ALEXANDRE GOODMAN ORION REGINATTO[1]
(orientador)
RESUMO: O presente estudo busca elucidar como o direito brasileiro censura o hate speech no ordenamento jurídico e a diferença tênue entre o discurso de ódio e o direito de liberdade de expressão, assegurado na Constituição Federal de 1988. O estudo trata uma visão social e jurídica do conflito entre o hate speech e a liberdade de expressão. Considerando a o estado democrático de direito em que vivemos, questiona-se quais consequências o hate speech traz para quem o pratica. O trabalho objetiva conscientizar as pessoas sobre os limites da liberdade de expressão, e as consequências do hate speech. A pesquisa torna-se relevante por tratar de manifestações de intolerância e consequente violência, situações que afetam diretamente o estado democrático de direito. Pautada em pesquisa bibliográfica e análise da legislação vigente no Brasil, bem como na doutrina e estudos publicados na internet, espera-se a contribuição acerca de reflexões sobre o discurso de ódio e que essa prática fere os direitos e princípios constitucionais inerentes às pessoas humanas.
Palavras-chave: Liberdade de expressão. Hate speech. Intolerância. Princípios Constitucionais.
ABSTRACT: The present study seeks to elucidate how Brazilian law censors hate speech in the legal system and the tenuous difference between hate speech and the right to freedom of expression, guaranteed in the Federal Constitution of 1988. The study deals with a social and legal view of the conflict between hate speech and freedom of expression. Considering the democratic state of law in which we live, it is questioned what consequences hate speech brings to those who practice it. The work aims to make people aware of the limits of freedom of expression, and the consequences of hate speech. The research becomes relevant because it deals with manifestations of intolerance and consequent violence, situations that directly affect the democratic rule of law. Based on bibliographic research and analysis of current legislation in Brazil, as well as on doctrine and studies published on the internet, it is expected the contribution on reflections on hate speech and that this practice violates the rights and constitutional principles inherent to human beings.
Keywords: Freedom of expression. Hate speech. Intolerance. Constitutional principles.
Sumário: Introdução. 1. Direitos Fundamentais: Liberdade de Expressão e Hate Speech. 1.1 Direitos Fundamentais. 1.2 Liberdade de Expressão. 1.3 Hate Speech. 2. Liberdade de Expressão X Hate Speech. 2.1 Liberdade de Expressão e Hate Speech no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 3. Hate Speech no Direito Internacional Comparado. 3.1 Estados Unidos. 3.2 Alemanha. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Entende-se como discurso de ódio, ou hate speech (em língua inglesa) um texto ou comportamento que “ataque ou use linguagem pejorativa ou discriminatória referente a uma pessoa ou grupo baseado em quem eles são” (PÚBLICA, 2020, p. 5).
O hate speech desafia a liberdade de expressão, pois alguns se posicionam contra as sanções estabelecidas para criminalizar o mesmo, alegando que este movimento se choca com a liberdade fundamental do indivíduo. No Brasil, o discurso de ódio é criminalizado, e “está em plena consonância com a normativa internacional sobre direitos humanos e com a jurisprudência constitucional da maioria das democracias liberais modernas – os Estados Unidos, neste particular, é que representam a exceção” (SARNAMENTO, 2020)
O mesmo autor pondera que, “contudo, num país como o nosso, em que a cultura da liberdade de expressão ainda não deitou raízes, há que se ter cautela e equilíbrio no percurso deste caminho, para que os nobres objetivos de promoção da tolerância e de defesa dos direitos humanos dos excluídos não resvalem para a perigosa tirania do politicamente correto” (SARNAMENTO, 2020).
Nessa senda, a escolha do tema foi motivada pelo interesse em analisar a diferença entre a liberdade de expressão e o hate speech e as consequências pra quem o pratica. Considerado um tema atual, levando em conta a polarização política em que vivemos, o discurso de ódio está muito presente na nossa realidade, logo que as pessoas possuem pensamentos diferentes, e podem não saber lidar com opiniões contrárias. O estudo tratará do tema, e levará em conta até que ponto a liberdade de expressão pode ser resguardada como um direito fundamental, e o momento em que ela conflitará com outros direitos assegurados constitucionalmente às pessoas humanas.
Pautada em pesquisa bibliográfica e análise da legislação vigente no Brasil, bem como na doutrina e estudos publicados na internet, o estudo será dividido em três tópicos, sendo que o primeiro diz respeito às conceituações dos direitos fundamentais, liberdade de expressão e hate speech. A segunda parte versará sobre a linha tênue entre a liberdade de expressão e o hate speech no ordenamento jurídico brasileiro. E por fim, a última parte trará considerações acerca do hate speech no direito internacional positivado.
1 Direitos Fundamentais: Liberdade De Expressão E Hate Speech
Caetano (2016, p. 3) explica que os direitos fundamentais:
“[…] são obras de um lento e gradativo processo de modificações sociais e históricas, frutos de vários séculos de lutas coletivas, que visavam limitar o poder estatal e garantir os direitos mínimos às pessoas, que, sem dúvidas, graças a todo esse processo, conseguimos consagrar importantes princípios e garantias fundamentais, que nos amparam atualmente e estão incorporados ao patrimônio comum da humanidade […]” (CAETANO, 2016, p. 3)
De acordo com Cavalcante Filho (201, p. 6), os direitos fundamentais podem ser definidos como “[…] direitos considerados básicos para qualquer ser humano, independentemente de condições pessoais específicas. São direitos que compõem um núcleo intangível de direitos dos seres humanos submetidos a uma determinada ordem jurídica”.
Branco (2007, p. 230) ensina que:
“[…] os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. […] Até o elementar direito à vida tem limitação explícita no inciso XLVII, a, do art. 5º, em que se contempla a pena de morte em caso de guerra formalmente declarada” (BRANCO, 2007, p. 230).
A Declaração de Direitos do Homem de 1789, em seu art. 11 determinou que:
Art. 11. A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, exprimir-se livremente, sujeito a responder pelo abuso desta liberdade nos casos determinados pela Lei. (DDH, 1789).
Nessa senda, no ano de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. XIX, determina que “toda pessoa tem direito à liberdade e opinião de expressão (DUDH, 1948)
Em consonância com tais entendimentos, CF/88 dispõe sobre a liberdade de expressão em seu art. 5º, inciso IV: “é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato (BRASIL, 1988).
Miranda (1988, p. 374) ainda expõe que:
“A liberdade de expressão é mais que a liberdade de comunicação social, porquanto abrange todos e quaisquer meios de comunicação entre as pessoas - a palavra, a imagem, o livro, qualquer outro escrito, a correspondência escrita e por telecomunicações, o espetáculo etc.”
Dessa forma, Tavares (2007, p. 553) esclarece que a liberdade de expressão é a maior faceta da própria liberdade, pois protege a liberdade de pensamento, mesmo quando esse pensamento não é externado.
De acordo com Meyer-Plug (2009, p. 74), em se tratando da liberdade de expressão, há caráter positivo e negativo do Estado:
A proteção à liberdade de expressão envolve uma dimensão negativa e positiva. Em sua acepção negativa, a proteção da liberdade dá-se por meio de uma obrigação de ‘não-fazer’, ou seja, o Estado não censura obras literárias, peças teatrais ou quaisquer manifestações culturais e populares.
Corroborando com esse pensamento, Canotilho (1984, p. 234) pontua que:
Em seu aspecto positivo, a proteção à liberdade de expressão exige uma atuação positiva do ente estatal, ou seja, não basta que não se imponham limites ao exercício dessas atividades, é necessário que se propicie as condições para que elas possam ocorrer, fomentando o debate público plural.
Conforme Mill (2001, p. 13), o Estado só tem um motivo para limitar a liberdade de alguém:
Que o único propósito pelo qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é prevenir danos a outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é uma garantia suficiente. Ele não pode ser legalmente compelido a fazer ou tolerar algo, porque será melhor para ele, porque o fará mais feliz, ou porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria sensato ou mesmo correto. Essas são boas razões para protestar contra ele, ou debater com ele, ou persuadi-lo, ou suplicá-lo, mas não para força-lo ou puni-lo, caso ele faça o contrário. Para justificar essas medidas, o único tipo de conduta da qual se deseja dissuadi-lo deve ser aquela capaz de produzir mal a outra pessoa. O único tipo de conduta pelo qual alguém é responsável perante a sociedade é aquele que diz respeito aos outros. Na parte que apenas diz respeito a si mesmo, sua independência é um direito absoluto. Sobre si mesmo, seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano (MILL, 2001)
De acordo com Salert (2021, p. 512), considerando o valor e o prestígio da liberdade de expressão, ela foi considerada um direito fundamental em quase todos os países. Entretanto, os direitos não são de todo absolutos, podendo variar de acordo com o confronto desses direitos com outros valores de igual grandeza.
Conforme exposto por Sampaio (2016, p. 2), o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 130/DF, no ano de 2009, o relator o Ministro Carlos Britto considerou que a liberdade de expressão é um “sobredireito”, dando ênfase retórica, e reconhecendo os limites inerentes à liberdade.
De acordo com Luna e Santos (2014, p.232), o hate speech é “toda manifestação que denigra ou ofenda os membros de minorias tradicionalmente discriminadas, que estão em inferioridade numérica ou em situação de subordinação socioeconômica, política ou cultural”.
De acordo com Brandão (2015), o Conselho da Europa define o hate speech como:
“[…] qualquer expressão que espalha, incita, promove ou justifica ódio racial, xenofobia, anti-semitismo ou qualquer outra forma de intolerância, incluindo a intolerância causada por nacionalismos e etnocentrismos de caráter agressivo, discriminação ou hostilidades contra minorias, migrantes e pessoas de origem estrangeira” (BRANDÃO, 2015, online).
Meyer-Pflug (2009, p. 97), o hate speech pode ser definido como ‘a manifestação de ideias que incitem a discriminação racial, social ou religiosa em determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias’.
Brugger (2007, p. 151), defende que o discurso de ódio está ligado as ações que “tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião’, além da ‘capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas”.
Silva e Bolzan (2012) determinam que:
“[…] o discurso de ódio se configura como tal por ultrapassar o limite do direito à liberdade de expressão, incitando a violência, desqualificando a pessoa que não detém as mesmas características ou que não comunga das mesmas ideias, e ao eleger o destinatário como “inimigo comum” incita a violência e seu extermínio, o que fere frontalmente o valor que serve de sustentáculo para o Estado democrático de direito, qual seja, a dignidade da pessoa humana […]”.
2 Liberdade de Expressão X Hate Speech
2.1 Liberdade de Expressão e Hate Speech no Ordenamento Jurídico Brasileiro
Coelho (2011 – online) explica que:
“[…] a liberdade de expressão é um direito fundamental consagrado na Constituição Federal de 1988, no capítulo que trata dos Direitos e Garantias fundamentais e funciona como um verdadeiro termômetro no Estado Democrático. Quando a liberdade de expressão começa a ser cerceada em determinado Estado, a tendência é que este se torne autoritário. Ela serve como instrumento decisivo de controle de atividade governamental e do próprio exercício do poder. O princípio democrático tem um elemento indissociável que é a liberdade de expressão, em contraposição a esse elemento, existe a censura que representa a supressão do Estado democrático. A divergência de ideias e o direito de expressar opiniões não podem ser restringidos para que a verdadeira democracia possa ser vivenciada” (COELHO, 2011, online).
A ADI 2404, que teve como relator o Ministro Dias Tofolli, destaca que para a proteção da criança e do adolescente, deve haver exceção acerca do princípio da liberdade de expressão:
“[…] Dirige-se o autor contra o preceito que prevê sanção de caráter administrativo ao ato de transmitir, via rádio ou televisão, espetáculo fora do horário autorizado pelo órgão competente. (…) não há dúvida de que tanto a liberdade de expressão dos meios de comunicação como a proteção da criança e do adolescente são axiomas de envergadura constitucional. Mas, a meu ver, a própria Constituição da República delineou as regras de so pesamento desses dois valores, as quais são suficientes para o deslinde da presente ação, como veremos a seguir. (…) Como se vê, no preciso ponto da proteção das crianças e dos adolescentes, a Constituição Federal estabeleceu mecanismo apto a oferecer aos telespectadores das diversões públicas e de programas de rádio e televisão as indicações, as informações e as recomendações necessárias acerca do conteúdo veiculado. É o sistema de classificação indicativa esse ponto de equilíbrio tênue, e ao mesmo tempo tenso, adotado pela Carta da República para compatibilizar esses dois axiomas, velando pela integridade das crianças e dos adolescentes sem deixar de lado a preocupação com a garantia da liberdade de expressão. (…) Dessa forma, a classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer, informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e os adolescentes. Essa classificação desenvolvida pela União possibilita que os pais, calcados na autoridade do poder familiar, decidam se a criança ou o adolescente pode ou não assistir a determinada programação” [STF. ADI 2.404, rel. min. Dias Toffoli, P, j. 31-8- 2016, DJE de 1º-8-2017.].
Sabendo que a liberdade de expressão é um direito garantido constitucionalmente, mas que há limitações, o indivíduo precisa saber que quando sua liberdade de expressão ultrapassa os limites da moralidade e da ética, ele está cometendo o crime de hate speech, ou discurso de ódio (CABRAL, ASSUNÇÃO, 2016- online)
A Constituição Federal de 1988 dispõe sobre restrições ao discurso de ódio em seu art. 5º, XLI “a lei punirá qualquer discriminação que viole direitos e liberdades fundamentais”.
A Carta Magna, ainda estabelece, em seu art. 3º:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I– construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais eregionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988)
Para avaliar a liberdade de expressão e o hate speech no ordenamento jurídico brasileiro, faz-se necessária a avaliação do HC 82/424/RS. Esse caso é popularmente reconhecido como ‘Caso Ellwanger’, e foi o primeiro caso a analisar o hate speech.
Conforme o HC 82/424/RS, Ellwanger, que faleceu no ano de 2010, era escritor e em suas obras, negava a existência do holocausto, afirmando que não existia câmeras de gás, e que durante a Segunda Guerra, os judeus eram apenas escravizados.
Evidentemente, que o autor foi denunciado pelo Ministério Público, e também por diversos Movimentos que defendiam os direitos humanos. A condenação do autor se deu através dos Autos nº 1397026988-08720, sendo que sua condenação foi pelo crime disposto na Lei nº 7.716/89:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa” (BRASIL, 1989).
Como consequência da condenação, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proibiu a distribuição de seus livros. Após isso, a favor de Ellwagner, foi impetrado um HC, que subiu para o STF.
Acerca do tema da liberdade de expressão, o STF entendeu o direito à liberdade de expressão não é absoluto:
[…] como qualquer direito individual, a garantia constitucional da liberdade de expressão não é absoluta, podendo ser afastada quando ultrapassar seus limites morais e jurídicos, como no caso de manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. Por isso, no caso concreto, a garantia da liberdade de expressão foi afastada em nome dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. Vencidas a tese que deferia a ordem para reconhecer a prescrição da pretensão punitiva e a tese que deferia habeas corpus de ofício para absolver o paciente por atipicidade da conduta” (HC 82424, Relator(a): MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00024 EMENT VOL-02144-03 PP-00524).
O Plenário se posicionou no sentido de que:
“[…] a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse processo, origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. Para a construção da definição jurídico-constitucional do termo “racismo”, o Tribunal concluiu que é necessário, por meio da interpretação teleológica e sistêmica da Constituição, conjugar fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram a sua formação e aplicação. Apenas desta maneira é possível obter o real sentido e alcance da norma, que deve compatibilizar os conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos e biológicos. Asseverou-se que a discriminação contra os judeus, que resulta do fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas, é inconciliável com os padrões éticos e morais definidos na Constituição do Brasil e no mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o Estado Democrático de Direito” (HC 82424, Relator(a): MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00024 EMENT VOL-02144-03 PP-00524).
Considerando que o ordenamento jurídico brasileiro não tem tipificação própria, Meyer-Pfluf (2009, p. 198) explica que:
O sistema constitucional brasileiro protege a liberdade de expressão, bem como a dignidade da pessoa humana e veda a prática do racismo. A maioria dos tratados que versam tanto sobre a proteção à liberdade de expressão, como a proibição de práticas discriminatórias e atentatórias aos direitos fundamentais, foi ratificada pelo Brasil. A Constituição de 1988, por sua vez, conferiu proteção especial aos direitos fundamentais, mas inexiste no ordenamento jurídico pátrio uma lei específica proibindo o discurso de ódio.
Dessa forma, a Lei nº 7.716/89 versa sobre o tema em seu art. 20:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97) Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência:
I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio
II - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.
Dessa forma, referido destaque consegue tipificar o hate speech na internet. Vislumbrando a necessidade de criação de norma específica para o caso, no ano de 2019, o Deputado Márcio Jerry, do PCdoB do Estado do Maranhão, propôs o PL 4.785/2019, que “altera o Código Penal para dispor sobre a criminalização da intolerância, ódio, preconceito, exclusão e violência por mio da Internet, dispositivos eletrônicos e ambiente virtual, prevendo a inclusão do art. 154 – C (BRASIL, 2019):
“Art. 154-C. Incorre nas mesmas penas previstas neste Decreto-Lei, quem por meio da Internet, dispositivos eletrônicos e ambiente virtual, desenvolver, difundir, induzir, injuriar ou incitar a intolerância, ódio, preconceito, exclusão e violência, de qualquer forma, inclusive simbólica, por motivo de raça, cor, gênero e identidade de gênero, orientação sexual, religião, origem nacional ou étnica, idade ou condição de pessoa com deficiência.
Pena: reclusão, de um a três anos, e multa
1º. A pena aumenta-se de um terço se sob denominação própria ou não, associarem-se três ou mais pessoas com o fim de cometer algum dos crimes previstos neste Decreto-Lei.
2º. A pena aumenta-se em metade se a intolerância, ódio, exclusão e violência for praticada:
I – com uso de ameaça;
II – abuso de autoridade;
II– contra menor de dezoito anos;
III– se praticado por cônjuge ou qualquer relação íntima de afeto na qual o agressor conviva ou tenha convivido, independente de coabitação e de orientação sexual;
IV – contra o direito de imagem; se da agressão resulta em prejuízo econômico.” (BRASIL, 2019)
O objetivo central do PL é:
“[…] dotar o país de uma legislação para o enfrentamento dos discursos e práticas de atos de intolerância, discriminação e ódio, realizado não somente contra um indivíduo, mas também contra a coletividade de pessoas, objetivando atingi-las por suas características peculiares de raça, gênero, orientação sexual, religião ou procedência nacional, atentando contra suas integridades emocional e física, fomentando um ambiente de intolerância que só se sustenta pela ignorância” (BRASIL, 2019)
No Brasil existe tipificação legal apenas ao discurso de ódio, que é o discriminatório. Acerca do tema, Carreirão (2012, p. 56) esclarece que:
No Brasil a única ressalva feita pela Constituição à liberdade de expressão que pode ser relacionada ao discurso de ódio é a vedação ao racismo. A vedação ao racismo é regulamentada pela Lei nº 7.716/89, que tipifica diversas condutas consideradas racistas como crime. É interessante perceber que a lei não incrimina o preconceito racial por si só, mas sim as atitudes provenientes deste preconceito, como a de impedir o acesso de alguém a algum estabelecimento por conta da raça ou a incitação de ódio contra determinada raça. Deste modo, o sistema brasileiro se aproxima muito mais do sistema norte-americano, na medida em que não pune a ideia racista, mas suas consequências.
Restando evidente a necessidade de criminalização do hate speech, o STF já evidenciou a necessidade de tipificação desses atos por parte do Congresso Nacional, bem como outros projetos com a mesma finalidade. Apesar da não existência de legislação específica sobre o hate speech, o STF tem se adequado aos ideais da sociedade, pontuando a necessidade de criminalização dessas condutas.
3 Hate Speech no Direito Internacional Comparado
Segundo Sarmento (2007), a liberdade de expressão foi incluída na Constituição Americana através da primeira emenda da Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos:
Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the government for a redress of grievances.
Em tradução livre: O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas.
De acordo com Paixão et. al. (2018, p. 36-37):
Com o passar do tempo, a liberdade de expressão consolidouse como o direito fundamental mais prestigiado pela jurisprudência, entretanto com o seu fortalecimento, garantias, como a privacidade, a honra e a igualdade foram mitigadas. Assim a jurisprudência norteamericana se firmou no sentido de que o Estado deve se abster de qualquer intervenção no debate público, mesmo que a fim de pluralizar o debate e garantir a participação de segmentos excluídos. Nessa perspectiva, as restrições ao hate speech são limitações baseadas em concepções subjetivas, logo, são, em regra, ilegítimas e maculadas pela inconstitucionalidade. Ou seja, independentemente de serem ideais de igualdade, favoráveis aos direitos humanos ou ideias segregacionistas como o antissemitismo ou o ódio racial, devem receber a mesma proteção do Poder Público.
O caso mais conhecido sobre o hate speech na Corte Alemã, aconteceu no ano de 1994, quando a Corte reconheceu que, em um evento no qual eram discutidas teses de que o holocausto era uma invenção dos judeus, era uma discriminatório, e portanto, restringiu a liberdade de expressão sobre o caso:
Entendeu a Corte que a negação do Holocausto não era uma manifestação de opinião, mas a afirmação de um fato, e que as afirmações inverídicas sobre fatos, por não contribuírem em nada para a formação da opinião pública, não são constitucionalmente protegidas pela liberdade de expressão. No julgamento, o Tribunal ainda destacou que a singularidade do Holocausto o teria convertido em elemento constitutivo da própria identidade do cidadão de origem judaica, que se reflete na sua relação com a sociedade alemã. (ALEMANHA, 1949)
Há, no Direito Alemão, o princípio da proporcionalidade, que defende a ponderação caso haja conflitos entre os direitos fundamentais, como no caso em tela:
A Corte Constitucional alemã transformou essas análises funcionais em dois preceitos doutrinários a serem seguidos em todos os casos de liberdade de expressão. Em primeiro lugar, aplicando o princípio da proporcionalidade, leis promovendo interesses públicos ordinários podem não justificar a interferência na liberdade de expressão — ao contrário, tal interferência deve ser justificada por um interesse público relevante que não seja possível atingir por um outro meio menos intrusivo, e isso é particularmente verdade quando a proibição é baseada em pontos de vista. Em segundo lugar, ao examinar se o conteúdo de uma mensagem justifica que ela seja restringida, os tribunais não podem escolher a interpretação punitiva da mensagem se existir uma interpretação alternativa razoável (BRUGGER, 2007)
Após o exposto, resta claro que a liberdade de expressão é considerada uma das mais estimadas garantias constitucionais no estado democrático de direito, sendo representada em toda a sua essência, garantido a participação de todos os indivíduos da sociedade. Pautada na igualdade, é um dos pilares basilares do nosso modelo democrático, considerando a liberdade de exteriorizar os pensamentos humanos perante a sociedade. Entretanto, não pode ser considerada um direito absoluto, devendo haver ponderação, logo que ao ultrapassar limites, pode-se cometer o crime de discurso de ódio.
Considera-se que há conteúdos suficientes para justificar a aprovação de projetos que criminalizam o discurso de ódio, inclusive nos novos formatos que a tecnologia proporcionou. Atualmente, com o avanço das redes sociais e com a crescente exposição e facilidade de alcance de informações, o Crime de Ódio se tornou ainda mais acessível para quem o deseja cometer.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, kerolaine ferreira. A censura do hate spceech no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2022, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58347/a-censura-do-hate-spceech-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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