EDY CESAR DOS PASSOS JUNIOR [1]
(orientador)
RESUMO: Tendo em vista que nosso país possui um número significativo de pessoas na fila de espera por transplantes de órgãos e tecidos, e que essa demanda poderia ser suprida se o número de potenciais doadores aumentasse, e se os familiares passassem a autorizar em maior número a retirada de órgãos de entes falecidos, pesquisa-se sobre os aspectos jurídico-sociais acerca da doação e transplantes de órgãos no Brasil, a fim de analisar como o tema é tratado em nosso território. Para tanto, é necessário estudar dados oficiais sobre o número de doações realizadas anualmente no país e quais são os principais fatores impeditivos da concretização de transplantes, bem como analisar fatores éticos e sociais a respeito do tema, à luz da bioética e do biodireito. Realiza-se, então, uma pesquisa exploratória, com levantamentos bibliográficos da legislação, livros e artigos científicos já publicados sobre o tema, bem como a análise de estatísticas quantitativas. Diante disso, verifica-se que o principal problema enfrentado atualmente para a efetivação da realização dos transplantes no Brasil é a autorização familiar, juntamente com a obscuridade informacional do assunto para uma parcela da sociedade, o que impõe a constatação de que uma maior capacitação interpessoal por parte das equipes realizadoras de entrevistas com familiares de potenciais doadores, aliada com o aumento da veiculação de informações educativas sobre o tema, seriam fatores determinantes para elevar o número de transplantes efetivados no país.
Palavras-chave: Bioética. Doação. Órgãos. Tecidos. Transplantes.
INTRODUÇÃO
Atualmente, de acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos – ABTO, existem mais de 50 mil pessoas na fila de espera por órgãos no Brasil. De acordo com a mesma associação, um único doador falecido pode ajudar mais de oito pessoas que estão nessa lista de espera. Com isso, verifica-se que essas pessoas teriam seu problema resolvido se não fosse pelos diversos impasses jurídico-sociais a serem abordados ao longo deste artigo.
Apesar de o Brasil ter o maior programa público de transplantes de órgãos, tecidos e células do mundo, ainda é grande o número de famílias que desautorizam a retirada dos órgãos de um indivíduo que manifestou, em vida, sua vontade de ser um doador após a morte. Para se ter uma ideia, seria possível acabar com a fila das pessoas que esperam um órgão compatível, se as famílias de todos os possíveis doadores autorizassem a retirada dos órgãos. Hoje, de acordo com levantamento feito pela ABTO, cerca de 44% dessas famílias ainda se recusa a permitir a remoção.
Além disso, ainda é grande o número de pessoas que se recusa a ser um doador, seja por não possuir informações claras a respeito do tema, seja por motivos religiosos, etc.
O direito brasileiro regulamenta o tema com base na Constituição Federal, no Código Civil e na Lei de Transplantes (Lei 9.434/97), bem como na doutrina pátria. Trata-se de um direito personalíssimo, pois a pessoa é livre para decidir sobre o próprio corpo e acerca da destinação de seus órgãos após a morte, quando esses já não são necessários para si, mas ainda tem potencial para suprir necessidades de outras pessoas.
Antes da alteração ocorrida na Lei de Transplantes, o ordenamento jurídico brasileiro utilizava-se do consentimento presumido, logo, todo indivíduo era presumidamente considerado doador de órgãos se não se manifestasse em contrário. Contudo, no ordenamento pátrio atual, a manifestação de vontade do doador não é formalizada corretamente, ficando para a família, após a sua morte, a decisão de autorizar o prosseguimento do feito.
Diante do que foi exposto, nota-se um conflito entre a vontade do indivíduo e a vontade da família, visto que essa detém o poder de autorização legal para decidir sobre a remoção dos órgãos de uma pessoa que em vida possa ter decidido ser um doador.
O presente artigo tem como objetivo identificar a forma que o instituto da doação e transplantes de órgãos e tecidos são tratados no Brasil, de modo a analisar como a legislação e os doutrinadores veem o tema de forma global, bem como analisar estatísticas oficiais acerca do número de potenciais doadores e o número de transplantes realizados anualmente.
O trabalho irá utilizar-se do método exploratório de pesquisa, fazendo um levantamento bibliográfico sobre o assunto, por meio de fontes de pesquisa primárias e secundárias, como livros, legislações e artigos científicos já publicados sobre o tema, bem como analisando estatísticas quantitativas sobre o tema.
Tal análise tem a finalidade de contribuir com reflexões acerca do problema, de modo que estimule uma maior aderência da sociedade ao assunto, para que se aumente o número de potenciais doadores, bem como os familiares passem a autorizar a retirada de órgãos de seus entes falecidos, tendo em vista que é a família que detém o respaldo legal para decidir sobre o assunto.
A redação do artigo se iniciará abordando o assunto de forma mais geral, analisando suas especificidades, regulamentação no ordenamento jurídico e requisitos de aplicabilidade, bem como o modelo de consentimento adotado no Brasil. Após, irá aprofundar de forma mais específica sobre o assunto, e trazer uma ótica quantitativa ao tema, com dados oficiais sobre o número de doações realizadas anualmente no país e fatores impeditivos de concretização de transplantes. Por fim, buscará estudar o assunto à luz da bioética e do biodireito, trazendo reflexões acerca da aplicabilidade, regulamentação e o respeito à vida humana nesses procedimentos.
1. DOAÇÃO DE ÓRGÃOS E TECIDOS
O processo de doação começa por meio de uma livre manifestação de vontade de um indivíduo que decide doar para outrem parte(s) do seu corpo de forma gratuita, sejam elas órgãos ou tecidos. A doação pode ocorrer em vida (normalmente ocorre em casos em que um parente próximo necessita de doação) ou após a morte. O instituto tem previsão legal na Constituição Federal, no Código Civil e na Lei 9.434/97 (Lei de Transplantes).
Na constituição, está previsto em seu art. 199, §4º, que diz:
A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm)
Para Tavares, (2022, p.96), o texto do artigo acima refere-se ao que a doutrina denomina de norma constitucional de eficácia limitada, que são aquelas que dependem da criação de uma norma infraconstitucional futura para produzir seus efeitos, ou seja, é necessário que o legislador infraconstitucional edite uma norma que venha a completar e dar eficácia à vontade do constituinte, de modo que não produzem efeitos apenas com a entrada em vigor da constituição, necessitando de uma legislação ordinária posterior para tanto.
No caso do artigo da Constituição Federal citado, este dependeu da edição da Lei 9.434/97 para produzir seus efeitos.
A doação de órgãos e tecidos, por ser um ato de manifestação de vontade individual, tem respaldo jurídico também no Código Civil, que em seu art. 14 valida o ato de dispor do próprio corpo.
É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm)
Após a análise dos institutos legais citados, podemos conceituar a doação de órgãos e tecidos como uma manifestação de vontade, gratuita e altruísta, com a finalidade de dispor de uma parte ou partes do corpo, para que esses órgãos ou tecidos possam ser utilizados no corpo de outrem.
1.1 Doação em vida
A doação em vida é legalmente possível, desde que cumpridos alguns requisitos: o doador deve ser considerado, por meio de uma avaliação médica, uma pessoa saudável; ser civilmente capaz; e sua vontade de doar deve ser livre e expressa. Outro requisito é referente a quem pode ser o receptor da doação em vida, que de acordo com a Lei 9.434/97 (Lei de Transplantes), é permitida para “cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4º deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.” (art. 9º, Lei 9.434/97).
Ou seja, os demais, que não forem parentes consanguíneos até o quarto grau do doador, necessitarão de autorização judicial para que possa ser realizada a doação, ressalvados os casos de doação de medula óssea, os quais não necessitam de tal autorização.
Ainda, de acordo com a referida lei, em seu art. 9º, §3º:
Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm)
Para Gonçalves (2022, p.404):
O art. 9º e parágrafos da Lei n. 9.434/97, regulamentada pelo Decreto n. 2.268, de 30 de junho de 1997, permitem à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes, desde que o ato não represente risco para a sua integridade física e mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável. Só é permitida a doação em caso de órgãos duplos (rins), partes regeneráveis de órgão (fígado) ou tecido (pele, medula óssea), cuja retirada não prejudique o organismo do doador nem lhe provoque mutilação ou deformação. (GONÇALVES, 2022, p.404)
Logo, verifica-se que para que seja realizada a doação em vida, é requisito indispensável que a retirada dos referidos órgãos ou tecidos não atrapalhe a saúde e a integridade física do doador.
Por fim, temos mais uma exceção à doação em vida, tal ressalva diz respeito às gestantes:
É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto. (art. 9º, §7º, Lei 9.434/97)
Essa exceção existe com a finalidade de preservar a saúde do nascituro, haja vista que uma intervenção invasiva no corpo da gestante colocaria em risco a vida intrauterina.
1.2 Doação post mortem e morte encefálica
A doação post mortem (após a morte) ocorre com uma manifestação em vida por parte do doador, que exprime o desejo de que seus órgãos e tecidos sejam retirados e doados após a sua morte, ou por vontade da família do de cujus, onde um membro familiar manifesta o desejo de doar e comunica ao hospital a sua autorização.
Gonçalves (2022, p.404) mais uma vez leciona que:
Nesse caso, a retirada das partes doadas para transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada na forma da lei (art. 3º). Os mencionados dispositivos legais consagram, nitidamente, o princípio do consenso afirmativo, pelo qual cada um deve manifestar sua vontade de doar seus órgãos e tecidos para depois de sua morte, com objetivo científico ou terapêutico, tendo o direito de, a qualquer tempo, revogar livremente essa doação feita para tornar-se eficaz após a morte do doador. (GONÇALVES, 2022, p.404)
De acordo com o Conselho Federal de Medicina, a morte encefálica é diagnosticada quando há ausência de atividade elétrica cerebral ou ausência de atividade metabólica cerebral ou ausência de perfusão sanguínea cerebral (Resolução CFM 2.173, de 23 de novembro de 2017). Além disso, os exames que verificam essas ausências seguem rigorosos critérios, sendo realizados no mínimo duas vezes e cada um deles por um médico diferente, para que não restem dúvidas acerca do diagnóstico.
O art. 3º da Lei 9.434/97 dispõe sobre a constatação e registro da morte encefálica, que deve ser:
[...] constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. (art. 3º Lei 9.434/97)
Para Moraes (2007, p.70), devido à dificuldade de compreensão do conceito de morte encefálica – em que uma pessoa pode morrer e ter um coração que continua batendo – alguns familiares acreditam que o ato de doar órgãos para transplante é o mesmo que matar uma pessoa. Nesse caso, os batimentos cardíacos são interpretados como um indicativo de que a pessoa ainda possa estar viva, pois há dificuldade de diferenciar morte encefálica de coma, o que alimenta uma certa esperança de que a situação ainda possa ser revertida.
1.2.1 Remoção de órgãos e tecidos pós morte em pessoas juridicamente incapazes
A lei possibilita a remoção pós morte de órgãos e tecidos de pessoas juridicamente incapazes, desde que autorizada de forma expressa pelos pais ou representantes legais do incapaz.
A remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa juridicamente incapaz poderá ser feita desde que permitida expressamente por ambos os pais, ou por seus responsáveis legais. (art. 5º, Lei 9.434/97)
Aqui, vemos uma exceção à regra referente à doação em vida, posto que nessa última, o doador deve necessariamente ser juridicamente capaz, ressalvados os casos de transplante de medula óssea, quando cumpridos os requisitos do art. 9º, §6º do já referido instituto legal: compatibilidade imunológica comprovada, consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais, autorização judicial e o ato não oferecer risco para a saúde do incapaz.
1.3 Alterações na Lei de Transplantes
Antes da alteração da Lei 9.434/97 pela Lei n. 10.211/2001, seu art. 4º tinha a seguinte redação:
Art. 4.º Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem.
Nesta época, o direito brasileiro adotava o sistema do consentimento presumido.
Gagliano e Filho (2022, p.381) explicam que, nesse sistema de consentimento, a doação post mortem era presumidamente autorizada por todas as pessoas. Logo, para que alguém não tivesse seus órgãos retirados após a sua morte, teria que fazer constar expressamente em seus documentos pessoais a opção por não ser um doador de órgãos.
Entretanto, ante a dificuldade de se precisar o exato momento da morte do doador, e para impedir irreparáveis erros médicos (como, por exemplo, alguém ter um órgão retirado sem estar realmente morto), houve descontentamento por parte da sociedade com relação ao referido dispositivo legal, o que motivou a edição da Medida Provisória n. 1.959, posteriormente convertida na Lei n. 10.211, de 23 de março de 2001, a qual alterou o art. 4º da Lei 9.434/97, passando a ter a seguinte redação:
Art. 4.º A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.
Com a nova redação do seu art. 4º, a Lei de Transplantes abandonou o consentimento presumido e passou a exigir a autorização expressa dos familiares do falecido para a remoção de seus órgãos e/ou tecidos.
2. ESTATÍSTICAS SOBRE DOAÇÕES E TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS REALIZADOS NO BRASIL
O Brasil é um dos países com o maior número de transplantes no mundo. Contando com um sistema referência no assunto, o Ministério da Saúde, por meio do Sistema Nacional de Transplantes – SNT, somente entre os meses de janeiro a junho de 2022, realizou mais de 10 mil transplantes de órgãos e tecidos (isso sem contar dados de transplantes de ossos, pele e valva), conforme gráfico abaixo retirado do Registro Brasileiro de Transplantes - RBT (segundo trimestre de 2022):
ÓRGÃOS |
|||||
Órgãos |
Total |
Vivo |
Falecido |
Nº Equipes |
|
Coração |
176 |
- |
176 |
32 |
|
Fígado |
1007 |
80 |
920 |
70 |
|
Intestino |
0 |
- |
0 |
0 |
|
Multivisceral |
0 |
- |
0 |
0 |
|
Pâncreas |
68 |
- |
68 |
9 |
|
Pulmão |
45 |
- |
45 |
6 |
|
Rim |
2.381 |
344 |
2.037 |
141 |
|
Total |
3.677 |
424 |
3.246 |
- |
|
TECIDOS |
|||||
Tecidos |
Total |
||||
Córnea |
6.690 |
||||
Total |
6.690 |
||||
Fonte: Registro Brasileiro de Transplantes - RBT (Ano XXVIII, Nº 2)
Isso decorre principalmente devido as políticas realizadas pelo SNT, que promove a logística de doação, captação e transplante, focando em reduzir o tempo em que os pacientes esperam para a realização dos procedimentos e tenham sua qualidade de vida melhorada. O Sistema Único de Saúde - SUS também tem atuação crucial nesse feito, pois é quem financia 95% dos transplantes realizados no Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde.
Apesar de grande o número de transplantes realizados, é bem maior a quantidade de pessoas que aguardam na lista de espera. Segundo o mesmo registro, este número chegou a mais de 50 mil pessoas em junho do corrente ano. Vejamos o gráfico abaixo:
Pacientes ativos em Lista de Espera (Junho de 2022) |
||||||||
Órgão |
Rim |
Fígado |
Coração |
Pulmão |
Pâncreas |
Pânc/Rim |
Córnea |
Total |
Total |
29.130 |
1.247 |
293 |
197 |
100 |
291 |
20.416 |
51.674 |
Pacientes Pediátricos ativos em Lista de Espera (Junho de 2022) |
||||||||
Órgão |
Rim |
Fígado |
Coração |
Pulmão |
Pâncreas |
Pânc/Rim |
Córnea |
Total |
Total |
385 |
77 |
47 |
9 |
0 |
0 |
491 |
1.009 |
Fonte: Registro Brasileiro de Transplantes - RBT (Ano XXVIII, Nº 2)
Comparado ao número de pessoas esperando por um transplante, o número de doadores em que é concretizada a retirada e transplantação ainda é pequeno. Entre janeiro e junho de 2022, a quantidade de doadores cujos órgãos foram transplantados foi de 1.371, dos quais 889 eram doadores de múltiplos órgãos, conforme dados do RBT.
Ainda, outro grande problema para a efetivação da doação de órgãos post mortem é a recusa dos familiares, os quais possuem a decisão final sobre o corpo do de cujus, por força do já abordado art. 4º da Lei de Transplantes. De acordo com o RBT, atualmente 44% das famílias ainda se recusa a autorizar a retirada de órgãos aptos para transplante, o que traz abalo significativo na quantidade de transplantações realizadas no Brasil.
Os gráficos abaixo são claros em demonstrar que o maior motivo para a não efetivação das doações de órgãos é a recusa familiar:
Número de notificações de potenciais doadores, doadores efetivos e doadores cujos órgãos foram transplantados no Brasil, entre janeiro e junho de 2022. |
||||||
Brasil |
Notificações (potenciais doadores) |
Não Doadores |
Doadores Elegíveis |
Doadores Efetivos |
Doadores cujos órgãos foram transplantados |
Doadores de Múltiplos Órgãos |
- |
Nº |
Nº % |
Nº |
Nº |
Nº |
Nº % |
Total |
6.335 |
4.551 (72%) |
3.083 |
1.638 |
1.371 |
889 (65%) |
Fonte: Registro Brasileiro de Transplantes - RBT (Ano XXVIII, Nº 2)
Causas da não concretização da doação de órgãos de potenciais doadores notificados no Brasil, entre janeiro e junho de 2022. |
||||||||
|
Afastados por: |
|||||||
Brasil |
Notificações |
Entrevistas |
Contraindicação Médica |
Parada Cardíaca |
Morte encefálica não confirmada |
Outros |
||
- |
Nº |
Realizadas |
Recusa |
% |
Nº % |
Nº % |
Nº % |
Nº % |
Total |
6.335 |
3.633 |
1.608 |
44% |
1.140 (18%) |
454 (7%) |
430 (7%) |
924 (15%) |
Fonte: Registro Brasileiro de Transplantes - RBT (Ano XXVIII, Nº 2)
São vários os fatores que colaboram para a recusa familiar no processo de remoção dos órgãos, entre eles estão: conflitos familiares; pouca informação sobre a manifestação em vida do falecido em ser um doador; desconfiança; etc.
É razoável entender que os familiares se encontram fragilizados com a morte de um ente querido, o que é um dos fatores que motivam o elevado número de recusas. Para Cajado (2011, p.13,14), existe uma grande pressão àqueles que estão em um momento emocionalmente instável, para que autorizem a realização da retirada dos órgãos, baseada em fatores subjetivos que podem ser difíceis de entender se não explicados da forma e com a abordagem adequada.
Por isso, é necessário que seja realizada uma boa entrevista com estes familiares. De acordo com Bittencourt (2011, p.439), a equipe de entrevista deve prestar informações claras acerca do processo de retirada dos órgãos, de modo que se passe maior segurança à família e consequentemente se consiga o consentimento destes, devendo ser essa decisão voluntária e livre de quaisquer pressões externas.
Com a realização de boas entrevistas com os familiares, a efetivação das doações e transplantes de órgãos e tecidos no Brasil terá um número muito mais significativo, diminuindo a quantidade de pessoas na fila de espera e aumentando o êxito do sistema de doações.
3. ANÁLISE DAS TRANSPLANTAÇÕES DE ÓRGÃOS E TECIDOS ATRAVÉS DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO
3.1 Conceito de bioética
A bioética baseia-se em estudar, multidisciplinarmente, os aspectos éticos envolvendo o tratamento à vida como um todo. Para Maluf (2020, p.14,15):
Bioética é o estudo transdisciplinar entre biologia, medicina, filosofia, e direito que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal, e responsabilidade ambiental. (MALUF, 2020, p.14,15)
Esse ramo do estudo surgiu para ponderar os experimentos e rápidos avanços científicos e tecnológicos relacionados à vida, para que essas explorações se pautem em questões éticas e no respeito à dignidade humana, de modo que não extrapolem suas atribuições, causando inseguranças jurídicas e sociais.
A matéria fundamenta-se, de modo geral, em três princípios e três pilares básicos (médico, indivíduo e sociedade). Os princípios são:
· Beneficiência e não maleficiência (médico), que significa fazer o melhor causando o mínimo de dano;
· Autonomia (indivíduo), nos traz a ideia de que todos possuem liberdade para tomar suas próprias decisões e dispor do próprio corpo como bem entender;
· Justiça (sociedade): garantia de que os serviços de saúde devam ser distribuídos para todos de forma justa, equitativa e universal.
Partindo desses três princípios, podemos extrair que a bioética se preocupa em trazer avanços relacionados a exploração da vida humana, porém com algumas ressalvas, como o respeito às liberdades individuais e às consequências jurídicas e sociais que possam vir a acontecer.
3.1.1 Importância da bioética nas transplantações de órgãos e tecidos
Os procedimentos envolvendo o transplante de órgãos e tecidos devem pautar-se fundamentalmente em aspectos éticos e jurídicos, haja vista a complexidade do assunto com relação ao respeito à vida humana (nos casos de transplante em vida) e na comprovação inquestionável da morte encefálica (a qual deve seguir os rígidos protocolos definidos pela Resolução nº 2.173/17 do Conselho Federal de Medicina), ligados ao obedecimento total ao que a Lei de Transplantes e os princípios constitucionais determinam.
Apesar de o ato de ser um doador representar uma conduta humana e altruísta, não devemos achar que isso foi totalmente incorporado pela moral comum, e vários são os motivos, tais como: o descrédito no sistema de saúde, a insuficiente alocação dos recursos necessários, dúvidas na relação de confiança entre profissional da saúde e paciente, possibilidade de acesso equânime e justo ao sistema, a confidencialidade receptor-doador no consentimento livre-esclarecido, o respeito à autonomia e o caráter inovador e recente dessa prática médica. (GARBIM, 2019, p. 76,77)
Ou seja, seria muito maior a efetivação das transplantações no Brasil se esses fatores fossem mais aperfeiçoados e mais transparentes à sociedade como um todo.
O nosso sistema de doação e transplantes é indiscutivelmente um dos maiores e melhores do mundo, mas, ainda assim, há muito no que se aperfeiçoar. A começar pelo aumento das capacitações, eventos, produção científica, parcerias público-privadas, pois quanto mais esses pontos forem melhorados, mais eficiente será o sistema. (GARBIM, 2019, p. 77)
Não se pode deixar de abordar o fator ético relacionado à conduta do profissional responsável por realizar a entrevista com os familiares do doador falecido, a qual deve ser realizada com muita cautela, respeito e informação clara, para que se traga mais segurança e transparência àqueles que estão em um momento de fragilidade, e que precisam tomar uma importante decisão.
Outro ponto que o Brasil peca é na propaganda relacionada ao assunto, haja vista ser um tema ainda pouco difundido, se comparado à outras questões de saúde pública de igual importância (como ocorre com a doação de sangue, que é muito mais divulgada e também envolve aspectos bioéticos importantes).
Portanto, com o aumento de divulgações governamentais informativas e educativas a respeito dos aspectos éticos relacionados ao tema, ligados a uma entrevista bem realizada, seria certo que a população estaria muito mais segura em aderir à doação; familiares também se sentiriam muito mais tranquilos a autorizar a retirada de órgãos e/ou tecidos de um ente falecido.
3.2 Biodireito e transplantes de órgãos e tecidos no Brasil
Primeiramente, antes de passar a abordar o biodireito, faz-se necessário conceitua-lo. Maluf (2020, p.25,26) sintetiza que:
O biodireito pode ser definido como o novo ramo do estudo jurídico, resultado do encontro entre a bioética e o direito. É o ramo do direito público que se associa à bioética, estudando as relações jurídicas entre o direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia. (MALUF, 2020, p.25,26)
Disso se subtrai que o biodireito é um ramo jurídico que segmenta as ferramentas jurídicas à disposição dos conflitos estudados pela bioética, de modo a buscar entender esses conflitos pelo viés jurídico, pois a ética é fundamento basilar do direito, e o direito busca ser a positivação da ética.
Vale ressaltar que o biodireito não está codificado em uma única matéria, ou seja, ele engloba várias áreas de estudo do direito e diversas são as codificações. Tem base, obviamente, na Constituição Federal, mas também caminha pelo Código Civil, Código Penal, e todas as leis infraconstitucionais que tratarem do direito à vida.
Os princípios basilares desse ramo do direito são o Princípio da Autonomia (ideia de que o indivíduo tem autogoverno para dispor do próprio corpo), e o Princípio da Dignidade da Pessoa humana, que é o metaprincípio constitucional mais importante, por tratar da proteção à vida e dignidade humanas em sua magnitude.
Após entender o objeto de estudo do biodireito e como ele está intrinsecamente ligado à bioética, percebe-se que esse ramo jurídico se faz extremamente necessário à abordagem dos transplantes de órgãos e tecidos, pois é tênue a linha entre o respeito às liberdades dos indivíduos e eventuais abusos médicos e científicos.
É sabido, porém precisa ser reforçado, que os procedimentos de captação e transplantes de órgãos devam seguir rigorosos critérios, porém faz-se necessária a atuação do direito nessa questão, de modo a analisar se os ditames jurídicos estão sendo respeitados, e se não estão havendo abusos científicos em detrimento da vida humana, pois é função do direito atuar como regulador do poder científico sobre o indivíduo.
CONCLUSÃO
O presente artigo científico buscou identificar como a doação e transplantes de órgãos e tecidos é abordada no Brasil, por ser um tema de suma importância para a sociedade, tendo em vista o grande número de pessoas que aguardam na fila de espera para receber um transplante no país, e levando em conta o renomado Sistema Nacional de Transplantes mantido pelo SUS.
Utilizou-se de artigos já publicados sobre o tema, bem como da doutrina civilista e constitucionalista moderna brasileira para abordar o assunto, assim como o uso de estatísticas dos órgãos oficiais, de modo a elucidar qualitativa e quantitativamente o assunto em questão.
Além disso, trouxe reflexões para o meio acadêmico a respeito do estudo da legislação e doutrinas pertinentes ao tema, bem como fazer uma análise do assunto à luz dos princípios da bioética e do biodireito.
Como resultado da pesquisa realizada, descobriu-se que o principal problema enfrentado atualmente para a efetivação da realização dos transplantes no Brasil é a autorização, por parte dos familiares, da retirada de órgãos e/ou tecidos de um ente falecido, pois a lei determina que pertence à família o poder de decisão para dispor do corpo do de cujus. Com isso, buscou-se abordar modos de solucionar o problema, como o aperfeiçoamento das entrevistas realizadas pelas equipes dos hospitais e o aumento do número de propagandas governamentais sobre o tema, de modo a trazer mais segurança e clareza para a sociedade sobre o assunto, e consequentemente aumentar o percentual de transplantes realizados com sucesso no país.
Por fim, após a análise de todas as questões tratadas neste trabalho, vislumbro e sugiro a possibilidade de uma nova abordagem de pesquisa para o tema em questão, qual seja: a possibilidade de interpretação da Lei de Transplantes à luz do atual ordenamento constitucionalista e civilista brasileiro, de modo a retirar dos familiares o poder de decidir sobre o corpo do falecido, e trazer essa autonomia para o indivíduo.
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS. Registro Brasileiro de Transplantes - RBT (Ano XXVIII, Nº 2). Disponível em: <https://site.abto.org.br/publicacao/xxviii-no2/> Acesso em: 17 set. 2022.
BITTENCOURT, Ana Luiza Portela; QUINTANA, Alberto Manuel; VELHO, Maria Teresa Aquino de Campos. A perda do filho: luto e doação de órgãos. Estudos de Psicologia (Campinas), v. 28, p. 435-442, 2011. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/estpsi/a/rrPx3TrVLY5TwsmQ4fPYvQJ/?lang=pt&format=html> Acesso em: 17 set. 2022.
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[1] Mestre em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Tocantins - UFT. Pós-graduado em Gestão Pública pela Faculdade Suldamerica. Bacharel em Direito pela Faculdade Serra do Carmo - FASEC. Advogado e Professor da Faculdade Serra do Carmo - FASEC.
Graduando em Direito pela Faculdade Serra do Carmo - FASEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORAIS, Welligton Sousa Santos de. Aspectos jurídico-sociais acerca da doação e transplantes de órgãos e tecidos no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 nov 2022, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60070/aspectos-jurdico-sociais-acerca-da-doao-e-transplantes-de-rgos-e-tecidos-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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