Resumo: O artigo retrata o panorama legal e jurisprudencial acerca da taxatividade na cobertura dos eventos e procedimentos pelos planos de saúde. Para tanto, serão expostos os principais argumentos favoráveis e contrários à taxatividade no âmbito do STJ, com análise das premissas que cercam a discussão na corte.
Palavras-chaves: Planos de saúde. Taxatividade dos eventos e procedimentos em saúde. Rol da ANS. STJ. Direito fundamental à saúde. Viabilidade atuarial. Equilíbrio financeiro.
Abstract: The article portrays the legal and jurisprudential panorama about the taxation in the coverage of events and procedures by health plans. To this end, the main arguments in favor and against taxation within the scope of the STJ will be exposed, with an analysis of the premises surrounding the discussion in court.
Keywords: Health insurance. Taxation of health events and procedures. ANS role. STJ. Fundamental right to health. Actuarial viability. Financial balance.
Sumário: 1. Introdução. 2. Entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a taxatividade de eventos e procedimentos de saúde. 3. Conclusão. 4. Referências.
1-Introdução
Os planos de saúde privados são complementares ao sistema único de saúde, conforme a configuração disposta no Constituição Federal. Assim, mesmo tendo natureza contratual, regidos por normas e princípios de direito privado, os planos de saúde lidam com objeto caro ao direito público, por ser a saúde um direito constitucional de elevada fundamentalidade.
Contudo, a discussão acerca da cobertura dos planos de saúde nos tribunais superiores tem o potencial de gerar grande impacto na pressão exercida no sistema público. Caso se considere que as cláusulas contratuais do seguro saúde devam ser interpretadas estritamente, muitos contratantes irão socorrer-se do sistema de saúde oferecido pelo Estado, a fim de ver provido o serviço negado pela plano. De outro giro, caso as cláusulas sejam flexibilizadas, incluindo-se eventos ou procedimentos não previstos contratualmente, haverá o encarecimento das mensalidades dos segurados, tornando inviável a manutenção do plano para uma parcela expressiva da população. Isso também ocasionará aumento na demanda pelo sistema público.
Dessarte, encontrar um equilíbrio nesse dilema ético e econômico, centrado na escassez de recursos e na solidariedade intergeracional, é o grande desafio dos tribunais superiores. A depender da direção tomada nos temas que tramitam nas cortes de sobreposição, poderão ser extintas algumas modalidades básicas de cobertura, por inviabilidade mercadológica. Essa postura fere não apenas os princípios da liberdade econômica e da livre iniciativa, mas principalmente o acesso à saúde complementar para uma grande parcela da população de menor renda.
Para ilustrar os dilemas enfrentados na jurisprudência pátria, serão examinados julgados recentes do STJ acerca da taxatividade do rol da ANS para eventos e procedimentos em saúde.
2-Entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a taxatividade de eventos e procedimentos de saúde.
Inicialmente, deve-se enfrentar o embate lógico entre duas premissas antagônicas: o conceito de cobertura mínima obrigatória e de rol taxativo de cobertura.
O STJ tem julgados recentes entendendo pela prevalência da Lei dos Planos de Saúde sobre o Código de Defesa do Consumidor, considerando os critérios cronológico e da especialidade, com ganho de causa às empresas operadoras.
No recurso especial nº 1.733.013/PR, a quarta turma do STJ examinou o tema com substanciosa acurácia, uma vez que houve contribuições de várias entidades como “amicus curiae”. O julgamento foi unânime. Prevaleceu o entendimento do relator, Min. Luis Felipe Salomão, pela taxatividade do rol de procedimentos.
O rol da ANS está previsto na Resolução Normativa nº 428⁄2017. A atualização do rol segue o procedimento traçado na Resolução Normativa ANS nº 439⁄2018.
Em uma minudente análise, a Agência Nacional de Saúde Suplementar asseverou em sua manifestação no julgamento:
“De plano, adiante-se que a ANS possui interesse em contribuir com o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, posto que o tema diz respeito à regulação e normatização das atividades de assistência suplementar à saúde. A tese que defende o caráter exemplificativo do rol de procedimentos põe em risco o equilíbrio econômico-financeiro do sistema de saúde suplementar, em razão do efeito cascata refletido em um crescente número de pretensões similares e, com isso, risco à segurança jurídica.
De fato, como existem milhares de procedimentos e eventos em saúde, e como as análises de licitude, ética, eficiência, atualidade, relação custo⁄efetividade e impacto financeiro dependem de conhecimentos técnicos específicos, além do fato de que tais procedimentos e eventos estão em constante processo de modificação decorrente da evolução tecnológica, o legislador entendeu por bem não arrolar no corpo da Lei n.º 9.656⁄98 aqueles que devem ser obrigatoriamente cobertos para a prevenção, tratamento, recuperação e reabilitação das doenças e problemas de saúde classificados pela OMS.
Em verdade, a partir do que consta no art. 10, § 4º, da Lei n.º 9.656⁄98 c⁄c o art. 4º, III, da Lei n.º 9.961⁄00, pode-se deduzir com segurança que foi opção do legislador a atribuição dessa tarefa normativa e regulatória à agência setorial correspondente, qual seja, a ANS.
Trata-se, em essência, de um fenômeno político-jurídico que é conhecido na doutrina como deslegalização, que consiste, nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em sua obra Mutações de Direito Administrativo, Ed. Renovar, 2000, pág. 166, na ‘retirada, pelo próprio legislador, de certas matérias, do domínio da lei (domaine de la loi) passando-as ao domínio do regulamento (domaine de l´ordonnance).’
A propósito, registre-se que a ANS vem cumprindo regiamente a tarefa que lhe foi cometida pela Lei 9961⁄2000, na medida em que procede à atualização do rol periodicamente, cujo processo será oportunamente esclarecido.
Logo, revela-se fundamental a compreensão de que, em essência, trata-se de um negócio jurídico eminentemente privado, muito embora sujeito à regulação por força da alta relevância pública do direito envolvido, e, por outro lado, cuida-se de um setor econômico cujo financiamento advém do mutualismo, ou seja, do conjunto de mensalidades pagas pelos participantes ou beneficiários. O pagamento mensal feito por cada contribuinte consubstancia uma espécie de fundo dedicado a cobrir todos os riscos da atividade, o que, na saúde, significa o custo com o tratamento de doenças.
Se é assim, não é preciso muito esforço para constatar que a formação do preço do produto ofertado depende de uma criteriosa estimativa a respeito da frequência de ocorrências no setor, bem como de todas as demais despesas relacionadas à prestação do serviço de saúde, e, noutro prisma, de uma projeção de receita que permita a fixação de um valor em patamar adequado a representar equilíbrio atuarial. Quanto maior a estimativa de frequência de sinistro maior deve ser a projeção, o que, em escala, pode inclusive comprometer o próprio mercado de saúde suplementar.
Data vênia, já são muitas as naturais oscilações do mercado de saúde suplementar, de modo que qualquer variação imposta de forma descuidada que fragilize as projeções atuariais pode trazer sérios problemas a este sensível segmento econômico. Com efeito, não se mostra salutar qualquer medida tendente a incrementar o quadro de incerteza neste setor sem a devida análise do seu impacto, sendo certo que segurança jurídica e previsibilidade devem ser encarados como efetivos pilares.
Ao se admitir o caráter meramente exemplificativo do rol de cobertura definido pela ANS, descortina-se quadro de absoluta incerteza sobre os riscos que, de fato, estão sendo assumidos pela operadora de plano de saúde, do que decorre invariavelmente a impossibilidade de precificação adequada e, logo, de oferta de produto. De todo modo, não se pode ignorar que a flexibilização do rol de cobertura definido pela ANS traz consigo razoável risco de elevação exponencial do preço dos produtos, tornando as mensalidades mais caras.
Faz-se crucial perceber que, como o mecanismo de financiamento do setor é o mutualismo, ou seja, todos contribuem para cobrir os gastos para recuperação da saúde de determinado membro do grupo, o preço maior das mensalidades pode afastar o indivíduo de menor risco do sistema, potencializando a espiral de seleção adversa que acaba por inviabilizar o próprio mercado, na linha do que demonstrou George Arthur Akerlof.
Trata-se, como cediço, de processo extremamente complexo, pois pressupõe criteriosa análise de: i) custo⁄efetividade do procedimento cuja incorporação se pretende, ocasião na qual são avaliados ganhos e resultados clínicos mais relevantes para os pacientes, segundo a melhor literatura científica disponível e os conceitos de Avaliação de Tecnologias em Saúde - ATS, ponderando potenciais riscos decorrentes de determinada tecnologia; ii) capacidade instalada, de modo a aferir a real viabilidade de determinado procedimento ser entregue adequadamente aos beneficiários, com qualidade e sem riscos para o paciente, uma vez que o rol é estabelecido para todo o país; iii) e, por fim, do efetivo impacto financeiro⁄orçamentário gerado pela incorporação da tecnologia.”
Como visto, a ANS se posiciona pela taxatividade do rol por ela elaborado. De outro giro, no tocante ao tratamento prescrito pelo médico pessoal do segurado, a ANS pontuou:
“O fato do médico de determinada parte opinar por um procedimento como o mais adequado ao seu caso não o reveste de consenso científico apto a torná-lo obrigatório no plano de saúde. Quando o médico emite uma opinião a favor de um procedimento, ele assume uma responsabilidade perante um único paciente. Diferentemente, a inclusão de um procedimento no rol da ANS possui um impacto social para milhares de brasileiros beneficiários de planos de saúde.”
Como visto, a flexibilização do rol da ANS, tornando-o meramente sugestivo, pode ocasionar a seleção adversa.
O economista americano George Arthur Akerlof, citado na manifestação da agência, estudou as distorções causadas pela assimetria de informações. Em último caso, modelos matemáticos demonstram que o mercado de planos de saúde podem torna-se inviáveis economicamente. Desta forma, caso o rol seja considerado meramente exemplificativo, muitos modelos de negócios relacionados ao seguro saúde serão inviabilizados, excluindo, em última análise, o acesso de uma camada expressiva da população a este serviço, ocasionando aumento na demanda pelo sistema público de saúde.
No ano de 2021, os planos de saúde individuais e familiares ficaram mais baratos, com a diminuição de 8% no valor das mensalidade. Por sua vez, os planos coletivos ficaram mais caros. Nesse mesmo ano, a procura por planos de saúde teve relativo aumento, atingindo um quarto da população brasileira.
Por sua vez, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) assim se manifestou:
“O art. 196 da Constituição Federal estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado, havendo autorização constitucional expressa para a atuação do setor privado na assistência à saúde, nos termos do art. 199. Contudo, é importante frisar que essas atividades, mesmo quando desempenhadas por particulares em regime privado de exploração econômica, são revestidas do caráter de relevância pública, nos termos do art. 197 da Carta Magna.
Assim, ainda que prestada pela iniciativa privada, a saúde não perde seu caráter de relevância pública, o que impõe restrições e cuidados a todos aqueles que decidem prestar serviços de saúde, seja na elaboração ou na execução dos contratos com os consumidores contratantes.
Além disso, há que se considerar, no caso em análise, a bilateralidade do contrato em questão e o concurso de vontades opostas inerente à formação do contrato, em que, de um lado, o consumidor que contrata um plano de saúde busca a mais ampla garantia de que será atendido em caso de necessidade. Ou seja, o consumidor detém a expectativa de que será prontamente atendido quando necessitar de atendimento à saúde, independentemente da espécie de procedimento necessário a seu restabelecimento.
De seu lado, o mercado defende a taxatividade do referido rol, enquanto o entendimento do Poder Judiciário é diverso, pois considera que o Rol não deve ser interpretado em um vazio normativo, mas em consonância com as diretrizes da Lei de Plano de Saúde e com os princípios de proteção ao consumidor, vez que constitui referência básica para a cobertura assistencial mínima nos planos privados de saúde, os quais, por sua vez, tratam de relação de consumo.”
Nesta última manifestação, houve a exposição das diferentes visões acerca do tema. Por outro lado, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria Nacional do Consumidor, vinculado ao Ministério da Justiça, assim se manifestou, no essencial:
“Uma vez comprovadas a segurança e a eficácia da nova tecnologia, a próxima etapa da avaliação tecnológica de saúde (ATS) é a avaliação econômica. Nessa etapa, são levados em consideração os aspectos microeconômicos da ATS, que incluem custos, preços e valores pagos.
Na análise econômica, são desenvolvidos os estudos que indicam se, quando comparado a alternativas, o investimento na nova tecnologia é viável ou não: A ATS envolve o cálculo dos beneficios, comparando-os com os custos, em quatro técnicas principais: a análise de custo-efetividade, a de custo-minimização, a de custo-utilidade e a de custo-beneficio.
I-análise de custo-efetividade: investiga a melhor forma de alcançar um objetivo preestabelecido, comparando os custos de diferentes tecnologias.
II-análise de custo-minimização: compara estratégias com eficácias terapêuticas semelhantes e custos diferentes. Como as consequências são equivalentes, apenas os custos são comparados, sendo preferível a estratégia com custo mais baixo. Esta análise é um caso especial da análise custo efetividade.
III-análise de custo-utilidade: realizada com o intuito de contornar os problemas acerca das medidas de desfechos dadas em unidades monetárias e clínicas sem considerar a preferência do paciente. O parâmetro de medida de ganho de saúde mais comumente utilizado nesse tipo de avaliação fundamenta-se na mensuração da qualidade de vida. Essa mensuração é normalmente realizada pela aplicação de questionários estruturados que pesquisem a preferência por um estado de saúde ou bem-estar do paciente. A análise de custo-utilidade é usada quando os impactos na sobrevivência e na qualidade de vida são critérios importantes para julgar os efeitos de estratégias do cuidado em saúde.
IV-análise de custo-benefício: Compara custos e benefícios, os quais são quantificados em unidades monetárias, tornando possível determinar se uma nova tecnologia ou intervenção em saúde gera um benefício líquido para a sociedade. Os benefícios nesse tipo de análise normalmente são calculados a partir da avaliação do valor de uma vida ou da incapacitação. Alguns métodos propostos para isso são o valor do trabalho de pessoas beneficiadas pelo programa, seguros de vida e produção para a sociedade de um trabalhador ao longo da sua vida. Estes métodos são questionados pela discussão ética que envolve valorar a vida em termos monetários.”
Nesta última manifestação, fez-se referência à análise de custo-benefício, que utiliza critérios que orientem na monetização da vida humana. A despeito de questões éticas subjacentes, é fato que essa quantificação é corriqueiramente praticada em julgamentos de ações indenizatórias. Muitos tribunais se socorrem das tabelas do DPVAT e da SUSEP na fixação da quantia devida no aso de indenizações por morte.
A doutrina faz alusão a uma inversão de princípios e valores jurídicos, constatada em julgamentos de tribunais de segunda instância, com a fixação de indenizações relacionadas à vida humana em montantes inferiores às indenizações relacionadas a direitos autorais, por exemplo. Essas decisões são quase sempre confirmadas nos tribunais superiores, ante a interpretação restritiva dessas cortes quanto à possibilidade de alteração dos montantes arbitrados em sede de recursos especiais e extraordinários, os quais só são passíveis de revisão em casos teratológicos, diante do impedimento de análise fático-probatória nos recursos excepcionais.
A taxatividade do rol de procedimentos da ANS suscita o dilema acerca da possibilidade de haver maior probabilidade de êxito, em termos estatísticos, de procedimentos sem adequada evidência científica que o respalde, quando comparados aos procedimentos já consagrados pela medicina.
A decisão judicial que determina a cobertura de procedimento de controversa evidência científica, não integrante do rol da ANS, com base apenas em prescrição do médico de confiança do paciente, sem orientação de outros profissionais, pode representar efetivo risco à vida ou saúde do jurisdicionado.
Tratar o rol como meramente exemplificativo multiplicaria de forma exponencial a probabilidade de cobertura de procedimentos não previstos, sem aferição adequada de impacto econômico e sem demonstração de sua segurança e efetividade. Não há como prever o custo de procedimento desconhecido, cuja adoção não dependa de prévia análise econômica. Há risco não desprezível de desequilíbrio financeiro e atuarial pela própria imprevisibilidade que a flexibilização do rol traria consigo, com impactos sobre os preços para os consumidores beneficiários, a exclusão de grupos do atendimento em função do aumento dos preços e sobrecarga do sistema público de saúde.
Atuando como amicus curiae, o Instituto Brasileiro de Atuária pontuou em sua manifestação:
“O mutualismo na atuária busca tornar as incertezas individuais em certezas coletivas. No cálculo atuarial, a frequência é estimada com base na observação passada da quantidade de eventos de atenção à saúde demandados para cada faixa de risco e o custo relativo a essas demandas. Assim, a determinação de quais serão as coberturas a serem contempladas no plano de saúde é condição imprescindível para que seja possível a aplicação de métodos de estimativa atuarial sobre a quantidade de eventos cobertos pelo plano. Tais condições são previstas na ‘Nota Técnica’ que registra de forma precisa e minuciosa todos os critérios e parâmetros de cálculo.”
Sendo assim, é razoável afirmar que a demanda por tratamentos não previstos no produto registrado na Agência Nacional de Saúde Suplementar não são considerados pelo atuário no momento de realizar o cálculo de precificação do plano de saúde.
A elevação dos custos dos sistemas de saúde, o aumento da expectativa de vida da população, o maior conhecimento sobre o processo saúde-doença e a aceleração do desenvolvimento tecnológico, pressionam os planos de saúde pela incorporação de tecnologias inovadoras, que necessitam garantir eficácia e segurança aos pacientes e beneficiários de planos de saúde.
A resolução da ANS não deixa dúvidas de que no processo de incorporação ao Rol de Procedimentos, devem ser observadas a avaliação de tecnologia em saúde (ATS), a avaliação econômica em saúde (AES) e a análise de impacto orçamentário (AIO).
Há evidente risco de, sob o manto de se estar aplicando a justiça a um indivíduo ciente de que as coberturas seriam de acordo com o rol de procedimentos da ANS, quando da assinatura dos respectivos instrumentos contratuais, em manifestação da própria vontade, provocar o colapso na saúde econômico-financeira das empresas operadoras.
A ATS surgiu nos anos 1960 e se tornou um instrumento fundamental para auxiliar na tomada de decisão de diversas áreas ligadas à saúde, sendo adotada na América do Norte, Europa, Austrália e, posteriormente, nos países em desenvolvimento.
Em sua manifestação como amicus curiae, a Associação de Defesa do Consumidor ponderou:
“Não raras vezes os valores das parcelas dos planos de saúde comprometem entre 50% a 80% dos salários dos usuários (idosos, doentes), presos a uma situação de falta de opção: abstêm-se de qualidade de vida, como o lazer, muitas vezes contraindo dívidas, para honrar com as mensalidades dos seus planos de saúde, afinal o Sistema Único de Saúde encontra-se em colapso, restando, apenas, deixar suas rendas familiares nos cofres das empresas de saúde, a fim de permanecerem vivos com tratamentos adequados.
Se o Rol for considerado taxativo, ou seja, apenas o que está previsto na lista é que deverá ser oferecido, há o risco de o SUS ser acionado no lugar dos planos de saúde para fazer esse atendimento. Isso com certeza aumentará a carga de atendimento, e tem potencial para aumentar também a carga judicial hoje já elevada contra o sistema público, já que retira do SUS o montante a ser investido no sistema.”
Esta última manifestação desperta um exame mais aprofundado do tema. Afinal, a pressão sobre o sistema público advirá tanto com a compreensão pela taxatividade do rol quanto pelo seu caráter exemplificativo. Afinal, se o rol for considerado sugestivo, a demanda pelo serviço não será aderente ao cálculo atuarial, gerando elevação dos prêmios e extinção de planos populares. Em última instância, uma camada expressiva da população migrará para o sistema público, por não poder arcar com o reajuste. De outro giro, se o rol for taxativo, o advento de enfermidades não cobertas pelos planos básicos, ou o indeferimento de tratamentos não previstos contratualmente, também resultará em sobrecarga dos serviços públicos de saúde.
A judicialização da saúde no setor público potencializa a pressão sobre o SUS, uma vez que as decisões judiciais obrigam ao custeio do tratamento no setor privado, quando há demora no atendimento no setor público, às custas do orçamento do SUS, que não poderá contar com esta verba para suas políticas públicas.
O debate do tema envolve tanto a taxatividade do rol de eventos, ou seja, as enfermidades que serão objeto de cobertura, quanto do rol de procedimentos, a fim de incluir tratamentos experimentais e novos medicamentos.
A esse respeito, a manifestação do MPF ponderou:
“Ocorre que, reconhece-se à operadora de plano de saúde a faculdade de, contratualmente, mediante cláusula explícita e de fácil compreensão, restringir as doenças que serão cobertas pelo plano. Daí, evidentemente, extrai-se que não é possível presumir a não cobertura da moléstia. Prevista a cobertura, o plano não pode limitar o tipo de tratamento a que será submetido o paciente, matéria que se insere no âmbito da autonomia médica para decidir o melhor tratamento para a preservação da higidez física do consumidor.”
Como visto, o órgão do MPF se manifestou pela separação da taxatividade, aplicando-a apenas ao rol de eventos. Já quanto ao rol de procedimentos, o órgão entende que o rol é meramente exemplificativo.
Sobre a incorporação de novos tratamentos, o artigo 4º da Resolução apresenta diretrizes técnicas relevantes, de inegável complexidade: I – a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, de modo a contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país; II – as ações de promoção à saúde e de prevenção de doenças; III – o alinhamento com as políticas nacionais de saúde; IV – a utilização dos princípios da Avaliação de Tecnologias em Saúde – ATS; V – a observância aos preceitos da Saúde Baseada em Evidências – SBE; e VI – a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor.
Logo, a decisão sobre o tratamento do paciente deve estar alicerçada na medicina baseada em evidências, uma escolha consciente calcada na melhor evidência clínica disponível. Essa técnica descarta tratamentos sem força estatística, privilegiando os estudos clínicos randomizados controlados e duplo-cego, ou seja, onde os integrantes são escolhidos de forma aleatória, as variáveis são controladas e os participantes e pesquisadores não sabem qual substância foi ministrada.
Em conclusão, o Ministro Luis Felipe Salomão asseverou em seu voto:
“O rol mínimo e obrigatório de procedimentos e eventos em saúde constitui relevante garantia do consumidor para propiciar direito à saúde, com preços acessíveis, contemplando a camada mais ampla e vulnerável da população. Por conseguinte, em revisitação ao exame detido e aprofundado do tema, conclui-se que é inviável o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo e de que a cobertura mínima, paradoxalmente, não tem limitações definidas.
Esse raciocínio tem o condão de encarecer e efetivamente padronizar os planos de saúde, obrigando-lhes, tacitamente, a fornecer qualquer tratamento prescrito, restringindo a livre concorrência e negando vigência aos dispositivos legais que estabelecem o plano-referência de assistência à saúde (plano básico) e a possibilidade de definição contratual de outras coberturas.
No caso, a operadora do plano de saúde está amparada pela excludente de responsabilidade civil do exercício regular de direito, consoante disposto no art. 188, I, do CC. É incontroverso, constante da própria causa de pedir, que a ré ofereceu prontamente o procedimento de vertebroplastia, inserido do rol da ANS, não havendo falar em condenação por danos morais.”
Comentando acerca da divergência no âmbito da corte, o Ministro asseverou:
“De início, correndo o risco da repetição, assinalo novamente que a dispersão jurisprudencial deve ser preocupação de todos e, exatamente por isso, tenho afirmado que, se a divergência de índole doutrinária é saudável e constitui importante combustível ao aprimoramento da ciência jurídica, o dissídio jurisprudencial é absolutamente indesejável.”
Conforme Jorge Amaury Maia Nunes:
A postura do Poder Judiciário é de elevada importância para a concretização da segurança jurídica, notadamente pela entrega de uma prestação jurisdicional previsível que não atente contra a confiança legítima do jurisdicionado. (Segurança jurídica e súmula vinculante. São Paulo: Saraiva, 2010, passim).
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a Segunda Turma decidiu:
"Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria ideia de justiça material" (Pet 2.900, QO/RS, 2003).
Ingo Wolfgang Sarlet leciona que o texto constitucional não define expressamente o conteúdo do direito à proteção e à promoção da saúde, indicando a relevância de uma adequada concretização por parte do legislador e, no que for cabível, por parte da administração pública.
Conforme Ferreira, Pereira e Enzweiler:
“Nessa toada, anota a doutrina especializada que a viabilização da atividade de assistência à saúde envolve custos elevados, os quais terão de ser suportados pelos próprios consumidores, e que cabe ao Poder Judiciário um papel fundamental, o de promover uma interpretação justa e equilibrada da legislação pertinente à matéria, sopesando os interesses envolvidos sem sentimentalismos e ideias preconcebidas, contando com o apoio técnico de profissionais qualificados.
A despeito do alerta feito pelos autores citados, o tema ainda é permeado por sentimentalismos. No Recurso Especial nº 1.794.629/SP, o STJ decidiu que o plano de saúde não é obrigado a custear o procedimento de fertilização in vitro. Neste julgamento, o relator, Ministro Moura Ribeiro, assentou em seu voto:
“Por conseguinte, ao expandir/criar novas exclusões assistenciais no plano-referência de assistência à saúde, talvez por má percepção acerca dos conceitos médicos, a Resolução Normativa nº 387/2015 ampliou o rol taxativo previsto no art. 10 da Lei nº 9.656/98, estando, portanto, em desacordo com ela. Nesse cenário, o próprio CNJ, muito provavelmente estimulado pela resolução acima, promoveu a 1ª Jornada de Direito da Saúde, em que foi aprovado o enunciado nº 20, que diz que a inseminação artificial e a fertilização in vitro não são procedimentos de cobertura obrigatória pelas empresas operadoras de planos de saúde, salvo por expressa iniciativa prevista no contrato de assistência à saúde.”
A esse respeito, não é crível que a ANS desconheça as diferenças nas técnicas de reprodução assistida ao regular a matéria. O entendimento de que a reprodução assistida é gênero e a inseminação artificial e a fertilização in vitro são espécies é oriunda do direito, e não da medicina. Para a ciência médica, ambas são técnicas de reprodução assistida, apropriadas para cada perfil de paciente, e com variação de custos decorrente da complexidade inerente.
Ao final do voto, o Ministro Moura Ribeiro ainda pontuou:
“A seguradora de saúde precisa compreender que o seu capital pode e deve ser humanístico, no dizer retumbante do professor Ricardo Sayeg. E assim pensando, diferenciando gênero e espécie, fico em paz com a minha consciência.”
Como visto, o assunto é permeado por sentimentalismos. Retomando a análise do julgamento sobre a taxatividade do rol de eventos e procedimentos, constou no voto do relator, Min. Luis Felipe Salomão:
“Eventuais decisões administrativas ou judiciais à margem da lei escapam das previsões pretéritas e têm o condão de agravar a delicada situação financeira de inúmeras operadoras de planos de saúde, que, seguida de intervenções, liquidações ou aquisições de carteiras de clientes, fere em última análise a própria confiança e expectativa dos consumidores, razão maior da contratação do plano ou seguro de saúde. O problema deixa de ser da operadora e passa a atingir toda a sociedade.
Por sua vez, discorrendo sobre o crescimento dos gastos em saúde, o mesmo relator lembrou:
“Nessa trilha, o Ministro Sálvio de Figueiredo destacou, como responsável pela expansão na assistência à saúde, o crescimento da população e do contingente assistido, uma vez que, na Constituição de 1967, o direito à saúde tinha como titular o trabalhador e, na Carta de 1988, passou a ser de todo brasileiro, assim como as dificuldades inerentes a uma boa prestação pelo Estado-gestor (A responsabilidade civil do médico. In Direito e medicina. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 202).
Também o Ministro Marco Aurélio Mello salientou que todos esses elementos - deficiência crônica no setor público, avanço vertiginoso dos tratamentos e incremento dos custos - alavancam a importância do setor de saúde suplementar, fundamental para o equacionamento do problema (Planos de saúde - aspectos jurídicos e econômicos. Luiz Augusto Ferreira Carneiro, (Coord.) Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 4).”
Os custos com saúde são crescentes, uma vez que os serviços e equipamentos de saúde são geralmente dolarizados, considerando a constante exigência do mercado pela importação de máquinas e insumos avançados.
O envelhecimento da população é uma realidade que impacta o seguro saúde. Como exemplo, uma criança japonesa do sexo feminino nasce com a expectativa de chegar à idade de 90 anos. No Brasil, um homem de 65 anos tem 20 anos de expectativa de sobrevida.
Por sua vez, existem 30 mil centenários no Brasil, com previsão de esse número chegar a 300 mil nas próximas décadas. O Japão já possui 90 mil centenários, dos quais 90% são mulheres. Essa movimentação na pirâmide etária importa alterações profundas na alocação orçamentária para gastos com saúde, em especial na pesquisa e tratamento da demência.
O método da expectativa de vida tem sido substituído pelo “índice linear de mortalidade”, calculando-se os anos potenciais de vida perdidos, com base na diferença entre a idade da morte e o número 100.
As classes de maior renda da população gastam até metade de sua fortuna com a busca da longevidade. Esse gasto com pesquisa de ponta pressiona continuamente os preços em serviços de saúde, ocasionando uma explosão inflacionária na oferta. Como exemplo, áreas inovadoras na pesquisa farmacológica trouxeram ao mercado medicamentos cuja dose individual custa milhões de reais, a exemplo do Zolgensma, fármaco usado em terapia genética.
No Brasil, o seguro saúde foi inicialmente disciplinado pelo Código Civil de 1916 e pelo Decreto-Lei n. 73/1966. Posteriormente, a Lei nº 6.839/1980 instituiu a obrigatoriedade do registro das empresas de prestação de serviços médico-hospitalares e da anotação dos profissionais por elas responsáveis legalmente habilitados pelos CRMs. A atividade também sofreu relevante influxo com o Código de Defesa do Consumidor.
Conforme declarou o Min. Luis Felipe Salomão em seu voto:
“O entendimento de que o rol é meramente exemplificativo, devendo a cobertura mínima, paradoxalmente, não ter limitações definidas, tem o condão de efetivamente padronizar todos planos de saúde, obrigando-lhes, tacitamente, a fornecer qualquer tratamento prescrito para garantir a saúde ou a vida do segurado, porque o plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de terapêutica indicada por profissional habilitado na busca da cura.
Nessa perspectiva, de um lado, é importante pontuar não haver dúvida de que não cabe ao Judiciário se substituir ao legislador, violando a tripartição de poderes e suprimindo a atribuição legal da ANS ou mesmo efetuando juízos morais e éticos, não competindo ao magistrado a imposição dos próprios valores de modo a submeter o jurisdicionado a amplo subjetivismo.”
A esse respeito, desde 2010 o Brasil fechou cerca de 10% dos leitos de UTI, em decorrência da crise fiscal e orçamentária. Antes mesmo do contexto pandemiológico iniciado em março de 2020, os juízes tiveram que enfrentar demandas pela preferência na internação, uma verdadeira escolha pela vida. Muitas decisões judiciais substituíram os protocolos médicos e determinaram a preferência para pessoas que se encaixavam nos critérios elegidos pelo magistrado, configurando um conflito ético. Não se nega que os recursos escassos exigem decisões drásticas, todavia, substituir os critérios médicos pela análise casuística e subjetiva de liminares provindas do Poder Judiciário não é o melhor caminho.
Sobre a relação de dependência entre direito e moral, Fábio Portela Lopes Almeida leciona que essa relação precisa ser abandonada, o que não significa dizer que não exista uma ligação íntima entre ambas. De acordo com Habermas, essa relação é de complementariedade.
Por outro lado, a forte intervenção estatal na relação contratual e a expressa disposição do art. 197 da CF deixam claro que o serviço de saúde é de relevância pública, extraindo-se da leitura do art. 22, § 1º, da Lei nº 9.656/1998 a inequívoca preocupação do legislador com o equilíbrio financeiro-atuarial dos planos e seguros de saúde, que devem estar assentados em planos de custeio elaborados por profissionais, segundo diretrizes definidas pelo Consu, um conselho deliberativo no âmbito da saúde suplementar.
No escólio de Fábio Ulhoa Coelho:
“Consoante entendimento majoritário da doutrina especializada, os planos e os seguros privados de assistência à saúde possuem nítida natureza mutualista e securitária, submetendo-se a precificação a cálculos e estudos atuariais. A função econômica do seguro é socializar riscos entre os usuários. A operadora recebe de cada um o prêmio, calculado de acordo com a probabilidade de ocorrência do evento danoso. Em contrapartida, obriga-se a conceder a garantia consistente em pagar certa prestação pecuniária ao segurado, ou a terceiros beneficiários, na hipótese de verificação de sinistro (COELHO, Fábio Ulhoa. Contratos. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 340-341).”
O Min. Luis Felipe Salomão salientou em seu voto:
“Nos casos de contratos securitários, como é cediço, notadamente em vista dos avanços da atuária, há acesa controvérsia doutrinária acerca da inserção da álea como integrante do objeto do contrato de seguro, visto que, com os prêmios que recebe de seus segurados, se corretos os cálculos atuariais que realizou, a seguradora não apenas disporá dos recursos necessários aos pagamentos das prestações devidas, em razão dos eventos segurados que se verificarem e das despesas administrativas e operacionais relacionadas ao seu funcionamento, como também obterá lucro.”
A esse respeito, Walter Polido preleciona:
“Destarte, em um ambiente de segurança jurídica, a atividade seguradora se baseia em riscos, e não em incertezas, pois os riscos contidos na apólice, nos estritos termos em que foi elaborada, podem ser perfeitamente investigados e mensurados (POLIDO, Walter A. Contrato de seguro e a atividade seguradora no Brasil: Direito do Consumidor. São Paulo: Roncarati, 2015, p. 13 e 17).”
Logo, é necessário respeitar a manutenção do equilíbrio das prestações no tempo, sob pena de inviabilizar o próprio modelo de negócio.
Analisando as manifestações, o relator, Min. Luis Felipe Salomão, assentou:
“Como esclarecido pelas substanciosas manifestações dos amici curiae ANS, Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor e Instituto Brasileiro de Atuária, o rol propicia a previsibilidade econômica necessária à precificação de planos e seguros de saúde. É que o menoscabo de tais aspectos bem como a própria imposição pelos juízos de coberturas que não têm amparo na legislação vigente geram, muitas vezes, externalidades positivas para os consumidores e negativas para as operadoras de planos privados de assistência à saúde, resultando em distorções nos custos dos planos e, principalmente, nos seus cálculos e estudos atuariais, impondo o oferecimento ao mercado de planos mais caros, que acabam restringindo o acesso de muitos consumidores a este mercado.
Realmente, com a modificação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, os arts. 20 a 30 exigem dos operadores do Direito um viés consequencialista, tanto na tomada de decisões pelas autoridades administrativas - que passam também a ter um ônus maior de transparência, por meio de consultas públicas -, como para o Judiciário - que passa a ter a obrigação de levar em conta as consequências de suas decisões no mundo jurídico, no mundo fático, antes de proferi-las.
Por conseguinte, invocando o princípio da função social do contrato, insculpido no art. 421 do CC, não se pode descuidar de que o modelo se baseia no conceito de mutualismo, que vem da área de seguros: um grupo de pessoas se junta, cotiza-se e gera-se uma receita por meio do pagamento individual da mensalidade, sendo o valor total arrecadado usado para pagar as despesas decorrentes do atendimento à saúde de integrantes desse grupo. Como são várias pessoas, os custos se diluem, o preço do plano se reduz, e elas podem ter acesso a serviços que teriam dificuldade de custear individualmente.”
Em complemento, o Código Civil de 2002 alçou as diretrizes da socialibilidade e da eticidade a postulados fundamentais. Nesse passo, os contratos passam a ser concebidos em termos econômicos e sociais, consoante propugnado pela teoria preceptiva. Segundo esta teoria, as obrigações oriundas dos contratos valem não apenas porque as partes as assumiram, mas porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada.
Sobre a possibilidade de uma solução conciliatória entre os segurados e as operadoras, o Min. Luis Felipe Salomão asseverou:
“Bem assim, evidentemente, é sempre possível a autocomposição. Muito embora não seja um dever que possa ser imposto, não se descarta a possibilidade de a operadora ou seguradora pactuar com o usuário para que ele cubra a diferença de custos entre os procedimentos do rol ou da cobertura contratual e o orientado pelo médico assistente, a par de ser hipótese que propicia ao consumidor valer-se dos preços mais favoráveis que usualmente são cobrados das operadoras em sua relação mercantil com os prestadores de serviços.”
Por fim, em conclusão de julgamento, o ministro ponderou:
“Assim, como a questão exige conhecimento técnico e, no mais das vezes, subjacente divergência entre profissionais da saúde (médico assistente do beneficiário e médico-perito da operadora do plano), para propiciar a prolação de decisão racionalmente fundamentada, na linha do que propugna o Enunciado n. 31 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ, o magistrado deve obter informações do Núcleo de Apoio Técnico ou Câmara Técnica e, na sua ausência, de outros serviços de atendimento especializado, tais como instituições universitárias e associações profissionais.”
Os procedimentos com cobertura obrigatória, conforme a Resolução Normativa nº 465/2021 da ANS, têm assegurada a cobertura de todas as taxas, materiais, contrastes e medicamentos necessários para a sua execução, desde que estejam regularizados e registrados e suas indicações constem da bula perante a Anvisa, devendo ser respeitados os critérios de credenciamento, referenciamento e reembolso entre operadora e prestadores de serviços de saúde. Por sua vez, os procedimentos opcionais devem ser claramente explicados aos segurados.
O entendimento contrário advoga que a recusa indevida pela operadora de plano de saúde de cobertura médico-assistencial gera dano moral, porquanto agrava o sofrimento psíquico do usuário, já combalido pelas condições precárias de saúde, não constituindo, portanto, mero dissabor, ínsito às hipóteses de inadimplemento contratual.
O entendimento acerca do rol taxativo de eventos e procedimentos em saúde ainda pende de definição no STJ, que analisa a questão nos EREsps. nº 1.886.929/SP e nº 1.889.704/SP. No primeiro caso, o relator, Min. Ricardo villas Bôas Cueva, votou pelo caráter exemplificativo do rol de procedimentos. Por sua vez, no segundo recurso, a Ministra Nancy Andrigui indeferiu agravo interno, entendendo igualmente pelo caráter meramente exemplificativo do rol de procedimentos. Ambos os ministros foram contrários à inclusão da cobertura da fertilização in vitro, se o contrato assim não dispuser, com base nos critérios de equilíbrio atuarial.
Dessarte, percebe-se que as mesmas premissas lógicas calcadas nas consequências da decisão e no equilíbrio atuarial são manejadas diferentemente, a depender da questão de fundo subjacente ao litígio entre usuários e operadoras.
Na decisão que indeferiu o agravo interno no EREsp. nº 1.889.704/SP, citado acima, a Ministra Nancy Andrigui asseverou:
“Com efeito, a Corte de origem manteve a determinação de cobertura de tratamento por meio de terapia especializada não prevista expressamente no Rol de cobertura obrigatória editado pela ANS, entendendo que a recusa de cobertura de tratamento com expressa indicação médica sob o fundamento de constar do aludido Rol é abusiva.
Até o julgamento do REsp 1.733.013/PR pela Quarta Turma (julgado em 10/12/2019, DJe de 20/02/2020), havia, no âmbito da Segunda Seção, o entendimento consolidado sobre a natureza meramente exemplificativa desse rol, fundado nas regras e princípios do CDC, em especial no da interpretação mais favorável ao consumidor e no da boa-fé objetiva. Sucede, entretanto, que, ao julgar o REsp 1.733.013/PR, a Quarta Turma promoveu mudança do seu entendimento para decidir que o rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS tem natureza taxativa.
Por outro lado, a competência legal atribuída à ANS pelas Leis 9.656/98 e 9.961/2000, e os atos normativos por ela exarados, além de compatíveis com as referidas Leis, devem ter conformidade com a CF/1988 e as normas insertas no CDC, inclusive os seus princípios, não lhe cabendo inovar a ordem jurídica.
Logo, não cabe a ANS estabelecer outras hipóteses de exceção da cobertura obrigatória pelo plano-referência, além daquelas expressamente previstas nos incisos do art. 10 da Lei 9.656/1998, assim como não lhe cabe reduzir a amplitude da cobertura, excluindo procedimentos ou eventos necessários ao tratamento das doenças listadas na CID, ressalvadas, nos termos da lei, as limitações impostas pela segmentação contratada.
É forçoso concluir, portanto, no sentido da manutenção da orientação da Terceira Turma, há muito firmada nesta Corte no sentido de que a natureza do referido rol é meramente exemplificativa e, por isso, reputa abusiva a recusa de custeio do tratamento de doença coberta pelo contrato.
Por sinal, na sessão de 03/02/2021, esse entendimento foi reafirmado, à unanimidade, pela Terceira Turma no julgado citado na decisão agravada (REsp 1846108/SP, 3ª Turma, DJe 05/02/2021. Por fim, nem mesmo na Quarta Turma, o entendimento divergente é unânime, haja vista julgados recentes daquele órgão fracionário no sentido de que o plano de saúde pode estabelecer as doenças a que dará cobertura, mas não o melhor tratamento indicado.”
Na segunda Seção, o relator, Min. Luis Felipe Salomão, exarou seu voto no dia 16/09/2021, entendendo pela taxatividade do rol da ANS, com exceções. No dia 23/02/2022, a Min. Nancy Andrigui reforçou seu entendimento em voto-vista, no mesmo sentido da decisão monocrática citada acima, entendendo pelo natureza meramente sugestiva do rol. Citando precedente do STF, a ministra reiterou o argumento de que a saúde é um direito fundamental. Assim, a saúde suplementar não pode estar calcada apenas no lucro, dada sua vinculação à pessoa humana e a importância social dessa atividade.
A Min. Nancy Andrigui lembrou que as operadoras de planos de saúde possuem lucros na casa de bilhões de reais. Além disso, o Anexo I da Resolução nº 465/2021 da ANS elenca mais de três mil procedimentos, não sendo exigido do consumidor que compreenda a linguagem técnica empregada. No entendimento da ministra, as operadoras podem aumentar as mensalidades caso haja aumento da sinistralidade. Com base nesses argumentos, o rol seria meramente exemplificativo, ressalvadas as limitações impostas pela segmentação contratada.
O argumento de lucratividade não impressiona. As despesas de saúde no Brasil representam quase 10% do PIB, com 55% desse montante a cargo do setor privado e 45% a cargo do setor público. Segundo a CGU, em 2021 o orçamento da saúde pública foi de 189 bilhões de reais, com execução de 161 bilhões de reais. Por sua vez, os planos de saúde correspondem a um mercado de 220 bilhões de reais em receitas, com cerca de 700 empresas operadoras e 47 milhões de usuários. Em 2020, o lucro do setor cresceu 49,5%, chegando a 17,5 bilhões de reais, em decorrência do repasse dos custos da pandemia.
O setor público também passou por aumento de gastos no mesmo período, resultando em crescimento do endividamento por meio da emissão de títulos públicos e elevação de impostos.
Essa lucratividade dos planos está concentrada em poucas operadoras líderes. O entendimento pelo rol meramente sugestivo irá inviabilizar diversas operadoras de menor porte. Como dito, o debate sobre o tema ainda está envolto de sentimentalismos, com argumentos alusivos ao capitalismo humanitário, consciência do julgador e lucratividade deste setor de mercado.
Após esse voto-vista, o relator, Min. Luis Felipe Salomão, aditou seu voto, na mesma sessão, corroborando seu posicionamento tomado no dia 16/09/2021. Replicando o voto-vista, o relator lembrou que nenhum país do mundo possui lista aberta de eventos e procedimentos em saúde. A definição dessa tese em precedente qualificado pela 2ª Seção irá trazer segurança jurídica para operadoras e usuários.
Percebe-se, assim, que há uma tendência no âmbito do STJ de privilegiar os critérios atuariais e consequencialistas no julgamento de situações não cobertas expressamente pelos contatos de seguro saúde. Esta postura foi adotada para excluir a cobertura da fertilização in vitro, conforme decisão adotada pela 2º Seção, no julgamento conjunto dos REsps. 1.822.420, 1.822.818 e 1.851.062, adotando-se a sistemática dos recursos repetitivos. O voto-vista da Min. Nancy Andrigui no caso do rol da ANS possui premissas que contrariam seu posicionamento no caso da fertilização in vitro.
No âmbito do STJ, o Rol da ANS tende a ser cindido, considerando-se taxativo o elenco de enfermidades cobertas pelos planos de saúde, e exemplificativo no que toca aos procedimentos para o tratamento das enfermidades cobertas.
3. Conclusão
Em 2022, a conclusão acerca do entendimento sobre os planos de saúde pelo STJ terá forte repercussão na judicialização do casos envolvendo as operadoras e usuários, sejam empregados ou não. Estará em jogo a própria sobrevivência do modelo de negócio, que pode se tornar inviável a depender da orientação da corte. Este artigo expôs a linha lógico-dedutiva das premissas adotadas pelos integrantes da corte, buscando encontrar um liame no raciocínio adotado nos últimos julgamentos. O deslinde da questão perpassa uma análise acurada dos critérios atuariais que sustentam a viabilidade financeira dos seguros saúde no tempo. Há, assim, nítido embate de princípios relevantes no âmbito constitucional, e a realidade mercadológica. Percebe-se uma tendência de cisão no entendimento da corte, adotando-se a taxatividade do rol de eventos da ANS, mas flexibilizando o rol de procedimentos.
4. Referências.
Cláudia Galiberne Ferreira; Hélio do Valle Pereira; Romano José Enzweiler. Curso de direito médico. São Paulo: Conceito Editorial, 2011.
Fábio Portela Lopes Almeida. Os princípios constitucionais entre deontologia e axiologia: pressupostos para uma teoria hermenêutica democrática. Revista Direito GV, jul-dez 2008.
Fábio Ulhoa Coelho. Contratos. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009.
Jorge Amaury Maia Nunes. Segurança jurídica e súmula vinculante. São Paulo: Saraiva, 2010, passim.
Walter A. Polido. Contrato de seguro e a atividade seguradora no Brasil: Direito do Consumidor. São Paulo: Roncarati, 2015.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. Rol taxativo de eventos e procedimento em saúde na visão do STJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 mar 2022, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58185/rol-taxativo-de-eventos-e-procedimento-em-sade-na-viso-do-stj. Acesso em: 22 nov 2024.
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