LUCIMARA ANDREIA MOREIRA RADDATZ
(orientadora)
RESUMO: O avanço tecnológico na sociedade permitiu que muitas atividades do cotidiano se moldassem ao processo evolutivo que a internet trouxe, havendo cada vez maios aquisições sendo feitas nos ambientes virtuais de comércios, conhecidos popularmente como e-commerces, e existe uma gama extensa de bens e serviços sendo ofertados para serem usufruídos digitalmente. Nesse sentido, as relações estabelecidas entre fornecedor e consumidor são alvos diários de estudos, uma vez que a legislação responsável por reger a relação de consumo pode, por vezes, encontrar-se um tanto quanto obsoleta, visto que o consumo de bens, serviços e conteúdos digitais é consideravelmente recente, em face do Código de Defesa do Consumidor, ou CDC, diploma legal de 1990 que passou por atualizações pontuais em 2013. O CDC assegura que o consumidor que realiza compras de qualquer natureza na internet possui 7 dias para exercer o chamado direito de arrependimento, ou direito de reflexão. Sob esse prisma, investiga-se no presente trabalho a aplicação do direito de arrependimento na aquisição de produtos digitais, ponderando principalmente sobre a eficácia da norma em vigência.
Palavras-chaves: Consumidor. Direito. Arrependimento. Fornecedor. Virtual.
ABSTRACT: Technological advances in society have allowed many daily activities to be shaped by the evolutionary process that internet has brought, with more and more acquisitions being made in virtual environments of commerce, popularly known as e-commerces, and there is an extensive range of assets and services being offered to be enjoyed digitally. In this regard, the relationships established between provider and consumer are daily targets of studies, since the legislation responsible for shield the consumption relationship can sometimes be somewhat obsolete, since the consumption of assets, services and digital content is considerably recent, in the light of the Consumer Defense Code, or CDC, a legal diploma from 1990 that underwent occasional updates in 2013. The CDC ensures that consumers who make purchases of any kind on the internet have 7 days to exercise their called the right of repentance, or the right of reflection. In this light, the present work investigates the application of the right of repentance in the acquisition of digital products, pondering mainly on the effectiveness of the norm in force.
Key-words: Consumer. Right. Retraction. Provider. Virtual.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 DIREITO DO CONSUMIDOR E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA. 2.1 As relações de consumo frente ao direito brasileiro. 2.2 A relação consumerista na contemporaneidade. 3 DIREITO DE ARREPENDIMENTO ENVOLVENDO A COMPRA DE PRODUTOS DIGITAIS. 4 A PROTEÇÃO LEGAL AO CONSUMIDOR NA COMPRA DE PRODUTOS DIGITAIS NO BRASIL. 5 TENDÊNCIAS DO POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
A evolução da internet conjuntamente à sua integração em praticamente todas as áreas da sociedade propicia que novas situações surjam e requeiram análise de casos concretos do dia a dia. Atualmente, pode-se afirmar que grande parte da população mundial se valeu da internet para efetuar alguma aquisição, fortalecendo os chamados e-commerces, ou seja, os comércios virtuais.
Essas transações, ainda que realizadas no ambiente virtual, asseguram que o consumidor se encontre resguardado pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC, previsto no diploma constitucional, através do art. 5º, inciso XXXII.
O CDC, Lei n.º 8.078/90, foi publicado em 1990 e atualizado em 2013, por meio do Decreto n.º 7.962/13, e mesmo assim, o crescimento do comércio eletrônico e das relações virtuais entre empresas e consumidores pode não ter sido acompanhado corretamente pela legislação, uma vez que as dinâmicas comerciais na internet estão em constante mudança.
Em pesquisa realizada pelo Paypal, uma das maiores plataformas mediadoras de vendas no mundo, foi constatado que o Brasil teve um aumento de 40% (quarenta por cento) no número de lojas funcionando no modelo e-commerce apenas no ano de 2020, o que demonstra o crescimento exponencial do mercado, aponta Feitosa (2020).
Ocorre que uma legislação desatualizada pode causar os mais diversos prejuízos para as empresas fornecedoras e também para os consumidores, além de contribuir para o aumento do número de processos no Poder Judiciário, que teve no ano de 2020 o direito do consumidor como quarto assunto mais tratado em novos casos judiciais, de acordo com informações divulgadas pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ através da pesquisa Justiça em Números (BRASIL, 2020).
Neste trabalho, o foco será o estudo do direito de arrependimento, presente no artigo 49 do CDC, aplicado especificamente aos produtos considerados digitais ou intangíveis, como serviços de streaming, jogos e moedas virtuais, que representam hoje uma considerável parte das vendas realizadas online, em busca da resposta para o questionamento acerca da eficácia do direito de arrependimento presente no CDC, visto que o dispositivo pode não atender às demandas relacionadas a compras de produtos e serviços digitais.
O presente trabalho abordou a evolução histórica do direito do consumidor, prosseguindo às relações consumeristas na atualidade. Posteriormente, elucida-se a proteção legal ao consumidor na compra de produtos digitais no Brasil, passando à exposição do direito de arrependimento quando o produto é de caráter digital, findando a linha argumentativa com a demonstração do padrão jurisdicional em ações de proteção do consumidor.
A relevância do trabalho se pauta na divulgação da análise quanto ao direito de arrependimento na compra de produtos e serviços digitais, uma vez que o mercado ascende cada dia mais e as alterações legislativas ainda não fazem previsão expressa sobre a matéria.
A pesquisa possui caráter descritivo, realizada através de exame de bibliografia específica. A abordagem utilizada foi a qualitativa, visto que não possui a quantificação de dados estatísticos, mas vale-se da exposição de conceitos.
2 DIREITO DO CONSUMIDOR E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Primordialmente, faz-se necessário um escorço histórico do direito consumerista, com o fito de assimilar de forma mais eficaz o tema do presente trabalho.
2.1 As relações de consumo frente ao direito brasileiro
Dos diversos institutos presentes na legislação brasileira, o Direito do Consumidor é um dos que se consagraram tardiamente em relação a sua aplicação em todo cenário mundial, parte se deve a economia, uma vez que as relações de compra e venda de produtos era bastante singela e simples, onde muitas vezes a compra era realizada diretamente do produtor, responsável pelo total domínio do processo produtivo.
A Revolução Industrial, que aumentou consideravelmente a capacidade de produção, não impactou apenas a economia, mas no fim do século XIX já se identificava uma cisão, ou seja, uma modificação no processo de distribuição, surgindo uma espécie de separação do detentor do processo de produção em relação à responsável pela comercialização dos produtos.
Todavia, a problemática surge ao passo que o mecanismo de produção e comercialização não se encontrou acompanhado de um sistema legal protecionista, esse processo evidenciou um considerável aumento de danos e prejuízos causados por defeitos em produtos e má prestação de serviços, em contrapartida a um sistema jurídico que limitava a responsabilização de fornecedores e produtores (CAVALIERI, 2008).
Segundo Cavalieri (2008), somente no início do século XX, em países como Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e França já se notava as primeiras fagulhas do direito consumerista, impulsionado pelos movimentos industriais resultantes da revolução industrial.
Nesse ponto, destaca o autor que:
Em Nova York, por exemplo, Josephine Lowell criou a New York Consumers League, uma associação de consumidores que tinha por objetivo a luta pela melhoria das condições de trabalho locais e contra a exploração do trabalho feminino em fábricas e comércio. Essa associação elaborava “Listas Brancas”, contendo nome dos produtos que os consumidores deveriam escolher preferencialmente, pois as empresas que os produziam e comercializavam respeitavam os direitos dos trabalhadores, como salário mínimo, horários de trabalho razoáveis e condições de higiene condignas. Era uma forma de influenciar a conduta das empresas pelo poder de compra dos consumidores (CAVALIERI, 2008, p.4).
Seguindo esse movimento, surgiram obras literárias que com o intuito de alertar os consumidores quanto a forma de produção dos produtos consumidos, como é o caso do romance “A Selva”, de Upton Sinclar, que nas suas entrelinhas descrevia, de maneira bastante realista, as condições de fabricação dos embutidos de carne e o trabalho dos operários de matadouros de Chicago (CAVALIERI, 2008, p.5).
Apesar da obra citada ter um viés socialista e apontar precárias condições de trabalho, ela também alertava sobre as condições e o ambiente no qual eram produzidos os alimentos consumidos pela sociedade.
A mensagem e o alerta culminaram no surgimento, em 1906, da primeira Lei de Alimentação e Medicamentos, a PURE FOOD AND DRUG ACT – PFDA e no ano seguinte, na lei de inspeção da carne, a MET INSPECTION ACT (FILHO, 2008).
No cenário mundial, a reflexão jurídica voltada para o consumidor como pessoa de direitos a serem legislados e tutelados pelo Estado somente se iniciou através do então presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, que em 15 de março de 1962 discursou no Congresso Norte Americano anunciando a Declaração de Direitos do Consumidor, a chamada Special Message to Congress on Protecting Consumer Interest.
Inclusive, a data ficou conhecida como World Consumers Rights Day, o Dia Mundial dos Direitos dos Consumidores.
Retomando o discurso, que completou 60 anos em 2022, Kennedy apontou a existência de uma determinada desorganização no sistema consumerista e ausência de proteção da figura consumidor, ainda enunciou que consumidores, por definição, somos todos nós (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1962, p. 1).
Os consumidores são o maior grupo econômico na economia, afetando e sendo afetado por quase todas as decisões econômicas, públicas e privadas. (CAVALIERI, 2008, p.5).
O discurso do presidente fez com que despertasse a importância do direito social do consumidor, transmitindo por meio de sua narrativa o imediato alerta e preocupação sobre a necessidade de voltar o olhar para os quatro direitos básicos do consumidor, quais sejam: a saúde, a segurança, o direito de escolha e o livre acesso à informação, sendo o grande marco para os direitos do consumidor em todo o mundo.
Isso porque o consumidor antes era tratado de um modo genérico como cliente ou contratante, limitado apenas ao ato de simples, momentâneo e individualizado da compra, não se analisando o sujeito como integrante um grande grupo da sociedade responsável por movimentar a economia.
Pouco se preocupava com a informação ou com a qualidade, como explicam Benjamim, Marques e Bessa (2020):
Destacava-se, assim, a posição momentânea e relacional deste agente econômico, naquela relação jurídica (na relação contratual ou delitual específica), não sua posição na sociedade (ou seu status) e como membro de um grupo com interesses semelhantes (interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos).
Efetivamente, no contexto mundial, ocorreu em Genebra, a 29ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 1973, que defendeu os quatros Direitos Fundamentais do Consumidor: o direito à segurança; o direito à informação sobre produtos, serviços e suas condições de venda; o direito à escolha de bens alternativos de qualidade satisfatória a preços razoáveis; e o direito de ser ouvido nos processos de decisão governamental, explica Miragem (2010, p. 28).
A partir de então, constata-se uma certa evolução histórica, narrando em documentos os direitos e os interesses dos consumidores, como a Carta dos Consumidores em 1973 e a Resolução 39/248 de 1985 em que a Organização das Nações Unidas – ONU estabeleceu como direitos de terceira dimensão a proteção do consumidor (DE LUCCA, 2003).
No cenário nacional, a questão da defesa do consumidor se iniciou ainda na década de 70, onde foram instauradas as primeiras associações civis e as entidades governamentais (BENJAMIN, MARQUES, BESSA, 2012).
Dessas citadas, destaca-se o Conselho de Defesa do Consumidor – CONDECON, que foi criado em 1974 no Rio de Janeiro – RJ; a Associação de Defesa e Proteção do Consumidor – ADOC, criada em 1976 foi criada em Curitiba e a Associação de Proteção ao Consumidor – APC, surgida em Porto Alegre; e em maio do mesmo ano, por meio do Decreto nº 7.890, o Governo de São Paulo criou o Sistema Estadual de Proteção ao Consumidor (FILHO, 2008).
Entretanto, a consolidação dos direitos do consumidor brasileiro só foi de fato materializada ao nível nacional após a promulgação da Constituição de 1988, em que se estabeleceu o dever do Estado em promover a defesa do consumidor, nos seus artigos 5º, inciso XXXII e 170, inciso V, bem como no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, que determinou a criação de legislação ordinária no âmbito federal, com o fito de concretizar a defesa e proteção do consumidor, no prazo de cento e vinte dias da promulgação da Constituição (BRASIL, 1988).
Ademais, seguindo a disposição constitucional, em 1990 foi elaborada e promulgada a Lei n.º 8.078/1990, o CDC, trazendo no bojo de seu texto a defesa e proteção dos interesses dos consumidores nas relações de consumo, criando uma estrutura e sistemática para viabilizar a defesa e proteção dos mais vulneráveis, como pontuou Grinover (2000, p. 17):
Ao contrário, os interesses sociais são comuns a um conjunto de pessoas, e somente estas. Interesses espalhados e informais à tutela de necessidades coletivas, sinteticamente referíveis à qualidade de vida. Interesses de massa, que comportam ofensas de massa e que colocam em contraste grupos, categorias, classes de pessoas. Não mais se trata de um feixe de linhas paralelas, mas de um leque de linhas que convergem para um objeto comum e indivisível. Aqui se inserem os interesses dos consumidores, ao ambiente, dos usuários de serviços públicos, dos investidores, dos beneficiários da previdência social e de todos aqueles que integram uma comunidade compartilhando de suas necessidades e de seus anseios.
Desse modo, no Brasil, a matéria concernente a defesa dos consumidores tem hoje sua previsão legal, desde o texto constitucional até a legislação ordinária, especificadamente no CDC, levando para a parte vulnerável e hipossuficiente da relação consumerista a proteção, acessibilidade e efetividade dos seus direitos.
2.2 A relação consumerista na contemporaneidade
O CDC foi criado através da Lei n.º 8.078/90, com objetivo de resguardar os direitos dos consumidores nas relações de consumo, tendo sido objeto de atualizações normativas no ano de 2013, por parte do Decreto n.º 7.962/13.
Anterior à criação do CDC, havia a Lei n.º 7.347/85, conhecida por Lei da Ação Civil Pública, a qual era a normativa responsável por regular o direito do consumidor anterior até mesmo à atual Constituição Federal.
Desde já, ressalta-se a distância de 9 anos desde a última atualização do código, o que torna o CDC relativamente ineficiente diante de situações que não foram previstas em sua criação ou atualização, por exemplo, diante de compras de determinados produtos digitais populares no ano de 2022. A legislação encontra-se desatualizada frente a evolução de processos tecnológicos tão presentes no dia a dia dos usuários de serviços virtuais.
Pois bem, o CDC prevê o direito de arrependimento de modo geral em um de seus artigos:
Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. (BRASIL, 1990)
O legislador tratou da seguinte situação: a aquisição de um produto que não seja feita em estabelecimento comercial, ou seja, presencialmente, pode ser desfeita no prazo de 07 (sete) dias, tendo em vista que a compra à distância não permite ao consumidor que avalie de forma minuciosa aquele produto que está adquirindo, e ao tê-lo em mãos, manuseia o novo produto e verifica que não é exatamente o que pensava ou não agrada.
Esse prazo se inicia a partir do momento que ocorre o recebimento do produto ou da prestação do serviço.
Também existe a condição de que o consumidor não poderá mais manter consigo ou usufruir do produto ou serviço que demandou o direito de arrependimento, uma vez que não é coerente que haja o estorno do valor pago inicialmente e que a figura do consumidor continue tendo acesso àquilo que foi restituído, pois configuraria uma clara situação de má-fé.
Essa possibilidade de exercer o aludido direito de arrependimento se dá em razão do consumidor ser considerado uma figura vulnerável e hipossuficiente.
O CDC dispõe sobre a referida vulnerabilidade e posição de hipossuficiência do consumidor ao reconhecer que o fornecedor do bem ou serviço conhece a forma que o mesmo é produzido, enquanto o consumidor, alheio a isso, não se encontra ciente sobre a base na qual o bem ou serviço foi construído ou produzido anteriormente, condição que faz com que se encontre em desvantagem clara perante o fornecedor.
Enquanto o consumidor deseja obter para si aquilo que está adquirindo, o fornecedor pauta a produção visando o lucro.
Ou seja, desde o início do processo o consumidor se encontra em um nível de conhecimento técnico inferior ao do fornecedor, e é em razão desse fato que o CDC estende essa proteção sob quem compra algo ou usufrui de um serviço. Ressalta-se que essa proteção recai de igual modo sobre consumidores que sejam pessoas jurídicas.
Já no que tange à hipossuficiência do consumidor, é a possibilidade de inverter o ônus da prova a fim de facilitar a defesa dos direitos dessa figura nas relações de consumo (BRASIL, 1990).
Compreende-se, portanto, que há a possibilidade de fazer com que o fornecedor comprove que ofereceu de forma coerente e íntegra o serviço ou o bem, dependendo do contexto fático aduzido no contexto processual.
Cabe salientar que para uma parte da doutrina, a vulnerabilidade e a hipossuficiência são correspondentes no sentido de que o consumidor é o elo mais fraco da relação consumerista.
A fim de evitar que o consumidor incida em erro, o fornecedor deve elencar as principais características do produto ou serviço que está sendo ofertado. Não que isso o exima de qualquer responsabilidade quanto ao direito de arrependimento, mas é uma prática que deve ser levada adiante e reforçada, pois pode evitar que muitos consumidores adquiram aquela oferta e posteriormente demandem o ressarcimento do valor pago.
Nunes (2017, p. 122), inclusive, trata isso como sendo o chamado “direito de ser informado”.
Por fim, é imprescindível abordar que o CDC não faz previsão de que exista um limite ao uso do direito de arrependimento.
Nos casos em que a prática restar configurada pela figura do consumidor, deve-se verificar o artigo 187 do Código Civil, onde diz que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002).
Nunes (2017, p. 244) aborda o abuso do direito da seguinte maneira:
Pode-se definir o abuso do direito como o resultado do excesso de exercício de um direito, capaz de causar dano a outrem. Ou, em outras palavras, o abuso do direito se caracteriza pelo uso irregular e desviante do direito em seu exercício, por parte do titular. Na realidade, a doutrina do abuso do direito tem sido muito importante, como se disse, especialmente pela influência que exerceu e exerce sobre os legisladores. Muitas normas jurídicas acabaram por incorporar em seus diplomas legais as práticas abusivas, para proibi-las.
Desse modo, permitir que o consumidor pratique, de forma velada ou explícita, atos ilícitos revestidos de má-fé e disfarçados do exercício do direito de arrependimento, é o mesmo que encorajá-lo a prejudicar continuamente a sociedade, pois não há garantia de que o mesmo vá, conscientemente, se ater apenas às relações de consumo. Aqui, verifica-se que o CDC é omisso mais uma vez.
3 DIREITO DE ARREPENDIMENTO ENVOLVENDO A COMPRA DE PRODUTOS DIGITAIS
A Lei n.º 12.965/14, conhecida popularmente como Marco Civil da Internet, disciplina no Brasil o uso da rede mundial de computadores, bem como direitos e deveres do usuário na internet.
Proveitoso ressaltar que a referida lei faz a previsão de que devem ser aplicadas as normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet.
Faz-se necessário abordar que o direito de arrependimento não pode ser interpretado como sendo de caráter absoluto. Não restam dúvidas de que o direito existe e é facultado ao consumidor utilizá-lo ou não, mas deve-se observar a natureza desse bem ou serviço ao qual será aplicado o referido direito, por exemplo, quando forem bens de consumo imediato ou que são perecíveis.
A título de conhecimento, não há possibilidade de devolução de aplicativos e jogos na plataforma AmazonAppstore. Nos termos de uso da plataforma (AMAZON, 2020), a própria empresa especifica que “todas as compras de Apps e Produtos in-App vendidos pela Amazon são finais. Não aceitamos devoluções de Apps ou Produtos in-App vendidos pela Amazon”.
Assim, a fim de se resguardar, a empresa prega a imagem de que o produto digital é de consumo imediato.
Como exemplo, tem-se que não é lógico que se assine um serviço de streaming de músicas para ouvir uma música completa e logo após requeira o cancelamento por não gostar de determinada música. A falta de certo parâmetro de limitação no direito de arrependimento propicia ao consumidor que, por vezes, aja de forma abusiva para com o fornecedor.
O Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins julgou improcedente uma Apelação Cível sob o argumento de que o arrependimento posterior não tinha aptidão para modificar o contrato. Na íntegra, vê-se que:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA C/C COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO, DANO MORAL. PREVIDÊNCIA. APLICAÇÃO DAS NORMAS DO CDC (SÚMULA 297/STJ). CIÊNCIA DOS TERMOS AVENÇADOS. AUSÊNCIA DE VÍCIO DO CONSENTIMENTO. REGULARIDADE CONTRATUAL VERIFICADA. CONTRATO JUNTADO AOS AUTOS. ARREPENDIMENTO POSTERIOR QUE NÃO TEM APTIDÃO PARA MODIFICAR O CONTRATO. RECURSO IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.1. Aplicam-se, ao caso, as normas protetivas das relações de consumo, face ao tipo de contrato celebrado entre as partes, possuindo inclusive, entendimento consolidado pelo STJ no verbete sumular nº 297, segundo o qual, "o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras".2. Apesar de a parte autora negar ter entabulado contrato com a requerida na inicial, doutro lado a seguradora trouxe aos autos fato impeditivo do seu direito, uma vez que colacionou o contrato reclamado nos autos com a digital da autora, todos os dados da requerente e informações claras e incontestáveis dos produtos que estavam sendo contratados (evento 24 - CONTR2).3. Não se vislumbra a indução a erro da parte autora pela seguradora na contratação em questão, ônus daquela (art. 373, inciso I, do CPC), tendo em vista que os termos da pactuação e as circunstâncias do caso concreto são capazes de proporcionar ao cliente perfeita formação de sua vontade e o entendimento dos efeitos de sua declaração.
4. Em que pese o arrependimento posterior do consumidor, eis que se deu conta de que o negócio jurídico firmado não lhe era favorável, não há que se falar em abusividade ou má-fé por parte da seguradora ré.
5. Recurso conhecido e improvido. Não há que se falar em majoração da verba honorária sucumbencial, pois não foi arbitrada na origem.
(Apelação Cível 0001757-20.2019.8.27.2723, Rel. ANGELA MARIA RIBEIRO PRUDENTE, GAB. DA DESA. ANGELA PRUDENTE, julgado em 09/12/2021, DJe 16/12/2021 18:39:19).
Ressalta-se o fato de que a câmara julgadora pautou a decisão da referida apelação dizendo que não houve abusividade ou má-fé por parte da empresa fornecedora do serviço contratado, o autor da ação apenas demonstrou que a contratação do serviço não lhe era favorável.
Verificando essa linha de raciocínio, a homogeneização das decisões nesse sentido seria ideal para coibir o abuso de direito.
Ainda que o CDC considere o consumidor como a figura mais fraca na relação jurídica e que as normas sirvam para protegê-lo de abusos por parte do fornecedor, é plausível que o dispositivo também aja em sentido de evitar que o fornecedor seja prejudicado ao ofertar produtos digitais e imateriais meramente pelo fato de que o consumidor não pode avaliá-lo presencialmente. O objeto material deve se traduzir no contrato ou nos termos de uso.
Os produtos digitais a serem tratados em questão são serviços de streaming, como as plataformas digitais que disponibilizam músicas, filmes e séries, jogos online e moedas virtuais, também conhecidas como criptomoedas.
Considerando o crescente consumo desse tipo de produto imaterial, ou seja, que não há como possuí-lo de forma física, existem situações nas quais o CDC tem de ser aplicado utilizando o critério de analogias.
Sobre o produto imaterial, Nunes (2017, p. 178) define o seguinte sobre:
Afinal, o que seria um produto imaterial que o fornecedor poderia vender e o consumidor adquirir? Diga-se em primeiro lugar que a preocupação da lei é garantir que a relação jurídica de consumo esteja assegurada para toda e qualquer compra e venda realizada. Por isso fixou conceitos os mais genéricos possíveis (“produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”). Isso é que é importante. A pretensão é que nada se lhe escape. [...] São produtos, claro, que sempre estão acompanhados de serviços. Aliás, como acontece com qualquer produto.
Frente ao exposto, fica claro que o bem imaterial encontra-se sob o mesmo prisma de proteção jurídica que um bem material.
No entanto, ao analisar a fundo as particularidades dos bens imateriais, pode-se compreender que a legislação atual se encontra desatualizada, visto que não existe previsão no CDC que trate expressamente de um produto imaterial digital.
4 A PROTEÇÃO LEGAL AO CONSUMIDOR NA COMPRA DE PRODUTOS DIGITAIS NO BRASIL
Ao consumidor é garantido o direito de arrependimento anteriormente demonstrado.
A jurisprudência é uniforme em casos concretos de devolução de serviços digitais adquiridos e que o consumidor enfrentou dificuldades em exercer o referido direito de devolução, como se vê da decisão emitida pelo Tribunal de Justiça do Paraná, em sede recursal, que trata da devolução do valor referente a uma assinatura de um serviço digital de jogo Xbox Live Gold 12 meses, que correspondia ao montante de R$ 99,90 (noventa e nove reais e noventa centavos), vejamos:
RECURSO INOMINADO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. COMPRA PELA INTERNET. DIREITO DE ARREPENDIMENTO EXERCIDO PELO CONSUMIDOR. DEVOLUÇÃO DO PRODUTO AO FORNECEDOR. NÃO RESTITUIÇÃO DO VALOR PAGO.ARTIGO 14 DO CDC. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. RETENÇÃO INDEVIDA DE VALORES. RECLAMOS DO CONSUMIDOR NÃO ATENDIDOS. CALL CENTER INEFICIENTE. DESCASO E DESRESPEITO COM O CONSUMIDOR QUE TEVE SUAS LEGÍTIMAS EXPECTATIVAS FRUSTRADAS. DANO MORAL CONFIGURADO. Recurso conhecido e provido. 1. Trata-se de Ação de Indenização por Danos Materiais e Morais proposta por Luiz Ricardo Anselmo em face de Cnova Comércio Eletrônico S.A. Conta o reclamante que em 10/04/2015 adquiriu através do site da reclamada um Console Xbox One 500GB pelo valor de R$ 1.499,00 e um Xbox Live Gold 12 Meses no valor de R$ 99,90. Ocorre que após receber os produtos, entrou em contato com a reclamada para devolver o Xbox Live Gold 12 Meses. Em resposta, a reclamada informou sobre o procedimento a ser adotado, qual seja, devolução do produto, sendo que em seguida receberia um vale-compras no mesmo valor pago. Afirma que o produto foi devolvido, todavia, o valor não foi restituído, motivo pelo qual entrou em contato com a reclamada a fim de tentar solucionar o problema, porém, sem êxito. Pleiteia a restituição do valor pago e indenização pelos danos morais suportados. 2. Consta da sentença (evento 45) a parcial procedência do pedido inicial e condenação da reclamada ao pagamento de R$ 99,00 a título de restituição de valor pago e R$ 23,46 a título de danos materiais. Inconformado, o reclamante interpôs o presente recurso inominado (evento 51), sustentando, em síntese ocorrência de danos morais. Pugna pela reforma parcial do julgado. Si 3. Estamos diante de uma típica relação de consumo pois as partes se enquadram nos conceitos de consumidor e fornecedor. A partir da análise dos autos, verifica-se que a recorrida não comprovou fatos extintivos, modificativos ou impeditivos do direito do recorrente, ônus que lhe incumbia, a teor do disposto no art. 6º, VIII do CDC c/c art. 333, II do CPC. Portanto, manifesto nos autos o descaso e desrespeito com o consumidor que não teve seus reclamos atendidos ante o call center ineficiente e teve suas legítimas expectativas frustradas. 5. No que tange ao quantum indenizatório, tem-se que na sua fixação, está consolidado, tanto na doutrina como na jurisprudência pátria, que se deve ter o cuidado de não proporcionar, por um lado, um valor que para o Autor se torne inexpressivo e, por outro, que seja causa de enriquecimento injusto, nunca se olvidando que a indenização do dano imaterial tem efeito sancionatório ao causador do dano e compensatório à vítima. Nesta linha de raciocínio, entendo que o valor dos danos morais deve ser fixado em R$ 4.000,00, estando tal montante em consonância com os parâmetros fixados por esta Turma Recursal em casos análogos a fim de evitar que novos danos sejam causados por este mesmo fato. 6. Diante do exposto, o voto é pela reforma parcial da sentença, a fim de acrescentar à condenação da recorrida ao pagamento de indenização por danos morais no importe de R$ 4.000,00 que deverá ser acrescido de correção monetária pela média INPC e IPGDI a partir da decisão condenatória e juros moratórios de 1% ao mês, a Si partir da citação, de acordo com o Enunciado 12.13 a das TR?S/PR. Recurso conhecido e provido. , decidem os Juízes integrantes da 1ª Turma Recursal do Estado do Pr, por unanimidade de votos, conhecer e negar provimento ao recurso, nos exatos termos do voto acima (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ, 2016).
No caso em tela, a empresa demandada não devolveu o valor investido, e sobre isso, incidiu a condenação em danos morais e materiais com efeito sancionatório.
Em suma, a empresa foi punida por desrespeitar as disposições legais que protegem a figura do consumidor, mesmo em se tratando da compra de um serviço imaterial de produto 100% (cem por cento) digital.
O reembolso deve ser feito de forma integral frente ao prazo de desistência de 07 (sete) dias e o direito de arrependimento possui caráter potestativo, ou seja, o consumidor só precisa alegar o arrependimento, sem sequer indicar qualquer motivação para isso, que o fornecedor será obrigado a agir para restituir o valor pago na aquisição do que estivesse ofertando.
O direito de arrependimento aplicado em produtos digitais se pauta principalmente na chamada avaliação prejudicada, onde não é possível examinar o produto em âmbito digital como na forma físico-presencial.
Em contrapartida, o consumidor pode experimentar o bem ou serviço antes de firmar o compromisso da compra através de ambientes virtuais controlados de demonstração. A alternativa é viável e existe na oferta de certos produtos, funcionando como uma espécie de amostra grátis.
Essa ferramenta pode ser concebida como uma forma de proporcionar ao consumidor que experimente o jogo, ou serviço de streaming, ou a plataforma de criptomoedas, realizando simulações equiparadas à experiência real de operação da aquisição.
O direito existe para ser acionado, no entanto, a alternativa pode ser utilizada para evitar que demandas consumeristas nesse sentido continuem sendo protocoladas com tamanha frequência.
Por óbvio, o ideal seria reformular o CDC para que expressamente abrangesse as relações de consumo de produtos digitais no Brasil. Tanto é, que houveram propostas através de projetos de lei, mas não foram levados adiante, demonstrando que a lei é, de certa forma, ineficaz, pois não regula a matéria de forma direta, apenas utilizando a analogia.
Se a legislação trouxer a previsão de que os produtos digitais devem ser ofertados com um modelo de teste, sendo de qualidade mais baixa ou acesso limitado, para que posteriormente seja ofertado integralmente, as empresas poderiam se valer dessa ferramenta para se defender posteriormente caso o consumidor venha alegar que se arrependeu da aquisição, pois concordou livremente com o prosseguimento da compra após o teste.
Essa hipótese também age para reassegurar que a empresa não estaria agindo com o intuito de prejudicar o consumidor.
A situação descrita acima pode ser comparada à da compra em loja na modalidade presencial. Caso o consumidor se desloque pessoalmente a uma loja física e lá, avaliando o produto ou serviço da forma que mais lhe atender, opte por efetuar a compra do produto em perfeito estado, a empresa não terá obrigação de devolver valores empregados no ato da compra, pois o juízo de valor do consumidor terá sido feito de forma efetiva.
A título de informação, na Europa a matéria é tratada como direito de retratação, e é regulada pela Diretiva 83/2011. A referida norma é semelhante à brasileira, pois permite que o consumidor venha a exercer o direito de arrependimento no prazo de 14 (catorze) dias, e traz uma série de exceções, das quais destaca-se:
Os Estados-Membros não conferem o direito de retractação previsto nos artigos 9.o a 15.o relativamente aos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial no tocante: [...]
m) Ao fornecimento de conteúdos digitais que não sejam fornecidos num suporte material, se a execução tiver início com o consentimento prévio e expresso do consumidor e o seu reconhecimento de que deste modo perde o direito de retratação. (UNIÃO EUROPEIA, 2011).
Dessa forma, é possível que a norma brasileira se inspire nas disposições da norma europeia, visto que o direito de arrependimento não deve ser absoluto. A legislação vigente não atende às necessidades de ambas as partes das relações consumeristas, tanto consumidor quanto fornecedor, visto que não existe a previsão do direito de arrependimento quando o assunto trata de produtos digitais.
Sobre a viabilidade de aprimorar a legislação nacional, Bittar (2003, p. 20) afirma que:
É possível adequar de forma satisfatória as relações virtuais às atuais leis brasileiras, eis que os contratos pela internet se formam da mesma forma que os contratos tradicionais (negociações preliminares, proposta, aceite), sendo que a única diferença entre ambos é o meio por onde se desenvolvem. Por esta mesma razão o comércio eletrônico também se submete às disposições do Código de Defesa do Consumidor, sem maior esforço hermenêutico, o que é ponto pacífico na doutrina brasileira.
Existe muito espaço para debater as condições às quais o referido direito será aplicado, bem como existe a necessidade de delimitar de forma clara os limites ao qual o mesmo se sujeitará, evitando que o consumidor acredite que pode tudo em face do fornecedor.
5 TENDÊNCIAS DO POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL
Restou demonstrado que o comércio eletrônico se tornou indispensável, tanto que se encontra presente no dia a dia dos consumidores em todo o mundo, de forma que alterou de significativamente a forma de consumo de diversos produtos.
No atual contexto legislativo, como já mencionado, há lacunas no ordenamento jurídico brasileiro quando se trata de comércio eletrônico, no que se refere ao sistema de segurança das transações e proteção dos dados sensíveis dos consumidores, como também na fragilidade do valor probatório dos documentos entabulados por meio eletrônico, pois o CDC é uma normatização que não mais se amolda a realidade da social, é antiquada e voltada para o comércio tradicional, já que foi criado para suprir as lacunas do Código Civil de 1916.
Entretanto, o CDC é utilizado para reger as novas formas de consumo, sejam elas relações físicas ou virtuais, garantindo ao consumidor a integridade dos seus direitos básicos previstos pela resolução da ONU: vida, saúde, segurança, informação, transparência, boa-fé e liberdade de escolha e constitucionalmente asseguradas.
Ocorre que, na medida que o comércio eletrônico ganha espaço e notoriedade nas preferências de consumo da sociedade, é preciso ponderar e se atentar a esta nova forma de contratar, pois em que pese seja concedido ao consumidor a liberdade de escolha, essa disposição não se aplica na prática, já que a atual forma dos contratos eletrônicos sujeita os consumidores a condições que o fornecedor oferece na elaboração das cláusulas contratuais.
Quanto ao tema, assevera Aguirre (2014, p. 178):
O contrato eletrônico do entretenimento apresenta-se usualmente sob a forma de contrato de adesão, denominado “contrato-tipo”, em que as cláusulas são impostas por uma parte à outra sem que seja possível discutir cláusulas isoladamente, cabendo à outra parte apenas aderir incondicionalmente a ele, em geral em forma de disclaimers, que são declarações em formato digital inseridas nas páginas de Internet que estipulam regras dirigidas ao usuário com a finalidade de limitar ou excluir a responsabilidade, em que se dá um click no botão de OK para aceitar e só com isso se consegue continuar com a navegação ou ter acesso ao conteúdo que este se refere.
Não muito incomum, ao contratar, o consumidor muitas vezes se depara apenas com uma página inicial e termos de uso em que usuário confirma a ciência por meio de um botão que aparece na tela do seu aparelho eletrônico.
Essa forma de lidar com o consumidor é a mesma utilizada nos contratos de adesão, de operadoras de telefonia, por exemplo, onde se encontra ausente a liberdade de contratação e o consumidor se submete as condições impostas pelo fornecedor/prestador de serviços (GOMES, 2013), e que, pode, unilateralmente, alterar o contrato ou termo firmado com o consumidor.
A prática citada infere diretamente na chamada autonomia da vontade, pontuada por Lorentino (2015, p. 166) como “expressão da liberdade individual”.
No entanto, o consumidor realmente exerce alguma autonomia sobre o contrato que se estabelece quando ocorre a compra de algo que o fornecedor dispõe? No ambiente virtual de comércio, não há quaisquer negociações, sendo simplesmente facultado ao consumidor que compre ou não, que aceite os termos ou não.
Com isso, somado ao fato do consumidor ser considerado vulnerável, pode-se compreender que a autonomia da vontade nestes casos é viciada, pois é uma questão de oferta e demanda, onde o consumidor deseja e o fornecedor possui, e assim é efetivada a relação de consumo, tendo o consumidor optado por prosseguir com a compra.
Diante da vulnerabilidade do consumidor, o CDC, prevê ao consumidor o do prazo de reflexão e a possibilidade do exercício do direito de arrependimento, em até 07 (sete) dias, sempre que a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial, conforme já mencionado.
A previsão de 07 (sete) dias para arrependimento prevista no artigo 49 do CDC é um meio de proteção do direito de informação, com o fito de obstar a indução do consumidor ao erro quanto a compra de produtos e serviços comercializados através de mecanismos de publicidades abusivas ou até mesmo enganosas, conforme estipulado nos artigos 30 e 37 do CDC.
Nas palavras de TARTUCE e NEVES (2021, p. 267):
Tal direito existe para proteger a declaração de vontade do consumidor, possibilitando que ele reflita com calma nas agressivas situações de vendas a domicílio De acordo com os juristas, há um notável avanço confrontando-se a previsão com o sistema civil, que não consagra qualquer regra geral de arrependimento para os contratos regidos unicamente pelo CC/2002. Deve ficar claro que não se trata de venda a contento ou ad gustum, tratada pelos arts. 509 a 512 do CC, pois nesse caso há necessidade de o comprador motivar as razões da sua não aprovação. No tipo do art. 49 do CDC, dispensa-se qualquer motivação para o exercício do arrependimento dentro do prazo de reflexão.
Em contrapartida, há julgados no sentido de que esse direito se encontra resguardado quando o as compras realizadas dentro do estabelecimento físico, mas efetivada por meio digital, não ocorrendo o contato físico com produto na hora da compra, vejamos o trecho do voto do Relator FRANCISCO CASCONI, em um julgado da Corte Paulista:
No entanto, no momento da contratação, o consumidor não teve acesso ao bem adquirido (o que equivale a contratação fora do estabelecimento). A testemunha ouvida em juízo revelou que, apesar da assinatura dos documentos, Ricardo desistiu logo em seguida do negócio contratado, tanto que ouviu o vendedor que ele não compraria nenhum outro carro naquela loja. Os elementos existentes nos autos permitem a incidência da regra do artigo 49 do CDC, aplicado por analogia, dispositivo que permite a desistência do negócio em até 7 dias. Sendo assim, como ficou caracterizada a desistência, nenhuma multa compensatória é devida. (Tribunal de Justiça de São Paulo, 2013).
Do referido julgado, extrai-se que, mesmo que o contrato tenha sido celebrado em estabelecimento comercial, se o consumidor não teve acesso ao veículo no momento da compra, lhe é assegurado o direito de arrependimento previsto no CDC, como se a compra fosse efetivada a distância, do contrário, para não incidência da previsão do artigo 49 do CDC, o produto ou serviço deveria estar presente fisicamente, para que o consumidor pudesse analisar e refletir sobre a compra.
Dessa forma, os doutos julgadores se posicionam de forma equivalente em ações de matéria consumerista. O principal aspecto avaliado no curso do processo é se há o enquadramento do litigante no conceito de consumidor, previsto no artigo 2º do CDC, pois é necessário que o consumidor seja a parte final na cadeia de consumo, para que possa exercer de forma válida o direito de arrependimento.
A vantagem que o fornecedor possui em relação ao consumidor também é matéria essencial quando se fala na condição hipossuficiente do consumidor.
Conforme elucidado anteriormente, o direito de arrependimento é personalíssimo à figura do consumidor, e, quando não houver a caracterização do mesmo como consumidor final do bem, os tribunais duramente indeferem os pedidos que versem sobre o exercício do direito de arrependimento, num contexto de bens e serviços do dia a dia.
No que se refere ao consumo de bens e serviços digitais, ainda há muito o que se debater, visando principalmente suprimir os casos em que o direito do arrependimento é efetivado e o consumidor continua possuindo acesso ao bem ou serviço digital em questão, incidindo má-fé e prejudicando diretamente o contrato existente entre as partes.
Verificada a linha do tempo evolutiva do direito do consumidor, ressalta-se a importância para o cenário brasileiro que o CDC, instituído pela Lei nº 8.078/90. As relações consumeristas são protegidas pelo Estado, conforme a Constituição Federal de 1988 assevera, e, por conta disso, diversos reflexos incidem na sociedade.
Para o trabalho em questão, o reflexo debatido é o do direito à reflexão, popularmente conhecido como direito de arrependimento. No Brasil, elucidou-se que o direito ao arrependimento é aplicado às compras de bens e serviços na modalidade virtual, modalidade essa que permite que, no prazo de 07 (sete) dias após o recebimento do produto, o consumidor possa devolvê-lo e ser ressarcido integralmente, sem maiores justificativas.
No entanto, com a popularização dos e-commerces, a oferta de produtos digitais, ou seja, que não são materializados, cresceu de forma exponencial e a proteção ao consumidor é prevista de modo geral.
Assim, os casos concretos vislumbram consumidores que adquirem, por exemplo, jogos digitais em plataformas igualmente virtuais, e, exercem o direito de arrependimento no aludido prazo.
Não haveria qualquer problema no supracitado exemplo, no entanto, nada impede que o consumidor jogue e termine o jogo no prazo de 1 semana, para depois solicitar o reembolso do valor pago, demonstrando total má-fé para com o fornecedor.
Ainda que o consumidor seja uma parte presumidamente hipossuficiente, a má-fé decorre em casos semelhantes, podendo vir a acontecer até mesmo na aquisição de serviços.
E é frente aos casos concretos que se verifica a necessidade de que a legislação acompanhe as mudanças temporais da sociedade, pois em 1990 não havia muito o que se falar em relação a contratos de consumo efetuados na internet.
Mesmo que as decisões sejam de certa forma homogêneas em considerar o consumidor o elo fraco na relação consumerista, pode-se compreender que, caso as normas descrevessem a obrigação das plataformas de serviços digitais de oferecer ambientes controlados e limitados de teste pelo período de 07 (sete) dias, seria possível evitar os casos em que o consumidor atua de má-fé.
Enquanto não há essa evolução na legislação, seria viável supor que um caminho alternativo é obrigar que os fornecedores expressem, no momento da compra, os termos de uso, prazos e condições legais para que o direito de arrependimento se consolide.
Não obstante, é necessário firmar entendimentos jurisprudenciais em casos de relação de consumo de bens e serviços virtuais, ou seja, prever expressamente sanções ao abuso de direito.
Por fim, é possível verificar que a limitação ao exercício do direito de arrependimento é viável, conforme restou demonstrado no texto da Diretiva 83/2011, vigente na União Europeia, que elenca, em seu artigo 16, exceções ao chamado direito de retratação, visando proteger, de igual modo, o consumidor e o fornecedor, ainda que a parte consumidora seja concebida como potencialmente hipossuficiente.
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Graduando em Direito pela Universidade Federal do Tocantins
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, João Alves dos Reis. A aplicação do direito de arrependimento na compra de produtos digitais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60152/a-aplicao-do-direito-de-arrependimento-na-compra-de-produtos-digitais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Erick Labanca Garcia
Por: Erick Labanca Garcia
Por: ANNA BEATRIZ MENDES FURIA PAGANOTTI
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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