RESUMO: O ordenamento jurídico brasileiro tardou no reconhecimento dos impactos causados pela tecnologia na vida humana, o qual inclui a inseminação artificial post mortem, que tem diversos impactos na sociedade atual, seja no âmbito familiar, patrimonial ou sucessório. Sendo assim, diante da ausência de proteção jurídica adequada, os procedimentos envolvendo material genético humano avançaram de forma que o poder legislativo e o poder judiciário não acompanharam, sendo este tema uma pauta relativamente nova sob o ponto de vista histórico, sociocultural e jurídico. É de suma importância o estudo das formas de proteção jurídica das partes que optam por realizar o procedimento de inseminação artificial, bem como conceituar inseminação artificial post mortem, contextualizando-a historicamente, e analisar a existência de dispositivos legais utilizados no Brasil para a solução de litígios envolvendo o referido tema, e avaliar o disposto no ordenamento jurídico brasileiro e a posição jurisprudencial no que se refere a inseminação artificial post mortem, bem como a efetividade de sua aplicação.
PALAVRAS-CHAVE: Inseminação artificial. Post Mortem. Tecnologia. Ordenamento jurídico.
ABSTRACT: The Brazilian legal system was late in recognizing the impacts caused by technology on human life, which includes post-mortem artificial insemination, which has several impacts on today's society, whether in the family, heritage or succession. Therefore, in the absence of adequate legal protection, procedures involving human genetic material advanced in a way that the legislature and the judiciary did not follow, and this issue is a relatively new agenda from the historical, sociocultural, and legal point of view. It is extremely important to study the forms of legal protection of the parties that choose to carry out the procedure of artificial insemination, as well as to conceptualize post mortem artificial insemination, contextualizing it historically, and to analyze the existence of legal provisions used in Brazil to solve these problems. litigation involving the aforementioned topic, and to evaluate the provisions of the Brazilian legal system and the jurisprudential position regarding post mortem artificial insemination, as well as the effectiveness of its application.
KEYWORDS: Artificial insemination. Post mortem. Technology. Legal order
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2 INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL O AVANÇO DA TECNOLOGIA NO RAMO GENÉTICO E SUA POSTERIOR ACEITAÇÃO NA SOCIEDADE. 2.1 Inseminação artificial post mortem. 3 IMPACTOS DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM NA SOCIEDADE ATUAL. 4 POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS SUCESSÓRIOS REFERENTES A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM NO NOVO CPC. 5 CONCLUSÃO.
1 INTRODUÇÃO
A relevância social da abordagem sobre a inseminação artificial post mortem e a posição do ordenamento jurídico brasileiro em relação ao assunto supramencionado decorre da importância de garantir a regulamentação específica sobre esse tema nas mais diversas vertentes, e consequentemente a aplicabilidade dos direitos conquistados ao longo das últimas décadas. Contudo, não basta apenas garantir a tutela jurisdicional, mas também a conscientização da população para o conceito de inseminação artificial e as suas consequências nas relações humanas e também os reflexos de tal ato no que se refere à esfera patrimonial e nos direitos de sucessão.
Seja um namoro ou matrimônio, ou qualquer que seja a forma de relação envolvida quando se trata de inseminação artificial, é dever do judiciário assegurar que as vontades das partes e os devidos direitos sejam garantidos.
Assim, trata-se de um assunto relativamente novo pois é consequência direta dos avanços tecnológicos, no qual urge a necessidade de uma legislação específica, tanto no direito brasileiro quando nos demais, do contrário poderá ocorrer graves prejuízos, tanto para as gerações atuais quanto para as gerações futuras.
A presente pesquisa busca contribuir com a revelação de formas de proteção jurídica para as partes, bem como expor a proteção prevista no ordenamento jurídico brasileiro e o entendimento jurisprudencial sobre o tema supramencionado. Atualmente, no Brasil, é parca a pesquisa científica sobre o referido tema, pois basicamente as pesquisas envolvendo ao assunto geralmente limitam-se apenas ao direito sucessório, ignorando os demais acontecimentos que envolvem muito mais que o direito de sucessão, nas demais áreas do direito civil, e nos princípios que tratam dos Direitos Fundamentais, podendo assim ser considerado relativamente novo quanto à pesquisa, pois apesar de ser um acontecimento que foi normalizado rapidamente pela sociedade, o que é disposto de conteúdo sobre o tema não acompanhou tal evolução, sendo assim quando se trata de legislação ou de doutrina sobre o referido tema, ainda existem poucos conteúdo considerando a vastidão do assunto e suas ramificações, porém já é possível notar um certo avanço no que concerne aos tipos de diversas proteções que podem ser criadas, as quais estão surgindo atualmente, buscando definir as condições do uso de material genético e do modo de resolver os litígios inerentes a este, bem como reparar os danos causados às vítimas e evitar que situações semelhantes se repitam no futuro.
A finalidade da pesquisa, ao confirmada a existência de proteção às vontades das partes tanto na lei, quanto na jurisprudência, e a partir do esclarecimento para que esta seja considerada válida, sem prejuízo algum em sua execução e posteriores resultados, busca contribuir para que ocorram decisões com embasamento jurídico e científico para a conscientização da população sobre o referido assunto e suas particularidades, com a finalidade de prevenir a existência de litígios, que poderiam ser previamente evitados caso já houvesse uma discussão relevante sobre o assunto em questão.
2 INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL: O AVANÇO DA TECNOLOGIA NO RAMO GENÉTICO E SUA POSTERIOR ACEITAÇÃO NA SOCIEDADE
O avanço da tecnologia, impacta diretamente o estilo de vida de cada indivíduo, e no ramo da genética não foi diferente. A inseminação artificial veio como uma solução para as pessoas que apresentavam alguma dificuldade em ter filhos: seja por questões genéticas ou sociais, casais heteroafetivos ou homoafetivos, e até mesmo mulheres solteiras, para que assim pudessem realizar o sonho de se tornarem mães, sem necessariamente ter um companheiro.
Após diversos estudos, os procedimentos envolvendo material genético humano lograram êxito, como bem citado por Machado:
Após longos estudos, na tentativa de quebrar esta barreira biológica imposta por mutações genéticas, patologias ou até mesmo por circunstâncias externas, o homem conseguiu, n a década de 70, na Inglaterra, conceber a primeira criança obtida pela técnica da fertilização in vitro, utilizando gametas dos seus próprios pais. (MACHADO, 2005, p. 31).
As particularidades inerentes a tecnologia e aos procedimentos, que se apresentavam como solução foram atingindo outros objetivos, conceito bem explicado por MADALENO, a saber:
A fertilização in vitro faz parte, juntamente com a inseminação artificial, do que se entende hoje por reprodução humana assistida, ou seja, um aglomerado de técnicas díspares que possuem o objetivo maior de combater a esterilidade ou até mesmo de prevenir as patologias genéticas e hereditárias que possam vir a surgir. (MADALENO, 2010, p. 59).
Os impactos e as transformações na sociedade vieram como uma solução para os problemas de infertilidade, conforme explica Ferraz:
Surge assim, a reprodução humana assistida como um meio de garantir que os problemas causados, seja pela infertilidade, seja pela esterilidade, torne possível, ainda que por artifícios médicos, concreto o desejo de determinadas pessoas de se tornarem pai e mãe. (FERRAZ, 2009, p. 41).
Conforme explicado pela ginecologista e obstetra Dra. Juliana Amato, o procedimento de inseminação intrauterina (popularmente conhecido como inseminação artificial) diferente da fertilização in vitro é um procedimento de baixa complexidade.
O procedimento de inseminação artificial, por ser mais simples não necessita de anestesia e pode ser realizado em consultório. O uso desse material após a morte de uma das partes interessadas na realização do procedimento, para gerar uma nova vida, é o tema do referido trabalho tendo em vista a sua complexidade, pois atinge várias áreas do direito. Por ser um tema relativamente novo, merece mais atenção tanto por parte da população, quanto por parte do judiciário.
A inseminação artificial pode ser realizada de maneira heteróloga, a saber:
Há uma divisão a ser considerada da inseminação artificial. Será a técnica heteróloga, quando o material genético utilizado para gerar a vida é de um terceiro, não pertencente à relação, ou seja, utiliza-se de gametas doados, que podem advir de uma doadora feminina, de um doador masculino, ou de ambos. (FERNANDES, 2000, p. 57-58)
Poderá também ocorrer que a inseminação artificial seja realizada de maneira homóloga:
Mas também poderá ser homóloga, havendo, portanto, a utilização dos gametas, masculinos e femininos, para a implantação uterina, oriundos do próprio casal ou companheiros, que o faz de modo artificial por não conseguir naturalmente. (FERNANDES, 2000, p. 57)
O Código Civil de 2002, buscando acompanhar os avanços tecnológicos e o livre planejamento familiar previsto constitucionalmente, reconheceu a possibilidade da inseminação artificial, nas duas modalidades atualmente existentes: seja ela na vertente heteróloga ou homóloga, considerando-os concebidos na constância do casamento.
Quanto a inseminação artificial heteróloga, não há maiores divergências: necessita-se da autorização prévia do marido, pois trata-se de doação de material genético estranho à relação, ou seja, biologicamente não será o material do cônjuge o utilizado, no entanto, segundo Dias (2017, p. 398), “gerará presunção absoluta juris et de jure, pois não há a possibilidade de a filiação ser impugnada”.
A inseminação artificial homóloga, ao contrário da supramencionada, utiliza material genético do próprio casal. O Código Civil, neste ponto, aborda duas possibilidades: a do embrião excedentário, resultado da utilização do material genético do próprio casal, no qual não houve a implantação deste no processo de fecundação, ficando, portanto, guardado e a do embrião que já estava concebido, através da mesma técnica, à época da morte do seu genitor. Ambas as hipóteses também presumem, de acordo com o diploma normativo, a ideia de que fora o feto concebido na constância do casamento, havendo, portanto, a filiação para com o cônjuge da sua genitora.
Embora cada uma das hipóteses previstas traga, de certa maneira, alguma discussão em torno de si, é a inseminação artificial homóloga post mortem que é objeto de estudo do referido trabalho, tendo como análise o material genético que foi depositado no banco de sêmen por razões pessoais e que não se confunde com as hipóteses acima descritas, uma vez que não foi o embrião ainda concebido.
2.1 Inseminação artificial post mortem
A inseminação artificial post mortem consiste na realização do procedimento da mesma forma, a diferença consiste no impacto do uso do material genético: uma das partes não está mais viva para expressar a sua vontade, logo não há possibilidade de uma eventual desistência do procedimento por parte do doador do material genético. Para a realização do procedimento, a vontade que deverá ser considerada é a que o de cujus exauriu de forma explícita, ainda em vida. Buscando esclarecer o significado desse inciso a I Jornada de Direito Civil nos trouxe o Enunciado 106 com o seguinte conteúdo:
106 – Art. 1.597, inc. III: para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte.
Logo, o procedimento de inseminação artificial post mortem, entra em um conflito ético e jurídico, tendo em vista que a decisão e coleta do material genético foi em vida, porém a geração de uma nova vida e os impactos serão resultados póstumos.
3 IMPACTOS DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM NA SOCIEDADE ATUAL
É de suma importância esclarecer que o conceito de família sofreu alteração ao longo dos anos, conforme bem explica Dias:
Em face da reunião de duas pessoas para o acasalamento, ausente qualquer tipo de afeto e demonstração de sentimentos, em regra, possibilitou-se que essa agregação denominada família estabelecesse um viés conservador nas suas relações entre si e perante terceiros, ou seja, gerou situações fáticas que consolidaram a ideia de um instrumento de formalização desta relação, qual seja, o casamento com todos os seus efeitos aceitos até poucos anos atrás. (DIAS, 2017, 33-34).
Considerando que a família é um instituto que é um dos principais pilares da sociedade, a sua regulamentação jurídica, assim como qualquer outro tema, sofreria alterações a partir das mudanças ocorridas na sociedade que necessitassem de regulamentação.
O Código Civil sempre trouxe diversos pontos marcantes que regeram a sociedade brasileira durante anos. No entanto, mesmo abordando a maior quantidade de assuntos possíveis, nem sempre a disposição sobre estes foi específica, havendo em alguns casos apenas uma regulamentação genérica, que não traz solução definitiva aos litígios.
Neste sentido, no que se refere às inovações legislativas decorrentes de evoluções científicas, não ocorreu menção à inseminação artificial homóloga póstuma, a qual conforme abordado anteriormente, se utiliza do material genético do próprio cônjuge, no qual, obtendo êxito na fecundação após a morte do genitor e doador do sêmen, o marido, gera uma nova vida e consequentemente um novo herdeiro. Situação está que diante da ausência de regulamentação específica, gera confusão quanto aos efeitos sucessórios perante o concebido.
Como consequência das lacunas legais, há uma negativa de acesso do filho concebido à herança, violando assim um direito constitucionalmente garantido. Importante ressaltar que tanto a Constituição Federal como o Código Civil regulamentam o direito de herança, a qual é destinada a determinadas pessoas que compõem uma linha sucessória, na qual se pode encontrar o descendente, independentemente de sua origem. Como bem explica Barroso:
No entanto, a supremacia constitucional que deveria ser mantida, seja diante de regras ou de princípios, seja em razão da posição que ocupa e da importância que emana, decai perante os demais atos e entendimentos que lhe são contrários, sendo que aquela é que deve regular a produção e os efeitos destas. (BARROSO, 2009, p. 372).
Assim, diante das várias modalidades disponíveis para gerar um feto atualmente, é inegável que a reprodução humana assistida conquistou um lugar importante na sociedade atual e que é uma modalidade em que as suas peculiaridades se desenvolveram de maneira célere ao ponto de os legisladores não acompanharem todas as suas particularidades. Contudo, não restam dúvidas de que a concepção post mortem, a qual é resultado do material genético do próprio casal, é a que mais carece de proteção legislativa, uma vez que é nesta situação que o prejuízo sucessório para o concebido pode vir a acontecer.
4 POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS SUCESSÓRIOS REFERENTES A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM NO NOVO CPC
Considerando a inerente mudança diária da sociedade, em busca de progresso nas mais diversas áreas, nem sempre a legislação acompanha os novos fatos ou mudanças que acontecem de maneira acelerada. Deste modo a proteção jurídica nem sempre é aplicada com celeridade, no entanto diante da ausência de legislação específica, segue-se uma ordem de hierarquia das normas a serem aplicadas ao caso concreto, a qual foi criada pelo ilustre jurista Hans Kelsen, intitulada como pirâmide normativa, e conhecida como pirâmide de Kelsen.
A pirâmide segue uma hierarquia, no qual tem-se as normas de maior importância e as de menor relevância, na qual a inferior deve submeter-se a superior, com a finalidade de solucionar conflitos aparentes entre estas, pois uma norma pode tratar de mesma matéria, mas em espécies de leis diferentes.
No que se refere ao ordenamento jurídico brasileiro, este segue o Princípio da Supremacia da Constituição, sendo assim todas as normas que estão inseridas dentro da Constituição Federal detêm supremacia formal sendo assim superiores as leis infraconstitucionais.
A Constituição de um Estado é considerada sua Lei Fundamental, ou seja, é a base hierárquica de todo o sistema jurídico desse Estado e por ser considerada a Lei Maior, todas as outras que sobrevierem deve obediência a esta, assim haverá a análise se esta norma realmente é válida, ou seja, constitucional, cumprindo os preceitos dispostos na Constituição, ou se de alguma forma viola o que está disposto, devendo ser considerada inconstitucional.
Assim, pelo pensamento do jurista citado acima, o ordenamento jurídico brasileiro seguiria a seguinte hierarquia: a Constituição Federal no topo, contendo todas as diretrizes, princípios e fundamentos que devem ser seguidos pelas outras normas e posteriormente as leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, as medidas provisórias, decretos legislativos, resoluções portarias, e assim sucessivamente.
Por ser a Constituição toda a base do ordenamento jurídico brasileiro toda vez que um fato novo não regulado em lei aparecer, é necessário que os princípios da Constituição sejam observados e respeitados. O fato novo, o qual é o objeto de estudo desta pesquisa, refere-se as técnicas de reprodução assistida, especificamente a inseminação artificial “post mortem”. Esta técnica foi contemplada pelo Direito Brasileiro, ao ser introduzida no atual Código Civil no Artigo 1597, incisos III e IV, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002:
CC - Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002
Institui o Código Civil.
SUBTÍTULO II
Das Relações de Parentesco
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - Nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - Nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - Havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - Havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Portanto, não restam dúvidas de que diante da omissão da lei sobre a inseminação “post mortem”, os princípios presentes na Constituição Federal deve ser observados e respeitados, já que nenhuma técnica pode afrontar a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, entre outros princípios tão importantes presentes em nossa Carta Magna. O próprio Código Civil disciplina na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro que quando houver a omissão da lei, devem ser observados os princípios gerais de direito: “Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”
Sendo assim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, assegura como princípio fundamental e norteador o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, CFRB/88:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - A soberania;
II - A cidadania;
III - A dignidade da pessoa humana;
Vale ressaltar que a expressão “dignidade da pessoa humana” foi usada pela primeira vez na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, tamanha sendo a importância deste princípio, o qual também está diretamente ligado a um mínimo existencial, ou seja, tudo aquilo que é necessário para uma pessoa viver de forma digna, assim como nos ensina Ingo Wolfgang Sarlet:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
Em consonância a este dispositivo, importante destacar também que o planejamento familiar também está previsto na Carga Magna no art. 226, § 7º:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Vale ressaltar que este parágrafo é regulado pela Lei nº 9263/96 que, além de outras providências, apresenta o conceito de planejamento familiar, a saber:
Art. 1º O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o disposto nesta Lei.
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
Dada as premissas constitucionais, no atual código Civil de 2002, mais especificamente, no capítulo dos direitos sucessórios, houve a previsão da possibilidade da prática de inseminação artificial, no entanto, não regulamentou em nenhuma lei específica, sendo apenas uma interpretação geral.
Considerando a relevância do tema e o impacto que uma decisão judicial envolvendo o caso terá nas relações pessoais dos indivíduos envolvidos, urge a necessidade de pacificação sobre o tema tendo em vista que o mérito vai muito além de uma relação contratual, pois a finalidade é gerar uma nova vida. Os possíveis impactos do resultado positivo deste procedimento em outras áreas da sociedade é mera consequência, não sendo este o principal empecilho para realização do procedimento.
A principal questão a ser debatida no que se refere a este tema são as condições sob as quais a autorização do uso do material genético aconteceu e como esta vontade foi externada.
Importante ressaltar que embora a decisão de realização do procedimento e seus efeitos se limitem, em regra, a duas partes, esta vontade para ter efeito necessariamente vai envolver uma empresa, pessoa jurídica de direito provado, que constará os detalhes que envolvem a contratação da mesma para realização do serviço, em um contrato.
Os contratos podem ser definidos, por exemplo, como um acordo de vontade, cuja finalidade pode ser a criação, a extinção de direitos, ou até mesmo a sua modificação. Podendo assim, ser classificado como um modelo de negócio jurídico bilateral.
Sendo assim, a manifestação de vontade, pode ser considerada como o primeiro elemento, sendo essencial para a existência do negócio jurídico. A vontade se processa, primeiramente, na mente do indivíduo – momento este que é subjetivo, psicológico, inerente a sua formação. Contudo, no momento em que a vontade é exteriorizada – a qual é conhecida como fase objetiva –, que pode ocorrer por meio de uma declaração, está se torna apta a produzir efeitos, na medida em que se torna pública ou conhecida.
Assim, pode-se dizer que não é a vontade propriamente dita que consiste em um requisito de existência dos negócios jurídicos, mas a maneira como ocorre a sua manifestação pode colocar em jogo a validade do negócio jurídico, podendo este ser considerando inválido ou até mesmo anulado.
Na legislação brasileira, a manifestação de vontade pode ser expressa ou tácita. É expressa quando exteriorizada por escrito, verbalmente, por meio de mímica ou gesto, de forma a ser considerada inequívoca. Esta também é considerada tácita, quando a vontade do agente é inferida de sua conduta, e somente terá validade quando a lei não exigir que seja expressa, conforme dispõe o art. 111 do Código Civil brasileiro:
CC - Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002
Institui o Código Civil.
Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.
Deste modo, os Tribunais do Estado brasileiro têm adotado, através do entendimento jurisprudencial, que é possível e garantido aos “contratantes” a prática de inseminação artificial, conforme súmula do Superior Tribunal de Justiça, no Processo Resp. 1.918.421:
RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DE OFENSA A ATOS NORMATIVOS INTERNA CORPORIS. REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA. REGULAMENTAÇÃO. ATOS NORMATIVOS E ADMINISTRATIVOS. PREVALÊNCIA DA TRANSPARÊNCIA E CONSENTIMENTO EXPRESSO ACERCA DOS PROCEDIMENTOS. EMBRIÕES EXCEDENTÁRIOS. POSSIBILIDADE DE IMPLANTAÇÃO, DOAÇÃO, DESCARTE E PESQUISA. LEI DE BIOSSEGURANÇA. REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM. POSSIBILIDADE. AUTORIZAÇÃO EXPRESSA E FORMAL. TESTAMENTO OU DOCUMENTO ANÁLOGO. PLANEJAMENTO FAMILIAR. AUTONOMIA E LIBERDADE PESSOAL.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, após o voto-vista do Ministro Luis Felipe Salomão, dando provimento aos recursos especiais, divergindo do relator, e a manifestação do relator mantendo seu voto anterior, e o voto do Ministro Raul Araújo acompanhando a divergência, e o voto da Ministra Maria Isabel Gallotti acompanhando o relator, e o voto do Ministro Antonio Carlos Ferreira acompanhando a divergência, por maioria, dar provimento aos recursos especiais, para restabelecer a sentença de piso e não autorizar a realização, pelos recorridos, de implantação do material biológico de J L Z, falecido, nos termos do voto divergente do Ministro Luis Felipe Salomão, que lavrará o acórdão.
É neste ponto que recentemente houve o supramencionado entendimento jurisprudencial, inovador no sistema jurídico brasileiro, o qual infelizmente indeferiu o uso do material genético para realização da inseminação artificial post mortem, tendo em vista que a manifestação da vontade, qual seja o elemento primordial para a autorização do uso do material genético após a morte do autor, não constava no contrato de maneira explícita.
Portanto, para utilização do material genético para fins de inseminação artificial mesmo com o óbito de uma das partes, faz-se necessária que a autorização seja inequívoca, formal e expressa a vontade das partes envolvidas, não podendo este elemento ficar subentendido.
Conforme bem explica a advogada Priscila Corrêa da Fonseca, sobre o referido julgado, o entendimento da 4ª turma está em conformidade com as disposições legais aplicáveis ao caso, em tema que representa verdadeiro leading case, diante de seu ineditismo.
"É de suma importância que a autorização para a implantação post mortem de embriões criopresercados seja manifestada de forma expressa, específica e indubitável. Essa manifestação é imprescindível, sob pena, inclusive, de abrimos oportunidade para práticas não condizentes com a ética médica e científica, como, por exemplo, a manipulação do genoma humano de forma indiscriminada."
Logo, há o que se falar na existência de proteção jurídica, mas também há o que investigar quanto a sua efetividade, considerando as diversas áreas que tal assunto pode afetar, seja nas relações interpessoais, no âmbito familiar, ou demais áreas ligadas a economia ou ao direito. A ausência de regulamentação específica é uma realidade no momento que precisa ser alterada, pois as partes envolvidas necessitam de segurança jurídica, afinal constituir uma família é um direito constitucionalmente garantido no ordenamento jurídico brasileiro.
5 CONCLUSÃO
Tendo em vista os aspectos observados, no qual os procedimentos envolvendo a tecnologia e a manipulação de material genético humano, qual seja a inseminação artificial e suas vertentes, se desenvolveram e avançaram de uma maneira muito rápida, de tal forma que os legisladores não acompanharam tal evolução. Entende-se que trata-se de um tema relativamente recente, porém já existem estudos suficientes e entendimentos em Tribunais Internacionais que justificam que uma maior proteção no ordenamento jurídico brasileiro faça-se presente o quanto antes, podendo até mesmo ser considerada urgente.
É de suma importância que os assuntos inerentes à vida humana e suas particularidades tenham uma legislação específica, e não somente uma regulamentação genérica. Mesmo com todas as ramificações e variáveis que um assunto possa ter, é dever do Estado legislar sobre tal, de modo a não deixar que seus cidadãos sofram prejuízos, alguns destes podendo até ser irreparáveis.
Contudo, no que diz respeito ao tema na esfera privada, vale ressaltar que no âmbito particular, no que se refere a realização do procedimento e manifestação da vontade para elaboração de contrato para realização do serviço, qual seja o procedimento de inseminação artificial, prevalece o disposto no Código Civil, sendo assim é essencial a presença da manifestação expressa e inequívoca, para que não reste dúvidas quanto a coleta, uso e descarte do material genético em questão.
As cláusulas devem ser claras e não deixarem lacunas quanto as particularidades do procedimento, evitando assim não somente a existência de litígios judiciais, mas também de evitar possíveis decepções para as partes contratantes, ou no caso mais grave: a frustração de iniciar todo um procedimento para gerar uma nova vida, e ao fim não obter sequer a realização, por falhas documentais ocorridas ao longo desse processo. Em suma, deve prevalecer a vontade originária das partes, desde que essa ocorra de forma clara e objetiva, para que não tenha espaço para dúvidas ou interpretações subjetivas que possam provocar prejuízos.
Ademais, a Constituição Federal e o Código Civil reconheceram e fizeram menção aos institutos que foram temas deste trabalho, mas não abraçaram todas as suas particularidades, o que causa uma certa insegurança jurídica para as partes, tendo em vista a ausência de legislação específica.
Deste modo, o ordenamento jurídico brasileiro tem cada vez mais julgados e precedentes do referido tema. Vale ressaltar que este, por sua vez, não tem um conceito taxativo, tendo em vista que ainda podem surgir novas formas de reprodução humana com o uso da tecnologia, as quais merecem a devida regulamentação e proteção jurídica adequada.
Faz-se necessário que os legisladores, considerando o atual conhecimento ao redor do mundo sobre o tema e seus diversos desdobramentos que já possuem precedentes, inclusive de Tribunais Internacionais, atualizem o ordenamento jurídico brasileiro, a fim de regulamentar de maneira mais específica possível atualmente o referido assunto, tendo em vista que seus impactos atingem diversas áreas da sociedade atual, que não podem continuar à mercê de lacunas legislativas, principalmente no que diz respeito à constituição de uma nova família.
POST-MORTEM ARTIFICIAL INSEMINATION AND THE IMPACT ON INTERPERSONAL AND LEGAL RELATIONS
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MADALENO, Rolf. Novos horizontes no direito de família. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Juliana Duarte da. Inseminação artificial pós mortem e o impacto nas relações interpessoais e jurídicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2022, 04:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60202/inseminao-artificial-ps-mortem-e-o-impacto-nas-relaes-interpessoais-e-jurdicas. Acesso em: 22 nov 2024.
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