RESUMO: O presente trabalho tem por escopo analisar os legados da Justiça de Transição no Brasil e, mais especificamente, sua importância para a democracia. Para tanto fora realizada uma revisão bibliográfica de diversos autores nacionais e internacionais, bem como uma busca nos sítios eletrônicos que permitisse ter uma dimensão das medidas adotados pelo Brasil. Será dado um enfoque à memória como necessária ao resgate de valores democráticos, ressaltando-se o papel do Estado na construção da memória social, imprescindível para a construção de um Estado Democrático de Direito. Por fim, demonstrar-se-á que as políticas de esquecimento e a ausência de uma transição política efetiva acabam por permitir a permanência de práticas autoritárias e corruptas no seio do Estado.
Palavras-chave: Justiça de Transição. Brasil. Memória. Democracia.
ABSTRACT: The present study has as its objective to analyze transitional justice and its process of construction in Brazil and relevance for democracy. To accomplish that it was made a bibliographic review of national and international authors, as well as a search in databases on the internet so that it was possible to have a dimension of the measures taken in Brazil. It will be given emphasis to memory as a mean necessary to rescue democratic values, highlighting the importance of the state in the construction of social memory, indispensable to the construction of the rule of law. At last, it will be demonstrated that the forgetting policies and the absence of effective political transition allowed the permanence of authoritarian and corrupt practices in the state.
Keywords: Transicional Justice. Dictatorship. Memory. Democracy.
O presente artigo tem por objetivo o estudo e análise dos legados da Justiça de Transição, especialmente, como ela vem sendo construída no Brasil e quais as implicações que dela decorrem para a democracia. Para tanto foi escolhida como metodologia a revisão bibliográfica, que se deu pelas leituras de autores nacionais e internacionais, análise de documentos históricos, da história nacional e de países que também lidam com um legado recente de violações de direitos humanos em massa.
A escolha do tema foi resultado de inquietações relativamente à questão da transição para a democracia, das poucas discussões sobre o regime militar e da dificuldade que as pessoas comuns têm em entender as heranças da ditadura. Desse modo, a importância do tema reside na contraposição entre uma transição política realizada pelo Brasil há quase trinta anos e a permanência de características essenciais do regime autoritário na sociedade brasileira.
Entende-se assim que a Justiça de Transição, enquanto conjunto de processos e mecanismos que busca a superação do legado de violações sistemáticas e em massa aos direitos humanos, especialmente no que concerne à memória, é fundamental para a concretização de uma democracia.
Abordar-se-á os legados da Justiça de Transição no Brasil, especificadamente dos relatórios do Brasil: Nunca Mais e da Comissão Nacional da Verdade, além de outras mídias. A partir do estudo da Justiça de Transição e dos resultados obtidos com a análise dos mecanismos já adotados, percebe-se a importância de se trabalhar permanentemente a memória para o fortalecimento dos valores democráticos. Dessa forma, ainda se demonstra a importância do Estado na construção da memória social.
Segue-se ainda com a análise do que se entende por democracia material, constatando-se o déficit democrático brasileiro. Corroborando esse posicionamento e frisando a imprescindibilidade de trabalhar a memória, retrata-se a violência policial e a corrupção como práticas que reportam a regimes autoritários, no caso, a ditadura civil-militar no Brasil.
2 LEGADOS DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL E A QUESTÃO DA DEMOCRACIA
2.1 Legados da Justiça de Transição no Brasil
2.1.1 O Relatório Brasil: Nunca Mais[1]
Pode-se afirmar que o Relatório Brasil: Nunca Mais é o primeiro passo, não-institucional, e a maior iniciativa da sociedade civil para a reconstrução da memória e alcance da verdade. Ainda durante o regime civil-militar brasileiro, em 1979, o Conselho Mundial de Igrejas e a Arquidiocese de São Paulo, sob a coordenação do Reverendo Jaime Wright e de Dom Paulo Evaristo Arns, elaboraram o projeto Brasil: Nunca Mais responsável pela análise e reprodução de 710 processos judiciais, ou seja, um total de aproximadamente 850 mil páginas em cópias de papel e 543 rolos de microfilmes.
O objetivo do projeto era obter e preservar as informações contidas nos processos judiciais de crimes políticos e sobre as torturas realizadas pela repressão política, para que então fossem divulgadas e cumprissem um papel de esclarecimento junto à sociedade.
Todo o trabalho foi realizado entre 1979 e 1985 em sigilo, e deu origem a “um documento-mãe, denominado ‘Projeto A’, com a análise e a catalogação das informações constantes dos autos dos processos judiciais em 6.891 páginas divididas em 12 volumes” (BRASIL NUNCA MAIS, 2017).
De acordo com o site oficial do Brasil: Nunca Mais,
No Projeto A foi possível identificar, dentre outros dados, (i) quantos presos passaram pelos tribunais militares, (ii) quantos foram formalmente acusados, (iii) quantos foram presos, (iv) quantas pessoas declararam ter sido torturadas, (v) quantas pessoas desapareceram, (vi) quais eram as modalidades de tortura mais praticadas, e (vii) quais eram os centros de detenção. Ademais, foi possível listar os nomes dos médicos que davam plantão junto aos porões e os funcionários identificados pelos presos políticos (BRASIL: NUNCA MAIS, 2017).
Contudo, considerando a quantidade excessiva de páginas, a leitura se tornou um empecilho para o conhecimento das violações aos direitos humanos durante o regime repressivo. Dessa forma, foi idealizado por Dom Paulo o “Projeto B”, ou seja, um livro que fosse capaz de resumidamente divulgar as informações colhidas pelo ‘Projeto A’. Obtendo-se como resultado a publicação pela Editora Vozes em 1985 do livro “Brasil: Nunca Mais”, que repercutiu nacional e internacionalmente.
O resgate da memória foi o impulsionador do projeto. Dom Paulo Evaristo Arns e todos que contribuíram para a concretização do relatório já assinalavam que a memória tem um papel fundamental para o resgate dos valores democráticos e que pelo conhecimento da verdade se é capaz de impedir a repetição das atrocidades.
Preocupado com a preservação da memória, Dom Paulo decidiu doar toda documentação para que se tornasse pública. Com a promessa de disponibilizar o material para consulta e permitir a sua reprodução, a Universidade Estadual de Campinas aceitou o encargo e o Projeto A, bem como as cópias integrais dos 710 processos judiciais catalogados foram transferidos para o Arquivo Edgard Leuenroth, vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Hoje, no entanto, os documentos já se encontram disponíveis na íntegra em diversos sítios eletrônicos.[2]
Por fim, é importante ressaltar que o Brasil: Nunca Mais representa a luta pela preservação da memória mesmo quando o Estado brasileiro não se propunha e reconstruí-la. Nesse sentido destaca Daniela Vasconcelos (2013, p. 156) que
O legado de violações de direitos humanos do regime anterior não foi ao centro do conflito político durante a transição democrática, tampouco provocou intensa mobilização social, exceto por setores progressistas da Igreja católica, que organizaram o mais importante relatório não oficial sobre a repressão estatal, o Brasil Nunca Mais, e pelas organizações de familiares de mortos e desaparecidos políticos. O legado da ação repressiva dos governos militares ocupou um lugar marginal na agenda política da redemocratização, ficando restrito à memória privada daqueles atingidos, direta ou indiretamente, pela violência estatal.
O projeto Brasil: Nunca Mais é, sem dúvida, o maior legado não institucional que o Brasil tem quando se fala em memória e Justiça de Transição no Brasil, pois recupera documentos e informações ainda durante o período civil-militar e impede que as políticas de silêncio se sobreponham a história nacional, preservando as narrativas que o Estado tanto quis apagar/esquecer.
2.1.2 O Relatório final da Comissão Nacional da Verdade
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída em 16 de maio de 2012 com o fim de proporcionar a reconciliação nacional e efetivar o direito à verdade e à memória histórica, devendo ao final (até 16 de dezembro de 2014) apresentar um “relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e as recomendações”.[3]
O relatório foi entregue no dia 10 de dezembro de 2014 e encontra-se virtualmente disponível na plataforma do governo (www.cnv.gov.br). No mesmo dia os membros da Comissão, a saber, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari, Rosa Cardoso publicaram um artigo analisando o trabalho desenvolvido.[4]
Afirmaram que apesar de a lei n° 12.528/2011 determinar a investigação de violações a direitos humanos entre 1946 e 1988 (período entre as duas últimas constituições democráticas brasileira), foi dado um foco maior as violações cometidas no período do regime civil-militar (1964-1985), pois é o momento no qual os quadros de violações são mais intensos.
Dentre as atividades desenvolvidas elencam a busca e pesquisa de documentos, a oitiva de mais de um milhar de pessoas, a realização de diligências em locais de repressão, bem como a promoção de audiências e sessões públicas por todo território nacional, travando-se um diálogo contínuo com a sociedade. Ressaltam também as profundas contribuições da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e da Comissão de Anistia, quanto aos trabalhos que já vinham desenvolvendo, de entidades da sociedade, dos sobreviventes e dos familiares de mortos e desaparecidos.
O relatório é dividido em três volumes. O primeiro contempla uma retrospectiva da Comissão Nacional da Verdade, desde a sua criação até as atividades realizadas, segue-se com a apresentação das estruturas do Estado, dos métodos, práticas e dinâmica das graves violações de direitos humanos e encerra-se com as conclusões e recomendações.
O segundo reúne textos que enfocam as violações de direitos humanos sob o prisma de diversos setores sociais, como dos trabalhadores, dos camponeses, dos povos indígenas, dos universitários. Compilam também textos que tratam da ditatura e homossexualidade, além de outros que retratam os civis que colaboraram com a ditadura ou resistiram às graves violações cometidas.
O último volume, o mais extenso, descreve o que aconteceu com 434 mortos e desaparecidos, a partir de todas as informações coletadas e analisadas nos volumes anteriores.
Embora o relatório final da CNV esclareça diversos acontecimentos do regime civil-militar e tenha fundamental importância para o processo de concretização da Justiça de Transição no Brasil, não se pode pensar que ele por si só satisfaz e encerra esse processo transicional.
Destaca-se, assim, os papeis das comissões estaduais, municipais, setoriais e universitárias, algumas instituídas paralelamente a Comissão Nacional da Verdade, que complementam e potencializam os trabalhos já realizados. Mas que sozinhas também são insuficientes para a reconstrução da história, fortalecimento da memória e resgate dos princípios democráticos
No artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo, os membros da comissão fazem um importante adendo
Mesmo que adequadamente consagrada, a verdade não promove o resgate da memória social se não é revelada e compartilhada. Essa constatação - e a de que mais de 80% dos brasileiros nasceram após o golpe de 1964 e que 40% (80 milhões) nasceram depois do final da ditadura, em 1985 - levou a CNV a dar especial atenção à efetivação do direito à memória, também uma de suas finalidades legais (DIAS et al, 2015).
Logo, conclui-se que a memória social e compartilhada, responsável por desconstituir as versões oficiais apresentadas no período ditatorial e esclarecer como se deu a história nacional, é essencial para o alcance de uma verdadeira democracia. Daí a importância de o Estado manter medidas que permanentemente trabalhem a memória, para que os abusos do passado não mais se repitam nem se justifiquem no presente.
Além dos relatórios acima detalhados, apresentam-se como legados da Justiça de Transição no Brasil filmes e sítios eletrônicos de divulgação da repressão estatal.
Vale à pena pontuar que apesar de pouco difundida e trabalhada socialmente, o Brasil possui uma vasta cinematografia[5] que retrata o período civil-militar. Dentre alguns títulos cabe mencionar: “Manhã Cinzenta” de Olney São Paulo (1969), filme censurado durante o regime civil-militar que retrata um golpe de Estado em um país imaginário da América Latina; “Pra Frente, Brasil” (1983), dirigido por Roberto Farias, trata da vida de um pacato trabalhador rural que é confundido com um ativista político e passa a ser torturado para confessar seus supostos crimes; “Batismo de Sangue” (2006), de Helvecio Ratton, situado no final da década de 60 em São Paulo fala da resistência, do grupo de guerrilheiros comandado por Carlos Marighella e das sessões de torturas promovidas pelo Estado; "Galeria F” (2016), dirigido por Emília Silveira, é um documentário que reconstitui a história de Theodomiro Romeiro dos Santos, ex-preso político condenado à morte que escapou da ditadura.
Em relação aos sítios eletrônicos de divulgação de dados da ditadura, desde informações de como a ditadura se apresentava institucionalmente, de documentos que comprovam a tortura e repressão praticadas pelo Estado, até busca pelos desaparecidos políticos, pode-se citar como fundamentais no processo de elaboração da memória social os seguintes sítios: Memórias Reveladas,[6] Documentos Revelados,[7] Memórias da Ditadura,[8] Brasil Nunca Mais Digital.[9]
Apesar de todo esse material ser essencial para a efetivação da Justiça Transicional eles não são capazes de por si só superar as políticas de esquecimento impostas. É preciso além de disponibilizar a informação, que ela seja ativada. O papel do Estado é exatamente o de ativação da memória para o resgate de valores democráticos.
2.2 O “dever de memória” do Estado
O “dever de memória” traduz-se na necessidade do Estado e da sociedade lidar com o passado de violência, reconhecendo-se a dor das vítimas e travando-se um diálogo entre as práticas do passado que repercutem no presente para que não mais se repitam. De acordo com Camargo (2016, p. 251-252)
(...) o “dever de memória”, enquanto paradigma conceitual, nos remete ao mesmo tempo a um imperativo moral e político: moral no sentido de que torna inadmissível a aceitação de crimes que geram opressão, violência e sofrimento; político porque abre espaço para pensar em políticas públicas específicas cujo objetivo deve ser de tratar um passado marcado por diversos sofrimentos e que continuam reverberando sob a forma de legados no presente. Portanto, o “dever de memória” contém uma dupla implicação. Primeiro: o direito das vítimas de rememorar seu passado, narrar suas memórias e compartilhá-las socialmente, ou seja, o direito ao reconhecimento social da existência dessa história de traumas. Segundo, que se desenvolve em decorrência da primeira implicação: essas memórias de sofrimento geram deveres por parte do Estado e da sociedade para com as vítimas.
Contudo, se de um lado as vítimas têm o direito à memória, de outro, têm ao esquecimento, não se podendo obrigá-las a trazer à tona toda a experiência traumática que sofreram, principalmente quando não se sentem seguras para tanto. Pollak (1989, p. 5) ressalta que as razões do silêncio são complexas e que encontrar uma escuta é fundamental para que as vítimas possam relatar os sofrimentos vividos.
Por isso, o modo como o Estado entende o papel das memórias políticas, a importância que atribui a elas, o espaço político e a forma institucional que desenvolve para que elas possam vir à arena pública, influencia o desenho e o conteúdo das iniciativas e leis que tratam as questões do passado traumático, bem como seu impacto sobre a implantação e consolidação dos valores democráticos (...) (CAMARGO, 2016, p. 253).
As narrativas individuais e coletivas precisam invadir o espaço público e constantemente se fazerem presentes, uma vez que a memória comum desempenha a função positiva de “reforçar a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo” (POLLAK, 1989, p. 3).
Dessa forma, a superação de políticas de silêncio e esquecimento implementadas pós-ditadura são essenciais para a concretização da democracia, a fim de evitar a naturalização da violência pela “displicência histórica”. Pois, como ensina Maria Rita Kehl (2010, p. 126)
Não há reação mais nefasta diante de um trauma social do que a política do silêncio e do esquecimento, que empurra para fora dos limites da simbolização as piores passagens da história de uma sociedade. Se o trauma, por sua própria definição de real não simbolizado, produz efeitos sintomáticos de repetição, as tentativas de esquecer os eventos traumáticos coletivos resultam em sintoma social. Quando uma sociedade não consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memória do evento traumático, esse simulacro de recalque coletivo tende a produzir repetições sinistras.
No Brasil, os comitês de anistia representam um papel inicial na busca pela memória social e luta contra o silêncio institucional. Conforme Greco (2003) há nesse movimento a construção de uma contramemória, que fragiliza os discursos oficiais da ditadura e imprime novo significado à anistia, trazendo para o debate público o direito de resistência contra um Estado arbitrário e violador de direitos humanos, trata-se, dessa forma, da “construção de uma contramemória em oposição ao exercício de espoliação das lembranças que está na base da memória institucional” (GRECO, 2003, p. 22). Desde então se luta pela não “privatização”[10] da memória política (CAMARGO, 2016, p. 256-257).
É também nos anos 90 que se inicia a elaboração do projeto Brasil: Nunca Mais que culmina num relatório de mais de um milhão de páginas, representando papel fundamental no resgate não consciente e não institucional da memória.[11]
Embora haja medidas de resgate da memória desde 1975, o Estado brasileiro apenas as institucionaliza tardiamente. Nesse diapasão, salienta Camargo (2016, p. 259-260)
(...) é possível inferir que, embora o Estado democrático tenha conseguido sair do papel de violador para o de promotor dos direitos humanos, no que se refere às questões relacionadas à gestão do passado autoritário e dos crimes de lesa-humanidade, esse papel permaneceu limitado. O Estado não impulsionou uma política de memória que possibilitasse o debate público e coletivo das memórias particulares das vítimas, uma vez que o espaço para a elaboração da memória ficou limitado por provas burocráticas e individuais. O Estado atuou como um depositário das memórias individuais, mas não um ator ativo na construção e no estímulo de “outra memória possível”, agiu como reparador econômico, mas perdeu a chance de ser um agente educativo. (...) Assim, perdeu-se a oportunidade de produzir um efeito pedagógico de aprendizagem de valores democráticos.
Na primeira década dos anos 2000 o direito à verdade e à memória entra na pauta do governo, que, como relatado, adota medidas para o alcance da verdade e reconstrução da memória social, reconhece-se, assim, o “dever de memória” política como fundamental no processo transicional e no resgate de valores democráticos.
Como legado institucional da Justiça de Transição no Brasil tem-se a publicação apenas em dezembro de 2014 do relatório final da Comissão Nacional da Verdade que reafirma mais uma vez, a necessidade da construção da memória social e do seu compartilhamento para consolidação da democracia.
A democracia se caracteriza primordialmente pela soberania popular, as decisões políticas serão então tomadas pelo povo, seja direta ou indiretamente, e haverá uma fiscalização do poder. Esse também é um regime político que se sobressai pelo respeito aos direitos fundamentais (políticos, civis) e à legalidade. Ocorre que a transição entre o regime autoritário e o democrático, muitas vezes, não é completo e a sociedade apenas teoricamente/formalmente adotou o novo regime. Nesse diapasão salienta Moisés (2008, p. 13)
Embora eleições sejam indispensáveis para a existência da democracia, como advogam as definições convencionais, tornou-se evidente que elas não garantem per se a instauração de um regime democrático capaz de assegurar princípios como o primado da lei, o respeito aos direitos dos cidadãos e o controle e a fiscalização dos governos. Apesar de demonstrar que o antigo regime terminou e que, doravante, a escolha de governos está submetida ao princípio da soberania popular, a vigência de eleições não impediu, em alguns casos, que, mesmo evoluindo no sentido da ampliação dos direitos civis e políticos, democracias eleitorais não atendessem necessariamente a todos os critérios segundo os quais um sistema político autoritário se transforma em democrático.
A possibilidade de escolher os governantes periodicamente pela sociedade em geral, não pode abarcar todas as dimensões que um regime democrático exige. Essa característica por si só não é capaz de definir se uma sociedade adota ou não a democracia. É na verdade um entendimento minimalista que reduz todo um conjunto de direitos e garantias a simples mecanismos eleitorais. Nesse sentido pontua Dornelles (2006, p. 218-219) que “a institucionalidade democrática, como espaço do pluralismo político no Estado, é restrita e não garante a própria democratização social como processo mais amplo e que se enraíza na sociedade organizada”.
Para que haja uma democracia é preciso que a participação dos cidadãos esteja assegurada, que eles possam escolher os governantes e serem escolhidos (igualdade política), bem como avaliar e julgar o desempenho dos governos e representantes; que as liberdades individuais sejam respeitadas; que diferentes concepções possam ser expressadas. Além disso, é necessário que a constituição seja aceita como legítima pela sociedade, e que esta adote mecanismo de “pesos e contrapesos” (separação dos poderes) e preveja instituições que incorporam os princípios constitucionais (MOISÉS, 2008, p. 14-15).
Moisés salienta ainda que (2008, p.16)
(...) para que o regime democrático funcione a contento, o sistema político e as suas instituições fundamentais devem ser adotados de forma incondicional, não apenas pelas elites políticas, mas pela maioria dos cidadãos como parte integrante do seu pertencimento à comunidade política. O que os cidadãos pensam e sentem sobre as instituições democráticas, assim como suas atitudes a respeito delas, são componentes indispensáveis do software sem o qual o hardware democrático funciona mal.
Quando práticas autoritárias não são expostas como tais e se sustentam em regimes ditos democráticos, fica nítida a confusão ideológica que causa entre os cidadãos e o porquê da desconfiança destes nas atuais instituições. O papel da memória é justamente o de resgate das experiências passadas, é evitar que pelo esquecimento medidas que se reportam a um regime autoritário permaneçam no seio da sociedade como se necessárias a manutenção de uma suposta ordem, como se sem elas não fosse possível a democracia.
(...) as políticas para memória, numa transição política, podem contribuir de modo decisivo para a constituição de um senso comum democrático em substituição ao arcabouço de valores autoritários introjetados na sociedade pela prolongada vivência em regimes opressivos. Neste sentido, políticas de acesso à verdade e de fomento a reflexão crítica sobre o passado tornam-se mecanismos de produção de memória social voltada para a cidadania, permitindo a desnaturalização da violência e a gradativa incorporação de percepções e práticas democráticas em todo o tecido social.
O movimento de democratização, especialmente em contextos onde a via eleitoral foi priorizada em relação a outras formas de produção da democracia, precisa de constante fomento para que possa efetivamente atingir a inteireza do aparelho estatal, penetrando, inclusive, nas instituições fortemente aparelhadas pela repressão, como o exército, a polícia e mesmo em alguns casos – como o brasileiro – o Poder Judiciário. A implementação de políticas de memória contribui neste sentido (TORELLY, 2010, p. 264-265).
O Brasil carece de uma transição política efetiva, a mudança de regime não significou impreterivelmente a mudança de perspectivas de como governar e de como viver em sociedade. Instituições essencialmente autoritárias sobrevivem com práticas similares à da ditadura civil-militar e as torturas mesmo que “veladas” se manifestam diariamente.
É importante destacar que o processo de democratização brasileira gerou diversas expectativas, acreditava-se na ampliação da proteção aos direitos humanos e no exercício pleno da cidadania, contudo se observa que as relações entre governo e parte da sociedade (populações excluídas ou em situação de vulnerabilidade) são marcadas pela ilegalidade e arbitrariedade (DORNELLES, 2006, p. 215).
Aqui reside a ambiguidade e o paradoxo da realidade brasileira, já que o retorno às práticas democráticas, a partir de meados dos anos oitenta do século XX, fez surgir os elementos institucionais de uma sociedade formalmente democrática. No entanto, sobreviveram outros elementos opostos com o advento das práticas institucionais democráticas. Coexistem elementos positivos, que emergiram do processo de transição democrática, com os elementos negativos, que se originam na herança histórica autoritária, elitista e excludente da sociedade brasileira, aprofundados com a experiência de vinte anos de regime militar, se expressando através da sobrevivência de uma “sociedade incivil”, de uma “sociedade política elitista, não submetida ao controle dos excluídos, das não-elites”, de um “não-Estado de Direito” para a imensa massa popular, além de um não-acesso à justiça.
Não tratar da ditadura e de todas as suas consequências significa hoje ter que lidar com um legado autoritário que se manifesta em diferentes dimensões. A brutalidade policial, a violência física, a prática de torturas e maus tratos, a corrupção são apenas alguns exemplos dos resquícios ditatoriais que permanecem na sociedade e confirmam o déficit democrático que se vive no Brasil.
2.3.1 O papel da memória e violência policial no Brasil “democrático”
Embora se presencie uma ampliação na proteção dos direitos humanos, o Brasil ainda é marcado por uma política autoritária e de extermínio. A brutalidade policial e o uso da tortura não são exceções,[12] mas práticas rotineiras resultantes de uma formação social em que graus intoleráveis de violência são naturalizados, diante do esquecimento e da indiferença que prevalecem em relação ao passado.
A transição da ditadura para a democracia não foi capaz de aniquilar esses resquícios que se perpetuam na história nacional. Conforme Gagnebim (2010, p. 186)
Parece haver uma correspondência secreta entre os lugares vazios, os buracos da memória, esses brancos impostos do não dito do passado, e os lugares sem lei do presente, espaços de exclusão e de exceção, mas situados dentro do recinto social legítimo, como se somente a inclusão da exceção pudesse garantir a segurança da totalidade social.
Em paralelo ao exposto, é possível concluir que o direito à memória se torna essencial para o processo de superação do legado autoritário, uma vez que permite a “acumulação coletiva de experiências para o aprendizado social, com vistas a transformação desse acúmulo em fortalecimento institucional e em capital político para a manutenção e ampliação do regime democrático almejado pela própria transição (...)” (TORELLY, 2010, p. 249).
No Brasil os dados que demonstram a violência policial são alarmantes. Segundo o 10° Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2016, p. 30) foram mortas 3.320 pessoas decorrentes de intervenções policiais em 2015 e 17.688 entre 2009 e 2015, apresentando-se uma taxa de letalidade policial de 1,6 por 100 mil habitantes (maior do que a de Honduras – 1,2 – considerado o país mais violento do mundo). Relata-se ainda que a polícia brasileira mata aproximadamente 9 pessoas por dia (2016, p. 21).
O que se observa é um reflexo de uma polícia militar que “foi e continua sendo um aparelho bélico do Estado, empregada pelos sucessivos governantes no controle de seu inimigo interno, ou seja, seu próprio povo” (COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2015, p. 1).
Com a promulgação da Constituição de 1988 pouco ou nada efetivamente se mudou em relação as polícias militares, regidas ainda por dispositivos pré-constitucionais como o decreto n° 88.777 de 30 de setembro de 1983 que aprova o regulamento para as polícias militares e corpo de bombeiro.
O art. 41 desse decreto é um nítido exemplo de como a ditatura ainda não foi superada ao dispor que “as Polícias Militares integrarão o Sistema de Informações do Exército, conforme dispuserem os Comandantes de Exército ou Comandos Militares de Área, nas respectivas áreas de jurisdição”. Informações que fogem ao controle do poder civil e da sociedade.
Em depoimentos concedidos à Comissão da Verdade Rubens Paiva (2015, p. 13) percebe-se o quão problemático é esse dispositivo. José de Menezes Cabral e Francisco Jesus da Paz afirmam, respectivamente, na 96ª Audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo em 22 de novembro de 2013:
sobre a P/2, até hoje nos vigia. (...) Então, nós, além de sermos vigiados, nós fomos caluniados pelo resquício da ditadura de elementos que ainda dirigem a corporação
[...] quando Montoro extinguiu o DOPS, ficamos satisfeitos. Mas nós não percebemos, a sociedade civil não percebeu, a cidadania ativa não percebeu, que havia algo criado muito mais eficiente, muito mais amplo, que era a P/2. Por quê? Porque a P/2 ela está espalhada [...] nos 645 municípios de São Paulo, no caso de São Paulo. Ela está espalhada nos 5.400 municípios do Brasil. [...] Não é uma questão da Polícia Militar de São Paulo. Todas as polícias militares têm a sua polícia política sob o comando, sob o controle do Exército Brasileiro, do Estado-Maior (...) Não há nenhum, repito, não há nenhum controle da sociedade civil sobre essa polícia política.
Não somente a legislação permite concluir que práticas antidemocráticas continuam fazendo parte da trajetória brasileira, mas também os ensinamentos passados nas corporações militares e as práticas policiais.
Quanto aos ensinamentos, destaca-se que até 1996 a polícia do Rio de Janeiro ensinava a bater (e não se trata de defesa pessoal) e que até 2006, pelo menos, o BOPE dava aulas de torturas enquanto procedimentos institucionais.[13] Sabe-se que a tortura continua a fazer parte do cotidiano de agentes públicos (como policiais civis e militares, agentes penitenciários, carcereiros, monitores de unidades de internação) que a utilizam especialmente como meio de obter a confissão ou informações, sendo considerado um método de investigação admitido pelas corporações (IBCCRIM et. al., 2015, p. 11; 38-39).
Em relação às práticas policiais cabe mencionar os autos de resistência que são um mecanismo de justificação da violência policial, ao permitir que agentes públicos utilizem quaisquer meios que julguem necessários para atuar pessoas que resistam à prisão, o que é, na verdade, uma autorização institucional de execuções sumárias realizadas contra a população periférica.[14]
Nesse sentido cabe mencionar o relatório da Comissão da Verdade de São Paulo (2015, p. 14-15) que pontua acertadamente que
(...) a Polícia Militar não se adaptou ao regime democrático. Trata-se de uma corporação policial militar historicamente concebida mais como força de ocupação territorial e controle político violento contra a população pobre do que voltada para a prevenção da violência e criminalidade. A Polícia tem uma organização e formação preparada para a guerra contra um inimigo interno e não para a proteção. Desse modo, não reconhece na população pobre uma cidadania titular de direitos fundamentais, apenas suspeitos que, no mínimo, devem ser vigiados e disciplinados, porque assim querem os sucessivos governantes, ontem e hoje.[15]
Ao não fazer parte da história nacional, as narrativas de resistência e do que ocorreu nos porões da ditadura deixam de produzir uma reflexão do por que ainda se recorre à violência como solução dos problemas, bem como porque se aceita que a população marginalizada seja exterminada diariamente num país que se diz democrático.
O passado está muito presente e não será superado se não houver de fato uma reparação política, com o significado de resgatar a história, as ideias, a alma dos movimentos sociais e seus ideais. Deve-se buscar a reparação do espaço político e social; é necessário consertar o que foi tratado de forma tão errada e desastrosa que quebrou a confiança e a esperança de todo um povo. Para isso não há como passar por cima da construção da verdade e da justiça (COMISSÃO DA VERDADE DE SÃO PAULO, 2015a, p. 11).
A violência policial é apenas um exemplo da continuidade de violações sistemáticas contra os direitos humanos e do legado autoritário herdado da ditadura que permanece na sociedade brasileira. De modo que se faz necessário a valorização da memória como medida concretizadora da democracia a partir da construção de narrativas alternativas apresentadas àquela da memória oficial, permitindo-se uma releitura do passado sob um viés democrático (TORELLY, 2010, p. 261).
2.3.2 Corrupção como reflexo do déficit democrático brasileiro
Ao tomarem o poder, os militares propagaram a ideia de manutenção da ordem democrática e combate à corrupção. No entanto, durante os mais de 20 anos de regime civil-militar sobressaiu-se uma administração corrupta e arbitrária, “deixando como herança maldita um país extremamente desigual, um meio urbano violento, um sistema político completamente corrompido e um estado de imprevisibilidade difusa” (CAMPANTE, 2017).
O cientista político Rubens Goyatá Campante, membro do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da Universidade Federal de Minas Gerais explica que a ideia de que durante a ditadura não havia corrupção decorre da inconsciência histórica sobre o período e que na verdade vive-se hoje a continuidade de um legado de corrupção que não se alterou com a transição política. Assim, pontua acertadamente que a corrupção é um problema estrutural e exemplifica que
Quando o regime de 64 começou, Castelo Branco percebeu que a questão não era tão simples assim. A partir do governo Costa e Silva, cresceu a participação dos militares nomeados em agências e empresas públicas. Eles entraram na relação espúria entre o capital e política, que é, em si mesma, uma grande corrupção. Começaram, então, a pipocar escândalos. A partir da segunda metade dos anos 1970, a mídia passou a falar desses casos. Alguns poucos exemplos: os escândalos da Ponte Rio Niterói e da Transamazônica e as falências fraudulentas, com crise generalizada, na Coroa Brastel e na Capeme, um fundo de previdência privada. O banco Halles e o Banco Econômico também faliram de forma fraudulenta e os militares injetaram dinheiro público neles. Houve o caso do suborno em um tratado de cooperação nuclear entre Brasil e Alemanha, denunciado pela revista alemã Der Spiegel, e as inúmeras mordomias, como na residência oficial do ministro do trabalho, Arnaldo Prieto, com os famosos 500 quilos de salsicha.[16]
Conclui ainda que corrupção e democracia estão estreitamente interligados, pois, os países que possuem democracias substanciais tendem a ser menos corruptos.
No período militar a corrupção não era tão difundida quanto agora, isso se deu por causa da censura aos meios de comunicação e restrições aos mecanismos de fiscalização, o que não quer dizer que não existia (CAMPOS, 2012, p. 469). Ocorre que apesar de ser um período extremamente sombrio, de desrespeito aos direitos fundamentais, a ditadura não é vista negativamente por todos, acreditando-se por vezes que a tão almejada ordem só será estabelecida quando os militares retornarem ao poder.
É importante ressaltar que
Os militares não tinham interesse em deixar vazar casos de corrupção que envolviam seus aliados ou colegas de farda, justamente para não estimular a descrença nas autoridades e no poder de Estado. Impedir a publicação de notícias sobre a corrupção era parte da estratégia de segurança nacional.
Mesmo assim, alguns casos se tornaram notórios e fartamente documentados, e até foram investigados oficialmente. Superfaturamento, desvio de verbas, desvio de função, abuso de autoridade, tráfico de influências. Tudo isso já era bem conhecido no Brasil da ditadura (MEMÓRIAS DA DITADURA).
Nesse sentido cabe mencionar trechos da reportagem realizada em 1976 por Ricardo Kotscho que denunciava as mordomias dos superfuncionários, demonstrando uma cultura de corrupção desde a ditadura:
Parecia que de um dia para o outro os superfuncionários governamentais haviam decidido cometer todos os tipos de abusos. Foi no começo do governo Geisel: as seções políticas dos jornais, que vinham de um lustro que quase as levava à extinção, de repente enchiam suas colunas com denúncias sobre as mais variadas práticas de utilização de recursos públicos em benefício próprio, envolvendo entidades e personagens de praticamente todos os escalões do governo. (...) E chega-se a uma grave constatação: inexiste uma legislação específica que permita ao Congresso Nacional e aos tribunais de contas exercerem, em sua plenitude, a tarefa de fiscalizar as atividades dos superfuncionários governamentais, fato que se torna mais grave à medida que se prolonga o regime de excepcionalidade em que vive o país. (...) Um dos casos mais comentados em Brasília é o do secretário-geral do Ministério da Saúde. Irritado com a decoração que encontrou, mandou trocar tudo. (...) A reforma acabou custando mais caro que o próprio apartamento. (...) Além das casas luxuosamente mobiliadas pelas empresas nos bairros mais elegantes, carros e aviões oficiais à disposição, proliferam as mordomias, os cartões de crédito e as contas abertas em supermercados. Cada um pode gastar um teto mensal, em quaisquer circunstâncias, que abrangem até contas de bar e butiques, como foi recentemente denunciado com a publicação das contas de uma empresa estatal carioca. (...)
Os carros oficiais servem para levar os filhos dos superfuncionários ao colégio, as madames às butiques e cabeleireiros, os empregados e os funcionários propriamente ditos aos restaurantes (KOTSCHO, 1976).[17]
Ou seja, a ideia de que a corrupção só se origina com a democracia é uma falácia, e o papel da memória é justamente o de impedir a reprodução de falas que pedem a intervenção militar, alegando que essa seria a solução para o fim da corrupção. Pois, ao se analisar detidamente a história nacional, percebe-se que a corrupção também está presente no regime autoritário e que a permanência dela é apenas um reflexo da democracia formal em que se vive.
A partir do exposto é possível concluir que a transição do regime político ditatorial para o democrático no Brasil não pôs fim a práticas autoritárias, arbitrárias e ilegais. Daí, portanto, a importância de tratar da Justiça de Transição como passo fundamental para a superação do legado de violações sistemáticas e em massa aos direitos humanos cometidas pelo Estado
Nesse momento, merece destaque o papel do Estado como fomentador desse processo transicional, especialmente quando se trata de impedir que políticas de esquecimento e silêncio se perpetuem, bem como versões oficiais baseadas em mentiras e ocultação da verdade.
Apesar de todos os objetivos (verdade, memória, justiça, reparação e reformas institucionais) serem fundamentais, entende-se a memória como essencial para o resgate dos valores democráticos. De modo que se torna indispensável o trabalho permanente de medidas que viabilizem além das narrativas de traumas, a possibilidade de enxergar a lógica do funcionamento estatal, para que assim o passado exposto e rememorado constantemente seja capaz de impedir que práticas autoritárias permaneçam como justificáveis ou necessárias para a efetivação da democracia. Ou seja, além da divulgação das informações, é preciso a ativação da memória.
Observa-se ainda que a justiça enquanto culpabilização pode refrear a reconstrução da memória social. Isso se dá porque a possibilidade, ainda que remota,[18] de ser processado e punido impede que a verdade por parte dos violadores de direitos humanos venha à tona.[19] Verdade que muitas vezes pode parecer insuportável, mas que é necessária para a promoção da reconciliação nacional.
Por fim, conclui-se que o Brasil apresenta um sério déficit democrático, apresentando-se apenas formalmente como democracia, uma vez que é incapaz de respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos, resultado de uma transição política inefetiva, de uma política de esquecimento imposta, da permanência dos padrões e lógicas institucionais que reportam ao regime civil-militar, bem como de uma cultura violenta como resposta aos problemas sociais.
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[1] As informações trazidas no presente tópico encontram-se disponíveis da plataforma oficial do Brasil: Nunca Mais, a saber: <http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/historia.html>.
[2] São exemplos de sítios eletrônicos que disponibilizam o relatório Brasil: Nunca Mais na íntegra: <http://www.dhnet.org.br/memoria/nuncamais/> e <http://www.marxistsfr.org/portugues/tematica/livros/nunca/>.
[3] Art. 11, da lei 12.528/2011.
[4] Artigo disponível em: <http://cnv.gov.br/institucional-acesso-informacao/verdade-e-reconcilia%C3%A7%C3%A3o.html>.
[5] Lista de filmes que resgatam a memória em anexo.
[6] Sítio eletrônico: <http://www.memoriasreveladas.gov.br/>.
[7] Sítio eletrônico: <http://www.documentosrevelados.com.br/livros/brasil-nunca-mais-livro-na-integra/>.
[8] Sítio eletrônico: <http://memoriasdaditadura.org.br/>.
[9] Sítio eletrônico: <http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/digital.html>.
[10] A “privatização” da memória, conforme Camargo (2016, p. 256), refere-se a tentativa estatal de “hegemonizar e homogeneizar a memória de forma a relegar outras memórias rivais ao ostracismo, ao isolamento e à privação de espaços públicos de elaboração e interpretação (...) que se desenvolve através da ausência de possibilidades de compartilhamento social das experiências, projetos políticos e traumas individuais e coletivos”.
[11] Além do papel dos Comitês de Anistia, é um marco não-institucional para o resgate da memória, o projeto Brasil: Nunca Mais, como destacado no tópico 2.1.1 do presente capítulo.
[12] Em 9 de março de 2015 na 28ª Sessão de Direitos Humanos da ONU, as organizações de direitos humanos se pronunciaram no seguinte sentido: “A tortura ainda está sendo usada como um método de investigação policial. Apesar de sua proibição absoluta, permanece arraigada na cultura policial brasileira: em 66% dos casos contra agentes públicos, a tortura foi usada como meio de obter confissão ou informação. Isto é ultrajante”. Tradução livre de: “Torture is still being used as a method of police investigation. Despite its absolute prohibition, it remains ingrained in the Brazilian law enforcement culture: In 66% of the cases against public agents, torture was used as a means of obtaining confession or information. This is outrageous”.
[13] Informações obtidas do Depoimento de Luiz Eduardo Soares na 99ª Audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, 28 de novembro de 2013.
[14] Nesse sentido cabe mencionar o paralelo pertinente realizado no relatório da Comissão da Verdade de São Paulo: “A cultura da morte praticada pelas Polícias Militares é continuidade do que fizeram os assassinos do DOI-Codi, com a mesma falsa versão de resistência seguida de morte para ocultar o extermínio de jovens negros e pobres das periferias de nossas cidades. A banalização da violência por parte da PM é a pior herança da ditadura militar” (2015a, p. 8-9).
[15] No mesmo diapasão ressalta Torelly (2010, p. 254) que “um fator a ser exemplificativamente salientado no caso brasileiro é que, diferentemente do que ocorreu em países vizinhos, como a Argentina, que promoveram depurações nos órgãos de segurança (exército e polícia), aqui nada foi feito nesse sentido (PEREIRA: 2005, p.160). Assim, policiais socializados em um senso comum antidemocrático, onde o poder de polícia não conhecia limites, não apenas seguem na ativa como participam da formação de novos policiais. A violência policial no Brasil, hoje, faz um incalculável número de vítimas”.
[16] Outros exemplos de corrupção podem ser vistosa partir da leitura da tese de Campos (2012), especialmente o tópico 4.5 “Tenebrosas transações” – empreiteiros e denúncias de corrupção na ditadura”, bem como no sítio eletrônico: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/04/01/conheca-dez-historias-de-corrupcao-durante-a-ditadura-militar.htm>.
[17] Para mais informações acessar o sítio eletrônico: <https://mordomias.wordpress.com/a-denuncia-da-mordomia/>.
[18] Ver tópico 2.2.1
[19] Nesse sentido cabe destacar que a Comissão Nacional da Verdade da África do Sul se preocupou justamente com a elaboração do trauma e reconciliação nacional, dando especial atenção às narrativas das vítimas e dos violadores de direitos humanos para que fosse possível reconstruir a história nacional, assim, concedeu-se anistia a todos aqueles que expuseram tudo que sabiam e fizeram durante o regime repressor.
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Delegada de Polícia de Sergipe
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Carla Viviane Oliveira do. Legados da justiça de transição no Brasil – a importância da memória na construção de um estado democrático de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2022, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58818/legados-da-justia-de-transio-no-brasil-a-importncia-da-memria-na-construo-de-um-estado-democrtico-de-direito. Acesso em: 22 nov 2024.
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