GUILHERME AUGUSTO MARTINS SANTOS[1]
(orientador)
RESUMO: Com o crescimento tecnológico cada vez mais acelerado em nosso cotidiano, diversos conteúdos foram criados no ambiente virtual, conteúdos que formam um vasto acervo digital de uma pessoa, com natureza sentimental e até mesmo financeira. Esses bens intangíveis são relevantes não apenas para o seu proprietário durante sua vida, como também para os seus familiares após a abertura da sucessão, visto que compõem o patrimônio digital do de cujus. Verifica-se que o ordenamento jurídico brasileiro não estava preparado para toda essa evolução tecnológica e os bens que dela advém, dessa forma, existe um vácuo normativo a respeito do tema. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo conceituar herança digital, demonstrar os seus reflexos na sociedade e ainda, apresentar alternativas para suprimir a lacuna legislativa. Será demostrado, utilizando o método da pesquisa bibliográfica, como se dá o direito de sucessão da herança digital ante a falta de legislação regulamentadora no Brasil, e ainda, quais os limites da sucessão frente aos direitos da personalidade póstuma.
Palavras-chave: herança; lacuna legislativa; limites da sucessão; patrimônio digital.
INTRODUÇÃO
As diversas Revoluções Industriais trouxeram consigo o desenvolvimento da informática, telecomunicações e robótica. A alta tecnologia possibilitou a criação e aperfeiçoamento de softwares e aparelhos eletrônicos como o computador e o celular, dispositivos que estão arraigados no cotidiano da população sendo impossível imaginar a vida sem o uso da internet e suas ferramentas.
Os aparelhos eletrônicos, que a cada dia são mais otimizados, possibilitam o acúmulo de informações no ambiente virtual. O acervo digital de uma pessoa é composto por e-mails, fotografias, perfis em redes sociais, moedas virtuais, contatos e outros bens intangíveis que possuem valoração sentimental e até mesmo financeira.
Toda essa evolução tecnológica e os bens que dela advém não foram previstos pelo legislador. Não há no Código Civil, na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) ou ainda, na Lei do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) regras sobre o tratamento desses bens, principalmente após a morte de seu proprietário.
Apesar de fazerem parte do cotidiano de toda a população, a sociedade ainda não entendeu que o conteúdo presente no ambiente digital faz parte do seu patrimônio e que esses bens geram consequências jurídicas após o falecimento do seu titular. Grande parte da população não sabe ainda que há um vácuo normativo sobre o tema.
Diante desse cenário de ausência de informações e legislação específica sobre os bens virtuais, mostra-se relevante conceituar a herança digital e apresentar os seus reflexos na sociedade. Será apontado o principal tópico de debates nos tribunais a respeito do tema, e ainda, apresentado como se dá o direito de sucessão da herança digital ante a falta de legislação regulamentadora no Brasil.
Utilizou-se nesse trabalho os ensinamentos de Maria Helena Diniz, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho e outros doutrinadores do direito sucessório. Por meio da pesquisa bibliográfica, com o estudo voltado a livros, artigos científicos e jurisprudências busca-se responder o seguinte questionamento: quais os limites da sucessão da herança digital frente aos direitos da personalidade?
A pesquisa está dividida em três capítulos. No primeiro será realizada uma abordagem a respeito da herança digital e dos bens que a compõem, apresentando as suas classificações e particularidades. O segundo capítulo destacará sobre os direitos da personalidade, em especial ao da pessoa falecida, bem como será demonstrado como se dá a sucessão do patrimônio digital no Brasil.
Por fim, o terceiro capítulo apontará alternativa provisória capaz de resguardar os herdeiros e o de cujus em relação a herança digital, enquanto perdurar a ausência de lei regulamentando a matéria, e ainda, será demonstrado a tentativa para regulamentar a matéria e os empecilhos para a sua ocorrência.
1. HERANÇA DIGITAL
Nas últimas décadas, em decorrência dos avanços tecnológicos e da alta conectividade das pessoas aos meios de comunicação, diversos bens se formaram no ambiente virtual. Apesar de compor a herança de uma pessoa, esses bens intangíveis são objetos de debates nos tribunais e se apresentam como um desafio para o direito sucessório, como veremos a seguir.
A Constituição Federal aborda o direito à herança como um tópico dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, XXX). Por sua vez, o Código Civil disciplina a herança como um conjunto de bens, direitos e obrigações que um titular deixa aos seus sucessores após o seu falecimento. Regulamenta ainda, em seu artigo 1.791, que “a herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros”.
Nos ensinamentos da advogada e professora Maria Helena Diniz a herança é o conjunto de bens, direitos e deveres do de cujus que serão transmitidos aos seus herdeiros, salvo se os direitos em questão forem inerentes à pessoa falecida (DINIZ, 2012).
Pelo Princípio da Saisine, com a morte de uma pessoa, há a transferência imediata dos seus bens aos seus sucessores, assim, não existe direito sem o seu respectivo titular. A herança deve ser transmitida como um todo, integralmente e imediatamente aos herdeiros.
Entretanto, diante do acelerado desenvolvimento tecnológico, diversos bens e direitos existentes no ambiente virtual não foram previstos pelo legislador, assim, não estão completamente amparados pelo ordenamento jurídico brasileiro atual e não são transmitidos em sua totalidade aos seus respectivos sucessores.
No espaço virtual, compreendidos como ativos digitais, encontram-se vídeos, fotos, jogos, músicas, moedas virtuais, milhas aéreas, e-books, perfis em redes sociais, entre outros. Após o falecimento do seu titular, o conjunto desses bens forma a chamada herança virtual/digital.
Vários são os conceitos sobre a herança digital e os bens que a compõem, dessa forma explica Lara:
“Bens digitais são instruções traduzidas em linguagem binária que podem ser processadas em dispositivos eletrônicos, tais como fotos, músicas, filmes, etc, ou seja, quaisquer informações que podem ser armazenadas em bytes nos diversos aparelhos como computadores, celulares e tablets.” (LARA, 2016).
Por sua vez conceitua Emerenciano:
“Os bens digitais constituem conjuntos organizados de instruções, na forma de linguagem de sobre nível, armazenados em forma digital, podendo ser interpretados por computadores e por outros dispositivos assemelhados que produzam funcionalidades predeterminadas.” (EMERENCIANO, 2003, p. 78).
Nesse viés, a herança digital pode ser compreendida como um conteúdo patrimonial intangível, formado por ativos digitais com valoração econômica e sentimental, deixado pelo de cujus no meio digital.
Diante do vácuo normativo existente no Código Civil, na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e na Lei do Marco Civil da Internet, ainda permanece a falta de previsão clara no ordenamento jurídico quanto à herança digital. A falta de regulamentação sobre a matéria não pode impedir que os herdeiros tenham acesso aos bens existentes no ambiente virtual, pois como dito, a herança é um direito fundamental.
A ausência de norma específica gera ainda o aumento de demandas no poder judiciário, cabendo ao magistrado avaliar quais bens são passíveis de transmissão sucessória, visto que vários bens que compõe a herança digital não possuem o caráter patrimonial.
1.1 Classificação dos bens digitais
Em virtude do fácil acesso às ferramentas tecnológicas os bens digitais são cada vez mais comuns e utilizados em nosso cotidiano. O ciberespaço, compreendido como "espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores" (LÉVY, 1999, p. 92) permite o acúmulo destes bens.
Seja no próprio aparelho eletrônico, em nuvem ou em dispositivos removíveis (como pen-drive), o patrimônio digital presente no ciberespaço mostra-se relevante não só para o seu proprietário durante a vida e para os seus familiares após a abertura da sucessão, como também para a construção de elementos que evidenciam a identidade cultural, local e temporal de toda sociedade.
Diante de suas variadas características o patrimônio digital pode ser dividido em categorias, de acordo com as suas funções essenciais: bens relacionados a dados pessoais, dados de contas financeiras, dados de contas empresariais e dados de redes sociais. Além desta classificação, o conteúdo digital pode ser compreendido como bens suscetíveis ou não suscetíveis de valoração econômica.
Moedas virtuais, milhas aéreas, jogos on-line, contas em redes e plataformas sociais utilizadas para obtenção de lucros, entre outros, são ativos digitais que possuem valoração econômica, e assim, compõe o patrimônio do de cujus. Diante desta característica esses bens devem ser passíveis de transmissão sucessória.
Disciplina Lucas Garcia Cadamuro que os bens digitais de caráter financeiro devem ser inventariados juntamente aos bens corpóreos da pessoa falecida, visto que o ordenamento jurídico não proibiu a transmissão desse patrimônio (CADAMURO, 2019).
Por sua vez, fotos, e-mails, músicas, vídeos, contatos, sites em aplicativos de namoro, senhas, blogs, arquivos de texto, livros on-line, são exemplos de bens que não possuem uma valoração financeira, mas sim emocional/afetiva. Ante a ausência de valor econômico esses ativos digitais geram dúvidas sobre sua destinação após a morte do seu proprietário.
Nas palavras de Sílvio de Salvo Venosa: “Os direitos e deveres meramente pessoais […], extinguem-se com a morte, assim como os direitos personalíssimos” (VENOSA, 2020, p. 549). Torna-se importante ressaltar que apesar de, a princípio, não possuírem valor econômico, é possível que esses ativos digitais possam adquirir essa característica com o passar do tempo (LIMA, 2013).
Conforme mencionado anteriormente, diante da ausência de regulamentação sobre a matéria no ordenamento jurídico, atualmente, para que os herdeiros tenham acesso às informações constantes no acervo digital do falecido – que não manifestou em vida a sua vontade em relação à herança digital – faz-se necessário acionar o poder judiciário.
Mas por que em pleno século XXI não há nenhuma norma regulamentando a herança digital? Por que não se transmite de forma imediata aos herdeiros os bens sem caráter financeiro? A justificativa para a omissão legislativa sobre o tema se dá pelo confronto direto existente entre o direito dos sucessores em herdar os bens virtuais e os direitos de personalidade da pessoa falecida.
2. DIREITOS DA PERSONALIDADE E A SUA PROTEÇÃO PÓSTUMA
O nosso ordenamento jurídico tem como função primordial a proteção da pessoa humana, assim, os direitos da personalidade visam zelar pelos direitos do homem, especialmente aos ligados a sua integridade. O bem-estar do homem é tão importante que a tutela jurídica dos seus direitos tem natureza constitucional, civil e ainda, penal.
Os diretos da personalidade são genericamente tutelados no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil. O Código Civil, por sua vez, estabelece em seu artigo 1° que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.”, e por essa razão, ensina Tepedino (2020) que todas as pessoas possuem aptidão para a realização das relações jurídicas.
O artigo 2° do Código Civil estabelece que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Iniciado com o nascimento com vida, há o entendimento doutrinário de que o fim da personalidade civil dar-se com a morte da pessoa, seja ela real ou presumida, assim, leciona Pontes de Miranda: “com a morte termina a capacidade de direito, a personalidade.” (MIRANDA, 2000, p. 282).
Os direitos da personalidade são direitos essenciais ligados à integridade, dignidade e individualidade de cada pessoa. Apesar de doutrinalmente serem divididos em direitos à integridade física, psíquica e moral, não se apresentam em rol taxativo.
Roxana Cardoso B. Borges (2007, p. 25) afirma que os direitos da personalidade “são direitos em expansão. Com a evolução legislativa e com o desenvolvimento do conhecimento científico acerca do direito, vão-se revelando novas situações que exigem proteção jurídica e, consequentemente, novos direitos vão sendo reconhecidos […]” (BORGES, 2007, p. 25).
O Código Civil estabelece ainda que os direitos da personalidade têm como características o fato de serem absolutos, intransmissíveis, inalienáveis, irrenunciáveis e que não podem sofrer limitação voluntária, salvo nos casos previstos em lei. Outra característica é a sua vitaliciedade.
Apesar de serem inerentes à própria pessoa e acompanhar o homem por toda a sua vida, alguns direitos podem ser tutelados após a morte do seu titular, como “o respeito ao morto, à sua honra ou memória e ao seu direito moral de autor” (GONÇALVES, 2015, p. 192).
O Código Civil garante a tutela dos direitos da personalidade do falecido ao cônjuge sobrevivente, qualquer parente em linha reta ou colateral até o quarto grau (irmão, tio, sobrinho e primo), conforme dispõe o seu artigo 12, parágrafo único:
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Frisa-se que não se trata de transferência dos direitos da personalidade aos familiares, mas sim da concessão da legitimidade no âmbito jurídico para a defesa dos direitos lesados do falecido. Ensina Maria Helena Diniz que esses direitos “nascem e se extinguem ope legis com seu titular, por serem dele inseparáveis. Deveras, ninguém pode usufruir em nome de outra pessoa bens como a vida, a liberdade, a honra etc.” (DINIZ, 2005, p. 122 – 123).
Verifica-se que a proteção da personalidade jurídica póstuma está intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, princípio máximo e pilar do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CRFB/88), que visa resguardar a moralidade e honra do homem, zelando pela integridade de cada pessoa.
Diante desse entendimento que o ser humano, mesmo após a morte, possui direitos que devem ser protegidos e que podem ser tutelados por seus parentes, torna-se necessário sanar nos próximos tópicos deste trabalho o seguinte questionamento: qual direito da personalidade impede a imediata transmissão dos bens constantes na herança digital aos herdeiros do de cujus?
2.1. Do direito à privacidade post mortem
Com o advento da revolução industrial e do uso das tecnologias no cotidiano da população o direito sucessório tornou-se complexo. Como dito anteriormente, a transferência de todos os bens do acervo digital do falecido não ocorre de forma imediata e integral, visto que o direito à herança digital esbarra na proteção dos direitos da personalidade póstuma.
Dentro dos direitos da personalidade que protegem o homem após a sua morte é importante falar do direito à privacidade. Gagliano e Pamplona Filho explica que privacidade refere-se às informações particulares da pessoa natural, sendo uma das manifestações da intimidade (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2020).
A Constituição Federal estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5°, X, CRFB/88). O Código Civil, no seu artigo 21, regulamenta que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Diante dessas exposições, entende-se que permitir o acesso dos herdeiros a herança digital sem valoração financeira violaria o direito à privacidade do de cujus. Ressalta-se que a transferência do patrimônio digital pode vir a ofender a privacidade da pessoa falecida e até mesmo a privacidade de terceiros.
O Estado, ao zelar pela dignidade da pessoa humana, entende ser prejudicial à transmissão desses bens sem a anuência de seu titular. A ausência de um testamento estabelecendo os desejos sobre a transferência dos bens digitais de caráter sentimental impede a transmissão desse patrimônio.
Por essas razões, enquanto não existir legislação específica regulamentando a matéria ou mesmo precedente judicial obrigatório, as dificuldades enfrentadas pelos sucessores ao acesso à herança digital continuará sendo resolvida no judiciário pelo magistrado.
2.2. Casos reais envolvendo o judiciário e a herança digital
Nesse tópico, a fim de demonstrar as dificuldades encontradas pelos familiares para o acesso as informações deixadas no ambiente virtual pelo de cujus, encontram-se alguns casos reais envolvendo o pedido de acesso e transferência dos bens da herança digital no poder judiciário:
Dolores Pereira Ribeiro, mãe de Juliana Ribeiro – falecida no ano de 2012 após complicações por conta de um exame de endoscopia – ingressou com uma ação no intuito de excluir a conta da filha da plataforma Facebook, visto que não conseguiu fazer por meio das ferramentas do próprio site.
Explica Dolores que o desejo de excluir a conta da filha se deu pelo Facebook ter virado “um muro de lamentações”. Narra que ver o perfil de Juliana é muito doloroso para a família. Nesse caso, a juíza responsável pela lide decidiu em caráter liminar pelo cancelamento do perfil, com multa de R$ 500 reais por dia em caso de descumprimento (QUEIROZ, 2013, online).
Em sentido semelhante, em São Paulo, um pai ingressou na justiça para ter acesso aos arquivos salvos na nuvem no celular de seu filho falecido. Apesar de ser bens de caráter sentimental, o magistrado da causa julgou procedente o pedido. (FUCCIA, 2022, online).
Por sua vez, Lívia Gomes Lino ingressou com uma ação para ter acesso ao telefone do pai falecido em razão do vírus da COVID-19 (PIMENTEL, 2021, online). Nas palavras de Lívia:
"Entrei em contato com a Motorola diversas vezes, mas ficavam passando a ligação de setor em setor e não resolviam. Decidi entrar com a ação e o juiz já foi favorável a mim, [...] Disseram que não têm acesso às senhas dos usuários, pois é algo extremamente confidencial, mas num caso de morte as providências deveriam ser diferentes. Tem valor sentimental no que está ali e faço questão de guardar essas lembranças comigo”.
Com base nesses casos verifica-se não haver um consenso sobre a liberação do acesso aos bens virtuais deixados pelo falecido. A procedência ou não do pedido/ação fica a critério do magistrado, que deverá balancear o direito à privacidade e o de herança, estabelecendo limites para o seu acesso.
O questionamento que surge e que ainda carece de resposta refere-se a quais seriam os limites para a transferência da herança digital frente a proteção dos direitos da personalidade póstuma. Diante dessas considerações, que pode ser feito para evitar transtornos e dificuldade futuros relacionados aos bens virtuais?
3. NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE A HERANÇA DIGITAL
As transformações sociais dos últimos anos, com a inserção das inovações tecnológicas no cotidiano das pessoas, fizeram surgir novas categorias de bens patrimoniais, a exemplo dos bens virtuais. Nesse ponto, está claro que o acúmulo dos bens virtuais forma a herança digital, que a depender de suas características não são transmitidas integralmente aos herdeiros.
Em razão da falta de informação, grande parte da população brasileira desconhece que o ordenamento pátrio ainda não regulamentou sobre a herança digital. É possível dizer ainda que poucas pessoas sabem de fato o que é a herança digital e as dificuldades para a total transmissão desse patrimônio.
Diante desse cenário de obscurantismo, a fim de que a sucessão dos bens virtuais se efetive de forma imediata e sem conflitos, torna-se fundamental discorrer sobre a importância de se fazer um planejamento sucessório, na qual o indivíduo registrará a sua vontade em relação à destinação dos seus bens virtuais.
Gagliano e Pamplona Filho (2016, p. 404) ensinam que “consiste o planejamento sucessório em um conjunto de atos que visa a operar a transferência e a manutenção organizada e estável do patrimônio do disponente em favor dos seus sucessores”. Por sua vez, Teixeira (2018, p. 35) explica o planejamento sucessório como sendo “o instrumento jurídico que permite a adoção de uma estratégia voltada para a transferência eficaz e eficiente do patrimônio de uma pessoa após a sua morte”.
Diante da era digital, este planejamento não é indicado apenas para as pessoas idosas, enfermas ou aquelas que possuem um grande patrimônio financeiro acumulado, mas para toda a sociedade, visto que todas as pessoas usam ferramentas tecnológicas e consequentemente possuem vários ativos digitais acumulados.
Dentro das inúmeras formas de realizar um planejamento sucessório, em relação à herança digital destaca-se o testamento, diante de suas características. No tópico a seguir discutiremos as vantagens do testamento como medida alternativa para resguardar a transmissão dos patrimônios digitais.
3.1. Testamento como medida alternativa
O patrimônio digital pode ser dividido em bens com valoração econômica – que são passíveis de transmissão sucessória – e bens sem valoração econômica – aqueles que não possuem destinação estabelecida. Diante da ausência de regulamentação sobre o tema, a fim de evitar futuros transtornos, devemos buscar alternativas aptas para a proteção deste patrimônio, e como exemplo de ferramenta tem-se o testamento.
Nas palavras de Maria Helena Diniz o testamento "é o ato personalíssimo e revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, não só dispõe, para depois da morte, no todo ou em parte, do seu patrimônio, mas também faz outras estipulações" (DINIZ, 2011, p.175). Por sua vez, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona comentam que:
“[…] testamento, portanto, nada mais é do que um negócio jurídico, pelo qual alguém, unilateralmente, declara a sua vontade, segundo pressupostos de existência, validade e eficácia, com o propósito de dispor, no todo ou em parte, dos seus bens, bem como determinar diligências de caráter não patrimonial, para depois de sua morte.” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2020, p. 258).
Diante desses ensinamentos, é possível verificar que o testamento é um ato solene, gratuito, personalíssimo, unilateral, revogável a qualquer tempo, podendo o testador estabelecer diligências de caráter patrimonial ou extrapatrimonial para serem observados após o seu falecimento.
O Código Civil estabelece em seu artigo 1.862, incisos I, II e III que o testamento possui 03 modalidades distintas, quais sejam: testamento público, cerrado/fechado e o particular. O primeiro refere-se aquele realizado em cartório (tabelionato de notas), na presença do tabelião e 02 testemunhas, onde o conteúdo do documento é lido para os presentes.
O segundo, assim como o testamento público, necessita ser realizado no tabelionato de notas com a presença de 02 testemunhas, todavia, documento é guardado em um envelope, sem que ninguém além do testador saiba do seu teor. Tal testamento somente é aberto após a morte do seu titular, por um juiz, na frente dos respectivos herdeiros.
Por sua vez, o testamento particular é aquele realizado sem a participação do tabelião. Necessita ser assinado por 03 testemunhas e entregue a alguém de confiança do testador. É a modalidade de testamento menos segura, pois ante a ausência de registro público tal documento pode se perder até a abertura da sucessão.
O Código Civil estabelece ainda em seu artigo 1.789 que “havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança”, apesar desta regulamentação, a importância do testamento para a herança digital diz respeito aos bens sem valoração financeira, visto que são eles que não possuem destinação estabelecida e que são objetos de conflitos e debates nos tribunais.
Dessa forma, independente de qual modalidade, o testamento possibilita que o testador informe a sua vontade em relação aos seus bens existentes no ambiente virtual. É possível estabelecer o que fazer com as contas em redes sociais e aplicativos (apagar ou manter), permitir o acesso aos e-mails, contatos, arquivos, fotos, e ainda, determinar exatamente quais pessoas podem acessar os diferentes conteúdos.
O testamento permite que a vontade do falecido permaneça, impedindo que um ente tenha acesso a um conteúdo que o titular não gostaria de compartilhar (prevalecendo o respeito à privacidade), e ainda, permite a transmissão dos bens sem a necessidade dos familiares ingressarem no judiciário.
Entretanto, conforme mencionado, poucas pessoas sabem o que é herança digital e como ocorre a sua transmissão, sendo o testamento um instrumento pouco utilizado e permanecendo o patrimônio digital objeto de disputas judiciais.
3.2. Breves considerações acerca da tentativa de regulamentar a matéria
A era digital trouxe consigo ferramentas que auxiliam as atividades do cotidiano de toda a população, facilitando a comunicação, aumentando a produtividade laboral, dissipando conhecimentos, entre outros benefícios. A evolução tecnológica cresce de forma veloz, contudo, a legislação não consegue acompanhar todas as inovações nas relações humanas.
Com o intuito de evitar o aumento das demandas judiciais, diversas vezes o legislador tentou regulamentar sobre a herança digital. Atualmente, como exemplo, tem-se o Projeto de Lei nº 6.468/2019 que tem como objetivo acrescentar ao Código Civil artigos que regulamentam sobre a sucessão dos bens e contas digitais do autor da herança.
Há ainda o Projeto de Lei nº. 1.689/2021, que tem como intuito alterar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) para dispor sobre perfis, páginas, contas, publicações e os dados pessoais de pessoa falecida, incluindo seu tratamento por testamentos e codicilos.
Não se sabe se estas medidas, caso sejam aprovadas, serão suficientes para preencher o vácuo normativo existente, pois como dito, a evolução tecnológica cresce todos os dias, todavia, a intenção do legislador é estabelecer normas aos bens digitais que já são bastante comuns na atualidade, e nesse sentido afirma Pinheiro (2013, p. 77):
“A velocidade das transformações é uma barreira à legislação sobre o assunto. Pois qualquer lei que venha a tratar de novos institutos jurídicos deve ser genérica o suficiente para sobreviver ao tempo e flexível para atender aos diversos formatos que podem surgir de um único assunto”.
Ainda sobre a temática, ensina Lara (2016):
“No tocante à herança digital, será necessária uma lei específica para regrar diretamente o tema, seguindo os princípios traçados pela Constituição Federal e pelo Marco Civil da Internet, mas acrescentando dispositivos legais no Código Civil, de forma que o cidadão brasileiro tenha o seu direito à herança de bens digitais explicitados na lei e dessa maneira plenamente assegurados.”
Frisa-se que outros projetos de leis foram elaborados, tal como o PL nº. 7.742/2017, que tinha como intuito acrescentar à Lei do Marco Civil da Internet um artigo para regulamentar sobre a destinação de contas de aplicativos do titular após sua morte, e o PL nº. 8.562/2017 que objetivava acrescentar no Código Civil normas a respeito da herança digital.
Entretanto, tais projetos não foram aprovados e encontram-se arquivados, diante do conflito já mencionado anteriormente: o direito em herdar em confronto com o direito a privacidade póstuma. Diante dessas informações, o testamento mostra-se, provisoriamente, como uma ferramenta necessária para a proteção da herança digital, já que não há previsão para a regulamentação da matéria em definitivo.
CONCLUSÃO
Por meio da pesquisa foi possível constatar que os bens virtuais com valoração financeira compõem a herança de uma pessoa, sendo transmitidos junto com os bens corpóreos do falecido. Por sua vez, os bens sentimentais/afetivos, como fotos e e-mails, apresentam obstáculos em sua sucessão, não sendo transmitidos de forma imediata e integral aos herdeiros.
Foi observado também que a ausência de manifestação prévia do de cujus sobre a destinação dos seus ativos digitais abre margens para conflitos no poder judiciário, cabendo ao magistrado decidir sobre a transferência ou não da herança digital.
Não há consenso sobre a liberação do acesso dos bens virtuais aos herdeiros, tampouco há estabelecido quais os limites para a transmissão dos bens sem valoração econômica, dessa forma, o acesso a herança digital encontra-se nas mãos do magistrado, que estabelece quais bens podem ser transmitidos aos herdeiros, visando respeitar o direito a privacidade post mortem.
Diante das constantes mudanças que o meio digital sofre, a criação de norma para regulamentar a matéria aparenta-se inviável. Entende-se que uma norma não conseguiria acompanhar os novos bens e direitos virtuais que surgem todos os dias. Apesar disso, o legislador tenta, por meio de projetos de lei, regulamentar os bens que são comuns na atualidade, a fim de trazer mais proteção à família e ao falecido.
Enquanto o vácuo normativo permanece, torna-se importante que cada pessoa busque alternativas capazes de suprimir essa ausência de lei, evitando eventuais conflitos que possam surgir a respeito da herança digital.
De modo a apontar uma provisória alternativa para a questão, o testamento se apresenta como uma ferramenta apta e eficiente, capaz de diminuir o aumento de demandas no poder judiciário, reguardar os direitos de sucessão da família, e ainda, estabelecer a vontade do titular sobre a destinação dos seus bens digitais.
Independentemente de qual modalidade de testamento o respeito a vontade do falecido é resguardado, os limites para a transmissão da herança digital são estabelecidos pelo próprio titular dos bens e a privacidade do de cujus e de terceiros não é violada.
Por último, destaca-se ser importante que a sociedade fique atenta as inovações tecnológicas e mudanças jurídicas que elas trazem consigo. É notório que poucas pessoas conhecem a herança digital e a ausência de lei a respeito do tema, e como dito, o legislador não consegue acompanhar toda evolução tecnológica. Cabe ao homem buscar alternativas para resguardar os seus direitos.
REFERÊNCIAS
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[1] Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Professor de Direito da Faculdade Serra do Carmo. Advogado.
Graduanda do curso de Direito na Faculdade Serra do Carmo – FASEC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHEIRO, Ivana Maria Rocha. Herança digital: o direito de sucessão dos herdeiros em face a legislação brasileira atual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 nov 2022, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60118/herana-digital-o-direito-de-sucesso-dos-herdeiros-em-face-a-legislao-brasileira-atual. Acesso em: 22 nov 2024.
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