de desenvolvimento, o que beneficiaria todos os entes.
Por tais razões, considerava-se, em outras palavras, ser apropriado que a União contasse com maiores privilégios do que os Estados e Municípios, tendo em vista ser responsável por um número maior de encargos, além de que, no contexto da época, afirmava-se que, de fato, haveria uma hierarquia entre os entes federativos, o que repercutiria em todas as esferas, incluindo a tributária.
Logo, vê-se que, historicamente, a ordem legal de prioridades quanto à cobrança dos créditos tributários gozava de uma estável aceitação, contando com a chancela da jurisprudência dos Tribunais superiores.
Contudo, denota-se que os questionamentos a essa vantagem foram-se amplificando, em especial com o advento da Constituição Federal de 1988.
3. CONTROVÉRSIAS EVIDENCIADAS EM SEDE DOUTRINÁRIA
Impõe-se destacar que importantes vozes doutrinárias há muito já defendiam a inconstitucionalidade da existência de uma ordem de preferência entre as pessoas políticas, no que diz respeito à satisfação de seus créditos tributários.
Os principais argumentos possuíam como base a identificação de afronta ao princípio federativo e ao princípio da isonomia. Haveria igualmente ofensa à autonomia dos entes, em especial dos Municípios, uma vez que até mesmo os Territórios, os quais sequer pessoas políticas são, figurariam à frente daqueles na sequência de predileções a ser seguida.
Nas certeiras palavras de Kiyoshi Harada (2005, p. 523):
Apesar da Súmula n. 563 do STF ter proclamado a compatibilização dessa preferência com a isonomia das entidades políticas tributantes, estamos convencidos de sua absoluta inconstitucionalidade por ferir, às escâncaras, o princípio federativo, que consagra a isonomia das pessoas políticas. O poder tributário foi outorgado pela Carta Magna às entidades componentes da Federação para que cada uma delas cumpra as missões que lhe foram atribuídas pelo mesmo Estatuto Magno. A noção de competência repele qualquer idéia de hierarquização, como a que resulta do dispositivo sob comento.
No mesmo sentido, prescrevia, de forma contundente, Paulo de Barros Carvalho (2009, p. 610):
É flagrante, insofismável e vitanda, sob qualquer ângulo pelo qual pretendamos encará-la. Fere, de maneira frontal e grosseira, o magno princípio da isonomia das pessoas políticas de direito constitucional interno, rompendo o equilíbrio que o Texto Superior consagra e prestigia. Discrimina a União, em detrimento dos Estados, e estes, juntamente com o Distrito Federal, em prejuízo dos Municípios, quando sabemos que estão juridicamente parificados, coexistindo num clima de isonomia. E, como se isso não bastasse, dá preferência aos Territórios, que não tem têm personalidade política, com relação aos Municípios. Lamentavelmente, a ordem preferencial que o art. 187, parágrafo único, cristaliza na redação de seu texto vem sendo acolhida e cordatamente aplicada, sem que o meio jurídico nacional se dê conta da manifesta inconstitucionalidade que encerra seu significado em face do direito positivo brasileiro.
Da mesma opinião, igualmente compartilhava Regina Helena Costa (2012, p. 304):
Enseja crítica o parágrafo único desse artigo, que estabelece um concurso de preferência entre as pessoas jurídicas de direito público. Em primeiro lugar porque veicula flagrante ofensa aos princípios federativo e da autonomia municipal, na medida em que estabelece hierarquia entre as pessoas políticas, incompatível com essa forma de estado, sem contar a indicação dos territórios – que sequer são pessoas políticas – à frente dos municípios.
Também a Lei Maior, em seu art. 19, III, proclama ser “vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. Para nós, portanto, tal preceito do Código Tributário Nacional foi tacitamente revogado, diante de sua incompatibilidade com a Constituição. E, se assim é, não há mais ordem de preferência entre as pessoas políticas, desfrutando seus respectivos créditos das mesmas condições.
Assim, embora houvesse um entendimento pacífico no âmbito do Supremo Tribunal Federal em prol da constitucionalidade da ordem legal de predileções, diferentemente se constatava ocorrer em sede doutrinária. Pelo contrário, a doutrina majoritária aconselhava o desacerto da preferência concedida à União, seguida pelos Estados, Distrito Federal e Territórios, criticando os dispositivos legais que possibilitavam isso.
4. O JULGAMENTO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADPF 357
O Governador do Distrito Federal, inconformado com a aludida situação, propôs, em 28 de julho de 2015, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 357. Questionou-se, desse modo, a persistência da validade do parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional e do parágrafo único do art. 29 da Lei 6.830/80.
Uma vez que essas normas são anteriores à Constituição Federal de 1988, seriam insuscetíveis de conhecimento em Ação Direta de Inconstitucionalidade. Legítima, por isso, a utilização da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF como meio adequado para a sua impugnação, observada a subsidiariedade que lhe é ínsita, visto que realmente seria o único meio de se impugnar a constitucionalidade das normas em comento, de forma direta, abstrata e objetiva, perante o Supremo Tribunal Federal.
Apontou-se que os preceitos fundamentais que estariam sendo desrespeitados seriam aqueles inscritos nos arts. 1º, caput, 18, 19, inciso III, 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(…)
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado.
A Ministra Relatora Cármen Lúcia considerou que o tema realmente merecia ser apreciado novamente à luz da Constituição Federal de 1988, a fim de se resolver acerca da recepção dos dispositivos contestados. Em sua explanação, sabiamente consignou que seria indispensável proceder ao detido exame do contexto em que se inseriam os dispositivos legais envolvidos, bem como dos julgamentos que propiciaram a aprovação da Súmula 563. Nota-se, desde logo, que a noção de federalismo seria essencial à análise da questão:
Nesse sentido, há que se explicitarem os precedentes que deram origem à Súmula n. 563 deste Supremo Tribunal e, por conseguinte, contextualizar as normas impugnadas e o federalismo acolhido na Constituição de 1988.
Faz-se mister esse realce porque a repetição dos termos normativo-constitucionais não são bastantes a se ter por certo e incontestável que o fundamento é idêntico, considerando-se o sistema jurídico que embasa uma norma. No caso brasileiro, enquanto a Carta de 1967 e a Emenda de 1969 contemplavam o que se conheceu como federação de opereta ou federalismo formal (não havia contexto federativo mas mera referência formal no texto normativo), a Constituição de 1988 teve no redimensionamento e comprometimento federativo um de seus pontos altos e garantidor da democracia no Brasil.
Vê-se, diante da percepção assentada pela Ministra, o quão simplista seria partir de uma elementar e ingênua comparação textual e, com base tão somente nela, depreender a subsistência da validade da Súmula 563 do STF.
Isso porque, à época da aprovação da referida súmula, tradicionalmente se preconizava que havia, sim, uma hierarquia entre os entes federados e, por tal razão, naturalmente os créditos tributários da União deveriam preceder os dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Existia, assim, um contexto propício a se considerar como adequado o conteúdo não apenas do parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional, mas também do entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal.
Ocorre que a Constituição Federal de 1988 trouxe novas balizas à questão, prestigiando o federalismo cooperativo e o equilíbrio entre os entes da federação. Com efeito, além de serem ampliadas as competências concorrentes, passou a ser autorizada a delegação de competências privativas da União. Sobretudo, elevaram-se os Municípios à categoria de entes federativos.
Percebe-se que essa ilação vai ao encontro da irrepreensível lição de José Afonso da Silva (2009, p. 436):
O Brasil, como vimos, assumiu a forma de Estado federal, em 1889, com a proclamação da República, o que foi mantido nas constituições posteriores, embora o federalismo na Constituição de 1967 e de sua Emenda 1/69 tenha sido apenas nominal. A Constituição de 1988 recebeu-a da evolução histórica do ordenamento jurídico. Ela não instituiu a federação. Manteve-a mediante a declaração, constante no art. 1º, que configura o Brasil com uma República Federativa.
Ao se perscrutar o julgamento da ADPF 357, vê-se que a Ministra Relatora Cármen Lúcia demonstrou que as decisões do Supremo Tribunal Federal que conduziram ao entendimento até então pacificado basearam-se, invariavelmente, em argumentos que possuíam como premissa em comum a noção de que a União ocupava uma posição de superioridade hierárquica no âmbito do federalismo brasileiro. Assim, por ser mais eminente do que os outros entes federados, deveria contar, obviamente, com uma condição de preferência em relação ao recebimento dos seus créditos tributários.
Não restam dúvidas, entretanto, de que, atualmente, consoante se concluiu, não há mais espaço para essa ideia de graduação entre os entes, em que haveria os mais importantes, no sentido do mais abrangente para o menor. Desse modo, conforme bem condensou, em seu voto, o Ministro Luís Roberto Barroso:
Não há nenhuma dúvida de que, no período pós 64, sob a Constituição de 1967 e a de 1978, vigorou no Brasil, apesar da contradição entre os termos, um chamado federalismo hegemônico, com superioridade jurídica da União sobre os outros entes. Ainda quando não devesse ser assim na teoria do federalismo, o fato é que assim era e assim interpretou a jurisprudência da época, uma jurisprudência que se formou já sob a vigência da Constituição de 1969, outorgada pelo Ministro do Exército, da Marinha de Guerra e da Aeronáutica Militar, na ocasião em que se impediu a posse do Vice-Presidente eleito, Pedro Aleixo. Portanto, uma Constituição ditatorial e com uma concepção altamente centralizadora e concentradora do poder da União.
Encerrado o ciclo ditatorial, sobrevém a Constituição de 1988, e a ideia de federalismo retoma o seu sentido original, significando descentralização do poder e unidade na adversidade, com as características essenciais do modelo federalista, que são a autonomia dos entes federados, no caso brasileiro, os estados e os municípios, ao lado da União; a participação dos estados na formação da vontade nacional e, por fim, o direito que os entes têm - e a Constituição assegura – de desfrutarem de competências próprias, competências que derivam diretamente da Constituição e não da vontade de qualquer dos outros entes.
A igualdade entre os entes da federação é tão evidente, que eles não estão sujeitos a qualquer tipo de hierarquia entre si, que os autores sequer destacam esse elemento como característico da Federação, simplesmente porque ele é um elemento implícito em toda a configuração do modelo dessa forma específica de Estado. Claro que a Constituição poderia, como pode eventualmente, prever tratamento desequiparado entre os estados por alguma escolha, por alguma opção legítima do constituinte, mas certamente o legislador ordinário, o legislador infraconstitucional não pode fazê-lo.
Esse foi, portanto, o aspecto crucial e determinante para a ocorrência do overruling, isto é, da viragem jurisprudencial advinda: a percepção de que o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional e o parágrafo único do art. 29 da Lei 6.830/80 remetem a um contexto jurídico e histórico que não mais subsiste, não havendo, assim, como permanecerem válidos e legítimos, diante da inviabilidade de se estabelecer qualquer tipo de privilégio infundado no atual cenário do federalismo cooperativo.
Já no que concerne ao fato de existir a repartição de parte do produto da arrecadação tributária da União, determinou-se que não seria apto a justificar a primazia dos créditos da União. De acordo com o que evidenciou o Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto:
O ônus de partilhar receitas foi estabelecido no texto constitucional como medida de equilíbrio (ou reequilíbrio) federativo, em contraponto a uma divisão de competências tributárias que centralizou recursos no domínio da União. Por esse motivo, não pode ser utilizado como justificativa para um tratamento normativo que favorece o ingresso de receitas em prol da Fazenda Nacional, frustrando o recebimento de receitas fiscais da competência tributária dos demais entes.
Por fim, embora se reconheça a inevitabilidade de se elegerem critérios para que seja definida uma ordem em que os pagamentos do devedor comum devam ser realizados, asseverou a Ministra Cármen Lúcia, a respeito dos parâmetros diferenciadores a serem adotados:
Entretanto, dois pontos precisam ser enfatizados para que se reconheça a validade do critério distintivo: o primeiro, a igualdade modelada constitucionalmente entre as pessoas somente pode ter contornos definidores no sistema constitucional, não em norma infraconstitucional. Quer dizer: estabelecendo a Constituição da República a federação como forma de Estado, estatuindo a autonomia dos entes federados como núcleo da forma estatal (art. 18), somente pelo desenho constitucional se poderia estatuir preferências entre os entes para efeito de pagamento dos créditos tributários. Segundo, o que legitima critério de diferenciação – prevalecente o princípio da igualdade dos entes federados e da autonomia de cada qual – é a finalidade constitucional adequadamente demonstrada.
No caso, nem a diferenciação põe-se em norma constitucional nem se comprova finalidade constitucional legítima buscada com a distinção estabelecida nas normas questionadas.
5. REFLEXOS DO JULGAMENTO DA ADPF 357
O julgamento da ADPF 357 culminou com a declaração da não recepção, pela Constituição Federal de 1988, do parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional e do parágrafo único do art. 29 da Lei de Execução Fiscal.
Na mesma oportunidade, o Supremo Tribunal Federal resolveu, por lógica, cancelar a sua Súmula 563, uma vez que não mais persistem as bases que fundamentaram a sua edição.
A decisão se deu nos termos do voto da Ministra Relatora Cármen Lúcia, vencidos o Ministro Dias Toffoli, o qual julgava improcedente a ação, e o Ministro Gilmar Mendes, o qual a julgava parcialmente procedente, para conferir interpretação conforme a Constituição.
Deduz-se que, por consequência, encontra-se superada a Súmula 497 do Superior Tribunal de Justiça, já que se alicerçava nos dispositivos legais declarados pelo Supremo Tribunal Federal como não recepcionados. Em virtude disso, entende-se que não há mais razão para os créditos das autarquias federais preferirem aos créditos da Fazenda estadual, como aduzia a mencionada súmula.
No plano prático, verifica-se que, antes, havia evidentes distorções na arrecadação tributária, dado que, muitas vezes, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios conseguiam, com muito esforço, localizar bens do patrimônio do devedor comum e, não obstante, o fruto desse trabalho terminava por ser conferido à União, tão somente em função de uma preferência a ela abstratamente conferida. Todavia, com a superveniência do julgamento da ADPF 357, essa injustiça será corrigida, de modo a melhor se harmonizarem as execuções fiscais com o princípio federativo, nos moldes como o federalismo é concebido hodiernamente.
Interessa pontuar que se encontra em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 485/2017, de iniciativa do Senador Fernando Bezerra Coelho, o qual objetiva alterar o Código Tributário Nacional para, na cobrança judicial de créditos, conferir preferência de acordo com a anterioridade da penhora realizada sobre o bem em relação ao qual se concorre. Opina-se que se trata de critério justo e razoável, tendo em vista que favorece a pessoa política que demonstrou maior agilidade e competência na busca pela satisfação do seu crédito tributário, independentemente da sua envergadura.
6. CONCLUSÃO
Denota-se ser patente o acerto do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 357, ao realizar um overruling há muito esperado pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Trata-se de uma viragem jurisprudencial que adéqua os posicionamentos do Tribunal na questão em análise, os quais passarão a se coadunar com a atual ordem constitucional que se impõe.
O princípio federativo e a autonomia dos entes federados, com efeito, passaram a receber um tratamento distinto e revigorado a partir do advento da Constituição Federal de 1988. Seria incoerente permitir que perdurassem antigos entendimentos jurisprudenciais, respaldados por contextos jurídicos e históricos ultrapassados.
Não há espaço, no federalismo cooperativo, para a permanência de privilégios injustificados. Ademais, de que adiantaria os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuírem competências tributárias próprias se, ao buscarem os seus créditos, tivessem que eventualmente deles desistir, por uma obrigação legal de praticamente cedê-los à União?
De fato, afigura-se mais justo e consentâneo com os valores constitucionais atuais que, na cobrança judicial de créditos tributários em face do mesmo devedor, os entes federativos concorram em igualdade de condições, elencando-se critérios objetivos para se definir qual deles terá preferência no caso concreto, como, por exemplo, a anterioridade da constrição realizada sobre o patrimônio do executado.
Desse modo, evitam-se distorções no sistema de arrecadação e resguardam-se as competências tributárias atribuídas a cada ente, em respeito ao federalismo cooperativo, ao princípio da isonomia e à autonomia de todos os entes federados.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 485, de 06 de dezembro de 2017. Altera o art. 187 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), e o art. 29 da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980 (Lei de Execuções Fiscais), para dispor sobre o concurso de preferência das pessoas jurídicas de direito público na hipótese de cobrança judicial de créditos. Brasília: Senado Federal, 2017. Disponível em: <https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pls-485-2017>. Acesso em: 08 mar. 2022.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
COSTA, Regina Helena. Curso de direito tributário – Constituição e Código Tributário Nacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Manual de direito tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
Pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Oficiala de Justiça Avaliadora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOGUEIRA, Suzana Maurício. Concurso de preferência entre pessoas jurídicas de direito público: overruling no Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 mar 2022, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58148/concurso-de-preferncia-entre-pessoas-jurdicas-de-direito-pblico-overruling-no-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 22 nov 2024.
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