Resumo: O objetivo deste artigo é discutir a relação que o nascimento do Estado moderno mantém com o desenvolvimento do pensamento contratualista. Nossa investigação neste trabalho tem como base a leitura imanente de como as discussões acerca do Estado moderno se estruturaram no início da modernidade. A metodologia bibliográfica que usamos para esta elaboração tem como fundamento as obras e o pensamento de Bodin, Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau, além de comentadores. O eixo temático da discussão se situa entre filosofia política e filosofia do direito, discutindo estado de natureza e estado civil. Alcançamos enquanto resultado, considerando que a leitura imanente do programa desta pesquisa contribuiu para compreendermos o nascimento do estado moderno, que esse caráter de transição se produz da passagem do caráter orgânico do estado feudal ao caráter mecânico do estado que se desenvolve a partir de conceitos fundamentais para sua estruturação do seio da modernidade.
Palavras-chave: Estado moderno; estado civil; contratualismo.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. O NASCIMENTO DO ESTADO MODERNO. 3. DESENVOLVIMENTO DO ESTADO MODERNO ENTRE OS CONTRATUALISTAS. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6. BIBLIOGRAFIA.
1.INTRODUÇÃO
A transição entre idade média e modernidade é marcada por uma série de fatores que contribuíram para o processo de transição do estado orgânico feudal ao estado mecânico moderno. São muitos os aspectos que caracterizam o que a modernidade representou para a constituição do pensamento moderno, nessa pesquisa situamos nossa análise da modernidade em seu processo de desenvolvimento com ênfase em como a mentalidade moderna pensa o Estado.
O medievo caracteriza aproximadamente dez séculos da história, e tem seu clímax em como o pensamento filosófico e teológico se encaminhou, respectivamente na forma da patrística e da escolástica. Dentre os eventos que marcam a idade média, podemos destacar períodos áureos, como por exemplo a criação das universidades, fundamental não apenas para aquele tempo, mas para a humanidade. Porém, já no século XIV destacamos que a forma de vida na idade média passou a entrar num processo de transição.
No sistema feudal a vida da sociedade se centralizou no campo, de onde se produz a renda da terra do feudalismo. Porém, a estrutura orgânica da sociedade feudal não foi suficiente para dar conta das contradições internas entre o conteúdo social e a forma política. Dentre esses aspectos podemos destacar o crescimento dos burgos, consequentemente, dos comerciantes, e a relação entre igreja e Estado que se aproximava de uma ruptura.
O crescimento dos movimentos renascentistas marcou como esse período de transição se centralizou em como a sociedade passaria a se organizar em estados independentes, como por exemplo a divisão da Itália no século XX em Milão, Floresça, Roma e Veneza. É sob a hipótese de que o Estado orgânico característico do medievo sai de cena através da criação do Estado moderno que nosso artigo se propõe a examinar. A proposta deste artigo não é criar uma hipótese inédita para discutirmos o Estado moderno, mas destacar a participação ativa no processo de desenvolvimento do Estado de alguns importantes pensadores modernos que nos ajudarão a compreender o desenvolvimento do Estado e como ele foi pensado naquele tempo.
Para tanto, buscaremos num primeiro momento através de uma leitura imanente entender como Maquiavel pensou sua ciência política para buscarmos entender como o Estado moderno foi pensado. A partir de como se desenvolveu a ciência política, compreenderemos como o conceito de soberania de Bodin inaugura um novo horizonte para pensar como Estado será desenvolvido na modernidade.
A partir disso, passamos nossa análise para como o Estado moderno se desenvolve ladeado pela discussão entre os filósofos contratualistas: Hobbes, Locke e Rousseau. Nesse momento, trazemos para o centro da discussão o conceito de direito de natureza afim de associarmos a forma como o Estado passou a se consolidar sob os prismas do pensamento filosófico que os pensadores e cientistas políticos imprimiram no modo como o próprio Estado foi pensado. Com isso, buscaremos expandir como se desenvolveu o Estado na idade moderna por meio de como os pensadores modernos estruturaram a ciência política daquele tempo.
2.O NASCIMENTO DO ESTADO MODERNO
Dentre as muitas discussões que atravessaram a idade moderna, destacamos o jusnaturalismo para estruturarmos sua importância na história a partir do nascimento e do desenvolvimento do estado moderno. O espírito da modernidade, ambiente em que se desenvolve o jusnaturalismo, é marcado pela transição das considerações da idade média acerca do próprio lugar do ser humano, bem como o abandono dos feudos pelo desenvolvimento de estados independentes. Na modernidade ainda, situa-se uma íntima relação que é relevante em nosso exame: a constante disputa de poder entre o Estado e a Igreja na baixa idade média. Vale lembrar que, até então, a concepção de poder nesse período da história que tinha a crença dos reinados era garantida pela religião, haja vista ser formulada de premissas que surgem a partir da instância divina e transcendente. Com isso, o renascimento, período em que ocorre esse contexto, dá início à idade moderna iniciada no século XV na Itália através de ideais que faziam parte da forma de pensar das pessoas letradas, fossem elas leigas ou fossem elas do clero (RUSSELL, 2015, p. 17).
Nas palavras de Chevallier (1993, p. 17):
O renascimento, no sentido estrito da palavra, é um movimento intelectual [...] que visa livrar-se das disciplinas intelectuais da Idade Média, para voltar à antiguidade clássica, estudada diretamente nas fontes pelos humanistas, e não mais através da transmissão cristã.
O renascimento abdicou do aristotelismo tomista promovido pela igreja na busca direta pelos textos dos gregos. A teoria da iluminação de Agostinho de Hipona (354 – 430) como desenvolvida em Contra Faustum manichaeum libri triginta tres[1], que é parte da epistemologia valorizada pela patrística e, na escolástica, a verdade (conhecimento/episteme) concebida como adequatio intellectus et rei de Tomás de Aquino (1224 – 1974)[2] como no Articulus 3 da quaestio I das Quaestiones disputatae de veritate são postas agora em um segundo plano de importância dos conteúdos que floresceram naquela época. Os árabes Avicena (930 – 1037) e Averróis (1126 – 1198), estudiosos do pensamento aristotélico que posteriormente foram tomados pela escolástica tomista, também são postos em segundo plano enquanto, por outro lado, emergia um retorno aos textos clássicos que configurou um tipo de autonomia da qual gozavam os renascentistas. Visto isso, pode-se perceber que no renascimento não houve movimento popular, mas se desenvolveu entre os eruditos e humanistas. Com isso, deu-se então o chamado colapso da era cristã, resultando, pois, no enfraquecimento do direito natural divino defendido pela igreja e o surgimento das propostas de direito natural moderno. A partir desse contexto, molda-se o conhecido movimento jusnaturalista e contratualista que focaremos daqui em diante.
O conceito de Estado e estrutura a ele inerente como conhecemos nos dias de hoje, tem seu período de forte desenvolvimento no século XVIII. Porém, formas anteriores à que vivemos e conhecemos de Estado já se desenvolveu no mundo ocidental, como no período renascentista em que se consolidou a divisão da Itália em Veneza, Milão, Florença e Roma (governada pelo Papa). Essa mudança que aconteceu no renascimento se produz em decorrência da transição do Estado durante o regime feudal[3] para se estruturar a partir de um caráter mecânico[4], esse acontecimento se desenvolveu ao mesmo tempo que a forma de produção de riqueza também entra em transição do sistema feudal ao sistema capitalista que se desenvolvia ali.
Do renascimento Maquiavel (1426 – 1527) é o pensador mais expressivo, segundo Bertrand Russell (1872 – 1970): “Sua filosofia política é científica e empírica; fundamenta-se em sua própria experiência e tem como objetivo formular meios que conduzem a fins específicos” (RUSSELL, 2015, p. 27). Maquiavel é uma personagem que figura o período da transição em que nasce a modernidade. Russel (2015, p. 27) enxerga em Maquiavel uma característica que marca o modo como é construída sua obra magna O príncipe (1513): “Uma tal honestidade intelectual acerca da desonestidade política [...]).
Em Maquiavel o príncipe é a personificação do exercício de força para garantir o que compreendemos hoje como soberania do Estado. Essa força se caracteriza em como é administrada pelo príncipe, podendo ser ela força de conquista ou força de conservação (MAQUIAVEL, 2000, p. 37). A razão da política do príncipe é o próprio emprego dessas forças, que ao mesmo tempo caracteriza a guerra (CHEVALLIER, 1993, p. 26). Diz o filósofo:
O desejo de conquistar é natural e comum, e os homens capazes de satisfazê-los sempre são louvados, jamais criticados. Porém, caso não o consigam nem pretendam satisfazê-lo, de qualquer maneira, então comentem um erro, e fazem por merecer a crítica (MAQUIAVEL, 2000, p. 47).
Para manter o Estado, o príncipe necessita de boas leis e boas armas. Porém, é importante não reduzir armas apenas às forças bélicas, e compreender o que ele entende por boas armas. A disposição à guerra é uma virtude do príncipe, dispor de boas armas é ter sob seu governo um exército nacional, que diferente de mercenários, não abandonam seu posto ou se vendem para outro. Diante disso, dentre as maneiras de conquistar são apresentadas duas: a virtu e a fortuna. Com isso, nos distanciamos da redução do exercício de força em caráter bélico e nos aproximamos de como essas forças se produzem no exercício do príncipe.
A virtu diz respeito ao talento, vigor, à energia, esses valores importantes são atribuídos por Maquiavel como qualidades para caracterização de um tipo de “arma”, e é entendida por Maquiavel como um conhecimento da realidade efetiva do contexto que ele está; enquanto, por outro lado, a fortuna é a conquista do poder alcançada através de terceiros, mercenários (MAQUIAVEL, 2000, p. 45). Para Maquiavel essa diferença é importante, pois é necessário considerar esses modos de força e até certo ponto relacioná-los, haja vista aquele que deter da virtu não estar inteiramente dissociado da fortuna. Diante disso surgem pertinentes questões: Qual o caminho mais fácil para chegar ao poder? Ou até mesmo, que príncipe tem mais facilidade de conservar-se no poder? A forma como se desenvolve a produção de Maquiavel em sua ciência política não pode ser resumida a nenhum manual utópico, mas a partir de quando ele relaciona os fatores que nos dedicamos nesse parágrafo, podemos notar que seu discurso é carregado de facticidade, e essa interpretação se confirma quando analisando as forças para o príncipe governar ele relata que usar da fortuna para alcançar o poder é uma opção, mas é difícil conservar esse poder; entretanto, o príncipe que dispõe da virtu goza do inverso, que chamamos de uma menor dificuldade para chegar ao poder, porém, depois que alcançado, a manutenção e a conservação desse poder não são mais fáceis.
Em contrapartida à ciência política de Maquiavel está Jean Bodin (1530 – 1596), que com os Seis livros da república (1576) apresenta um discurso que difere substancialmente do pensamento do italiano, apresentando não os fatos como fundamento de sua obra, mas a legitimidade enquanto parte da discussão acerca da comunidade política, trazendo o poder soberano para o núcleo da obra (BODIN, 2011, p. 71).
A união da comunidade política é garantida mantida por meio do poder soberano. Se o poder soberano não garantir esse status à comunidade política, essa união se esvaeceria. “Ela [a união da comunidade política] cristaliza o intercâmbio de ‘comando e obediência’, imposto pela natureza das coisas a todo grupo social que quer viver. É nesse sentido que o poder soberano “É O PODER ABSOLUTO E PERPÉTUO de uma república [...]” (BODIN, 2011, p. 195). É, portanto, a respeito da importância da soberania para a criação e desenvolvimento do estado que a situamos como discussão que nasce da superação do feudalismo e o Estado orgânico conjecturando a estrutura política da emancipação.
Em Bodin a soberania apesar de absoluta não pertence a uma determinada forma de governo, mas se perpetua na forma de poder e, consequentemente, um príncipe ou uma forma de governo apenas sejam depositários dela (BODIN, 2011, p. 197). O autor caracteriza então a soberania enquanto poder sem qualquer sujeição a outrem, sendo, com isso, absoluto. O exercício do poder soberano põe o príncipe diante da possibilidade de legislar sem qualquer interferência, garantindo, com isso, a independência nacional e a completa oposição ao governo misto.
É consenso entre os estudiosos do pensamento político, que, no livro de Bodin, aparece formulada, pela primeira vez e da maneira mais completa, a teoria do absolutismo monárquico, fundamentada no conceito de soberania, que ele foi o primeiro a elaborar, ou seja, que a autoridade tem de ser absoluta; e que, no livro de Hobbes, temos isso também, e muito mais do que isso, ou seja, uma teoria radicalmente nova da sociedade e da política, o chamado contratualismo ou jusnaturalismo (LORENZANO, 2007, p. 31).
Cabe-nos agora perscrutarmos o contratualismo para compreendermos como se desenvolve o Estado moderno, já tendo considerado algumas contribuições do renascimento em Maquiavel e agora de Bodin na estruturação do conceito de poder soberano.
3.DESENVOLVIMENTO DO ESTADO MODERNO ENTRE OS CONTRATUALISTAS
Homo homini lupus (2002, p. 3) é a máxima hobbesiana que está em Sobre o cidadão (1642) de Hobbes (1588 – 1679) em que se exprime o direito natural, um conceito-chave da estrutura do pensamento de Hobbes e dos contratualistas, fundamental para compreensão de como se desenvolveu sua filosofia contratualista. E, com isso, também se desenvolveu o Estado moderno. Para Hoobes, o direito (jus) de natureza dos homens se efetiva na guerra de todos contra todos. Porém, antes de qualquer síntese que façamos do valor que isso tem dentro do pensamento de Hobbes, cabe-nos entender o que significa esse direito de natureza. O próprio autor deixa claro do que se trata essa acepção quando considera no prefácio à obra O leviatã (1651): “O estado de natureza é o modo de ser que caracterizaria o homem antes de seu ingresso no estado social” (MONTEIRO, 1999, p. 13).
Esse estado de natureza que fala Hobbes, tendo como ponto de partida a máxima que está em Sobre o cidadão, é um sentimento de autopreservação contra qualquer investida que ele possa sofrer, pois para ele o outro é sempre perigoso, que suprimi, com isso, o sentimento de coletividade. Essa autopreservação coloca o ser humano diante da busca por poder e sempre mais poder, fazendo-o concorrente de todos os outros, os quais, assim como ele, são naturalmente submetidos a esse sentimento, gerando a guerra de todos contra todos. O homem para Hobbes é mau por natureza, é o sujeito concorrente dos outros para realizar seus desejos. A disposição à sociabilidade apresentada por Aristóteles (384 – 322) no início da Política (1998, p. 53), não é verdadeira para Hobbes, pois ao homem é inerente o caos e a guerra entre os seres humanos. O constante perigo ocasionado pela liberdade dos outros indivíduos coloca o ser humano diante da necessidade de entrar em acordo com os demais. De modo que, tal acordo entre os seres humanos se produz da renúncia de seu poder natural depositando em um soberano que constrói um poder artificial, para que a guerra de todos contra todos seja cessada em benefício do contrato de todos com todos (HOBBES, 1999, p. 114). Há uma questão importante para considerarmos: primeiro que ao soberano deve garantir a possibilidade de exercer seus direitos; em segundo que p poder artificial que o soberano detém não tem limites e ninguém pode o obrigar a nada, pois, este soberano, seja uma pessoa física ou assembleia, está fora do contrato (HOBBES, 1999, p. 114). Nesse sentido, o poder artificial do Estado Leviatã não tem deveres, mas apenas direitos. Referente ao pacto entre todos com cada um, diz então o autor:
Diz-se que um Estado, foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos ele (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os ato e decisões desse homem ou assembleia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens (HOBBES, 1999, p. 145, grifo do autor).
Por meio do contrato o homem artificial, ou estado-leviatã, substitui “[...] a vontade de todos, a todos representando” (CHEVALLIER, 1990, p. 72). Constituído de poder artificial, esse transferido mediante o contrato social, o leviatã irá impor limites aos homens sob forma tanto moral quanto política, tendo, pois, por meta, a garantia da paz.
Tendo em vista esses respectivos panos de fundo, não surpreende que tanto Bodin quanto Hobbes fossem visceralmente contrários a qualquer tipo de governo misto, o qual implica necessariamente aquilo que para eles constituía o pior dos males: a divisão da soberania (LORENZANO, 2007, p. 23).
Pelo lugar que se encontra o desenvolvimento do pensamento de Hoobes e a situação de transição entre idade média e modernidade, rompido com o viés orgânico dos feudos, podemos concluir que o Estado em Hobbes é constituído sob a forma de uma máquina, que pode servir de modelo e aplicado em outras situações que não apenas ao lugar de que fala o filósofo. Neste momento de nossa presente discussão, já vimos que na Itália renascentista nasce o Estado moderno, em Bodin ele recebe contribuições com a noção de soberania e é desenvolvido pelos ingleses (LORENZANO, 2007, p. 37), isso caracteriza o rompimento e distanciamento do caráter feudal.
O próximo filósofo contratualista que destacamos aqui para elucidar importantes momentos do desenvolvimento do Estado moderno a partir dos contratualistas é John Locke (1632 – 1704), que não foi apenas filósofo político, mas também pai do empirismo, e muitas de suas considerações políticas estão em íntima relação com sua própria epistemologia. O homem é carente de qualquer conhecimento que preceda a empiria, essa é uma premissa basilar do pensamento de Locke, tudo que conhecemos é resultado das sensações que ao longo da vida são responsáveis por escrever no sujeito o que ele concebe como conhecimento (LOCKE, 1999, p. 57). Desse modo, não está fora de questão pensar a incidência dessa concepção na constituição de seu pensamento político.
A partir da experiência, de seu próprio corpo que porta os sentidos, é que o ser humano conhece (LOCKE, 1999, p. 57), fazendo-o compreender que aquilo que seu corpo produz é de seu pertencimento. Com isso, Locke considera que o corpo é propriedade do indivíduo, assim como aquilo que se cria e se apropria a partir dele, haja vista ser essencialmente um instrumento de sua liberdade. Aqui podemos nos deparar com algo singular no pensamento do filósofo, que se o ser humano produz as coisas das quais necessita, a guerra de todos contra todos não é inerente à sua espécie, pois ela é pacífica em vista dos direitos naturais seres produtos da inteligência humana. O que não nega a possibilidade de haver relações conflituosas entre as pessoas, mas que deixa claro que não é suficiente para afirmarmos que a guerra é inata à condição de ser humano. A partir dos conflitos entre pessoas surge então a necessidade de constituir o estado civil. Em meio aos embates, nos quais impedem os homens de gozar de seus direitos naturais, a saber, a propriedade privada, a paz e a liberdade, eles se unem pelo contrato social com a finalidade de garantir a efetividade de seus direitos.
Assim como Hobbes, Locke parte do direito de natureza e posteriormente adere ao contrato social, porém, sob uma nova forma. O Estado em Locke se configura como regulador dos conflitos entre os homens, buscando, pois, a justiça como meio de delimitação das forças e controle dos bens individuais. Referindo-se a isso:
[...] o Estado deve proteger a vida, a liberdade e a propriedade. Para proteger a liberdade, é preciso preservar a lei da maioria, ou seja, o governo deve estar a cargo do poder legislativo, a Monarquia não deve ser absoluta (pois tenderia à tirania) e sim parlamentar, de forma a dividir e equilibrar os poderes. Para proteger os bens, o Estado deve proteger os ricos, e os ricos por sua vez devem ser generosos com os pobres, uma espécie de contra-partida ética para compensar o privilégio político (UNESP, p. 22).
Com o contrato o ser humano abdica de duas coisas: fazer o que quiser para a conservação de si e o poder de punir e empregar a força para que sejam cumpridas normas convenientemente estabelecidas. Constituído por meio do contrato, o Estado passa a regular a sociedade através de leis que muitas vezes restringe até mesmo a liberdade dos indivíduos (CHEVALLIER, 1990, p. 108). Com isso, a sociedade civil constituída pelo contrato se estrutura politicamente sob dois pilares: os poderes legislativo e executivo.
O poder legislativo diz respeito às determinações empregadas pelo Estado para a garantia da conservação de si e das pessoas que constitui; enquanto o executivo dispõe da função de colocar em prática aquilo disposto nas leis. Além desses poderes, que é herança do estado de natureza agora sob a forma positiva do Estado civil, há um terceiro, esse chamado de confederativo, que busca garantir a paz por meio de tratados. Esses poderes precisam sempre estar em mãos diferentes, e ainda, é mais importante que as leis já estabelecidas sejam cumpridas do que novas serem erigidas constantemente, caso contrário o governo entre em instabilidade. No legislativo está contido o poder supremo do Estado, é o que move todo o corpo, no qual os súditos têm a garantia de sua conservação; o outro poder, o executivo, é subordinado do poder legislativo, é incumbido de garantir a execução das leis elaboradas pelo legislativo.
Dentre os filósofos contratualistas, o último deles é Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778). A extensão de seu pensamento é prova de que mesmo sendo o último dos contratualistas, essa condição não diminui a importância nem a autonomia de seu pensamento, pois, formula singular noção do jus naturalismo como os outros, os quais, Thomas Hobbes que afirma o estado de natureza essencialmente mau, e Jonh Locke que atribuía a liberdade e a propriedade privada como direitos naturais.
Rousseau afirma que a liberdade é o estado natural do homem, como está no início Do contrato social (1762): “O homem nasceu livre e por toda parte ele está agrilhoado” (2006, p. 9). Afirmando, com isso, que ao mesmo tempo que é o homem é livre a sociedade o corrompe através da alienação de sua liberdade natural, ocasionada, como escrito na Origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), pela passividade daqueles que aceitaram a vontade de uns tomar como propriedade privada aquilo que não era naturalmente de sua pertença (ROUSSEAU, 1999, p. 115).
Com a ameaça ao direito natural dos seres humano, é apresentado por Rousseau o que o caracteriza filósofo contratualista, “[...] a passagem do estado de natureza ao estado civil [...]” (WEFFORT, 2006, p. 194). Tal processo implica na troca da liberdade natural pela civil haja vista as pessoas passarem a viver em sociedade. Característica particular do filósofo é que esse pacto realizado não é firmado com uma pessoa, e sim consigo mesmo e com o todo, de sorte que a condição pós-contratual é igual a todos os indivíduos.
Enfim, cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente da tudo o que se perde e mais força para conservar o que se tem (ROUSSEAU, 2006, p. 21).
Assim, de acordo com este excerto, é perceptível que não existe direito do mais forte nem desigualdade como necessidade da sociedade para manter a ordem.
A obrigação social, afirma Rousseau, não poderia basear-se legitimamente na força [...] nem tampouco se baseia na autoridade natural [...] O único fundamento legítimo da obrigação acha-se na convenção estabelecida entre todos os membros do corpo que se trata de constituir a sociedade (CHEVALLIER, 1993, p. 165).
Se em Hobbes o poder do leviatã era total para manter a ordem entre o povo, e a todo custo ele tinha que se certificar disso; e na perspectiva de Locke o soberano tem o dever de garantir a segurança e a vida com o poder concedido pelo contrato social; com Rousseau é claramente visível uma virada de pensamento em relação a qualquer sistema político de até então, e essa virada se dá quando ele atribui a soberania, que é inalienável, indivisível, infalível e absoluto, ao povo. Nesse pacto social, a alienação ao contrato deve ser absoluta, como condição indiscutível para que haja a igualdade entre todos os contratantes.
Rousseau deixa claro que um povo só será livre quando tiver condições de elaborar suas leis, e ao considerar a soberania irrenunciável torna isso possível. Com o povo sendo detentor do poder soberano, a elaboração das suas próprias leis são verdadeiras expressões da vontade geral[5], a que é gerida pelo seu querer soberano interpretado pelo corpo político.
Por fim, abstraímos que no pensamento de Rousseau, o estado de natureza do homem é bom, feliz e livre, e através da corrupção imposta pela sociedade o homem se encontra entre ferros, agrilhoado. Para combater o aprisionamento cada um faz com todos o pacto social em que terão igualdade de direitos, não sendo de tal modo admitido a desigualdade.
No Estado de Rousseau o soberano trata-se do povo, ou seja, o legislador é a vontade geral, é o próprio povo, de modo que o governo cuida do que diz respeito à dimensão executiva das leis criadas. Vejamos:
O soberano quer. Ele é a vontade (geral) que determina o ato (geral). O governo age. Executa, por atos particulares, o ato geral. É, e nada mais, a força ao serviço da vontade. Deve ser estabelecido de maneira “que execute sempre a lei e que nunca execute senão a lei” (CHEVALLIER, 1993, p. 180, grifo do autor).
Não há contrato além daquele que cria a sociedade civil e não há soberano que não seja o povo, o povo é seu próprio soberano e o governo é aquele que executa as leis da vontade geral, é o representante de tal vontade. Porém, é importante elucidar que Rousseau não determina a forma de governo de seu pensamento, mas compreende sua grande diversidade.
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A superação do estado orgânico pelo estado mecânico é o processo de desenvolvimento do próprio estado moderno. Com isso, consideramos em nossa pesquisa que o nascimento do estado moderno não se limita à qualidade de resultado, mas exige que seja entendido como processo histórico ladeado por muitas determinações. Dentre os fatores que agem na formação dos processos históricos, destacamos neste artigo a participação da ciência política bem como da filosofia do direito para construirmos, mesmo que numa propedêutica, um mapa conceitual do desenvolvimento do estado moderno a partir do conceito de soberania às reflexões dos contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau.
O estado moderno nasce em meio à transição da idade média com a modernidade, em que a premissa central dos movimentos daquela época destaca a emancipação religiosa. Com isso, o estado moderno passa a ser pensado a partir de conceitos fundamentais, abandonando a intervenção teocêntrica que subsidiou como o próprio estado foi pensado.
Desse modo, fizemos um percurso no primeiro capítulo para abordarmos como o conceito de soberania era fundamental para posteriormente investigarmos como esse estado moderno adquire um caráter mecânico. É nesse momento que, com base nos conceitos fundamentais construídos no renascimento e das contribuições de Bodin, o estado se desenvolve agora através das contribuições dos filósofos contratualistas. Portanto, consideramos com isso que a forma do estado na modernidade se moldou no seu processo histórico assim como foi pensado e, consequentemente, constituiu-se como composto do modo como a mentalidade moderna foi se desenvolvendo a partir de suas próprias contradições.
5.REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
AQUINO, Tomás de. Quaestiones Disputatae de Veritate: de varitate, q 1a. 3 co. Tradução de Roberto Busa, SJ. Disponível em: https://www.corpusthomisticum.org/qdv01.html#51615. Acesso em 30 ago 2022.
ARISTÓTELES. Política. Tradução de Antônio Campelo Amaral e Carlo Gomes. Vega, 1998. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/357991/mod_resource/content/1/Aristoteles_Pol%C3%ADtica%20%28VEGA%29.pdf. Acesso em: 08 set. 2022.
BODIN, Jean. Os seis livros da República. Tradução de José Carlos Mendes Neto. São Paulo: ÍCONE EDITORA, 2011.
CHEVALLIER, Jean Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Trad. Lydia Christina. 6ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1993.
HIPONA, Agostinho. Contra Faustum Manichaeum libri triginta tres. In col.: “S. Aurelii Augustini Opera Omnia”, Patrologia Latina 42. Disponível em: http://www.augustinus.it/latino/contro_fausto/index2.htm. Acesso em 30 ago 2022.
HOBBES, Thomas. O leviatã. São Paulo: Nova Cultura, 1999.
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Tradução de Renato Janine. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Nova Cultura, 2000.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental: a filosofia moderna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política. 14ª ed. São Paulo: Ática, 2006.
[1] A iluminação divina, amplamente estudada dentro dos textos de Agostinho de Hipona, é abordada aqui à luz da sua concepção epistemológica enquanto iluminação divina na racionalidade humana. Essa concepção ficou marcada nos estudos do conhecimento na patrística e aqui de maneira distinta na obra agostiniana, numa espécie de ação divina na razão para concepção das Verdades divinas.
[2] A concepção da verdade enquanto adequatio intellectus et rei destaca o aspecto relacional da verdade à coisa. Para compreendermos como Tomás de Aquino entende essa relação é importante considerarmos um processo assimilatório do intelecto em que o conhecimento resulta na verdade do intelecto. Esse processo se desenvolve quando a coisa é tomada como condição de que haja uma espécie de conformação entre o próprio intelecto, mencionado anteriormente, e a coisa.
[3] O regime feudal é a forma de organização social iniciada no período da decadência do império romano, em que é caracterizado pela troca de serviço, e agora, no regime feudal, os camponeses trabalham nas terras do dono da terra na troca por um recanto para se instalarem e produzirem os meios de sobrevivência. Essa forma de vida na idade média não deve ser compreendida apenas como resultado, mas como processo de como as formas de vida agora se mantinham pelo modo de acumulação de riqueza, em que nesse período a renda era garantida pelo uso da terra.
[4] O caráter mecânico é uma característica do Estado no curso de sua estruturação. As relações sociais deixam de ser formatadas pela troca como garantia de subsistência orgânica pela efetivação de direitos do estado de natureza numa estrutura regida pela soberania. Esse evento não se limita a um mero resultado na concepção de progresso da história, mas é explicada pela forma de acumulação de riqueza que influência na mutação da própria organização do Estado. Essa nova forma de riqueza deixa o campo como fonte de renda e se desenvolve no comércio, gerando um caráter mecânico das relações sociais e políticas.
[5] A vontade geral em Rousseau se refere não à de todos ou da maioria, mas a que é interpretada a partir da vontade emanada da soberania pelo corpo político acerca dos interesses que atingem as pessoas de forma homogênea. Fundada na procura pelo bem comum, a vontade geral é a expressão de que o seres humanos são seus próprios senhores, bem como de seus direitos.
Possui graduação em Licenciatura plena em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras - FAFIC (2018). Mestre em Filosofia através Programa de Pós-graduação (mestrado) em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Atualmente cursando especialização em Tutoria Em Educação A Distância pela Faculdade Sucesso - FACSU. Pesquisou desde o trabalho de conclusão de curso da graduação a filosofia de Friedrich Nietzsche, analisando como no escopo de sua filosofia está disposto os principais conceitos que norteiam tanto a sua crítica à moral quanto aspectos que ensejam um pensamento hermenêutico. No curso de mestrado investigou a filosofia de Nietzsche com ênfase no niilismo, intitulado "O niilismo e a sua superação para uma transvaloração dos valores em Friedrich Nietzsche"; em que, no exame da tese nietzschiana de superação do niilismo, a investigação tomou essa superação como parte do processo de afirmação da vida.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Mateus da Silva. Uma análise do nascimento do estado moderno e seu desenvolvimento a partir dos contratualistas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 nov 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60076/uma-anlise-do-nascimento-do-estado-moderno-e-seu-desenvolvimento-a-partir-dos-contratualistas. Acesso em: 22 nov 2024.
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