JOSÉ CARLOS RIBEIRO DA SILVA [1]
(orientador)
RESUMO: O estudo em tela apresentará a multiparentalidade e os efeitos que seu reconhecimento provoca no ordenamento jurídico brasileiro, no que diz respeito ao âmbito familiar, possuindo como problemática os efeitos jurídicos gerados a partir do reconhecimento da multiparentalidade no âmbito familiar. O trabalho, de forma geral, objetiva analisar os efeitos jurídicos desse instituto. Em se tratando dos objetivos específicos compreender a evolução e os princípios do direito civil, nesse caso específico, o direito de família, as espécies de filiação reconhecidas no Brasil e em Portugal, bem apontar o conceito e histórico da multiparentalidade, da possibilidade de existência concomitante da parentalidade biológica e afetiva no registro de nascimento, e seus efeitos na seara jurídica. Pautada em pesquisa dedutiva e bibliográfica, foram utilizadas pesquisas extraídas de livros e de legislações vigentes, além dos artigos e jurisprudências publicados em bases de dados online. Após o estudo, restou claro que não há distinção entre a filiação afetiva e biológica, sendo que ambas podem coexistir ao mesmo tempo, gerando efeitos jurídicos próprios e direitos garantidos. Dessa forma, foram detectadas diversas consequências advindas dos entendimentos acerca dos efeitos jurídicos, não havendo, ainda, legislação própria acerca do tema.
Palavras-chave: Multiparentalidade. Parentalidade Socioafetiva. Coexistência de parentalidade biológica e afetiva.
ABSTRACT: The present study will present multiparenthood and the effects that its recognition causes in the Brazilian legal system, with regard to the family environment, having as a problematic the legal effects generated from the recognition of multiparenting in the family environment. The work, in general, aims to analyze the legal effects of this institute. In terms of specific objectives, understanding the evolution and principles of civil law, in this specific case, family law, the species of filiation recognized in Brazil and Portugal, as well as pointing out the concept and history of multiparenthood, the possibility of concomitant existence of biological and affective parenting in birth registration, and its effects on the legal field. Based on deductive and bibliographic research, researches extracted from books and current legislation were used, in addition to articles and jurisprudence published in online databases. After the study, it became clear that there is no distinction between affective and biological affiliation, and both can coexist at the same time, generating their own legal effects and guaranteed rights. In this way, several consequences arising from the understandings about the legal effects were detected, and there is still no specific legislation on the subject.
Keywords: Multiparenting. Socioaffective Parenting. Coexistence of biological and affective parenting.
Sumário: Introdução; 1. Evolução da conceituação de família; 1.1 A família para a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; 1.2 Princípios do direito de família; 2. Filiação: histórico e conceituação; 2.1 Espécies de filiação; 3. Multiparentalidade e as consequências jurídicas do seu reconhecimento no âmbito familiar; 3.1 Histórico e conceituação de mmultiparentalidade; 3.2 Da coexistência da parentalidade biológica e afetiva no registro de nascimento; 3.3 Efeitos decorrentes do reconhecimento da multiparentalidade; 3.3.1 Extensão do parentesco a outros parentes; 3.3.2 Nome; 3.3.3 Guarda e direitos de visita; 3.3.4 Efeitos sucessórios; 4. Considerações finais; Referências
INTRODUÇÃO
O instituto familiar passou por diversas modificações em sua estrutura no decorrer dos anos, trazendo à tona o surgimento de novos arranjos familiares. Assim como todos os ramos jurídicos, o Direito de Família não se manteve imune às transformações da sociedade.
Até poucos anos, existiam critérios para se determinar a filiação, sendo eles: filiação biológica, presunção legal e socioafetiva. Entretanto, apenas um dos critérios poderia prevalecer (FARIAS e ROSENVALD, 2018). Além disso, o Enunciado 339 do CJF/STJ aduzia que “A parentalidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho”.
No ano de 2016, o Supremo Tribunal Federal, em inédita decisão, fixou nova tese, esclarecendo que não há distinção entre a parentalidade biológica e socioafetiva, deixando claro que é viável que posteriormente haja o reconhecimento de outra modalidade de filiação, podendo ser oriunda de laços sanguíneos ou aquelas que decorrem dos vínculos afetivos.
Dessa forma, após tantas mudanças da sociedade e da maneira de constituição da família, surge a necessidade de amparar os laços familiares resultantes da filiação socioafetiva. A multiaprentalidade é o reconhecimento da existência comum da filiação biológica e socioafetiva, trazendo a possibilidade de legitimação da paternidade/maternidade da madrasta ou padrasto sem que haja necessidade de desconsiderar o pai ou mãe biológicos.
Desta forma, o presente estudo, de forma geral, objetiva versar sobre a multiparentalidade, sendo delimitado na análise dos efeitos que esse instituto traz ao mundo jurídico. Possuindo como questão norteadora: quais são efeitos jurídicos decorrentes do reconhecimento da multiparentalidade?
Em se tratando da metodologia, foi utilizado o método dedutivo bibliográfico e documental, realizado de forma interdisciplinar, analisando a Constituição Federal e o Direito Civil.
A multiparentalidade é uma realidade se faz presente em muitas famílias, e sua compreensão é relevante devido as mudanças nos modelos familiares, trazendo vasta mudança ao Direito de Família, alterando valores e comportamentos da sociedade. Antes, a família ligava-se apenas por laços sanguíneos, e agora é reconhecida pelos laços afetivos, aumentando, dessa forma, a possibilidade de diversos tipos de núcleo parental.
1 EVOLUÇÃO DA CONCEITUAÇÃO DE FAMÍLIA
Rosa (2020) aduz que com o passar dos anos, durante a formação da família, houveram inúmeras influências da Grécia e de Roma, bem como influências religiosas, principalmente pelo cristianismo. Em Roma, por exemplo, a família era reconhecida através do poder patriarcal e todos os outros componentes da entidade eram subordinados ao chefe da família (Noronha e Parron, 2012). Após a queda do Império Romano, a família passou a ser considerada uma extensão da igreja, mesmo que não tenha deixado de reger através do patriarcado (Gagliano e Filho, 2019).
O Código Civil de 1916 trazia, de maneira clara, a origem patriarcal ao determinar o homem como o líder da família, conforme pode ser entendido de alguns de seus artigos, não dando abertura, portanto, para a existência de outras modalidades de constituição da família, a não ser aquela que tem origem no casamento (Xavier, 2015, p. 28). Logo que o casamento era a união de pessoas que objetivavam formar uma relação doméstica, com a finalidade de perpetuação, sendo que, ao ser formada uma família, não havia a opção de sua dissolução, mesmo que não houvesse afeto entre os seus componentes (Rosa, 2020).
Santos (2014, p.41) aduz que:
A família viveu por um longo tempo na conhecida forma plena da autoridade patriarcal, onde somente o patriarca poderia adquirir bens para a formação do patrimônio familiar e exercia o poder sobre os filhos e sobre a mulher. A sua organização era em função da ideia religiosa e cristã, haja vista sermos herdeiros da civilização romana. Com a evolução pós-romana a família assumiu um cunho sacramental substituindo-se à organização autocrática uma orientação democrático-efetiva, onde os pais exercem o poder familiar e não mais somente do patriarca, de forma que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, equipararam-se os direitos e deveres dos pais nas relações familiares sendo reforçado com o Código Civil de 2002.
Com o advento da Constituição Federal, no ano de 1988, houve uma grande revolução no direito familiar, ao afrontar de maneira direta o modelo familiar convencionado no Código Civil de 1916, alterando a perspectiva jurídica do ambiente doméstico, refletindo diretamente no Código Civil de 2002 (Schreiber, 2020).
Segundo o entendimento de Miranda (2000), a família deve ser conceituada como sendo um grupo de pessoas formadas por um ascendente que traz consigo uma essência para preservar a memória dos antepassados, de forma que seus descendentes deem continuidade aos costumes adquiridos por seus ancestrais, preservando, assim, sua memória e repassando-a aos seus sucessores.
Conforme Gagliano e Pamplona Filho (2017, p. 1081), família é
“o núcleo existencial integrado por pessoas unidas por vínculo socioafetivo, teologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes, segundo o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”.
Os autores ainda ensinam que
“é preciso compreender que a família, hoje, não é um fim em si mesmo, mas o meio para a busca da felicidade, ou seja, da realização pessoal de cada indivíduo, ainda que existam – e infelizmente existem – arranjos familiares constituídos sem amor” (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2012, p. 773)
Segundo Pereira (2017, p. 49),
Ao conceituar a “família”, destaque-se a diversificação. Em sentido genérico e biológico, considera-se família o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum. Ainda neste plano geral, acrescenta-se o cônjuge, aditam-se os filhos do cônjuge (enteados), os cônjuges dos filhos (genros e noras), os cônjuges dos irmãos e os irmãos do cônjuge (cunhados).
Desta forma, a família tem início pelos cônjuges, e de forma posterior, os descendentes. Dessa maneira, o Código Civil de 2002, estabelece que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
Referido código, no art. 1596ainda dispõe que não poderá existir discriminação entre filhos de origens diferentes, devendo ser proporcionado a todos os direitos e qualificações inerentes à eles.
1.1 A Família Para A Constituição Da República Federativa Do Brasil De 1988
A CF de 1988 foi um marco histórico para o direito familiar, ao proteger todos os membros do núcleo familiar, equiparando todos os direitos sem distinção de gênero, trazendo proteção ao casamento e a união estável, e também à formação por qualquer membro familiar (DIAS, 2016).
Após a promulgação constitucional de 1988, os doutrinadores passaram a tratar o direito de família de forma mais profunda, o que proporcionou maior amplitude após o advento do Código Civil de 2002.
O artigo 226 da CF/88 tratou sobre a família, enfatizando a ordem social:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Dando ênfase ao tema, Gonçalves (2017, p.37), aduz que “a nova Carta abriu ainda outros horizontes ao instituto jurídico da família, dedicando especial atenção ao planejamento familiar e à assistência direta a família”.
1.2 Princípios Do Direito De Família
Com a evolução social, surgiram novos tipos de família, inclusive o modelo da multiparentalidade, mesmo não estando expressamente implantada na Constituição Federal.
Esse novo modelo familiar encontra-se amparado pelos princípios constitucionais. De acordo com Lôbo:
Nenhum princípio da Constituição provocou tão profunda transformação do direito de família quanto o da igualdade entre homem e mulher, entre filhos e entre entidades familiares. Todos os fundamentos jurídicos da família tradicional restaram destroçados, principalmente os da legitimidade, verdadeira summa divisio entre sujeitos e subsujeitos de direito, segundo os interesses patrimoniais subjacentes que protegiam, ainda que razões éticas e religiosas fossem as justificativas ostensivas (LÔBO, 2011, p. 65).
No que se refere à multiparentalidade, apesar de não haver legislação específica, ela se encontra amparada nos princípios constitucionais aplicáveis aos indivíduos da sociedade e seus grupos familiares (DIAS, 2021). Deste modo, destacam-se os princípios da dignidade da pessoa humana, da função social, da pluralidade das entidades familiares, do melhor interesse da criança e do adolescente e o da afetividade.
O princípio da dignidade da pessoa humana está elencado no Art. 1º, inciso III da CF/1988. Segundo Gagliano e Filho (2017) esse princípio se fundamenta na existência humana, tendo ampla acepção. Segundo Dias (2016, p. 74)
O direito das famílias está umbilicalmente ligado aos direitos humanos, que têm por base o princípio da dignidade da pessoa humana, versão axiológica da natureza humana. O princípio da dignidade humana significa, em última análise, igual dignidade para todas as entidades familiares. Assim, é indigno dar tratamento diferenciado às várias formas de filiação ou aos vários tipos de constituição [...].
Na mesma linha, Gonçalvez apud Cunha Pereira (2016) explana que:
O direito de família é o mais humano de todos os ramos do direito. Preleciona Rodrigo da Cunha Pereira que “a evolução do conhecimento científico, os movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo. Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um ‘declínio do patriarcalismo’ e lançaram as bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as constituições democráticas” (GONÇALVEZ apud CUNHA PEREIRA, 2016, p. 5-6, 413).
Extrai-se daí, que o a multiparentalidade é baseada no princípio da dignidade da pessoa humana, logo que, considerando a noção de dignidade, a premissa de que o critério biológico é fator exclusivo de vinculação filial, englobando, assim, a afetividade como elemento essencial fundamentador da extensão do vínculo familiar, pois a função social da família contempla o sentimento de cooperação e apoio recíproco. De acordo com Farias e Rosenvald (2017), isso pode ser destacado na condenação ao pagamento de alimentos, no reconhecimento da união estável, pois mesmo que não haja divórcio, caracterize a separação de fato.
Decorrente das mudanças sociais acerca do conceito de família, surge o princípio da pluralidade das entidades familiares, que, conforme preceituado no art. 226 da CF/88, a família decorrente da união estável e da família monoparental, também possuem proteção do estado, e não apenas a família oriunda do casamento.
Farias e Rosenvald (2017), no que se refere princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, ensinam que, caso haja necessidade, os ascendentes devem deixar seus interesses próprios de lado para garantir o melhor interesse da sua prole.
Conforme Pereira (2016), o princípio da afetividade é um princípio que pertence ao grupo dos princípios não expressos, mas está subentendido e respaldado pela Constituição Federal, e possibilita a paridade entre irmãos biológicos e adotivos.
Ante o exposto, pode-se constatar que o Direito de Família faz uso dos princípios para a orientação do legislador, objetivando manter o equilíbrio entre equidade e a justiça, sendo que o direito não pode estar alheio aos novos acontecimentos devido à ausência de legislação pertinente a ser aplicada em cada caso.
2 FILIAÇÃO: HISTÓRICO E CONCEITUAÇÃO
Rosa (2020) ensina que a filiação pode ser dividida em quatro modalidades. A primeira modalidade é a matrimonial, que é a filiação advinda da constância do casamento, havendo a presunção da paternidade. A segunda é a filiação ocorrida na constância de um relacionamento convencional, como a união estável ou o namoro, e até mesmo de um encontro casual. A terceira modalidade é a decorrente de procedimento de reprodução assistida, fertilização in vitro ou inseminação artificial. A última modalidade é a filiação socioafetiva, resultante da posse do estado de filho.
Conforme Rosa (2020), em se tratando filiação socioafetiva, ela leva em conta o pode ser visto, ou seja, trata-se de um resultado da teoria da aparência. Isso significa que a entidade familiar deve agir como pais e filhos, e portanto, não pode-se, apenas visivelmente, diferenciar se os filhos são afetivos ou biológicos.
Para ser caracterizado da posse do estado de filho, é necessário que alguns critérios sejam cumpridos. O primeiro critério a ser preenchido é o Tractatus, que se refere ao tratamento das partes diante da sociedade, ou seja, é necessário que as partes de tratem e se relacionem como pais e filhos. O segundo, é a Reputatio, ou seja, a repercussão desse tratamento, de maneira que a sociedade reconheça os indivíduos como pai e filho. O último é o Nominatio, que está presente no caso em que o filho utilize o sobrenome do pai, não importando se o nome é registral, ou apenas socialmente utilizado (Taturce, 2020).
3 MULTIPARENTALIDADE E AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO RECONHECIMENTO NO ÂMBITO FAMILIAR
3.1 Histórico E Conceituação de Multiparentalidade
Considerando a globalização, o desenvolvimento tecnológico e populacional, é comum que surja novas culturas e diversos fatos sociais. Essa evolução também ocasionou mudanças na estrutura familiar no que se refere aos critérios de paternidade (FARIAS E ROSENVALD, 2014).
De acordo com Santos (2014), a paternidade/maternidade pode ser definida pelo aspecto presumido, biológico e afetivo, no entanto, com o avanço da doutrina e da jurisprudência, está consolidado que se houver conflito entre paternidade/maternidade biológica e socioafetiva, a socioafetiva deve prevalecer.
Em se tratando da divergência entre o reconhecimento ou não reconhecimento da parentalidade afetiva, a Egrégia Corte do Tribunal de Justiça de Santa Catarina tem se posicionado da seguinte forma:
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ALIMENTOS. DEMANDA AJUIZADA CONTRA A GENITORA E O PAI SOCIOAFETIVO. [...]. VIABILIDADE. RECONHECIMENTO NESTE GRAU DE JURISDIÇÃO DA DUPLA PARENTALIDADE. DETERMINAÇÃO DE RETIFICAÇÃO DO REGISTRO CIVIL PARA CONSTAR O NOME DO PAI BIOLÓGICO COM A MANUTENÇÃO DO PAI SOCIOAFETIVO. VÍNCULO SOCIOAFETIVO QUE NÃO EXCLUI O BIOLÓGICO. POSSIBILIDADE DE COEXISTÊNCIA DE AMBOS. PREVALÊNCIA INTERESSE DA CRIANÇA. TESE FIRMADA EM REPERCUSSÃO GERAL. FIXAÇÃO DE ALIMENTOS A PEDIDO DO AUTOR. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. "A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos" (STF, RE n. 898.060/SP. Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.9.2016). (TJ-SC-AC: 03026749320158240037, Joaçaba 0302674.93.2015.8.24.0027, Relator: Saul Steil, Julgado em: 17/04/2018, Terceira Câmara de Direito Civil).
A multiparentalidade advém da equiparação entre a filiação biológica e afetiva. Welter apud Cassettari (2015) destaca que:
Visto o direito de família sobre o prisma da tridimensionalidade humana, deve-se atribuir ao filho o direito fundamental às paternidades genética e socioafetiva e, em decorrência, conferir-lhes todos os efeitos jurídicos das duas paternidades. Numa só palavra, não é correto afirmar, como o faz a atual doutrina e jurisprudência do mundo ocidental que ´a paternidade socioafetiva se sobrepõe à paternidade biológica´, ou que “a paternidade biológica se sobrepõe à socioafetiva”, isso porque ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas, exatamente porque fazem parte da condição humana tridimensional, que é genética, afetiva e ontológica” (WELTER apud CASSETARI, 2015, p. 215)
Dessa forma, Valadares (2016) assevera que a multiparentalidade é um ato social, e como todo ato social, é necessária a sua normalização, pois apenas através de sua regulação é possível que haja a conformação jurídica dessa mudança na estrutura familiar:
A multiparentalidade pode ser conceituada como a existência de mais de um vínculo na linha ascendente de primeiro grau, do lado materno ou paterno, desde que acompanhado de um terceiro elo. Assim, para que ocorra tal fenômeno, necessário pelo menos três pessoas no registro de nascimento de um filho [...] (VALADARES, 2016, p. 55).
Dias (2010, p. 49) esclarece que:
A multiparentalidade “decorre da peculiar organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos são egressos de casamentos ou uniões anteriores. Eles trazem para a nova família seus filhos e, muitas vezes, têm filhos em comum”. A autora aponta ainda que “as famílias pluriparentais são caracterizadas pela estrutura complexa decorrente da multiplicidade de vínculos, ambiguidade das funções dos novos casais e forte grau de interdependência”
3.2 Da Coexistência Da Parentalidade Biológica E Afetiva No Registro De Nascimento
Ante da CF de 1988, vivíamos em um modelo hierárquico de família, mas com o advento da Carta Magna, passamos a viver em um modelo democrático, no qual houve a possibilidade da ampliação do conceito de família, passando de um modelo taxativo para um modelo plural e aberto (LEITÃO, 2015).
Segundo o art. 226, § 3º e 4º da Carta Magna:
“§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
Após reconhecer a união estável e o modelo de família monoparental, a CF/88 abriu precedente para a existência de outros arranjos familiares. Dessa forma, Silva e Brum (2014) ensinam que nessa seara, é comum a existência de famílias composta de casais separados, que acolhem os filhos dos parceiros advindos de uniões anteriores, formando vínculos, instituindo-se assim uma nova família. Além dessa situação, também há casos de casais homoafetivos que buscam, de forma judicial, a declaração de filiação socioafetiva dos filhos do parceiro, não afastando a filiação biológica.
Devido a isso, o afeto possui um valor jurídico reconhecido, surgindo, assim, o princípio da afetividade, conforme já mencionado.
Calderón (2011) explica que:
[...] parece possível sustentar que o Direito deve laborar com a afetividade e que sua atual consistência indica que se constitui em princípio no sistema jurídico brasileiro. A solidificação da afetividade nas relações sociais é forte indicativo de que a análise jurídica não pode restar alheia a este relevante aspecto dos relacionamentos. A afetividade é um dos princípios do direito de família brasileiro, implícito na Constituição, explícito e implícito no Código Civil e nas diversas outras regras do ordenamento [...] (CALDERON, 2011, p.263).
Com o reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva, surgiram demandas jurídicas acerca do conflito entre paternidade biológica e socioafetiva. O tema chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) na Repercussão Geral nº 622, que pacificou a tese.
De acordo com Taturce (2019):
“[...] A decisão do STF é o fim do caminho. A regra passou a ser a multiparentalidade, nos casos de dilemas entre a parentalidade socioafetiva e a biológica. Uma não exclui a outra, devendo ambas conviver em igualdade plena.”
Segundo Madaleno (2019), o Recurso Extraordinário 898060/16, que teve como relator o Ministro Fux, a tese da multiparentalidade foi aprovada com todas as consequências patrimoniais e extrapatrimoniais, no enunciado 622, que declarou que “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo e filiação concomitante baseado na ordem biológica com os efeitos jurídicos próprios.”
Ementa RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. PATERNIDADE BIOLÓGICA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CONTROVÉRSIA GRAVITANTE EM TORNO DA PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EM DETRIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. ART. 226, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLENÁRIO VIRTUAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. Decisão Decisão: O Tribunal, por maioria, reputou constitucional a questão, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não se manifestaram os Ministros Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. O Tribunal, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não se manifestaram os Ministros Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Ministro LUIZ FUX Relator. (BRASIL, 2016).
Conforme ensinamento de Taturce (2018), o julgamento da Repercussão Geral nº 622, trouxe três consequências que consolidaram a parentalidade socioafetiva:
“[...] a) o reconhecimento de que a socioafetividade é forma de parentesco civil;
b) a afirmação da igualdade entre o vínculo biológico e o socioafetivo e
c) a admissão da multiparentalidade, com o reconhecimento de mais de um vínculo de filiação [...]”.
Dessa forma, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento nº 63, que passou a permitir o reconhecimento da parentalidade socioafetiva diretamente no cartório de registro civil. Entretanto, o artigo 14 que dispõe que
“O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento.” (BRASIL, 2017).
Referido artigo causou polêmicas, trazendo duas correntes interpretativas. A primeira corrente entendia que a norma não permitia que o reconhecimento extrajudicial da multiparentalidade devido ao termo ‘unilateral’ descrito no artigo. A segunda corrente entendia que o termo ‘unilateral’ se referia a apenas uma paternidade ou maternidade socioafetiva, sendo que dessa forma, o filho tivesse em seu registro de nascimento o nome dos pais biológicos e também o nome de um pai ou mãe socioafetivo (TATURCE, 2018)
De acordo com Calderón (2019), objetivando acabar com essa celeuma, a Corregedoria Geral de Justiça do CNJ editou o provimento nº 83, alterando o provimento nº 63, acrescentando dois parágrafos ao art. 14:
§1º Somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno.
§2º A inclusão de mais de um ascendente socioafetivo deverá tramitar pela via judicial. (BRASIL, 2019).
Dessa forma, as dúvidas acerca do referido artigo foram exauridas, e a multiparentalidade só pode ser reconhecida judicialmente, conforme explicado por Dias (2020, p. 38):
Provimento do Conselho Nacional de Justiça, que sofreu limitações e mutilações, acabou por deixar no limbo um número enorme de crianças, pois faculta o reconhecimento voluntário, diretamente junto ao Cartório de Registro Civil, da parentalidade socioafetiva de quem tiver mais de 12 anos de idade. Há a necessidade da chancela do Ministério Público. Para o reconhecimento extrajudicial da parentalidade de caráter socioafetivo de maiores de 18 anos, basta a concordância das partes. Não há a necessidade da manifestação dos pais biológicos, eis o filho não mais sujeito ao poder familiar. É indispensável a concordância dos pais registrais e o consentimento do filho. Somente é possível o registro de um ascendente, ou paterno ou materno. O registro de filiação socioafetiva com relação a mais de um ascendente depende de demanda judicial.
3.3 Efeitos decorrentes do reconhecimento da multiparentalidade
Acerca da possibilidade de uma pessoa possuir dois pais e uma mãe, ou duas mães e um pai, é evidente a existência dos efeitos jurídicos decorrentes de uma relação familiar (Farias & Rosenvald, 2017). Dessa forma, conforme o entendimento do Enunciado nº 9 do Instituto Brasileiro do Direito de Família, “a multiparentalidade gera efeitos jurídicos”.
3.3.1 Extensão do parentesco a outros parentes
O reconhecimento da multiparentalidade é estendido a toda a árvore genealógica. De acordo com Cassettari (2015), se o filho socioafetivo torna-se pai, seu filho também ganhará todos os ascendentes.
Entretanto, ao se estabelecer a multiparentalidade, torna-se imprescindível se atentar aos impedimentos matrimoniais dispostos no Código Civil / 2002, em seu art. 1521:
Não podem casar:
I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
A paternidade ou maternidade socioafetiva, ao ser reconhecida, o filho passará a ter vínculo parentesco com todos os parentes do pai/mãe, gerando, portanto, impedimentos legais e direitos, tais como direitos sucessórios.
O art. 16 do Código Civil de 2002 estabelece que “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendido o prenome e o sobrenome”. Souza e Fernandes (2015), p. 21 esclarecem que:
“A utilização do nome dos pais é um direito fundamental que não pode ser vedado a ninguém. No caso de múltipla parentalidade não deve ser diferente”
[...] o Conselho Nacional de Justiça padronizou as certidões de casamento, nascimento e óbito em todo o país, substituindo os campos pai e mãe para somente filiação, e dos avós paternos e maternos para avós. Isso foi um avanço para sociedade, não causando maiores problemas na aceitação do registro de mais de dois pais na certidão de nascimento, podendo ser registrado a multiparentalidade sem nenhum embaraço registral.
Assim, o filho tem o direito de acumular os sobrenomes da família biológica e afetiva, pois são inerentes à filiação.
3.3.3 Guarda e direitos de visita
Segundo Cassettari (2015), acerca da guarda, deve ser observado o melhor interesse da criança e do adolescente, respeitado o princípio da afetividade. Sendo que o melhor para a criança ou adolescente é viver com quem possui mais intimidade, havendo a possibilidade de compartilhamento da guarda (SOUZA e FERNANDES, 2015).
O Código Civil, em seu art. 1589 dispõe que: “o pai ou mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”. Nesse sentido, Cassettari (2015) afirma que:
[...] Não há preferência para o exercício do direito de visita de uma criança ou adolescente em decorrência da parentalidade ser biológica ou afetiva, pois o que deve ser atendido é o melhor interesse da criança, lembrando que tal direito é extensivo, também, aos avós, não apenas biológicos, mas também, socioafetivos.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 227, § 6º a igualdade entre os filhos, enquanto o art. 1596 do Código Civil proíbe discriminação entre os filhos biológicos e afetivos, não havendo impedimento, portanto, acerca do direito sucessório.
A CF/88 garante o direito à herança no art. 5º, XXX, e o art. 1784 do Código Civil determina que “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”, enquanto o art. 1845 do mesmo diploma legal estabelece que “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”. Pode-se concluir, portanto, que os pais socioafetivos são equiparados aos pais biológicos no que se refere aos deveres e direitos na multiparentalidade.
Pode-se afirmar, ante o exposto, que o afeto é o alicerce da entidade familiar, e que o Direito de Família têm acompanhado a evolução da sociedade. Com decorrer do tempo, o modelo de família foi sendo redesenhado, passando a abranger um número maior de integrantes, sendo que a socioafetividade foi uma evolução para o direito da família.
Através da socioafetividade, surgiu a multiparentalidade, fazendo com que pessoas que não possuem o mesmo sangue, possam ser consideradas família pelos laços afetivos, trazendo a possibilidade de dupla paternidade, possuindo efeitos jurídicos próprios.
Dessa forma, torna-se imprescindível que haja proteção jurídica à família, independentemente da sua maneira de constituição, pois a família é a base da sociedade, tendo o afeto como requisito indispensável para formação.
Em 2016, o Supremo Tribunal Federal, fixou tese evidenciando que não há hierarquia entre paternidade biológica ou socioafetiva, trazendo a possibilidade de coexistência de ambas, desde que assegurada o melhor interesse da criança.
A tese traz efeitos e consequências no âmbito jurídico, mas é necessária a regulamentação de legislação própria sobre o tema, e pode-se concluir que o instituto da multiparentalidade é uma modalidade que alterará o ordenamento jurídico, estando sujeita à alterações e modificações no decorrer do tempo, entretanto, tem o poder de garantir mais direitos à crianças e adolescentes, mantendo protegido seus interesses, garantindo o respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade.
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