ADRIANO FERNANDES[1]
(orientador)
RESUMO: A tradição constitucionalista concebe a titularidade do Poder Constituinte a partir das noções de nação e povo, sendo pontos centrais de legitimidade dentro do ordenamento jurídico de um Estado. Tomando como ponto inicial essa tradição, o presente trabalho tem como objetivo analisar o Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano enquanto forma de descolonização das etnias indígenas, bem como sua contribuição para o Direito Ambiental Internacional em relação à proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Desse modo, se verificará como esse novo constitucionalismo constitui-se de uma ruptura, em que há o reconhecimento de uma multiplicidade de grupos, de forma que o Estado se configura a partir da plurinacionalidade e do pluralismo jurídico. O reconhecimento dessa multidão de subjetividades intensificam a participação democrática, dando destaque à visão de mundo daqueles que foram marginalizados e excluídos do processo político na América Latina. Temos, então, a partir desse novo constitucionalismo o reconhecimento e a constitucionalização da cosmovisão indígena, responsável, sobretudo, por modificar a forma como a natureza é concebida no ordanamento jurídico do Estado, não mais como objeto de direito, mas, sim, como sujeito de direitos. A partir dessa análise, avarliar-se-á seus reflexos no Direito Ambiental Internacional, onde se evidenciará que a cooperação internacional ganha um novo sujeito no diálogo internacional.
Palavras-chave: Titularidade do poder constituinte. Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Direito Ambiental Internacional. Cosmovisão Indígena.
ABSTRACT: The constitutionalist tradition conceives the ownership of the Constituent Power from the notions of nation and people, being central points of legitimacy within the legal system of a State. Taking this tradition as a starting point, this work aims to analyze the New Latin American Pluralist Constitutionalism as a form of decolonization of indigenous ethnic groups, as well as its contribution to International Environmental Law in relation to the protection of the environment in an ecologically balanced manner. In this way, it will be verified how this new constitutionalism constitutes a rupture, in which there is the recognition of a multiplicity of groups, so that the State is formed from plurality and legal pluralism. The recognition of this multitude of subjectivities intensifies democratic participation, highlighting the worldview of those who have been marginalized and excluded from the political process in Latin America. We have, then, from this new constitutionalism, the recognition and constitutionalization of the indigenous cosmovision, responsible, above all, for modifying the way in which nature is conceived in the legal order of the State, no longer as an object of law, but as a subject of rights. From this analysis, its reflections will be advanced in International Environmental Law, where it will be evident that international cooperation gains a new subject in international dialogue.
Keywords: Titularity of constituent power. New Latin American Constitutionalism. International Environmental Law.
SUMÁRIO: 1. Introdução, 2. A titularidade do poder constituinte, 3. O novo constitucionalismo pluralista, 4. A cosmovisão indígena, 5. Direito Ambiental Internacional: Cooperação social, 6. Considerações finais, 7. Referência.
1.INTRODUÇÃO
A forma de manifestação do Poder Constituinte apresenta-se de forma distinta no decorrer do tempo e de acordo com cada realidade normativa, cultural, política e econômica. Nesse sentido, buscando encontrar os legitimados aptos a concretizar a vontade dos representados e a consequente titularidade de manifestação do poder soberano, algumas teorias surgem para suprir a forma de compreensão do fenômeno que dá origem a uma nova Constituição.
Ocorre que a história vem demonstrando que a titularidade do Poder Constituinte muitas vezes ocorre de maneira transversa, a partir de métodos obscuros e ilegítimos. Não é por outro motivo que, atualmente, presencia-se em vários ordenamentos jurídicos uma séria crise de legitimidade, que é consequência não só da falta de efetividade do texto constitucional, mas também de uma falha estrutural na forma de elaborar uma Constituição em prol dos anseios populares e nacionais de forma conjunta.
Como tal situação – da crise de legitimidade no ordenamento jurídico – não é um problema exclusivamente brasileiro, muito pelo contrário, já que encontra sociedades em um estágio mais crítico, faz-se importante avaliar as recentes formas de manifestação do poder constituinte pelos Estados Latino-americanos, em especial Bolívia e Equador, e seus reflexos no cenário internacional no que diz respeito à temática ambiental.
Diante disso, o presente trabalho apresenta-se a partir dos seguintes pontos, a fim de avaliar esses reflexos: 1) A titularidade do poder constituinte; 2) O Novo Constitucionalismo Pluralista; 3) Cosmovisão indígena; e 4) Direito Ambiental Internacional. São pontos centrais que permitirão observar o que, de fato, se apresenta como novo na sociedade internacional.
Nesse sentido, a titularidade do poder constituinte será o primeiro ponto a ser tratado, onde se apresentará as vertentes historicamente consagradas do constitucionalismo clássico e moderno. Essas vertentes são responsáveis por estabelecerem distintos titulares ao poder constituinte. No primeiro, a titularidade está nas mãos da nação, tal visão decorre da teoria do poder constituinte formulada por Abade Sieyés. No segundo, há uma releitura da visão clássica a partir das lições de Jellinek, onde a titularidade do poder constituinte estaria nas mãos do povo. Essa abordagem permitirá, principalmente, observar o que há de novo no Constitucionalismo Pluralista, que será o item subsequente a ser desenvolvido.
Observar-se-á que o novo constitucionalismo pluralista se constitui de uma ruptura tanto do constitucionalismo liberal monista quanto do constitucionalismo social integracionista, estabelecendo, assim, mecanismos interculturais e descolonizais. Sendo, ainda, responsável por ampliar as formas de participação democrática, reconhecendo uma multiplicidade de grupos para além da ideia de nação e/ou povo, concebendo, assim, não só um Estado plurinacional, mas também um Estado onde se institui um pluralismo jurídico. Esta configuração tem como principal fator a cosmovisão indígena.
A cosmovisão indígena está ligada a uma forma de compreensão do mundo indígena. O novo constitucionalismo foi responsável por resguardar essas cosmovisões, como se pode constatar, a partir das Constituições de Bolívia e Equador, na constitucionalização da Pachamama e Sumak Kawsay. A cosmovisão indígena foi responsável, assim, por trazer um novo olhar sobre o mundo, sendo uma das principais mudanças o modo como a natureza é concebida no ordenamento jurídico.
A partir disso, o diálogo intercultural, ampliando a participação popular na elaboração do texto constitucional, bem como em sua interpretação, mantendo vivo o anseio constituinte, é importante vetor de análise para que se possa perceber que o Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano é uma forma de prestigiar uma plurinacionalidade mais democrática que os modelos eurocêntricos constantemente impostos. Em suma, o parâmetro de estudo europeu classicamente imposto merece uma remodelagem, com intuito de abarcar um modelo realmente inclusivo e participativo.
Desse modo, o Novo Constitucionalismo, ao dar enfoque especial para os objetos/bens de proteção novos, permite uma maior cooperação no âmbito internacional e uma sedimentação do Direito Ambiental Internacional. Em suma, a experiência Latino-Americano de valorização de bens naturais serve como mola propulsora para uma nova forma de proteção do equilíbrio ecológico e do meio-ambiente como um todo.
Por fim, trata-se de uma pesquisa de cunho teórico e, quanto aos meios de investigação, foi ultilizado: a pesquisa bibliográfica (documentação indireta), envolvendo doutrina e revistas jurídicas especializadas, também com ênfase em artigos científicos.
2. A TITULARIDADE DO PODER CONSTITUINTE
A doutrina constitucionalista atribuiu uma grande importância à Abade Sieyès devido ao seu pioneirismo na construção teórica do Poder Constituinte, sendo ele o responsável por evidenciar a dicotomia entre o ato que cria uma nova ordem constitucional (Poder Constituinte) e os atos que se realizam após a criação dessa nova ordem (Poder Constituído). Apesar dessa confluência em relação à sua construção teórica, não se nega que o Poder Constituinte se manifestara em circunstâncias antecedentes, como na Convenção de Filadélfia, em 1787[2].
A problemática envolvendo a titularidade do poder constituinte encontra estreita relação com a legitimidade da ordem constitucional instaurada. Sendo assim, não é por outro motivo que as teorias tentam justificar a questão da titularidade a partir de duas vertentes historicamente consagradas: a) nação; e b) povo. Embora a tradição constitucionalista não tenha realizado uma distinção necessária e precisa entre nação e povo, essas duas vertentes estão relacionadas a duas concepções teóricas, clássica e moderna, do Poder Constituinte[3]. Ainda, cumpre salientar que nenhuma concepção isolada seria suficiente para delimitar, com precisão, a legitimidade do poder constituinte, já que seria impossível definir com critérios quase que objetivos um fenômeno das ciências jurídicas em conjunto com as ciências sociais.
Primeiramente, cumpre esclarecer que Leo Van Holthe[4], utilizando das lições de Guilherme Peña de Moraes, afirma que “a questão da titularidade do poder constituinte é indissociada da titularidade da soberania”. Tal compreensão ocorre por um motivo claro, de que a atuação do poder constituinte não está pautada por critérios jurídicos, sendo uma expressão de poder pré-jurídica. Em suma, aquilo que se compreende por direito material, os fenômenos sociais, políticos e econômicos, influem diretamente na forma de manifestação de uma entidade soberana.
Nesse sentido, faz-se necessário compreender as facetas da titularidade do poder constituinte. Entendê-lo como nação perpassa pelos ensinamentos de Abade Sieyès. De acordo com Fernandes[5] a figura da nação como titular do Pode Constituinte está associada à uma compreensão clássica (iniciada, como já destacamos, por Abade Sieyès), em que se busca estabelecer uma identidade entre os representantes e os representados, onde a idéia de nação pressupõe uma homogeneidade cultural, linguística, econômica e política. Assim, a nação não está associada diretamente a um conjunto de homens em um dado momento histórico, mas está ligada à expressão de uma comunidade que possui interesses permanentes[6]. Em outras palavras, estar-se-ia diante de uma soberania nacional, onde o Poder Constituinte se confunde com a própria vontade da nação. Para todos os efeitos, ao traçar um parâmetro de comunidade, limitar-se-ia a um o conceito de nação próprio para cada Estado, já que aquele é elemento deste, enquanto população integrante em determinado território e com finalidade precisa.
De toda forma, é fácil compreender que a visão proposta encontra dificuldade de manutenção fática, para isso, José Luiz Quadros de Magalhães [7] faz a sua crítica de que “a construção conceitual da ideia de nação para Sieyès se constitui numa forma de legitimar a vontade do grupo no poder que atua em nome da vontade da nação”.
A título de exemplo do rearranjo estrutural como forma de perpetuar o poder elitista, há duas vertentes clássicas de modelos adotados na formação do ordenamento latino-americano. Assim, “a tradição brasileira e latino-americana das instituições jurídicas é, de um lado, uma confluência entre a herança colonial ibérica burocrático-centralizadora e, de outro, uma tradição liberal-individualista utilizada a serviço dos detentores do poder”[8].
Prosseguindo, há quem entenda que a titularidade seja do povo, o que, conforme Fernandes[9], está alinhada à uma concepção moderna do Poder Constituinte, a partir das lições de Jellinek, em que o conceito de povo está atrelado à uma noção sociológica e antropológica, responsável, inclusive, por abarcar uma feição pluralista, preocupado com a tolerância e o direito à diferença, devendo ser entendida, enfim, como um conjunto de pessoas que encontram, através da ordem política, formas de expressarem suas ideias, interesses e representações.
Essa compreensão também não está imune a críticas, já que a delimitação de povo depende de uma concepção jurídica e política predominante em determinado momento histórico, motivo pelo qual a noção de povo encontra-se em permanente processo de reconstrução e compreensão. Nesse sentido, de certa forma, o problema que é apresentado para quem compreende a nação como titular também está presente para quem entende que é o povo, já que a nomenclatura mudaria, mas os desvios de legitimidade, em tese, seriam os mesmos.
A diferença básica, de acordo com os ensinamentos apresentados, é que a nação (soberania nacional) estaria ligada a interesses permanentes da sociedade enquanto o povo estaria delimitado por um feixe temporal e histórico. Se a titularidade da nação peca pelo romancismo do ideal, de imaginar que o grupo de representantes da nação – corpo de representantes imaginários – estaria em um exercício legítimo, atribuir a titularidade do povo encontra um problema similar.
Nesses casos, a extensão dos direitos políticos estaria ligada a uma fórmula de consenso democrático, que não afasta, necessariamente, os mesmos problemas de atribuir a titularidade do Poder Constituinte à nação. Portanto, o maior imbróglio a ser solucionada é a crise do déficit de legitimidade. De uma forma ou de outra, o conceito de nação e de povo não podem ser suficientes para legitimar uma nova ordem democrática, pois, afinal, o que deveria prevalecer: a soberania nacional ou popular?
3. O NOVO CONSITUCIONALISMO PLURALISTA
A América Latina é marcada por vários momentos de desigualdade durante sua história, sendo um deles o seu período de construção das instituições de poder, o qual, majoritariamente, é composta por concepções elitistas e coloniais em derretimento das minorias sociais presente em cada Estado. Quando a teoria do Poder Constituinte chegou nos países sul-americanos não houve muitas mudanças, sejam teóricas ou práticas, em relação àquela pensada na europa. Na verdade, não foi nada diferente. Ela foi exercida nos mesmos moldes em que foi proposta. Pensada do ponto de vista estritamente das Assembleias Constituintes, esta “[…] capaz de ordenar e reconduzir a uma unidade toda a série de relações sociais, dá vida à organização jurídica estatal […]” [10], responsável, ainda, por não garantir uma participação muito ampla nos processos políticos, excluindo setores que não estavam “adequadamente” organizados num centro político social, impondo, assim, a “[…] afirmação da soberania do Estado unificador europeu e do ‘ocultamento e assujeitamento do ‘outro’ étnica e racialmente diferente […]’”[11].
Os Estados andinos tem raízes distintas dos Estados europeus, estes construídos através da mão de obra dos povos colonizados com a ascensão da burguesia liberal e individualista que sucedeu a aristocracia feudal, e aqueles formaram-se pela tendência de ascensão e declínio de impérios e denominações estrangeiras, pela colonização, pela instrumentalização do povo diante das matrizes ibéricas, até mais recentemente por sucessivas ondas de ditadura e redemocratização. Com isso, as cartas magnas dos países sul-americanos, em grande parte, foram baseadas em outas constituições marcadamente elitista, privilegiando as classes possuidoras do poder econômico-político e por vertentes cuturalmente monolítica e excludente, subordinando e até discriminando as concepções não eurocêntricas, positivando constituições com fragmentos bruscamente diferentes da realidade e da cultura dos povos tradicionais latino-americanos e das demais minorias de cada Estado. Posto isso, durante os séculos XIX e XX as Constituições semânticas e nominais marcaram a história latino-americana, sendo aquele, também chamado de instrumentalista, usado pelos detentores do poder para seus propósitos de dominação, pois não possuem qualquer intenção de limitarem o poder político, utilizado apenas para conferir legitimidade formal, por isso a constituição semântica é característica de regimes autoritários, como por exemplo, as constituições brasileiras de 1937 e 1967/1969 [12]. No caso da Constituições nominais, também conhecida como nominativa, apesar de terem regras limitadoras do poder político, elas se caracterizam pela inadequabilidade entre realidade social e texto constitucional, podendo ser citado como exemplo a Constituição brasileira de 1988[13]. Em contrapartida os países "desenvolvidos" teriam em suas constituições, de acordo com o critério ontológico, uma correspondência entre o texto constitucional e a realidade social (Constituição normativa), em que a limitação do poder político estabelecido é garantido e respeitado no contexto a que está inserido, podendo-se citar como exemplo a Constituição da Alemanha de 1949 e a Constituição francesa de 1958[14].
À vista disso, o Novo Constitucionalismo constitui-se de uma ruptura
[…] tanto do constitucionalismo liberal monista quanto do horizonte do constitucionalismo social integracionista do século XX, ou estado de Bem-estar social. Enquanto o primeiro buscava assimilar os povos indígenas, originários, e camponeses em cidadãos na perspectiva do direito individual através da dissolução dos povos e de civiliza-los, o segundo, embora passasse a reconhecer os sujeitos coletivos, os direitos sociais e as bases de cidadania, buscava integrar os indígenas e camponeses ao Estado e ao mercado, sem romper com a identidade de um Estado-nação ou o monismo jurídico.[15]
Dessa forma, o Novo Constitucionalismo adquire característica que lhe são próprias, rompe, enfim, com as facetas de uma teoria jurídica importada. Essas características podem ser evidenciadas como respostas ao constitucionalismo operante até então, respostas essas direcionadas ao
[…] precitado desconforto, ponto de ignição central das mudanças; a diferença, também em relação às matrizes europeia e norte-americana, mas fundada na gama de coletividades que lhe é inerente; e a necessidade, a expressão definitiva da urgência que emana quando as diferenças se sujeitam ao desconforto.[16]
Assim sendo, a formação de um poder constituinte relativamente recente na América Latina (2008 e 2009) cria um bom palco de observatório para as novas formas de manifestação da soberania. Enquanto o famigerado constitucionalismo tradicional está lastreado naquele eurocentrismo clássico, a formação do Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano está ligado à cosmovisão indígena, à uma nova forma de manifestação dentro uma democracia participativa, qual propõe ser inclusiva e descolonizante. Nesse caso, conforme preceitua Bernardes[17],
a constituição deixa de ser o pressuposto único da regulação, mas, ao contrário, torna-se a consequência dos antagonismos sociais. Neste aspecto, cita-se como exemplo o que é considerado “povo” nas constituições destes dois países. Não se trata mais de um elemento unitário que exprime sua vontade uniforme em direção ao soberano. Ao contrário, reconhece-se uma multiplicidade de grupos que, no conflito, nas discussões, no confronto intercultural, faz surgir o novo como, por exemplo, no reconhecimento da plurinacionalidade nestes países.
Temos, então, que são três os pontos que orientam as características definidoras do Novo Constitucionalismo:
i) o estabelecimento de uma nova relação entre democracia e Constitucionalismo, com a intensificação da participação popular;
ii) a criação de mecanismos interculturais e descolonizais, principalmente, a partir da contribuição dos povos indígenas;
iii) a intervenção do Estado e da cidadania na economia, afastando-se do paradigma eurocêntrico de desenvolvimento, pois visa uma nova relação com o meio ambiente.[18]
O modelo inclusivo, o qual estimula a participação de parcela da sociedade que durante século foi deixada no esquecimento, permite uma maior legitimidade na ordem constitucional enquanto manifestação da soberania do poder constituinte. De fato, não se pode negar que os dois países pioneiros nesse Novo Constitucionalismo, Bolívia e Equador, encontram uma grande parcela de sua população pertencente à etnia indígena. Por outro lado, tal situação nunca foi um real impedimento para que o modelo europeu vigorasse, ainda que em favor de uma minoria elitista.
Nesses casos, resta evidente que a compreensão clássica de povo e nação nunca seriam suficientes para enquadrar costumes, culturas e valores próprios de determinada sociedade. É justamente por essas situações, que a importação indiscriminada de teorias jurídicas pode gerar um sistema incongruente e com grande déficit de legitimidade representativa. Ainda, evidenciando as peculiaridades dos países vizinhos, note-se a constitucionalização do Sumak Kawsay e da Pachamama.
No excerto seguinte se evidencia a positivação do Sumak Kawsay (bem-viver) tanto na Constituição da Bolívia como na Equatoriana, qual traz o seguinte significado:
Os povos indígenas são povos coletivos, mas foram submetidos à individualização – tiraram-lhes uma forma de vida e impuseram-lhes outra. Agora, positivado na Constituição, o Sumak Kawsay pretende reestabelecer esse aspecto coletivo da vida, em todas as suas dimensões e se contrapor – como reação e alternativa ao modelo dominante de desenvolvimento (Macas, 2010, p. 14; Gudynas, 2011c, 1). O Sumak Kawsay surge como uma resposta da cosmovisão indígena que visa integrar o homem e a natureza de forma respeitosa e não resume a qualidade de vida ao nível de consumo ou posses materiais, nem ao simples desenvolvimento por meio do crescimento econômico (Gudynas, 2011c, p. 2; Dávalos, 2009, p. 5/7).
A positivação do Sumak Kawsay cumpre dois objetivos: no campo simbólico, dá destaque à visão de mundo daqueles que foram marginalizados e excluídos; no plano econômico, aponta os equívocos do desenvolvimentismo, a partir da realidade periférica (Tortosa, 2009, p. 5). Na perspectiva de Houtart, o Bem-viver tem uma dupla função: faz uma crítica ao modelo econômico vigente ao mesmo tempo em que propõe alternativas de reconstrução política, social e cultural da sociedade (Houtart, 2011, p. 5).[19]
Por sua vez, a Pachamama (mãe-terra) permite a titularidade de direitos por elementos da natureza, dificultando ainda mais a clássica visão da legitimidade do poder constituinte, conforme o que se demonstra:
A Constituição do Equador, além de mencionar a Pachamama no seu preâmbulo, normatiza que a natureza é sujeito de direitos nas hipóteses que a própria Constituição reconheça (art. 10), como tal, contudo, é no título II (Dos Direitos) que se encontram, sem dúvidas, os artigos paradigmáticos em relação aos Direitos da natureza. Diz-se que a Pachamama, onde se reproduz e se realiza a vida, tem Direito a que se respeite integralmente a existência, a manutenção e a regeneração de seus ciclos vitais, estruturas, funções e processos evolutivos, de forma que qualquer pessoa, comunidade ou povo, pode exigir o cumprimento dos Direitos da Natureza (art. 71).[20]
A partir da constitucionalização dessas cosmovisões podemos perceber grandes impactos no que diz respeito à composição do Estado, não somente no reconhecimento de várias nacionalidades ou povos pensados dentro de um Estado plurinacional, mas também sob a ótica de um pluralismo jurídico. Entende-se por pluralismo jurídico “a existência de mais de um sistema jurídico dentro de um mesmo Estado, sistemas esses que coexistem. Neste contexto o Estado não é o único criador da norma, pois ela também emana de outras autoridades”[21]. Assim, temos que essas Constituições foram responsáveis por implementar “[…] novas e diversas formas de participação política, como a democracia comunitária, os referendos, as consultas e o reconhecimento das eleições e da autoridade indígena, de acordo com o seu próprio Direito e procedimento, que antes era monopólio do Estado”[22].
Nesse sentido, o novo constitucionalismo busca se fundamentar na diversidade, na interculturalidade, e no reconhecimento da multidão de subjetividades que irão compor o Estado, ampliando as formas de participação democrática, preocupando-se com uma legitimidade efetivamente democrática, recuperando, inclusive, a origem democrática-radical, e garantido a participação de setores até então excluídos dos processos políticos da América Latina[23]. Percebe-se, então, que esse constitucionalismo não está fundamentado e legitimado
[…] em um contrato hipotético, através do qual se dá a alienação das potencias políticas por meio de um “contrato social” onde as diferenças são afastadas por uma pretensa “vontade individual”. Do mesmo modo, não estão ancoradas na soberania do Estado, no qual “as diferenças são limitadas, unificadas e homogeneizadas por uma decisão transcendente”. O fato gerador deste processo está na própria dinâmica da multidão de singularidades e de suas distintas formas de organização e visão de mundo, através de um encontro intercultural onde se estabelece uma outra construção ético- política.[24]
Como se percebe, o Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano apresenta elementos próprios, que fogem do eurocentrismo convencional e pregam uma nova forma de descolonização dos povos indígenas. Conforme visto, tal grupo étnico, por mais que não formasse uma minoria numérica, sem dúvidas faz parte de uma minoria social, que seria aquele grupo sem representatividade e sem manifestação diante do poder soberano representado pelas classes aparentemente dominantes.
Postas essas premissas, figura-se interessante a situação da titularidade do poder constituinte no Novo Constitucionalismo, afinal, a mãe-terra (Pachamama), enquanto elemento natural, seria uma forma de manifestação da soberania? E, caso positivo, tal fenômeno estaria mais próximo do conceito de povo ou de nação?
Não se tem a pretensão de dar uma resposta fechada às perguntas elaboradas, mas sim procurar uma reflexão sobre as peculiaridades apresentadas. Nesses casos, insta frisar a lição de Geordes Burdeau, qual bem afirma que não teria como se falar em um poder constituinte abstrato, visto que sempre se estaria referido a um povo, a um grupo ou a um indivíduo[25]. Em outras palavras, as circunstâncias históricas são condicionantes para conceituação de um poder constituinte.
No caso latino-americano, a circunstância histórica é de promoção não só dos indivíduos esquecidos, mas também de reconhecimento de um bem-estar coletivo e da natureza como titular de direitos, afastando o clássico antropocentrismo. De fato, há um giro Copérnico, tirando o homem como centro do ordenamento e colocando-o no meio da proteção, juntamente com a natureza, não como explorador, mas como parte dela. Nesse sentido de transcendência, pode-se compreender que há um direito natural, titular da manifestação soberana, que se manifestou nas cartas constitucionais da Bolívia e do Equador. Assim, há uma relação com aquele sentimento ideal do Abade Sieyès, da titularidade do poder constituinte para a nação, tendo em vista os interesses permanentes de uma comunidade. A diferença seria que o interesse não seria interesse permanente só da própria comunidade, mas também da própria natureza.
De certa forma, a crítica realizada no início, de que a tese da nação não poderia prosperar em virtude dos desvios na classe dominante, merece ser mitigada. Nesses ordenamentos jurídicos, para afastar a crise de legitimidade, a cosmovisão indígena encontra participação não somente no Parlamento, mas na própria Corte Constitucional, o que permite que os mais variados setores da comunidade interpretem a Constituição a partir dos seus valores e das suas convicções.
Portanto, a manifestação do Poder Constituinte não será pontual e acabada, mas permanece constante e ativa, diminuindo a crise de legitimidade que os países da América do Sul tanto padecem.
4. A COSMOVISÃO INDÍGENA
As velhas formas de manifestação do constitucionalismo, bem como o constitucionalismo contemporâneo conhecido como neoconstitucionalismo, concretizam privilégios, prerrogativas e garantias para as classes detentoras do poder econômico e político, entendendo que as culturas não eurocêntricas como submissas e subordinadas ao modelo traçado. Portanto, a perspectiva da pluralidade, do diálogo e da multiculturalidade, cede espaço para uma cultura monolítica.
É justamente com o intuito de superar essa visão opressora que o Novo Constitucionalismo propõe
[...] novas alternativas para resolução desses conflitos, priorizando perspectivas que foram ignoradas ao longo da história jurídica em nosso continente, bem como demarcando o espaço reivindicatório e transformador do Constitucionalismo, que se aproxima da Democracia, ao contrário do discurso jurídico formado historicamente, revelador de um Direito Constitucional comprometido com a manutenção dos privilégios e sem o intuito de combater desigualdades sociais e de positivar concepções de mundo não eurocêntricas. [26]
Os povos indígenas, de acordo com essa concepção latino-americana, representam os setores menosprezados que foram constantemente excluídos não somente do processo de aplicação, mas da própria forma de produção do Direito. Guardam similaridade com os quilombolas brasileiros, os negros africanos, os desempregados espanhóis e gregos, as feministas latino-americanas, os membros das comunidades tradicionais em qualquer parte do mundo e também das próprias comunidades indígenas brasileiras, guardada as devidas proporções, já que em menor escala.
A cosmovisão indígena, que é uma forma de compreensão do mundo dos indígenas, está diretamente entrelaçada com uma nova concepção de economia. Em uma comunidade tão diferente e de profundas e marcantes desigualdades sociais, o fenômeno passa a colocar em xeque o motivo pelo qual o discurso afiliado às forças econômicas era normalmente o discurso vencedor nas disputas jurídicas e políticas em nosso continente. Veja-se o caso do Sumak Kawsay que se apresenta como um modo de vida que se “[…] distância do padrão enraizado na modernidade e no crescimento econômico. Afasta-se do individualismo, do lucro, do consumismo, da utilização da natureza como objeto de mercantilização, etc”[27]. Enquanto, de acordo com o que nos apresenta Pedro Brandão[28], “Pachamana e Bem-viver [Sumak Kawsay] são expressões de ‘ecologia dos saberes’, que mesclam o saber indígena (ancestral), com o eurocêntrico (moderno, progressista), e tem como base a pluralidade do conhecimento – para além do científico”.
Diante disso, temos que a Pachamama é
una deidad protectora – no propiamente creadora, interesante diferencia – cuyo nombre proviene de las lenguas originarias y significa Tierra, en el sentido de mundo. Es la que todo lo da, pero como permanecemos en su interior como parte de ella, tambiém exige reciprocidad, lo que se pone de manifiesto en todas las expresiones rituales de su culto. Con ella se dialoga permanentemente, no tiene ubicación espacial, está en todos lados, no hay un templo en el que vive porque es la vida misma. Si no se la atiende cuando tiene hambre o sed, produce enfermedades. Sus rituales, justamente, constisten em proporcionarle bebida y comida (challaco). [29]
Enquanto Sumak Kawsay, como já dissemos, representa um modo de viver, onde a qualidade de vida não pode ser medida, ou se for, é insuficiente, pelos benefícios econômicos das coisas. É, sim, uma
[…] concepción de la vida alejada de los parâmetros más caros de la modernidad y el crecimiento económico: el individualismo, la búsqueda del lucro, la relación costo-beneficio como axiomática social, la utilización de la naturaleza, la relación estratégica entre seres humanos, la mercantilización total de todas las esferas de la vida humana, la violencia inherente al egoísmo del consumidor, etc. El buen vivir expresa uma relación diferente entre los seres humanos y con su etorno social y natural. El buen vivir incorpora una dimensión humana, ética y holística al relacionamiento de los seres humanos tanto con su propria historia cuanto con su naturaleza.[30]
Note-se que cosmovisão indígena foi responsável por mudar a forma como a natureza é concebida dentro de um sistema jurídico. Não se trata mais de um um objeto, mas de uma divindade protetora, onde a vida se reproduz e se realiza, estabelecendo uma norma forma de se relacionar com os seres humanos. É, portanto, sujeito de direitos.
Nesse sentido, tendo em vista que o Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano é uma tentativa de resposta ao neoliberalismo e às concepções jurídicas atreladas ao capital econômico que tendiam a prevalecer no lugar de concepções jurídicas descolonizantes e plurinacionais. Como consequência desse processo, surgem novas formas de propriedade, que combatem o latifúndio e a concentração de riquezas, e de democracia, positivadas nas Constituições da Bolívia e do Equador.
Portanto, pode-se entender que a clássica dicotomia da titularidade do poder constituinte enquanto povo ou nação não se adapta perfeitamente ao Novo Constitucionalismo apresentado, que, diante da cosmovisão indígena, permite um aprofundamento no direito natural e na aceitação da natureza enquanto sujeito de direitos em detrimento do antropocentrismo. Em outras palavras, atribuir direitos à elementos naturais seria compreender uma nova forma de manifestação do poder constituinte, que até tem caráter permanente, mas é inato e natural, não se confundindo com os conceitos de povo e nação.
5. DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL: COOPERAÇÃO SOCIAL
A proteção ao meio ambiente ocorre das mais variadas formas, desde que se busque preservar e promover os aspectos relacionados à vida. Aliás, do próprio conceito adotado pela Lei nº 6.938/81[31], pode-se extrair no inciso I do art. 3º que o “meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Portanto, sabe-se que o objeto de estudo do Direito Ambiental é o meio ambiente, o que implica, em última análise, nas possíveis formas de proteção à vida. Nesse modo de avaliar, os recursos naturais não estariam sujeitos de direito, mas, sim, objetos de tutela ambiental com finalidade de garantir os direitos dos sujeitos de direito, imprescindíveis para que a dignidade da pessoa humana fosse assegurada.
Ocorre que a alteração de paradigma metodológico sobre a forma de compreensão dos recursos minerais deve alteração a forma de visão antropocêntrica para uma essencialmente egocêntrica. Nessa forma de avaliação, a ser humano deixa de ser o principal centro de análise e cede espaço para proteção das outras formas que também integram a natureza, o que pode permitir uma configuração de direitos e deveres recíprocos para os próprios recursos ambientais em espécie.
Apesar de não ser, essencialmente, uma novidade no campo do Direito Ambiental – a visão egocêntrica – a forma de apresentação do Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano coloca, diretamente, o meio ambiente como um sujeito de direitos aptos a exigir, por si só, tanto uma tutela positiva quanto uma tutela negativa. Em suma, os recursos naturais deixariam de servir para também serem servidos, permitindo, dentre outras formas, a proteção jurídica independentemente de outro titular.
Sendo assim, o Novo Constitucionalismo está apto para implementar uma efetiva forma de cooperação internacional em prol dos interesses do meio ambiente. Nesse sentido:
Além dos princípios gerais do Direito Internacional, o meio ambiente conta também com alguns princípios próprios que visam conciliar as dinâmicas de proteção e gestão ambiental dos problemas do passado-presente e dos riscos do presente-futuro, ensejando, assim, um necessário diálogo entre diferentes fontes do direito internacional. [32]
Some-se ao princípio da cooperação internacional, enquanto forma de diálogo entre os entes de soberania distinta, os princípios clássicos da prevenção, da precaução, da responsabilidade ambiental e, principalmente, do desenvolvimento sustentável. Todos esses princípios, consagrados pela doutrina e jurisprudência, têm um objetivo em comum, a proteção dos recursos naturais.
O princípio do desenvolvimento sustentável ganha importância pela seu tríplice forma de ataque: a) desenvolvimento econômico; b) justiça social; e c) preservação ambiental, tudo com finalidade de consubstanciar a típica forma de proteção solidariedade social e intergeracional (tutela das gerações futuras).
Nesse sentido, os termos antes citados, Sumak Kawsay e Pacha Mama, indicam que a mãe-terra e o bem viver são uma forma de integração não somente da cosmovisão indígena como forma de participação e legitimidade democrática, mas principalmente da conservação do equilíbrio ecológico como forma de preservar a legitimidade democrática das futuras gerações, núcleo da temática do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, Moura[33] afirma:
Frente a essa inversão abre-se a possibilidade de proteção do meio ambiente não como direito humano, mas como direito “próprio”, inclusive com os povos originários sendo capazes de pleitear e ser representados através dos mecanismos democráticos em defesa de sua cosmovisão do bem viver, que prioriza a Pachamama em relação ao indivíduo na medida em que ela é condição para toda a vida no planeta.
O novo constitucionalismo latinoamericano aponta assim na direção do pluralismo e da interculturalidade com vistas à emancipação e a uma vida digna, em harmonia, respeito e equilíbrio com a natureza. Para tanto, contudo, é preciso que essa concepção do bem viver seja colocada em prática, com uma cosmovisão marcada pela solidariedade, focada nas coletividades presentes e futuras e orientada para resolução dos problemas culturais e sociais. Para isso é importante descolonizar o saber, introduzir uma plurinacionalidade real, reestabelecer a harmonia com a natureza – inclusive no que tange ao modelo econômico – e introduzir os direitos da natureza no Direito Internacional.
Deve-se atentar para o fato de que que o desafio é grande, mas não impossível. Afirma-se isso por conta da configuração do direito internacional moderno. Sabe-se que há uma íntima relação entre Estado moderno e Direito Internacional, sendo aquele sujeito, por excelência, deste. Essa relação decorre do fato de que “[…] o surgimento e o fortalecimento do Estado-nação moderno marca a gênese do Direito Internacional: este surgiu com o objetivo primeiro de coordenar as relações entre os Estado […]”[34]. Historicamente, a partir do final do século XVI e início do século XVII, tem-se a assinatura dos tratados de Westfália, onde se reconhece, pela primeira vez no plano internacional, o princípio da igualdade formal dos Estados e a exclusão de qualquer outro poder a eles superior, o que marca o surgimento do Direito Internacional Público como conhecemos hoje, uma ciência autônoma e sistematizada. Assim, pode-se afirmar que
se o Estado moderno se constitui a partir de então e marca a modernidade (e sua essência uniformizadora, narcísica e hegemônica europeia), o direito internacional, como constrição moderna, pressupõe a existência de Estado nacionais.[35]
Nesse cenário, faz-se importante relembrar os pontos anteriormente trazidos pelo Constitucionalismo, dado sua, também, estreita relação com o Estado moderno. Apontamos que essa relação propõe a afirmação de um Estado unificador, um projeto homegeneizador, estabelecido diante de um monismo jurídico. Os fundamentos últimos desses Estados aparecem como decorrência do poder constituinte que possuem como titular a nação ou povo. Evidenciando, desse modo, que o ordenamento tem como ponto central o ser humano, estabelecendo uma visão antropocêntrica excludente.
Nesse sentido, temos hoje que o direito internacional é reflexo do direito moderno, do Estado moderno, uma vez que, conforme Magalhães[36], reproduz o caráter uniformizador, hegemônico, excludente e racista, bastando, para sua constatação, a leitura do tratado de Versalhes e a Carta da Nações Unidas nos artigos referentes ao Conselho de Tutela, por exemplo, não esquecendo, ademais, da União Europeia, com suas políticas econômicas uniformizadas, sistema de defesa e uma identidade nacional a partir do rebaixamento do outro, bem como do sistema de controle sobre as pessoas representado pelo sistema de segurança interno da União Europeia.
A reformulação do direito internacional, portanto, é fundamental. Deve-se estabelecer um arranjo onde não se tenha espaços para hegemônias. Como bem alerta Magalhães[37]:
O domínio econômico do capitalismo global, hoje uma realidade, não se sustenta mais do que quatro décadas. É impossível sustentar o ritmo de exploração dos recursos naturais e o comprometimento do meio ambiente com o atual modelo de crescimento do qual depende a economia global para geração de riquezas e empregos.
Nesse caminho, o novo constitucionalismo pluralista latino-americano representa um grande passo para essa mudança, não só como modelo, mas também como interlocutor, a partir do Estado Plurinacional, do diálogo internacional sobre o meio ambiente.
Diante disso, o diálogo internacional terá um novo sujeito de participação: a cosmovisão indígena. Assim como se conseguiu alçar voo para se fazer legitimar as ideias indígenas nas Cartas Constitucionais, seria decorrência lógica o crescimento dos influxos dos seus ideais no cenário internacional. Inclusive, talvez seja tal prestígio o que falta para uma efetiva melhora nas condições ambientais, o respeito e a abertura ao diálogo àqueles que não somente estão mais perto dos recursos naturais, mas realmente vivem, na prática, a realidade ecológica.
A cosmovisão indígena poderá, então, levar tanto a compreensão da Pachamamai (mãe-terra), onde se reproduz e se realiza a vida, em que a natureza possui um valor próprio, estabelecendo-se uma visão biocêntrica, quanto a compreensão do Sumak Kawsay (Buen Vivir), relacionado a uma lógica nova de interação com a natureza no que diz respeito à produção e ao desenvolvimento.
Por fim, fica claro que tudo isso irá refletir numa nova forma de diálogo internacional e uma maior cooperação social entre as diversas entidades internacionais, já que todas estariam envolvidas pelo espírito de preservação ambiental.
Em síntese, prestigiar o conhecimento da cosmovisão indígena é valorizar uma forma de compreensão da natureza que coloca o meio ambiente como sujeito de proteção imediata, sendo que permitir o diálogo internacional é uma das melhores formas de remediar a crise ambiental mundialmente reconhecida.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao iniciar este trabalho científico constatou-se que há uma falta de legitimidade no ordenamento jurídico latino-americano e esse fato acarreta diversos problema nos Estados, sendo um deles a falta da participação da população na criação e manutenção do poder constituinte e a titularidade desse poder, a desvalorização da cultura desses povos e suas vulnerabilidades sociais e a destruição do meio ambiente do continente sul-americano. Percebe-se que os países em desenvolvimento são os países com maiores problemas ambientais, muito devido à ideia de privatização dos lucros e divisão dos ônus que perpassa a sua exploração desenfreada. Em decorrência desses fatos surge a importância da pesquisa sobre a Titularidade do Poder Constituinte e o movimento do Novo Constitucionalismos Pluralista Latino-Americano com foco no Direito Ambiental Internacional como forma de legitimar os atos dos detentores do poder de forma democrática e participativa, como também combater a exploração predatória do meio ambiente.
Diante desses fatos, um dos objetos analisado foi o problema da titularidade do Poder Constituinte o qual passa pela compreensão do que se entende por soberania, bem como dos fenômenos pré-jurídicos impulsionadores e, em última análise, pelo embasamento filosófico do que seria uma dominação justa, utilizando os conceitos de nação e povo de acordo com a visão de Abade Sieyés e Jellineck, respectivamente, como resultado dessa dicotomia entre nação e povo observou-se a importância do novo Constitucionalismos Pluralista para prover uma analise mais fidedigna do continente sul-americano.
Continuando, o próximo objeto analisado foi o Novo Constitucionalismo pluralista latino-americano o qual trouxe destaque para pontos como uma nova relação entre democracia e constitucionalismos participativa, com mecanismos e um pluralismo jurídico como forma de descolonizar, principalmente, os povos indígenas e uma visão egocêntrica para o desenvolvimento econômico, afastando a clássica visão eurocêntrica.
Outro ponto analisado foi a cosmovisão indígena com intuito de agregar o ordenamento jurídico para reconhecer a existência de uma autoridade natural apta a conservar o equilíbrio ecológico e os demais recursos naturais, sendo que a dominação fática do meio ambiente não se daria pelos homens, mas sim natural (pré-jurídico). O Sumak Kawsay e a Pachamama resgatam esse primeiro nível e vão além, permitindo que o pluralismo envolva os setores dominantes e quebrem o temido status quo.
Dessa forma, o Novo Constitucionalismo Pluralista rompe aquela tradição de valorizar somente a visão europeia, bem como a nortista e a antropocêntrica e permite que vozes até então emudecidas possam influir de maneira concreta na sua própria forma de representação. Assim, as formas de proteção ao meio ambiente deixam de ser vistas como um reflexo do direito, uma forma secundária de proteção, para se tornar protagonista nas questões ambientais.
O Bem-viver e a Mãe-terra podem ser considerados como parte da titularidade do Poder Constituinte Latino-Americano, desconstruindo a bipartição de “povo” e “nação” para resgatar os ideais do direito natural e da autoridade natural. Agregando, portanto, novos valores ao ordenamento, especialmente aqueles relacionados com a proteção ambiental, permitindo que os setores, até então dominados, tenham uma efetiva representação da realidade fática, sendo, então, representadas de forma mais fidedigna e não somente como extrato de uma elite classista. É por esse motivo que o Novo Constitucionalismo Pluralista tem como missão precípua orientar um novo modelo sociedade onde os atores sociais, que historicamente foram marginalizados, possam ser protagonistas de seus destinos. Assim, tirar a forma de concepção reinante para privilegiar a cosmovisão indígena pode permite uma nova forma de ponderação dos custos ambientais e a forma de internacionalização deles na cadeia econômica-produtiva. Esses ideais chegarão à sociedade internacional em forma de diálogo internacional, onde a cosmovisão indígena apresenta-se, a partir do Estado plurinacional, como novo ator internacional, permitindo que se concretize uma cooperação internacional a favor da proteção ambiental.
Não se nega que, na prática, problemas permanecerão, já que tratar da crise de legitimidade é tratar do eterno influxo entre representantes e representados, dominantes e dominados. De toda forma, cumpre ressaltar que há um avanço nítido em pelo menos dois aspectos: a inclusão/valorização do multiculturalismo e a o entendimento de que a natureza pode ser titular de direitos e atuar ativamente na formulação do Poder Constituinte.
7. REFERÊNCIAS
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SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. Novembro, 2021
[1] Orientador: Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Maringá (2001), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (2005), é doutor em Ciências Jurídicas pela Universidad Castilha la Mancha, na Espanha (2014) e Pós-Doutor em Direito Pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha (2019). Atualmente é professor Adjunto IV, da Universidade Federal do Amazonas- UFAM - das disciplinas de Direito Internacional Público e Direito Internacional Privado.
[2] TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
[3] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2017.
[4] HOLTHE, Leo Van. Direito Constitucional. 5. Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2009, p. 108.
[5] FERNANDES, op.cit.
[6] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
[7] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A titularidade do poder constituinte. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, VII, n. 16, 2004. Disponível em: https://bityli.com/8EFM8. Acesso em: 25 mai. 2020.
[8] BRANDÃO, Pedro Augusto Domingues Miranda. O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano: participação popular e cosmovisões indígenas (Sumak Kawsay e Pachamama). 2013. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013, p. 10. Disponível em: https://bityli.com/8MaWz. Acesso em: 5 jun. 2020.
[9] FERNANDES, op.cit.
[10] BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicolla; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 1º ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 61. Tradução de: Carmen C, Varriale et al.
[11] FERNANDES, op.cit., p. 216.
[12] Ibidem., p. 51.
[13] Ibidem, p. 50.
[14] Ibidem, p. 46.
[15] BERNARDES, Márcio de Souza. A (re) invenção do comum no novo constitucionalismo latino-americano: ecologia política, direito e resistência na américa latina. 2017. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Florianópolis, 2017, p. 219. Disponível em: https://bityli.com/LUdmn. Acesso em: 6 jun. 2020.
[16] FRÓES, Rodrigo Dias Rodrigues de Mendonça; DUARTE, Aimée Schneider. O novo constitucionalismo na américa latina: sobre poderes e limites. In: CALAZANS, Márcia Esteves de; CASTRO, Mary Garcia; PIÑEIRO, Emilia (org.). América Latina: Corpos, trânsitos e resistências. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018, p. 30.
[17] BERNARDES, op. cit., p. 227.
[18] BRANDÃO, op. cit., p. 137.
[19] Ibidem , p. 99.
[20] Ibidem , p. 117.
[21] OLIVEIRA, Jadson Correia de; ALVES, Vanessa Estevam. Estado moderno e pluralismo jurídico: uma análise dentro do novo constitucionalismo latino-americano. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 13, n. 30, p. 89–106, 2018, p. 94. Disponível em: https://bit.ly/3g7JPfz. Acesso em: 01 jun. 2020.
[22] BRANDÃO, op. cit., p. 28.
[23] BERNARDES, op. cit.
[24] Ibidem, p. 244.
[25] SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit.
[26] BRANDÃO, op. cit., p. 11.
[27] FURLANETTO, Taísa Villa. O constitucionalismo transformador latino-americano: implicações na restauração e reparação do dano ambiental. 2014. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Direito, Caxias do Sul, 2014, p. 56. Disponível em: https://bit.ly/38c2SCs. Acesso em: 06 jun. 2020.
[28] BRANDÃO, op. cit., p. 102.
[29] FURLANETTO, op. cit., p. 49.
[30] Ibidem, p. 57.
[31] BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: https://bityli.com/ZChGK. Acesso em: 24 mai. 2020.
[32] ÁLVAREZ, Ana Muniz. Elementos para a discussão sobre a pertinência da criação de uma Corte Internacional para o Meio Ambiente: da responsabilidade internacional do Estado à solução pacífica de controvérsias em matéria ambiental. 2010. 257f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte, p. 33.
[33] MOURA, Luiza Diamantino. O Novo Constitucionalismo Latinoamericano e o Meio Ambiente: as possibilidades de proteção face ao Direito Ambiental Internacional. In: CONPEDI/UFF. PARAGUASSI; Monica; MENEZES, Wagner; RAIZER, Valesca; MOSCHEN, Borges (org.). Direito Internacional. 1ed. Florianópolis: FUNJAB, 2012, p. 27.
[34] AFONSO, Henrique Weil; MAGALHÃES, José Luiz Quadro de. O Estado plurinacional da Bolívia e do Equador: matrizes para uma releitura do direito internacional moderno. Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC, [S. l.], v. 17, p. 263–276, 2011, p. 265. Disponível em: https://bityli.com/x9Dqv. Acesso em: 5 jun. 2020.
[35] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O Estado plurinacional e o direito internacional moderno. Curitiba: Juruá, 2012, p. 97.
[36] Ibidem.
[37] Ibidem, p. 37.
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIANA, Herberth Vinicius Batista. A titularidade do poder constituinte e o novo constitucionalismo pluralista latino-americano: reflexos no direito ambiental internacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 maio 2022, 04:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58392/a-titularidade-do-poder-constituinte-e-o-novo-constitucionalismo-pluralista-latino-americano-reflexos-no-direito-ambiental-internacional. Acesso em: 22 nov 2024.
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