RESUMO: O presente artigo faz uma análise sobre a viabilidade ou não de leis editadas em âmbito estadual permitirem cultivo e processamento da cannabis sativa no território do ente federado para fins medicinais, industriais e científicos. O estudo é feito com base em caso prático enfrentado pelo autor no exercício de sua atividade profissional junto à Comissão de Constituição, Legislação e Justiça da ALE/PE, situação na qual a equipe de assessoramento da CCLJ precisou analisar projeto de lei regulamentando a matéria.
Palavras-chave: Federalismo. Competência Concorrente. Assembleias Legislativas. Proteção à Saúde. Direito Penal. Competência complementar supletiva dos Estados-Membros. Direitos Fundamentais. Direito à saúde.
1.INTRODUÇÃO
O presente estudo é fruto de pesquisa realizada na área do Direito Constitucional, com análise centrada nos limites da atuação dos legislativos estaduais na matéria de proteção à saúde quando em eventual choque com competências privativas da União para tratar sobre direito penal.
O autor teve contato mais aprofundado com o tema em virtude de sua atuação profissional, já que ocupa o cargo de Agente Legislativo na ALEPE, prestando assessoramento à Comissão de Constituição, Legislação e Justiça daquela casa. No ano de 2022 foi distribuído àquele colegiado projeto de lei com a finalidade de dispõe sobre o cultivo e o processamento da cannabis sativa para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais, por associações de pacientes, nos casos autorizados pela ANVISA e pela legislação federal nos termos Lei Federal nº 11.343/2006.
2. DESENVOLVIMENTO
Inicialmente, é imperioso destacar que no mérito a proposição visa garantir o barateamento do custo dos insumos de remédios que têm sua importação autorizada pelo SUS, mas que por não poderem ter sua matéria-prima produzida no Brasil possuem alto custo e são inacessíveis para boa parte da população. Neste sentido, na visão deste autor, no mérito a iniciativa e louvável e fundamental para assegurar o acesso à saúde de pessoas que fazem uso terapêutico da cannabis medicinal. Dessa forma, a proposição encontra-se em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde, ambos previstos constitucionalmente.
Em relação à competência administrativa, competência para executar ações, assim a CF dispõe em relação à saúde :
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...)
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;”
Também na Carta Magna, há um Título chamado “Da Ordem Social”, com um capítulo chamado “Da Seguridade Social”, havendo neste uma Seção chamada “Da Saúde”. Nesta Seção, importante destacarmos o artigo 196, que a inicia, bem como o artigo 198. Vejamos:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
(...)
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
(...)
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;”
Contudo, não é apenas a competência administrativa/material que deve ser analisada quando se está diante de dilema como o versado no presente artigo. Imprescindível que seja feita análise também das regras de competência legislativa previstas na CF/88. Nesta senda, , a Constituição Federal garante aos Estados competência concorrente para, junto com a União, legislar sobre proteção e defesa da saúde.
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;”
Por outro lado, o artigo 22 determina que cabe à União legislar de forma privativa sobre Direito Penal:
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[...]
I - direito civil, comercial, penal,”
Avançando na matéria objeto do projeto, necessário consignar que a União Federal editou a Lei Federal 11.343, de 23 de agosto de 2006, conhecida como Lei de Drogas. Em tal diploma, há a seguinte previsão:
“Art. 2o Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.
Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas”
Da análise do dispositivo transcrito, percebe-se que, se por um lado ficou proibido o plantio de substratos dos quais possam ser produzidas drogas (e a cannabis é uma delas, já que consta de atos infralegais editados pela ANVISA como sendo droga), por outro lado à União ficou garantida a prerrogativa de autorizar o plantio, cultura e colheita de tais substâncias para fins medicinais ou científicos.
A questão posta em discussão é se a permissão de cultivo por meio de lei estadual acarretaria a descriminalização de uma conduta hoje posta como crime (inconstitucional, portanto, por invadir competência privativa da União para legislar sobre direito penal), ou se o fato de o próprio legislador federal ter previsto em lei federal que o plantio e cultura de determinadas substâncias com fins medicinais poderia ser permitido pela União, poderia, em certa medida, afastar o viés penal da norma que permite o plantio para fins medicinais, deixando-a apenas no âmbito das normas de proteção à saúde (competência concorrente).
Com efeito, não há posição firmada pelo STF sobre o tema, e há bons argumentos em ambos entendimentos. Contudo, a posição que prevaleceu no âmbito da CCLJ da ALEPE, foi a de que passados 16 anos da publicação da lei supracitada, a União não regulamentou o plantio da cannabis para fins medicinais, mesmo com fortes modificações no conhecimento científico a respeito das propriedades medicinais da substância.
A bem da verdade, a própria União reconhece a finalidade medicinal da cannabis, haja vista permitir o uso medicinal de produtos elaborados usando-a como matéria prima. No entanto, sem motivo aparente, insiste em negar a possibilidade de seu cultivo e plantio em território nacional para fins medicinais, impondo àqueles que queiram produzir os remédios à base da substância que realizem a importação da matéria prima, encarecendo sobremaneira a medicação, que hoje em dia tem evidência científica de utilidade para tratamento de certas doenças.
Assim dispõe a RDC 327-2019 da Anvisa:
“Art. 18. Para fins da fabricação e comercialização de produto de Cannabis, em território nacional, a empresa deve importar o insumo farmacêutico nas formas de derivado vegetal, fitofármaco, a granel, ou produto industrializado.
Parágrafo único. Não é permitida a importação da planta ou partes da planta de Cannabis spp.”
Desta forma, em havendo vácuo legislativo quanto à previsão da possibilidade de plantio da cannabis em território nacional para fins medicinais e científicos, entendeu a CCLJ da ALEPE que a situação pode ser enquadrada nos parágrafos do artigo 24 da CF, que assim dispõem :
“§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”
O parágrafo 3º, supracitado, trata da competência legislativa suplementar supletiva, que garante aos Estados, que, quando não houver lei federal regulamentando a matéria, poderão estes legislar sobre o tema, com a ressalva de que posterior lei federal tratando da matéria irá suspender a eficácia da lei estadual naquilo que for contrário. Assim sendo, uma vez que a União, apesar de permitir a comercialização de remédios à base de cannabis, não exerceu seu papel de permitir o cultivo da matéria-prima, obrigando que seja feita a importação da substância, a Comissão de Justiça do Parlamento pernambucano consignou que exsurge a competência complementar supletiva do Estado na matéria, haja vista tratar-se de legislação a respeito de proteção e defesa da saúde, de forma que o Estado de Pernambuco tem competência, nos termos do que entendeu o colegiado, para editar lei na forma do projeto que havia sido posto em análise.
Outro argumento citado pela ALEPE na aprovação do projeto foi a teoria da “inconstitucionalidade superveniente” ou “processo de insconstitucionalização”, utilizada pelo STF no paradigmático “Caso do Amianto”. Naquela assentada, após ter reconhecido, inicialmente, a constitucionalidade de norma federal que permitia o uso do amianto crisotila, o STF acabou por declarar a constitucionalidade de normas estaduais que impediam o uso de tal substância, declarando, por fim, a inconstitucionalidade da norma federal que liberava seu uso, afirmando que ocorreu uma progressiva inconstitucionalidade da norma federal, que não mais estaria de acordo com o conhecimento científico vigente no momento. Vejamos trechos da ementa da decisão do Pretório Excelso:
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 12.684/2007 do Estado de São Paulo. Proibição do uso de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto ou asbesto. Produção e consumo, proteção do meio ambiente e proteção e defesa da saúde. Competência legislativa concorrente. Impossibilidade de a legislação estadual disciplinar matéria de forma contrária à lei geral federal. Lei federal nº 9.055/1995. Autorização de extração, industrialização, utilização e comercialização do amianto da variedade crisotila. Processo de inconstitucionalização. Alteração nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica. Natureza cancerígena do amianto crisotila e inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura. Existência de matérias-primas alternativas. Ausência de revisão da legislação federal, como determina a Convenção nº 162 da OIT. Inconstitucionalidade superveniente da Lei Federal nº 9.055/1995. Competência legislativa plena dos estados. Constitucionalidade da Lei estadual nº 12.684/2007. Improcedência da ação. 1. A Lei nº 12.684/2007, do Estado de São Paulo, proíbe a utilização, no âmbito daquele Estado, de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto ou asbesto, versando sobre produção e consumo (art. 24, V, CF/88), proteção do meio ambiente (art. 24, VI) e proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CF/88). Dessa forma, compete, concorrentemente, à União a edição de normas gerais e aos estados suplementar a legislação federal no que couber (art. 24, §§ 1º e 2º, CF/88). Somente na hipótese de inexistência de lei federal é que os estados exercerão a competência legislativa plena (art. 24, § 3º, CF/88). 2. A Constituição de 1988 estabeleceu uma competência concorrente não cumulativa, na qual há expressa delimitação dos modos de atuação de cada ente federativo, os quais não se sobrepõem. Compete à União editar as normas gerais (art. 24, § 1º), não cabendo aos estados contrariar ou substituir o que definido em norma geral, mas sim o suplementar (art. 24, § 2º). Se, por um lado, a norma geral não pode impedir o exercício da competência estadual de suplementar as matérias arroladas no art. 24, por outro, não se pode admitir que a legislação estadual possa adentrar a competência da União e disciplinar a matéria de forma contrária à norma geral federal, desvirtuando o mínimo de unidade normativa almejado pela Constituição Federal. A inobservância dos limites constitucionais impostos ao exercício da competência concorrente implica a inconstitucionalidade formal da lei. 3. O art. 1º da Lei Federal nº 9.055/1995 proibiu a extração, a produção, a industrialização, a utilização e a comercialização de todos os tipos de amianto, com exceção da crisotila. Em seu art. 2º, a lei autorizou a extração, a industrialização, a utilização e a comercialização do amianto da variedade crisotila (asbesto branco) na forma definida na lei. Assim, se a lei federal admite, de modo restrito, o uso do amianto, em tese, a lei estadual não poderia proibi-lo totalmente, pois, desse modo, atuaria de forma contrária à prescrição da norma geral federal. Nesse caso, não há norma suplementar, mas norma contrária/substitutiva à lei geral, em detrimento da competência legislativa da União. 4. No entanto, o art. 2º da Lei Federal nº 9.055/1995 passou por um processo de inconstitucionalização, em razão da alteração nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica, e, no momento atual, não mais se compatibiliza com a Constituição de 1988. Se, antes, tinha-se notícia dos possíveis riscos à saúde e ao meio ambiente ocasionados pela utilização da crisotila, falando-se, na época da edição da lei, na possibilidade do uso controlado dessa substância, atualmente, o que se observa é um consenso em torno da natureza altamente cancerígena do mineral e da inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura, sendo esse o entendimento oficial dos órgãos nacionais e internacionais que detêm autoridade no tema da saúde em geral e da saúde do trabalhador. 5. A Convenção nº 162 da Organização Internacional do Trabalho, de junho de 1986, prevê, dentre seus princípios gerais, a necessidade de revisão da legislação nacional sempre que o desenvolvimento técnico e o progresso no conhecimento científico o requeiram (art. 3º, § 2). A convenção também determina a substituição do amianto por material menos danoso, ou mesmo seu efetivo banimento, sempre que isso se revelar necessário e for tecnicamente viável (art. 10). Portanto, o Brasil assumiu o compromisso internacional de revisar sua legislação e de substituir, quando tecnicamente viável, a utilização do amianto crisotila. 6. Quando da edição da lei federal, o país não dispunha de produto qualificado para substituir o amianto crisotila. No entanto, atualmente, existem materiais alternativos. Com o advento de materiais recomendados pelo Ministério da Saúde e pela ANVISA e em atendimento aos compromissos internacionais de revisão periódica da legislação, a Lei Federal nº 9.055/1995 – que, desde sua edição, não sofreu nenhuma atualização -, deveria ter sido revista para banir progressivamente a utilização do asbesto na variedade crisotila, ajustando-se ao estágio atual do consenso em torno dos riscos envolvidos na utilização desse mineral. 7. (i) O consenso dos órgãos oficiais de saúde geral e de saúde do trabalhador em torno da natureza altamente cancerígena do amianto crisotila, (ii) a existência de materiais alternativos à fibra de amianto e (iii) a ausência de revisão da legislação federal revelam a inconstitucionalidade superveniente (sob a óptica material) da Lei Federal nº 9.055/1995, por ofensa ao direito à saúde (art. 6º e 196, CF/88), ao dever estatal de redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, inciso XXII, CF/88), e à proteção do meio ambiente (art. 225, CF/88). 8. Diante da invalidade da norma geral federal, os estados-membros passam a ter competência legislativa plena sobre a matéria, nos termos do art. 24, § 3º, da CF/88. Tendo em vista que a Lei nº 12.684/2007 do Estado de São Paulo proíbe a utilização do amianto crisotila nas atividades que menciona, em consonância com os preceitos constitucionais (em especial, os arts. 6º, 7º, inciso XXII; 196 e 225 da CF/88) e com os compromissos internacionais subscritos pelo Estado brasileiro, não incide ela no mesmo vício de inconstitucionalidade material da legislação federal. 9. Ação direta julgada improcedente, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 9.055/1995, com efeito erga omnes e vinculante.[1]
Mutatis mutandis, a CCLJ/ALEPE afirmou que a situação então examinada se assemelhava à situação acima citada. O estado da arte científico atual seria indene de dúvidas quanto à eficiência dos tratamentos com medicamentos feitos à base de cannabis, tanto é assim que a própria ANVISA permite sua comercialização em território nacional. Negar a possibilidade de plantio, de forma a baratear os custos da medicação, impondo aos necessitados um maior dispêndio financeiro e até mesmo, em caso de pessoas necessitadas financeiramente, impossibilitando o seu uso, na visão do colegiado estaria em total contrariedade aos dispositivos constitucionais acima citados, de proteção à saúde.
Conforme consignado pela Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, inconstitucional é a situação ora posta, em que a mora da União em permitir o plantio, para fins medicinais, gera inegável barreira ao acesso à saúde e à dignidade da pessoa humana, inclusive, sob o ponto de vista da isonomia material, já que cidadãos mais abastados têm acesso a medicações que poderiam ser mais facilmente adquiridas por cidadãos menos favorecidos financeiramente caso a autorização do plantio já existisse.
De mais a mais, corroborando, de certa maneira, o posicionamento acima exposto, imperioso ressaltar recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu salvo-conduto para que pacientes pudessem fazer o cultivo de cannabis para fins medicinais sem serem alvo de qualquer medida penal por parte do Estado, indo ao encontro de ideias e princípios defendidos pela CCLJ e expostos neste artigo. Vejamos a ementa da decisão[2]:
“RECURSO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. SALVO-CONDUTO. CULTIVO ARTESANAL DE CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. OMISSÃO REGULAMENTAR. DIREITO À SAÚDE. 1. O Direito Penal é conformado pelo princípio da intervenção mínima e seus consectários, a fragmentariedade e a subsidiariedade. Passando pelo legislador e chegando ao aplicador, o Direito Penal, por ser o ramo do direito de mais gravosa sanção pelo descumprimento de suas normas, deve ser ultima ratio. Somente em caso de ineficiência de outros ramos do direito em tutelar os bens jurídicos é que o legislador deve lançar mão do aparato penal. Não é qualquer lesão a um determinado bem jurídico que deve ser objeto de criminalização, mas apenas as lesões relevantes, gravosas, de impacto para a sociedade. 2. A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares. 3. A omissão legislativa em não regulamentar o plantio para fins medicinais não representa "mera opção do Poder Legislativo" (ou órgão estatal competente) em não regulamentar a matéria, que passa ao largo de consequências jurídicas. O Estado possui o dever de observar as prescrições constitucionais e legais, sendo exigível atuações concretas na sociedade. 4. O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade. A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina. 5. Vislumbro flagrante ilegalidade na instauração de persecução penal de quem, possuindo prescrição médica devidamente circunstanciada, autorização de importação da ANVISA e expertise para produção, comprovada por certificado de curso ministrado por associação, cultiva cannabis sativa para extração de canabidiol para uso próprio. 6. Recurso em habeas corpus provido para conceder salvo-conduto a Guilherme Martins Panayotou, para impedir que qualquer órgão de persecução penal, como polícias civil, militar e federal, Ministério Público estadual ou Ministério Público Federal, turbe ou embarace o cultivo de 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, totalizando 60 por ano, para uso exclusivo próprio, enquanto durar o tratamento, nos termos de autorização médica, a ser atualizada anualmente, que integra a presente ordem, até a regulamentação do art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006.
Por fim, importante acrescentar que o parlamento pernambucano não aprovou o projeto de lei na redação original apresentada pelo Deputado autor, já que entendeu, no que concorda este autor, que não há qualquer justificativa plausível para que uma lei estadual permita também o cultivo para fins industriais, até mesmo porque a lei federal supracitada apenas autorizava que a União permitisse o cultivo para fins medicinais. Frise-se, ademais, que como a edição de eventuais leis estaduais nesse sentido são normas editadas no exercício da competência suplementar supletiva, em havendo posterior lei federal em sentido contrário, as leis estaduais terão sua eficácia suspensa no que estiver em contradição com a lei federal.
3. CONCLUSÃO
Ante todo o exposto, percebe-se que o assunto ainda não foi objeto de julgamento no STF, havendo argumentos possíveis para defender tanto o entendimento de que a norma, por ter o efeito prático de descriminalizar uma conduta (cultivo de cannabis sativa), tem natureza de norma de direito penal, sendo, portanto, inviável de ser aprovada em âmbito estadual, quanto o entendimento de que a norma, na verdade tem natureza de norma de proteção da saúde, podendo ser editada pelos parlamentos estaduais.
Ao longo do estudo, foram apresentados com maior profundidade argumentos que favorecem o segundo entendimento citado acima, por ter sido a posição adotada pela CCLJ da ALEPE. Por fim, imprescindível reforçar que a aprovação no âmbito do parlamento pernambucano não abarcou os usos industriais, como almejava o Deputado autor do projeto de lei, já que a lei federal que falava em autorização de cultivo por parte da União era expressa em fazê-lo apenas para fins medicinais.
REFERÊNCIAS
ADI 3937, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24/08/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31-01-2019 PUBLIC 01-02-2019
RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 147169 – SP, Relator, Ministro Sebastião Reis Júnior.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife da UFPE, Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes, Advogado e ocupante do cargo efetivo de Agente Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, onde assessora a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENEZES, Raul Queiroz de. A possibilidade ou não de leis estaduais tratarem sobre o cultivo de cannabis sativa para fins medicinais. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 fev 2023, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61058/a-possibilidade-ou-no-de-leis-estaduais-tratarem-sobre-o-cultivo-de-cannabis-sativa-para-fins-medicinais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
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