WELLINGTON MIRANDA[1]
(orientador)
RESUMO: O presente artigo tem como desígnio evidenciar o dever jurídico do afeto e apontar a responsabilização pela omissão paterna, partindo da premissa da não banalização do abandono dos pais para com os filhos. Disserta sobre o entendimento do afeto como princípio do ordenamento jurídico, bem como, dever jurídico, fundamentado na responsabilidade civil. Deste modo, o afeto não pode ser entendido apenas como sinônimo de amor, e sim como um conjunto de vocábulos que serão apresentados ao longo da leitura. Este tema tem sido catalisador em razão da alta demanda judicial de ajuizamento de ações indenizatórias por abandono afetivo, e tem como principal fundamento o artigo 227 da Constituição Federal e embasamento em pesquisas científicas e doutrinárias.
Palavras-chave: Abandono afetivo. Afeto. Dever jurídico. Responsabilização. Omissão paterna.
O índice de pais ausentes é cada vez mais crescente no mundo. Em específico no Brasil, segundo dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), cerca de 12 milhões de mães criam seus filhos sozinhas, ou seja, mais de 5,5 milhões de brasileiros não portam registro paterno em seus documentos pessoais.
É indiscutível a importância da filiação reconhecida e a convivência familiar para um indivíduo, é em razão disso que a Constituição Federal Brasileira assegura o direito à paternidade e à maternidade um direito fundamental, logo sendo o princípio da dignidade humana, o princípio mistagogo do ordenamento jurídico brasileiro, portanto, é possível concluir que a omissão da maternidade e/ou paternidade fere diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana.
1.EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - ECA
Meados do século XX, mais precisamente em 12 de outubro de 1927, frente à situação de abandono significativo das crianças, exposição destas à criminalidade e o alto índice de mortalidade infantil, foi inserido na história do Brasil o Código de Menores, o primeiro decreto voltado à população infanto-juvenil. Esse código foi marcado por estabelecer a inimputabilidade dos jovens até os 17 (dezessete) anos, ou seja, os jovens a partir de 18 (dezoito) anos que que viessem a cometer condutas delituosas, seriam responsabilizados penalmente pelos seus crimes. Bem como determinar a intervenção do Estado em casos de menores infratores e crianças abandonadas, tais como a formação de juizados e conselhos de assistência. O Código de Menores também foi a alavanca inicial dos direitos trabalhistas dos trabalhadores menores, uma vez que o mesmo proibiu o trabalho para aqueles menores de 12 (doze) anos, passou a exigir a preparação dos trabalhadores menores de 14 (quatorze) anos e vetou a prática de atividades perigosas e que expusessem à integridade física e mental dos trabalhadores menores.
Com advento da promulgação da Constituição Federal de 1988, mudanças vultosas aconteceram, logo, foi o marco de uma nova fase ulterior à ditadura. A Constituição aproximou-se dos ideais seguidos pela Revolução francesa, tais como a liberdade, fraternidade e igualdade. Dessa forma, a população passou a ter maior participação nas decisões de interesse do Estado, apresentando uma nova era no país.
O legislador foi cirúrgico ao elaborar o artigo 227 da referida Constituição, neste é evidenciado o dever da sociedade, da família e do Estado assegurar à criança e ao adolescente. A partir da inserção dele na lei, a sociedade e parlamentares passaram a olhar sob uma perspectiva mais democrática. No entanto, por efeito de incontáveis movimentos e mobilizações sociais durante o processo constituinte, que em 13 de julho de 1990, sob a lei de nº 8.069, entra em vigor o Estatuto da Criança e do adolescente (ECA), dotado de transformações, melhorias e segurança aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma normatização jurídica que substituiu o Código de menores disposto na Lei 6.697/1979, em seu bojo há alterações da nomenclatura, de Código para Estatuto; do termo Menor para a expressão Crianças e Adolescentes; a substituição do preceito da situação irregular para a proteção integral da criança e adolescentes sujeitos de direitos.
O Estatuto discerne crianças e adolescentes: criança é a pessoa de até 12 anos incompletos, adolescente é a pessoa entre 12 e 18 anos de idade.
A lei tem como desígnio a proteção integral à criança e ao adolescente, e traz consigo a vedação da exploração, negligência, violência, discriminação, crueldade, opressão. Ademais, o Estatuto garante os direitos inerentes às crianças e adolescentes, tais como o direito à vida, alimentação, saúde, educação, esporte, lazer, à convivência familiar.
Dentre os maiores marcos do ECA, podemos destacar a lei 10.097/2000, conhecida como Lei da Aprendizagem, que apoia adolescentes e jovens entre 14 e 24 anos que desejam adentrar no mercado de trabalho e que estejam matriculados em alguma instituição de ensino. O adolescente e jovens que são admitidos pelo órgão empregador regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e simultaneamente matriculado em curso de aprendizagem profissional, responsável pela qualificação do jovem aprendiz. A lei prevê direitos e deveres tal como uma carga horária adaptada ao nível de escolaridade, assinatura da carteira de trabalho e os benefícios inerentes dela. A lei é voltada também às pessoas com deficiência, sem limite de idade. A Lei de Aprendizagem promove a inclusão social, a pluralidade no ambiente profissional, a diversidade de características e comportamentos, resultando na redução de desigualdades sociais.
O ECA proporcionou a criação de órgãos que tencionam a garantia do cumprimento das diretrizes dele, um deles é o Conselho Tutelar, órgão público municipal que garante a participação direta da sociedade, com atribuição de tutelar o cumprimento dos direitos da criança e do adolescente e assenta deveres e obrigações à família, comunidade e ao poder público.
Dessa forma, é indubitável o dever da família, sociedade e do poder público de assegurar integralmente a efetivação dos direitos pertencentes às crianças e adolescentes, de modo que seja garantido a estes o previsto no art. 4 da Lei 8.069/1990:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
No entanto, tratando-se da convivência familiar, ainda há uma lacuna na vida de centenas de crianças e adolescentes que se encontram em situação de abandono pelos genitores.
2.AFETO COMO DEVER JURÍDICO
Afeto na língua portuguesa é um substantivo masculino que tem como significado o sentimento terno de afeição por pessoa ou animal; amizade, bem como a manifestação de sentimento ou paixão. Afeto tem origem no vocábulo latino affectus, que traduz disposição, estar inclinado a. A raiz advém do termo afficere, que corresponde a afetar, fazer algo a alguém.
O afeto por muitas vezes é entendido como demonstração de carinho, beijo, abraços, no entanto, não é tão somente essas designações, o afeto vai muito além do contato físico e está intensamente interligado ao verbo afetar, ou seja, aquilo que é possível de afetar, de sentir-se afetado, seja de maneira positiva ou negativa.
Embora não haja precisamente uma harmonia quanto ao significado do termo afeto, há correntes doutrinárias que defendem sua perspectiva diante da ótica plurívoca.
Para Cristiano Chaves de Farias e Conrado Paulino de Rosa (2021) os signos afeto e amor são usados erroneamente como expressões sinônimas, todavia são termos diferentes e com significados distintos, e que por vezes o uso delas é de forma descuidada e até romantizada.
Para Rodrigo da Cunha Pereira (2018) o afeto não é somente um sentimento, e sim uma manifestação subjetiva que se exterioriza e é alcançável pelo mundo jurídico nas condutas objetivas de cuidado, solidariedade, responsabilidade, exercício dos deveres de educar, assistir etc., demonstradas nos relacionamentos e convivência familiar.
Na semântica jurídica o afeto é um fato social e psicológico. O afeto para o direito de família não é apenas um sentimento, ele é um ato-fato continuum, um dever de cuidado, de assistência e responsabilidade, tal afirmação não implica dizer na obrigação de amar alguém, no entanto, tratando-se do afeto nas relações parentais, é exigível o compromisso e responsabilidade. A afetividade geradora de direitos e obrigações é aquela que depende da conduta de assistência e cuidado, facilmente identificado na relação entre pais e filhos.
Entretanto, não é o afeto que interessa ao direito, o que de fato interessa são as relações sociais de natureza afetiva que constroem condutas suscetíveis à incidência de normas jurídicas.
É perceptível a existência indispensável do afeto em nas relações de família, o mesmo está no âmago da união estável, na adoção, na família monoparental e homoafetiva e dentre outras relações familiares, conjugais e parentais.
É imprescindível o reconhecimento da tutela jurídica do afeto pela Constituição. A construção doutrinária promovida pelo Instituto Brasileiro de Família (IBDFAM) reconheceu o vínculo da afetividade como elemento identificador das relações familiares. O afeto ocupou lugar de princípio jurídico fundamental.
Para Maria Berenice Dias, a afetividade é o princípio que fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico.
Um grande passo no direito de família foi o reconhecimento da afetividade como princípio. A mesma é um princípio implícito na norma constitucional, e está alicerçado no princípio da dignidade humana.
O Princípio da afetividade parte da premissa do dever jurídico, direcionado às pessoas que detenham vínculos de conjugalidade e parentalidade, as quais têm como base uma relação mútua de afetividade. Posteriormente, como segundo pressuposto, podemos identificar a presença de vínculo familiar reconhecido, seja ele de conjugalidade e parentalidade. O princípio da afetividade permitiu a compreensão de família para além da consanguinidade e laços jurídicos.
Há muitos anos a filiação deixou de ser apenas filhos legítimos, ou seja, filhos dos mesmos genitores concebidos dentro do casamento, a definição de filiação foi ampliada e passou a existir acerca de três espécies: filiação biológica, filiação socioafetiva e adoção.
A filiação biológica, segundo o Código Civil brasileiro, trata-se de parentesco civil ou natural, advindo da endogamia. A filiação socioafetiva, que consiste no afeto, é uma relação mútua de convivência exercida entre pais e filhos. A adoção é o ato de tornar filho, é a criação de vínculo afetivo entre o adotante e o adotado, inserindo-o num ambiente familiar.
Entretanto, o conceito de familiar se habitua em conformidade ao cumprimento de sua função social, e em todas as definições de família é possível localizar a presença do afeto, portanto, pode-se exprimir que sem afeto não há laços familiares.
O dever jurídico do afeto consiste no dever imposto aos pais em relação aos filhos. Como já descrito, o afeto no âmbito da juridicidade, vai muito além do sentimento e relaciona-se com a responsabilidade e o dever de cuidado. É por esta razão que o afeto pode ser fruto de uma obrigação jurídica e fonte de responsabilidade civil, salienta-se o princípio da afetividade concomitantemente à paternidade responsável incide o estabelecimento da responsabilidade civil.
Há uma interface entre a responsabilidade civil e o direito de família, no entanto, o recorte será feito especificamente no abandono afetivo.
A responsabilidade civil tem como sentido principal o dever de reparar de alguma forma os danos causados a outrem, no caso do dano psicológico, o mesmo é irreparável, no entanto, é através da responsabilidade civil que o causador do dano é responsabilizado pela sua conduta.
O doutrinador Plácido e Silva conceitua Responsabilidade Civil da seguinte forma:
Dever jurídico, em que se coloca a pessoa, seja em virtude de contrato, seja em face de fato ou omissão, que lhe seja imputado, para satisfazer a prestação convencionada ou para suportar as sanções legais, que lhe são impostas. Onde quer, portanto, que haja obrigação de fazer, dar ou não fazer alguma coisa, de ressarcir danos, de suportar sanções legais ou penalidades, há a responsabilidade, em virtude da qual se exige a satisfação ou o cumprimento da obrigação ou da sanção (SILVA, 2010, p. 642).
O instituto da responsabilidade civil está fundamentado no art. 186 do Código Civil:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
O ato ilícito equivale ao descumprimento de uma obrigação, ocasionando a lesão a direitos de terceiros. O direito lesionado gera responsabilidade civil, ou seja, o dever de reparar o dano.
No entanto, para caracterizar a responsabilidade civil faz se necessária a observância de três pressupostos, conforme entendimento de Maria Helena Diniz: 1) um ato de natureza comissiva ou omissiva; 2) nexo causal entre o dano e a ação; 3) Dano moral ou patrimonial ocasionado por uma conduta comissiva ou omissiva do agente.
Presentes os pressupostos citados, numa relação de família, mais especificamente entre pai e filho, estão presentes o instituto da responsabilidade civil.
3.ABANDONO AFETIVO
A Constituição Federal em seu capítulo VII, versa sobre os direitos e deveres da família, criança, adolescente, jovem e idoso.
Em seu art. 227 dispões sobre os deveres familiar, da sociedade e do Estado:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Ainda, o art. 229 expressa:
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
É indubitável o entendimento que todo e qualquer indivíduo tenha o direito de gozar do que salienta a lei, no entanto, a realidade está cada vez mais antagônica ao ordenamento jurídico. O número de filhos que crescem sem a presença e apoio dos pais é alarmante. Bebês que são deixados em lugares inusitados não acontece só nos filmes, crianças deixadas com conhecidos ou parentes, pais que saem para comprar cigarros e nunca mais voltar. São incontáveis situações que os pais são omissos aos deveres que lhe são inerentes. Não que este seja um ato digno de justificativa, mas há pesquisas que expressam possíveis motivos que levam um pai ao abandono do filho, tais como:
a) Uso de drogas e álcool
O abuso do uso de drogas e álcool é um dos problemas recorrentes que influenciam no abandono do lar. Um dos primeiros indícios do abandono é a negligência com a família e até mesmo a violência, por conseguinte a exclusão social e após isso o abandono familiar definitivo.
b) Gravidez inesperada e indesejada
O susto, a negação, o medo e a insegurança são fatores que influenciam diretamente no abandono e por muitas vezes, nos casos das genitoras, até no aborto. Alguns momentos de sexo desprotegido e descuidado podem gerar uma vida, que na maioria das vezes pagam pelo arrependimento e irresponsabilidade dos pais.
c) Deserção de responsabilidade
Criar um filho exige muita responsabilidade e dedicação, e não são todos que estão preparados e querem assumir essa obrigação. Pais e mães imaturas acabam por optar pelo “caminho mais fácil e cômodo”: entregar o filho para adoção ou parente/conhecido, abandoná-lo em qualquer lugar ou, a pior das escolhas: o aborto.
d) Dissolução do casamento
Com o rompimento da relação entre os genitores, os filhos sofrem perdas afetivas eloquentes, pois para eles é difícil entender o afastamento repentino e por muitas vezes o abandono. Existem pais que não sabem separar o vínculo da conjugalidade do vínculo da parentalidade. A relação entre pai e filho não se dissolve com o fim do casamento, tampouco os deveres de pai para com o filho.
Abandono significa dizer que é o ato ou efeito de desistir, renunciar, abandonar; afastamento, desistência, renúncia. Abandono afetivo é a omissão de cuidado, assistência física, psíquica, educacional, omissão moral e social que os pais cometem na criação dos filhos. Essa situação é mais comum na infância ou na adolescência.
Quando abordado o tema abandono afetivo, é comum a associação errônea ao pagamento de pensão alimentícia, entretanto, a expressão abandono afetivo não diz tão somente ao inadimplemento do dever de pagar alimentos, isto é, ainda que o genitor efetue o pagamento corretamente da pensão alimentícia e não cumpra o dever de convívio e cuidado, este será omisso. O pai ausente não é unicamente aquele que não possui vínculo e convivência com o filho. O pai ausente também é aquele que proporciona ao filho apenas o sustento material e por muitas das vezes nem isso.
A omissão de cuidado configura ato ilícito violador de normas infraconstitucionais, bem como o direito fundamental à convivência familiar, disposto no art. 227 da Constituição Federal.
O direito dos filhos é amparado pelos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente e Código Civil, segundo o qual o pai ou mãe que não detém a guarda do filho também possui obrigações de cuidado, manutenção e educação, além do amparo pecuniário:
Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:
IV - sustento, guarda e educação dos filhos;
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e cumprir as determinações judiciais.
O pagamento isolado da pensão alimentícia não encerra o cumprimento das obrigações de pai ou mãe, sendo a convivência e assistência moral, deveres indispensáveis à construção da personalidade equilibrada do filho, exigindo de ambos os pais atenção, presença e orientação.
Nesse sentido, o dever de assistência psicológica dos pais em relação à prole é inescusável, e, por óbvio, envolve necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento sociopsicológico do filho.
A responsabilidade se traduz no dever de cuidar, criar, educar e acompanhar, assegurando a dignidade da pessoa humana e a proteção dos interesses da criança e adolescente. Este dever de cuidado, decorrente do poder familiar, quando ignorado, desdobra-se em ato ilícito, devendo ser indenizado.
Nesse sentido, é a jurisprudência do STJ:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp 1159242/SP, RECURSO ESPECIAL 2009/0193701-9, terceira turma, Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe 10/05/2012.)
Ademais, todo e qualquer indivíduo, para ter estrutura como sujeito e se desenvolver de maneira íntegra e saudável, necessita de alimentos não só para o corpo, mas também para alma. O alimento fundamental para a alma é o afeto, o amor, o cuidado, a atenção.
A base de um indivíduo é a família, a responsável por fazer parte da formação psíquica, moral e social deste. É na família que a criança encontra o amparo, proteção e segurança para a sua sobrevivência. Via de regra, os genitores são os detentores do poder familiar.
É comum o abandono afetivo iniciar após o fim da união dos genitores, apesar do ponto final do relacionamento tratar-se de um direito potestativo, isto é, aquele que é incontestável, incontroverso; quando há filhos de ambas as partes, não é tão simples dar adeus à relação, virar as costas e desaparecer.
O mal do século está voltado aos pais que não assumem seus deveres paternos, não participam da criação, desenvolvimento e formação dos filhos, muitos dos genitores se negam a registrar os filhos. É importante salientar que o fim da conjugalidade dos genitores não incumbe ao fim da paternidade, logo o egoísmo é de grau tão elevado que o fato de que os filhos são as grandes vítimas e as partes que mais sofrem, é esquecido. O que era amor vira ferida. Todavia, o vínculo existente entre pai e filho se dissolve apenas com a morte de uma das partes.
A inserção de um filho na sociedade decorre da convivência em família, da relação afeto existente entre os membros. No entanto, com enfoque na figura paterna, o exercício da paternidade jamais poderá estar vinculado unicamente ao suprimento das necessidades materiais, bem como já mencionado os seres humanos são seres afetivos e necessitam de alimentos para a alma. A omissão da função paterna, especificamente na infância, ocasiona sofrimentos de ordem psíquica, moral e afetiva irreversíveis à criança. Indubitavelmente as maiores consequências negativas decorrentes do abandono são de ordem psíquica. O sentimento de abandono e rejeição pode acompanhar o indivíduo durante toda sua vida. A primeira infância é a fase de maior importância na formação e desenvolvimento da criança, em razão disso, os grandes impactos são absorvidos e internalizados por esta, e refletem diretamente na vida adulta, o que pode dificultar relações futuras, até mesmo ocasionar problemas de baixa autoestima, insegurança e até mesmo quadros mais sérios de transtornos de personalidade e quadros depressivos.
Sendo o exercício da maternidade e paternidade - em razão do estado de filiação - é um bem indisponível para o Direito de Família, é por esse motivo que o descumprimento e a omissão geram ofensas aos princípios morais da ordem constitucional e civil.
Amparada na famigerada frase da Ministra Fátima Nancy: amar é faculdade, cuidar é dever, que esta conduziu a origem do dever de indenização resultante do abandono que ocasiona dano moral.
4.A RESPONSABILIZAÇÃO PELA OMISSÃO PATERNA
Conforme entendimento de Giselda Hironaka (2007, online),
O dano causado pelo abandono afetivo é antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, sendo certo que essa personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar, responsável que é por incutir na criança o sentimento de responsabilidade social, por meio do cumprimento das prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a sua plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada.
Superada a demonstração de que o ordenamento jurídico dispõe sobre os deveres inescapáveis inerentes à paternidade, resta analisar se a omissão constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral indenizável. Conforme previsto no arts. 186 e 927 do Código Civil:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
[...]
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Primeiramente, é necessário refletir sobre a existência de ação ou omissão, juridicamente relevante, a ponto de motivar a responsabilização. A responsabilidade civil subjetiva surge com uma ação ou omissão que resulta em dano a terceiro. Analisa-se no presente caso especificamente quanto à negligência de alguém que, mesmo obrigado a praticar determinado ato, o deixa de fazer.
A negligência quanto aos deveres da paternidade também é prevista na Constituição Federal, em seu art. 227:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Importante destacar, o debate é técnico, não se mensura o sentimento do amor, mas sim a verificação do cumprimento de uma obrigação legal, reconhecida como o dever de cuidado. Este pode ser verificado objetivamente, em ações concretas, como presença, contato, cuidado, acompanhamento educacional, médico etc.
Demonstrado que a negligência do dever de cuidado é ilícito civil, importa ainda, para caracterização do dever de indenizar, estabelecer a existência de dano e nexo causal, o mesmo por muitas vezes é identificado em problemas de ordem psicológica diretamente ligados à negligência paterna.
Com esse enfoque, segundo Maria Berenice Dias (2017, p. 13):
A lei obriga e responsabiliza os pais no que toca aos cuidados com os filhos. A ausência desses cuidados, o abandono moral, viola a integridade psicofísica dos filhos, nem como princípio da solidariedade familiar, valores protegidos constitucionalmente. Esse tipo de violação configura dano moral. E quem causa danos é obrigado a indenizar. A indenização deve ser em valor suficiente para cobrir as despesas necessárias para que o filho possa amenizar as sequelas psicológicas.
Com isso, diante dos casos de abandono afetivo é cabível a fixação de indenização em razão do descumprimento ao dever de cuidado e assistência. Essa responsabilização é de caráter objetivo, portanto, é suficiente o nexo causal entre a conduta do agente e o dano sofrido pela vítima.
Importante destacar não tratar-se de valoração do amor, mas sim de caráter punitivo e sancionatório pela omissão do dever imposto por lei. Não se pode banalizar o ato de um genitor conceber um filho e simplesmente lhes negar o direito fundamental à convivência familiar, ao afeto, assistência e ao acompanhamento do desenvolvimento e formação deste. É necessário o entendimento dos genitores que fornece apenas o alimento não é suficiente, os indivíduos precisam de mais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As crianças e adolescentes são sujeitos de direito perante o Estado, à sociedade e à família. Com enfoque nos genitores, estes possuem deveres irrenunciáveis para com sua prole, o sustento, a guarda, a educação; bem como a assistência, o afeto, a convivência e o cuidado.
O afeto pode ser caracterizado por um conjunto de atos que alentam relações intersubjetivas, dentre eles está o apego, o cuidado, a proteção, a atenção, são ações que alimentam a alma e que todo indivíduo necessita, pois todos são seres afetivos.
O genitor que se nega cumprir seus deveres como pai está violando princípios expressos do ordenamento jurídico, como o princípio da dignidade humana e princípio da personalidade. A ausência do afeto ocasiona consequências negativas e irreversíveis aos filhos, são estes que carregam consigo durante toda a vida os danos emocionais e transtornos psicológicos.
Em razão da omissão do dever de cuidado tratar-se de conduta que lesiona os direitos de outrem (ato ilícito) o genitor pode ser responsabilizado pelos danos causados mediante indenização por abandono afetivo. Destaca-se que o tema em questão não tem como entendimento a coação pelo amor ou a monetização do afeto, e sim, o reconhecimento do caráter punitivo e educativo pelo enjeitamento e o desprezo do pai para com o filho.
Não punir tal conduta é banalizar o ato, premiar os genitores negligentes e omissos, fazendo multiplicar os agentes, portanto, a indenização concerne em sanção que tem caráter sancionatório e reparativo, apesar da pecúnia não compensar o dano causado e o desamor.
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[1] Orientador. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro Oeste (2005) e graduação em Medicina Veterinária pela Universidade Estadual do Maranhão (1992). Atualmente é Analista Ministerial - ciências jurídicas - Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Tocantins e professor mestre da Centro Universitário Católica do Tocantins (UNICATÓLICA) desde 2009. Mestre em prestação jurisdicional em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Escola da Magistratura Tocantinense (ESMAT) e Universidade Federal do Tocantins. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito, especialista em Direito do Trabalho pelo Instituto Processus/DF e em Estado de Direito e Combate à Corrupção pela ESMAT, Atuando na docência há 34 anos, no ensino fundamental, médio, pré-vestibular e superior nas áreas de Medicina Veterinária, Agronomia, Zootecnia e Direito, principalmente nas seguintes áreas de Direito Administrativo, Civil, Penal, Processual Penal, Tributário, Comercial, Consumidor e Agrário. Especialista em metodologias ativas pelo Centro Universitário Católica do Tocantins.
Graduanda do Curso de Direito pelo Centro Universitário Católica do Tocantins – UniCatólica.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Kécia Lima da. O dever jurídico do afeto e a responsabilização pela omissão paterna Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2022, 04:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60398/o-dever-jurdico-do-afeto-e-a-responsabilizao-pela-omisso-paterna. Acesso em: 22 nov 2024.
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