SUSAN FRÓES DE ASSUNÇÃO[1]
(coautora)
ADRIANO FERNANDES FERREIRA[2]
(orientador)
RESUMO: O direito à saúde constitui a base da vida humana, sendo direito fundamental previsto no artigo 196 da Constituição de 1988. Mas nenhum direito é alcançado se não houver apoio jurídico e cobrança ativa por parte da sociedade, e a mesma só poderá cobrar aquilo que é de seu conhecimento. No contexto atual de pandemia pela Covid-19, muitos conflitos éticos têm sido levantados e enfrentados pela sociedade. É nesse cenário que o Biodireito e a Bioética entram, como fortes aliados contra a Covid-19. Questiona-se se os princípios da bioética podem ajudar no combate à pandemia, ou ainda, como o biodireito, com suas regras e princípios poderia contribuir para combater o avanço da doença, sem esquecer do papel fundamental da saúde pública, na figura do SUS, no combate à covid. Resumidamente, a bioética nada mais que a ética voltada para a vida, no sentido lato, ou seja, é uma área a serviço da vida, procurando estudar os bons valores e os impactos que tais valores têm na vida em sociedade. Já o biodireito teria por tarefa realizar a tutela jurídica da vida. No quesito saúde pública, o Sistema Único de Saúde entra como um verdadeiro protagonista no combate à covid-19. A pandemia revelou diversos problemas sociais até então insistentemente ignorados; toda essa conjuntura fez vir à tona conflitos éticos extremamente fortes e o Direito não poderia ficar de fora. Em razão desse triângulo envolvendo biodireito, bioética e Covid-19 justifica-se a discussão em torno da temática ora apresentada, dada a sua relevância para a sociedade. A crise sanitária causada pelo Sars-CoV-2 foi tamanha que o Direito teve que se debruçar sobre o mesmo, juntamente com o biodireito e a bioética, unidos em uma tentativa de impor limites éticos-jurídicos na forma como a pandemia vem sendo conduzida pelo Estado e pela sociedade.
Palavras-chave: Biodireito. Covid. Pandemia.
ABSTRACT: The right to health constitutes the basis of life, being a fundamental right provided for in article 196 of the 1988 Constitution. But no right is achieved if there is no legal support and active collection on the part of society. In the current context of the Covid-19 pandemic, many ethical conflicts have been raised and faced by society. It is in this scenario that Biolaw and Bioethics enter, as strong allies against Covid-19. It is questioned whether the principles of bioethics can help in the fight against the pandemic, or even how biolaw, with its rules and principles could contribute to combating the advance of the disease, without forgetting the fundamental role of public health, in the figure of SUS, in the fight against covid. In short, bioethics is nothing more than ethics focused on life, in the broadest sense, that is, it is an area at the service of life, seeking to study the good values and the impacts that such values have on life in society. Biolaw, on the other hand, would have the task of carrying out the legal protection of life. In terms of public health, the Unified Health System is a true protagonist in the fight against covid-19. The pandemic revealed several social problems hitherto insistently ignored; All this conjuncture brought to light extremely strong ethical conflicts and the Law could not be left out. Due to this triangle involving biolaw, bioethics and Covid-19, the discussion around the theme presented here is justified, given its relevance to society. The health crisis caused by Sars-CoV-2 was such that the Law had to address it, along with biolaw and bioethics, united in an attempt to impose ethical-legal limits on the way the pandemic has been conducted by the state and by society.
Keywords: Biolaw. Covid. Pandemic.
1 INTRODUÇÃO
O direito à saúde constitui a base da vida humana, sendo direito fundamental assegurado a todos os cidadãos pelo artigo 196 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), devendo assim o Estado agir no intuito de garantir esse direito. Mas nenhum direito é de fato alcançado se não houver, além do devido apoio jurídico, a cobrança ativa por parte da sociedade, e a mesma só poderá cobrar aquilo que é de seu conhecimento. No contexto atual de pandemia pela Covid-19, muitos conflitos éticos têm sido levantados e enfrentados pela sociedade (MORAES, 2020), a qual tem buscado no mundo das leis, um mínimo de amparo para conseguir vencer essa terrível batalha contra o vírus, não somente o vírus veiculador da doença, mas o vírus da ignorância e da falta de responsabilidade perante a saúde pública. É nesse cenário que o Biodireito e a Bioética entram, como fortes aliados contra a Covid-19 (DADALTO, 2021).
Todavia, para que se compreenda o papel essencial tanto da Bioética, da saúde pública, quanto do Biodireito, necessário é buscar a definição dos termos aqui utilizados, desmistificando a ideia de que os termos acima são meros sinônimos ou que se restringem à sua nomenclatura (NORA, 2021). Assim, de que forma os princípios da bioética podem ajudar no combate à pandemia, ou ainda, como o biodireito, com suas regras e princípios poderia contribuir para combater o avanço da doença, sem esquecer do papel fundamental da saúde pública no combate à covid são apenas alguns dos questionamentos aqui suscitados, sem a intenção de esgotar o tema (RECUERO, 2020).
Explanando sucintamente o que vem a ser bioética, tem-se aqui a definição trazida pelo Programa Regional de Bioética, o qual é vinculado à Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS, 2007), que diz ser a bioética nada mais que a ética voltada para a vida, em seu sentido mais amplo, ou seja, é uma área a serviço da vida, da saúde, do meio ambiente, aproximando a ciência das questões humanitárias, sendo uma ferramenta que possibilita ao indivíduo o mínimo necessário para se evitar a instrumentalização da vida humana, em outras palavras, a bioética procura estudar os bons valores e os impactos que tais valores têm na vida em sociedade. Ainda segundo o OPAS, o biodireito teria por tarefa realizar a tutela jurídica da vida e suas mais amplas concepções.
Agora, quando o assunto é saúde pública, o Sistema Único de Saúde entra como um verdadeiro protagonista, no que tange ao combate à Covid-19. Após décadas de luta, finalmente o SUS, como é popularmente conhecido, foi instituído pela Carta Magna de 1988 e consolidado através das Leis n.º 8.080/90 e 8.142/90. O SUS, antes da pandemia, foi alvo de constantes ataques e de políticas de desmantelamento de sua estrutura (GIOVANELLA et al., 2019), aliado a isso veio também o corte nos recursos financeiros destinados ao SUS. Durante a pandemia, pode-se dizer que o Brasil passou a enxergar o SUS, o qual, por meio de seus servidores, evitou a morte de milhares de brasileiros que, do contrário, não teriam recursos financeiros para custear seu tratamento e recuperação.
Um pensamento é certo, a pandemia revelou para a sociedade diversos problemas sociais até então insistentemente ignorados: a precariedade das moradias brasileiras, o sucateamento dos hospitais públicos, a corrupção que atinge áreas cruciais e que, portanto, afetam a dignidade humana, a exposição de populações vulneráveis até então totalmente ignorados pelo poder público e sociedade (população carcerária, moradores de rua, etc), a saúde mental, o modo como o sistema econômico foi posto em primeiro lugar, em detrimento de milhares de vidas, a questão da proteção do trabalhador e os milhares de desempregados Brasil afora, trabalhadores que puderam permanecer em suas casas, enquanto milhares (a maioria com subempregos) não tiveram a mesma opção, enfim, mazelas sociais que ganharam uma “lente de aumento”, frente à pandemia de covid-19 (ESTRELA et al., 2020). Toda essa conjuntura fez vir à tona conflitos éticos extremamente fortes e o Direito, sendo o regulamentador da vida em suas diversas áreas, não poderia estar de fora.
Em razão desse triângulo envolvendo biodireito, bioética e Covid-19 justifica-se a discussão em torno da temática ora apresentada, dada a sua relevância para a sociedade. A crise sanitária causada pelo Sars-CoV-2 foi tamanha que o Direito teve que se debruçar sobre o mesmo, juntamente com o biodireito e a bioética, unidos em uma tentativa de impor limites éticos-jurídicos na forma como a pandemia vem sendo conduzida pelo Estado e pela sociedade. Nisso, o uso do brocardo jurídico se adequa perfeitamente: ubi societas, ibis ius, ou seja, onde está a sociedade, está o direito.
Assim, o presente estudo tem como objetivo geral analisar a relação do Biodireito com a Pandemia de Covid-19, bem como a essencialidade dessa relação para o combate à pandemia. Os objetivos específicos são centrados: a) Na constatação do Biodireito como um processo indispensável no combate à pandemia de Covid-19, através da conscientização da população acerca dos princípios e regras do Biodireito e da Bioética; b) Analisar o Biodireito relacionado à Bioética como função ímpar na articulação de ações voltadas a aproximar as práticas científicas das questões humanitárias; c) Descrever, na seara do Biodireito e da Bioética, o estudo dos princípios, bem como legislações que embasam as práticas biomédicas científicas, com foco, sobretudo, na dignidade da pessoa; d) Fazer um levantamento de princípios da Biodireito que podem ser usados como ferramenta de sensibilização para a questão da pandemia, com base em fundamentos jurídicos, tornando-a não apenas um tema, mas uma realidade presente no quotidiano de todos e, portanto, inseparável; e) Analisar os desafios da aplicabilidade do Biodireito e da Bioética em face do Sistema Único de Saúde, no que tange à Covid-19 e seu enfrentamento, bem como a falta de conhecimento acerca dos dispositivos legais envolvendo Biodireito; Bioética e Pandemia.
Como metodologia, foi aplicado nesse estudo, o método dedutivo. A pesquisa tem abordagem qualitativa e quantitativa em relação aos seus fins e meios, nesta ordem. Fundamenta-se na ciência formal, teórica de artigos científicos que estão relacionados a temas do Biodireito e da Bioética, além de literatura jurídica ambiental, legislação atualizada, obras baseadas em assuntos sobre Biodireito, Bioética, Princípios. Portanto, possui como fundamentação integral, os estudos científicos, jurídicos, bioéticos, doutrinas jurídicas e jurisprudência.
2 BIODIREITO FRENTE À COVID-19
Como o próprio termo sugere, aqui o Direito aproxima-se das ciências biológicas e das ciências da saúde, através de regulamentações acerca de temas relacionados às duas áreas e afins (SGRECCIA, 1996). O biodireito, segundo Camargo (2002) é um ramo do direito que se preocupa em tutelar o bem jurídico vida diante do acelerado desenvolvimento das práticas biomédicas científicas, como foco, sobretudo, na dignidade da pessoa e observando princípios imperativos. O biodireito, com bases na bioética, tem a missão de regular, segundo Diniz (2017), relações jurídicas ocorrentes entre o direito e os avanços tecnológicos ligados à medicina e biotecnologia; por sua, vez, Sauwen (1977) compreende o biodireito como o tênue limite entre o respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra a espécie humana. O biodireito tem por objetivo regular a vida com base na lei, na própria Carta Magna de 1988 (BRASIL, 1988) coloca-se isso através do princípio da legalidade, previsto no artigo 5°, inciso II.
Abordado os diversos conceitos, é essencial agora trabalhar os princípios do biodireito. Vale ressaltar que, nesse ponto, biodireito e bioética se misturam, dividindo, portanto, vários princípios, dentre os quais: precaução, responsabilidade, dignidade e sacralidade da vida. Segundo Fabriz (2003), o princípio da precaução guarda relação com a prática de evitar riscos potenciais, em outras palavras, exige que se tomem cuidados antecipados às práticas médicas e biotecnológicas; por sua vez, o princípio da responsabilidade tem por foco minimizar os malefícios causados pela intervenção na saúde, agindo assim a posteriori, quando a lesão já está concretizada; já o princípio da dignidade é muito claro, uma vez que visa tutelar a vida humana; por último, a sacralidade da vida decorre da dignidade, dando máxima proteção à vida diante das atividades médico-científicas.
Acerca da relação entre covid-19 e biodireito a jurista Luciana Dadalto traz uma série de reflexões sobre o tema, como por exemplo, a questão da telemedicina, uma vez que o isolamento foi algo exigido pela pandemia, isso acarretou a necessidade de maior confiança entre médico e paciente; entender que a ciência, por mais avanços que tenha dado, exige tempo quando o assunto é o desenvolvimento de medicamentos e, negligenciar esse tempo por pressa em achar vacina contra a covid trouxe riscos sérios à saúde coletiva; o mito de que a covid seria uma doença democrática, uma vez que as populações mais atingidas foram justamente aquelas consideradas vulneráveis, do ponto de vista social e econômico, uma vez que estavam constantemente expostas ao vírus, seja pelo uso de transporte público, seja pelo grande número de pessoas dividindo a mesma moradia, na sua grande maioria contendo apenas um cômodo, e mais ainda pela dificuldade que essas pessoas têm em acessar serviços de saúde; o sucateamento dos hospitais públicos e a grande necessidade de fortalecer o SUS foram fatos inegáveis durante a pandemia; e a dicotomia ilógica de escolher entre economia e vidas (DADALTO, 2022).
Assim, a pandemia trouxe à tona a questão dos direitos humanos, da dignidade, da bioética e do biodireito. Para Diniz (2017), todos os aplicadores do direito, médicos, biólogos, operadores da ciência devem buscar o respeito à dignidade humana, sem acomodações e com muita coragem.
A pandemia pegou a todos de surpresa e muitos, na tentativa compreensível de salvar a si a seus entes, fizeram uso de “coquetéis” recomendados em alguma rede social ou estimulado por autoridades que deveriam aconselhar a crença na ciência e não em falsas informações. Tudo isso permeia o campo do biodireito, que regula a vida. Outro fator muito questionado foi a liberdade de locomoção e a recomendação pelo isolamento social. Por mais que o direito de locomoção esteja constitucionalmente previsto, a pandemia trouxe uma nova interpretação desse direito fundamental, uma vez que a vida e a saúde pública vieram em primeiro lugar, porém muitos, por necessidade ou resistência, puseram-se contra a medida legalmente recomendada (lockdown). Entretanto, nada ganhou mais ataques que o uso da máscara, que foi visto por muitos como um uso coercitivo a ferir a autonomia do indivíduo, todavia, mesmo invocando o princípio da autonomia, não se pode olvidar do princípio da beneficência e da não beneficência, não fazendo mal a outrem e procurando fazer o bem, o que guarda relação direita com o uso de máscara, objeto atacado por fake news e governantes mundo afora e, especialmente no Brasil, conforme é possível checar nos veículos de comunicação nacionais e internacionais. Ainda falando em autonomia, a covid e fake news trouxeram mais um conflito chamado “resistência à vacinação”, uma vez que muitos se recusaram a receber as doses imunizantes, dificultando o combate à pandemia. Novamente, mais que autonomia, deve-se procurar a beneficência e não beneficência. Sem esquecer de mencionar que os países ricos saíram na frente em relação à imunização de sua população, em detrimento de muitos países do continente africano, em um claro confronto com o princípio da justiça, que busca distribuir igualmente benefícios e riscos quando a vida corre riscos. Mesmo depois de vários conhecimentos consolidados acerca das vacinas, ainda se encontra resistência em meio às pessoas, dificultando a contenção do vírus, que sempre encontra pessoas não imunizadas e sem máscara, cenário perfeito para que o vírus possa sofrer mutações e ser disseminado mundo afora.
Referente à falta de leitos, oxigênio e medicamentos aos entubados, é inegável a responsabilidade estatal. Manaus, capital do Amazonas pode ser um exemplo (triste) desse conjunto de fatores que levou milhares de pessoas à morte, em um claro desrespeito à vida e ao biodireito e à bioética. Venda de falsos cilindros de oxigênio, superlotação de hospitais, demora na compra de vacina, covas coletivas, cenário de caos em Manaus, completa negligência da vida humana.
Problemas como os listados acima poderiam ter sido evitados ou amenizados se o biodireito e a bioética estivessem em primeiro lugar no combate à pandemia de covid-19.
2.1 BIOÉTICA FRENTE À COVID-19
Aliar dois termos como ética e direito tem um sentido especial, enquanto a ética tem intenções universais, preocupando com a internalização de boas condutas e pedindo a livre adesão (caráter facultativo), o direito entra em ação com sua postura cogente, impositiva, preocupando-se com os efeitos sociais da exteriorização de condutas e seus impactos na sociedade.
Inicialmente a bioética estava restrita a assuntos ligados à engenharia genética, mas foi ganhando cada vez mais amplitude, alcançando uma essência multidisciplinar (ALMEIDA FILHO, 2005). O vocábulo foi usado pela primeira vez em 1971, no título da obra de Van Renssealaer Potter (POTTER apud VIEIRA, 1999, p.15). De fato, a finalidade da bioética é auxiliar a humanidade na busca por uma participação mais racional no processo.
Quando se confronta a bioética com a pandemia tem-se um quadro de mudança relacionado à forma como a sociedade encarava relações de trabalho, relação de consumo e produção. Em outras palavras, a pandemia de Covid (Corona Virus Disease), inicialmente identificada na China, no final de 2019, trouxe a perda de milhares de vidas, a desestruturação econômica de centenas de países, e todo uma série de efeitos advindos desse fato, o mundo foi pego de surpresa e levou muito tempo para que as primeiras reações fossem esboçadas. Como a bioética sempre preocupou-se em entender tudo o que possa afetar a vida, trazendo riscos para a mesma, nada mais natural que associar bioética à Covid-19, na tentativa de trazer contribuições indispensáveis ao seu enfrentamento.
Segundo Blomm (2000), a pandemia, de modo geral, sempre assola, de forma mais impactante, as populações mais pobres. Eles esclarecem que há uma conexão entre pandemia e pobreza, embora todos estejam vulneráveis em maior ou menor grau; assim, as conexões são: contato entre as pessoas, facilitado pelo grande número de moradores dividindo moradias pequenas ou submoradias, o que facilita a veiculação do vírus; concentração de pessoas em transporte público precário; condições de saneamento básico e higiene (na pandemia de covid muitos sequer tinham acesso à água e sabão); corpos desnutridos e, portanto, mais fracos e sem condições físicas de enfrentar uma doença.
Um fato interessante que ganhou força com a covid foi justamente a veiculação de fake news, que ganhou terreno em mentes pouco esclarecidas e muito influenciáveis. A veiculação de mensagens falsas acerca da pandemia só fez aumentar o medo, atrapalhando o trabalho dos órgãos responsáveis pela contenção da pandemia. Esse processo ganhou mais eficácia com o uso de mídias sociais e da internet em si, o que torna o combate a essa prática uma atividade extremamente difícil. Assim, segundo Lana (2020), há uma aumento na credibilidade em fake news, que são mais rápidas, e um descrédito nas informações passadas pelos órgãos competentes, de veiculação não tão célere. Isso fez com que os geradores de conhecimento entendessem a necessidade de aproximar os saberes científicos da população, saindo assim do conforto de seus laboratórios de pesquisa. Tudo isso gerou conflitos éticos relacionados à covid-19.
Impactos sociais e econômicos foram apenas algumas das consequências da covid aqui listadas, o que levou vários países a repensarem suas formas de produção e consumo, e a bioética não poderia ficar de fora desse processo, afinal produção e consumo leva à degradação ambiental, o que pode desencadear novos problemas de ordem social, aumentando a pobreza e a violência, fomentando o desemprego. Enfim, a pandemia fez com que as pessoas enxergassem que produção, consumo e responsabilidade social e ética não são fatores isoláveis e, se assim o fere, os efeitos serão catastróficos. Assim, sendo a bioética a ética voltada para a vida em seu sentido lato, relevante é refletir sobre a pandemia à luz dos princípios da bioética.
A bioética traz em seu cerne alguns princípios essenciais para se refletir acerca da pandemia. O princípio da autonomia, que representa a liberdade do indivíduo em escolher determinada opção para a sua vida; o princípio da não-beneficência que seria não causar mal a outrem; o princípio da beneficência que seria justamente fazer o bem a outrem; o princípio da justiça (imparcialidade), que seria distribuir igualmente benefícios e riscos.
Refletindo sobre essa relação princípios versus pandemia, percebe-se que muitos não tiveram a autonomia de permanecer em suas casas, protegendo suas vidas, bem como o princípio da justiça foi praticamente negligenciado, uma vez que milhares de empresas foram à falência, empregos foram perdidos e o índice de miserabilidade só aumentou, enquanto algumas poucas empresas (Amazon, Microsoft, Google) faturaram bilhões de dólares, só para dar um exemplo extremado da situação. Falando ainda em distribuir igualmente benefícios e riscos viu-se que as pequenas empresas receberam pouca ajuda por parte do governo brasileiro, o que dificultou a sobrevivência de muitos negócios no período pandêmico, segundo a Revista Uol Economia. Primeiro a pequena empresa deixa de fazer bons negócios, depois atrasa a folha de pagamento de funcionários e fornecedores, depois cai em um ciclo recessivo que se torna sem fim, caso a ajuda de crédito seja incipiente, em um grave confronto com princípios bioéticos.
2.2 A IMPORTÂNCIA DO SUS DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi garantido com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 e regulamentado pela Lei n⁰ 8.080/1990 normatizando os meios necessários para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Esse sistema foi conceituado como um conjunto que é formado por todas as ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público. Segundo Mendes (2014), há um conflito entre financiar a saúde pública e evitar o aumento nos gastos públicos, uma vez que a saúde ainda é vista como gasto e não como investimento público. Ainda, cabe ressaltar, que a iniciativa privada não é impedida de participar do SUS, porém, tem licença de participação como forma complementar. Sabe-se que os repasses ao SUS, ainda que insuficientes, têm sido essenciais para garantir direitos fundamentais à população (LEITE et al., 2012). Apesar da relevância do SUS, os repasses federais vêm caindo ano após ano, o que pode gerar efeitos muito graves no contexto da saúde pública brasileira (PEREIRA et al., 2012).
Com a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil, em fevereiro de 2020, deu-se início a várias ações governamentais para o enfrentamento da pandemia. O Sistema Único de Saúde foi fundamental nesse processo, tanto para se consolidar como um sistema de acesso integral à qualquer cidadão brasileiro quanto para se firmar como política de saúde definitiva. A função desse sistema foi primordial para evitar resultados mais negativos. As ações emergentes foram muitas, tais como: disponibilizar mais leitos, capacitar e mobilizar mais profissionais da área, além disso, administrar os recursos e materiais como um todo, efetivando e garantido o atendimento médico a todos. Até então, o SUS não estava imune a inúmeras críticas, muitas dessas até válidas, porém, tantas outras atacavam a forma e o objetivo do sistema em si. Ou seja, para muitos, um sistema de saúde como política social só trazia prejuízos econômicos ao país e um meio de paralisar os danos seria pela privatização.
Com a propagação de casos de COVID-19, o debate em defesa do SUS, o que até então era mais restrito a movimentos específicos, ampliou-se para as diversas esferas sociais e a grande maioria dos cidadãos passaram não só a defender, mas também perceberam a importância do SUS para todos os cidadãos do Brasil. A defesa ao sistema tomou proporções inimagináveis até então, artistas e profissionais de diversos ramos se mobilizaram e levaram essa defesa a frente por meio das redes sociais e televisivas. Jornalistas conceituados passaram a opinar positivamente e a população como um todo e ao seu modo, bradava “Defenda o SUS” cada vez mais. Portanto, a pandemia da covid-19 e o seu enfrentamento no mundo e no país foi determinante para o reconhecimento da essencialidade dos sistemas públicos de saúde, pois a saúde passou a ser vista por um outro ângulo dentro desse contexto de calamidade, pois não é algo que se possa restringir ao particular, apenas ao fato de uma pessoa se preocupar em não ter uma doença, ainda mais quando se trata de propagação de vírus. Diante do exposto, é notório e evidente que o debate em relação à importância do SUS superou a visão limitada político-econômica de muitos e se transcendeu a uma visão mais humanizada estabelecida como direito fundamental para cada indivíduo.
3. CONCLUSÃO
Não se sabe quando a pandemia da Covid-19 terá fim, então, até lá, transformações sociais continuarão ocorrendo e isso traz novas demandas para o Direito, regulador da vida e, por envolver a vida, envolve o biodireito e a bioética. Assim, é papel do Direito, do biodireito, da bioética, e demais ramos do saber, juntamente com a sociedade, buscar soluções para os impasses trazidos pela pandemia e suas consequências. Esse é o caminho para uma sociedade mais humana, mais igualitária, dentro do possível.
O problema é complexo e não se pretende aqui adotar uma visão reducionista, entretanto, é obrigatório reconhecer que os princípios da bioética e do biodireito fornecem uma diretriz aos governantes e às autoridades que estão à frente no combate à pandemia. Afinal, são esses princípios que giram em torno da dignidade humana, base norteadora da Carta Magna de 1988 e, portanto, deveria ser buscada sem medir esforços. São esses princípios que poderão ser um escudo contra tantas atrocidades cometidas nesses dois anos de pandemia, tais como fake news, negação da ciência, fomento de condutas que vão na contramão do que é indicado por autoridades sanitárias e tudo o mais que foi testemunhado pelo mundo. Afinal, nesse momento, somam-se no mundo mais de 6 milhões de mortos pela Covid, dos quais 662 mil ocorreram no Brasil, vidas que poderiam ter sido salvas se a dignidade humana estivesse em primeiro plano.
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Discente da Universidade Federal do Amazonas-UFAM, no curso de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MERELES, Vanessa de Sousa Benchimol. Bioética, biodireito e covid-19 no contexto jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jul 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58852/biotica-biodireito-e-covid-19-no-contexto-jurdico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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